You are on page 1of 8
sale preta Criagao coletiva e processo colaborativo algumas semelhancas e diferencas no trabalho dramaturgico indo sera que essa dramarurgia vai ficar pronta? Quando sera que vamos parar de re- escrever esta cena? Algum dia esse roteiro vai ficar bom? © prazer de tabalhar com dra maturgos antigabinetes, antitorres-de-mar- fim. Generosos ¢ arrojados. Sem preguiga de ouvir as necessidades que nascem na sala de ensaio, sem pudor de jogar seu texto fora sea cena asim o pedir. Dramaturgos que abdi- cam da erernidade em prol de uma escrita tio fagaz e temporiria coma a dos aores e dire té os prinefpios do século XX, era impen- sada uma colocaséo como essa, feita pelo diretor do Teatro da Vertigem em um tex- to em que ele pretendeu reportar, 4 manei- rada escrita surrealista, o denominado pro- cesso colaborativo de trabalho nos espeticulos da Trilogia Biblica do grupo. Durante muito tempo o texto foi consi- derado o elemento mais importante do teatro € © autor teve o dominio de contetido, forma e Addlia Nicolece € dramaturga e rote Adélia Nicolete sentido. Dessa maneira, como encenar uma pega que ainda no fora escrita por completo? Para que dar ouvidos a atores, se eram encara- dos como simples emissores do texto? Dar voz a0 diretor, se sua missio era cumprir‘fielmente’ as prescrigées de um autor que, na quase totali- dade dos casos, escrevia a pega concentrada ¢ solitariamente, acalentando o sonho nada secre- to de ser eternizado pela literatura? Tem pouco mais de um século os primei- ros questionamentos da autoridade do texto € do autor. Os diretores foram assumindo cada vex. mais sua posigio como criadores do espets- culo, chegando mesmo a ‘depor’ o texto em nome da encenacio, ¢ 0 ator também pade con- quistar uma outra posigio que nao a de mero executante de idéias alheias — tanto que, por volta dos anos 1960, chegou-se a afirmar 0 cor- po contra o texto. Numa época em que ao ator comesou a caber grande parcela da criasio, a cequipe como um todo ganhou destaque e passout a se encarregar da claboragio do espericulo, desde a idéia original até a finalizagio. Havia, segundo sta. Licenciada em Artes Cénicas, & especialista em Educagio mestranda em Teoria e Histéria do Teatro pela ECA/USP, Embora a pritica aqui descrita cventualmente possa scr denominada de outras manciras, optou-se pelo termo “processo colaborativo” tal como adotado pelo Teatro da Vertigem. Anténio Araijo vem coorde- nando eursos de diregio e nvicleos de pesquisa na Escola Livre de Teatro de Santo André, entre outros locais, onde propéc uma investigasio sobre este procedimento desde 1999, periodo em que pude iniciar pesquisa ¢ prética de dramaturgia cm processo colaborative que sc cstendem até 0 prescnte momento. riasa0coletivae process colaboratio: algunas semelnansas ediferengas no trabalho colaborativo Pavis, um “clima sociolégico” favorecende que © autor, antes individual, passasse a corres- ponder ao coletivo do grupo? ~ ganhando des- taque a chamada criagio coletiva, vista por mui- os como a precursora do processo colaborativo. Silvia Fernandes afirma que hi semelhangas en- tse 0s dois procedimentos, mas que cles nio chegam a se confundir (Fernandes, 2002, p. 36). © fato & que em ambos o dramaturgo des- cou, finalmente, de sua zorre de marfim e foi para asala de ensaio. No Brasil, os grupos aumentaram em nti- mero, contraponde-se aos chamados “elencos” ~ artistas reunidos para uma determinada mon- ragem e que, 20 final da temporada, dispersa- vam-se, indo em busca do préximo trabalho. Redescobriu-se o aspecto ritual e coletivo do te- atto, com franca inspiragio em Antonin Artaud, Jerzy Grotowski e no grupo Living Theatre, ¢ 0 aspecto liidico despertado pelos jogos ¢ impro- visagdes. No aspecto politico, uma produgio eminentemente grupal representava uma espé- ie de ‘democratizagio’ da arte: ela era criada por € para as massas, estimulando a produgio coo- perativa dos artistas envolvidos, que puderam libertar-se da figura do produtor e, conseqiien- temente, da necessidade de se fazer um teatro diro comercial. Ganharam destaque, a partir dos anos 1970, as produgses coletivas dos grupos Asdri- bal Trouxe 0 Trombone, Ornitorrinco, Mam- bembe e Pod Minoga, que inspiraram muitos ‘outros grupos pelo pais.’ O dramaturgo Luis Alberto de Abreu, em entrevista realizada em janciro de 2002 pela autora, reflete que 0 au- mento do niimero de grupos, catacteristico des- se periodo, resultou numa busca pelo desenvol- vimento de novos temas, nio encontrados na dramaturgia jd constituida, E se os textos no existiam, era preciso etié-los e os grupos se pro- puscram a isso. Nesse tipo de processo, que no Eassinado nem pelo dramaturgo nem pelo en- cenador individualmente, mas pelo grupo, 0 texto (quando existe) é fixado depois de um pe- riodo de ensaios baseados em improvisicGes, onde cada participante prope encaminhamen- 10s, solugies, modificagdes — a partir de um tema ou tendo o tema definido no decorrer das pesquisas. Em geral, 0 ator é 0 elemento central do processo ¢, a partir de suas improvisagdes, podem surgir, além do texto, idéias de cenirios, figurinos, luz ete:* ‘A partir desses aspectos, poclemos tragar um primeiro paralelo entre esse tipo de produ- 40 € © processo colaborativo, que também corresponde a uma investigagio coletiva ~ que “Brecht definiu tal trabalho colctivo como socializagao do saber; mas pode-se concebé-lo igualmente como colocagio em discursos de sistemas significantes na enunciagio cénica: a encenagio no repre- senta mais a palavra de um autor (seja este auror dramético, encenador ou ator), porém a marca mais ‘ou menos visivel e assumida da palavra coletiva.” (Pavis, 2000, p. 80) Para um aprofundamento nos procedimentos ¢ na trajet6ria de cada um desses grupos, recomendamos a leitura da obra de Silvia Fernandes, Grupos teatrais: anos 70 (2000), principal referéncia sobre criagio coletiva para a redagio do presente artigo. Era cssc 0 padiao, porém outras cquipes cncontraram caminhos diferentes, como, por exemple, o Gru- po Forja, do Sindicato dos Metahirgicos de Sao Bernardo do Campo e Diadema, ao criar seu espeticu- lo Pensao Liberdade no fim dos anos 1970. © dramaturgo Tin Urbinatti (1981) relata que, depois de pesquisar entre a comunidade opersria os elementos que gostariam de ver encenados (situagio politica do pais, corrupgao, desmandos etc.), © grupo efetuou estudos decidiu pelo tema (auséncia de liberda- de). Definiram-se, coletivamente 0 ambiente da pensio € os personagens e, em seguida, o texto foi sendo construido, cena a cena, dislogo a dislogo, amparado por pesquisas histéricas, politicas ¢ de prosédia. Desa mancira, primciro surgiu o texto — colctivo — ¢ s6 depois a cnecnagao. sale preta tende a se aprofundar na medida em que 0 gru- po permanece 0 mesmo ao longo dos trabalhos. O Teatro da Vertigem, entre outros grupos, vem ha dex anos propondo-se a refletir sobre a reali- dade e a criar seus espeticulos como fruto da colaboragio entre atores, dramaturgo e encena- dor, ageegando, também, outros profissionais da cena, Sua pritica, 4 maneira coletiva, pressupde um ator que é também autor ¢ performer, e que cem liberdade “de participar em outras dreas de criagio, como dramaturgia, figurino, som, minagio, cenografia, assim como no material ja ctiado anteriormente por um companheiro em sala de ensaio, somando solugées em infinitas possibilidades” (Rinaldi, 2002, p. 45). E, a semelhanga dos grupos de criagio coletiva, a primeira montagem do Teatro da Ver- tigem, Paraéo perdido, ocorteu de maneira cola- borativa justamente pelo fato do grupo no en- contrar um texto teatral que correspondesse aos anseios da totalidade da equipe. Diante da au- sencia desse pré-texto, fez-se um levantamento de temas que resultou na questio do sagrado. Anténio Araiijo sugeriu a obra O paraiso perdi- do de Milton que, depois de lida pelo grupo, motivou-os a investigar aquele universo com- posto por Adio, Eva, Satands e a perda do para- iso (Andrade, 2000, p. 171). Os outros proces- sos foram semelhantes no que tange & auséncia de um pré-texto, a0 estimulo de continuar tra- balhando com o sagrado e de criar a dramacur- gia a0 longo do processo, tarefa para a qual foi convidado um dramaturgo para cada um dos trabalhos. Isso leva a outro ponto desse paralelo en- tre 0s dois procedimentos de criagio do espeti- culo: a figura do dramacurgo. Os grupos que se dedicavam 2 cringio coletiva, em sua maioria, no dispunham de alguém designado especifi- camente para a elaboragio do texto e os que, eventualmente, assumiam esse papel, tinham uma fungio mais organizadora que autoral. O mais comum era que 0 grupo assumisse tam- bém coletivamente a organizagio do material e, em grande parte dos casos, a diresio do traba- Iho. Quando havia um responsivel pela drama- curgia, esse no deveria imprimir sua marca pes- seal ou scu ‘estilo’; a0 contririo, 0 texto precisava ter a marca do coletivo; os componen- tes queriam ver a sua parcela identificivel no todo ~ daf a impressio de ‘colcha de retalhos’ que a criasio coletiva podia nos dar.> No caso do grupo carioca Asdribal Trou- xe 0 Trombone, Hamilton Vaz Percira atuou, desde 0 primeiro trabalho, como “uma espécie de elemento depurador da criagio” (Fernandes, 2000, p. 38) Era ele quem propunha exercicios € jogos, improvisagSes que estimulassem a cria- 20 de cenas e situagies. No perfodo de prepa- ragio da pesa Trare-me leio, apés a selecio de fragmentos por parte da equipe (contos, letras cde miisica, cenas de filmes, poemas, que tradu- zissem aquilo sobre 0 que queriam falar), Ha- milton snotou os ingredientes principais ¢, a partir desses niicleos de assunto, iniciou a reda- Gio de pequenas cenas, que ia submetendo a aprovagio do grupo. Feito esse primeiro esbo- 50, escritores, fordgrafos e miisicos, amigos da rupe, foram convidados a escrever outros qua- dros da pega, numa experiéneia de insergio da sua comunidade cultural no processo criativo. Na montagem da pega Aquela coisa toda, todos os participantes dirigiram algumas cenas, pro- pondo diversos caminhos e, em 1979, depois de alguns meses debrugado solitariamente so- bre o material, Hamilton propés uma estrutura dramanirgica. Um outro exemplo é 0 grupo paulista Pod Minoga, que atuou de 1972 a 1980 ¢ que no contava com um dramaturgo ou alguém que organizasse e desse unidade a0 material sur- gido nos improvisos. As quatro pesas curtas da © que nao significa que no processo colaborativo no possamos identifica, aqui e acold, momentos aque tenham a marca pessoal de quem 0s cri, seja ator, diretor ou deamaturgo. riasa0coletivae process colaboratio: algunas semelnansas ediferengas no trabalho colaborativo fase amadora do grupo no tinham sequer um texto escrito ~ os atores variavam um pouco a cada espeticulo, dependendo da sua inspiragio momentinea. Tinham apenas um roteiro bisi- 0, que procuravam manter inalterado, © que eta composto por uma seqiiéncia de ages que cs atores haviam memorizado durante os ensai- ‘ose que ia se acomodando no decorrer das apre- sentagées, no contato com o piiblico. $6 em 1978, jé atuando profissionalmente, é que ano- taram 0 texto de Salada Paulista, uma exigéncia da censura, io processo colaborativo requer, desde © inicio, alguém responsivel pela assinatura de tum texto, em pé de igualdade com os responsi veis pela diresio, interpretagio ¢ outros setores da produgio. Tudo que é produzido em sala de ensaio é devidamente apreciado, discutido e re- gistrado pelo dramaturgo até um ponto que se julgue ‘satisfat6rio’ quanto aos propésites ori- ginais.© O dramaturgo, que pode ou nao estar presente em tempo integral, intervém com idéi- as, encaminhamentos e sugestées de texto/cena, transforma as sugestées dos atores ~ que, mui- {as veres, podem nio ter estrutura dramactirgica — em miicleos de ago; elabora a sintese de ele- mentos que se repetem ou que sio similares: insere dados, promove a unidade textual, sem as amarras’ da quase obrigatoriedade de conser- var o material individual criado pelos atores 0 que, veremos, & uma das principais caracteristi- cas da eriagio coletiva Mesmo que em boa parte do processo ele se assemelhe 3 criagio coletiva — improvisagdes, discusses etc. — quando chega a hora da uni- dade necessiria a0 texto, quem assume é 0 dra- maturgo. E ele quem tem maiores condigées de identificar lacunas, desequilfbrios e falhas, ¢ saniclos; promover realocagdes, alteragSes, €s- clarecimentos, assinando como seu esse arranjo dramantrgico. Luts Alberto de Abreu, respon- sivel pelo texto de O livro de Jé, segunda mon- tagem do Teatro da Vertigem, afirma que no importa se 0 ator escreveu partes do texto, se escreveu cenas, sc o director escreveu ou propés ag6es, quem deve organizar tudo isso é 0 dra- macurgo. Porém, essa responsabilidade no garante acle o searus de autor tinico. Segundo Antonio Aratijo, no processo colaborativo a autoria é compartilhada por todos. O dramaturgo assina uum texto cheio de interferéncias e contamina- goes dos outros componentes da equipe que, por sua vez, também tiveram seu trabalho igual- mente contaminado. (Andrade, 2000, p. 178). E novamente Abreu, um dos pioneiros na dra maturgia colaborativa, quem ressalta que, ape- sar disso, nao hi 0 esmaecimento da figura do dramaturgo; ao contritio, 0 seu trabalho torna- se mais desafiador porque o material criativo ¢ muito maior do que o levantado “em gabine- te”. Desafios técnicos, estéticos e éticos. Muitas veres ele esté conduzindo a dramacurgia por um caminho que teri de ser descartado em fungio de elementos novos que forem inseridos. Assim, ‘o dramaturgo tem de colocar a sua criagio num ‘outro patamar, acima de vontades pessoais tio ccaracteristicas da antiga soberania do texto/auror, modificar o que havia feito em nome de uma ‘outra geometria ~ ou fazer prevalecer a sua opi- nifo ao restante da equipe caso esteja convicto. Nese sentido, Sérgio de Carvalho, res- ponsavel pela dramaturgia de Paraiso Perdi- do, afiema que o Teatro da Vertigem rein- ventou a eriagio coletiva dos anos 1970 “sem democratismo ¢ com maior rigor de método” © Sobre © trabalho colaborativo, por ele chamado de work int process, © sobre a atuagio do autor em sala de ensaio, recomenda-se a leitura de Rubens A. Rewald, Caovdramaturgia (1998), onde se propoe a figura do autor-espectador. Chegou-se a esse termo a partir dos estudos da obra Universo da criagia Uterdria, em que P. Willemart comenta a cxisténcia de um autor-escritor ¢ de um autor-leitor (referen- tes literatura), segundo estudos de A. Grésillon ¢ L. Leb «. Rewald prope um aucor-espectador, proprio da arte teatral, que ¢ acrescentado aos dois leitores anteriores. sale preta (Carvalho, 2002, p. 55). Isso leva a outro pon- +o importante, também relativo & dramacurgia a contribuigio de cada um ea selegio dessa con- tribuigio com vistas ao produto final. Retomando o exemplo de Trate-me leao, do Adnibal eo fazemos por parecer comum a um sem ntimero de outros grupos ~ © anda mento dos ensaios é descrito por Silvia Fernan- des como um momento de plena liberdade de expressio, onde os criadores podiam se mani- festar integralmente. “Qualquer contribuigio valia, Um gesto, uma frase, um pulo melhor cexccutado ou uma piada recebiam igual trata- mento, pois os eritérios de valor eram muito varidveis.” Essa liberdade devia-se, em grande parte, A inexperigncia da maioria dos atores, pois “nao existiam parimetros técnicos nem tam- pouco métodos de trabalho que definissem eri tétios estéticos ou procedimentos criativos. Tra- tava-se de aprender fazendo, pelo sistema de ensaio ¢ erro, aproveitando descobertas anteri- ‘ores para abrir caminho a novos achados que, pela somatéria, criavam um modo particular de construir 0 espetculo” (Fernandes, 2000, p. 52). Eo texto final, por ter sido criado coletiva- mente, contemplava todas as contribuigdes sob a forma de uma grande colagem de fragmentos, resultando muitas vezes em espeticulos longos, prolixos, com certa redundincia, © que dava uma impressio cadtica e “suja” — como que de- ndo 0 processo.7 Esse dado denuncia uma situagio por que praticamente todos os grupos que produziram “io coletiva passaram: © perigo do des- nu via cria controle, © material levantado durante os en- saios era muito grande ¢, “no proceso de enxugamento dos textos, interfere a ligagao afetiva embriondria que une os criadores a0 fru- to de seu trabalho exaustivo, que as vezes supe- ra um ano de preparagio. Em prinefpio, nin- guém quer tirar nada da pega, pois tudo esta intimamente ligado a vivencia de cada um. Cada corte & encarado como uma perda, um desejo que nao encontrou espaco de realizagio” (bid, p. 226). Os procedimentos eriativos do processo colaborativo nao diferem muito da criagao co- letiva. As variagdes ocorrem, muitas vezes, no que tange &s intervengdes e aos estimullos da di- regio ¢ da dramacurgia — que pode periodica~ mente criar, recriar e alterar propostas de cenas a serem (e)experimentadas pelos atores duran- te os ensaios. E nada impede que cenas inteiras criadas pelos atores estejam presentes quase que integralmente no espetculo. Quanto ao material levantado, A seme- Ihanga da criagao coletiva, geralmente é vasto, dai a igual necessidade dos cortes. E Anténio Aratijo quem ilustra essa fase: “a necessidade dos fechamentos, das sinteses, dos cortes. A sangria dos cortes. Por que somente o texto do outro é que precisa ser cortado? Por que somente a cena do outro ¢ que € prolixa?” (Araujo, 2002, p. 84) E é cle quem aponta a necessidade, nesse mo- mento, de “sactificar 0 cordeiro do ego” (sem sacrificar a individualidade artistica) para que se evite 0 que ele chama de “democratite”, onde as contribuigdes de cada um sio eqiiitativamente Acesse respeito Abreu comenta que existe uma similaridade com o processo colaborativo, jf que nele hi também uma remincia & precisio caracteristica da dramaturgia aristotélica — onde o texto € pensado ‘Go somente pelo dramarurgo, que tem controle maior sobre o ritmo, o tratamento do personagem, a trama. Rentincia em beneficio de algo que seja mais interessante para o espeticulo porque hi uma fusio da criagao de todos: determinada cena pode destoar do contexto, mas esta presente porque € boa, ganhou o dircico de estar ali, embora nio esteja tio bem conectada. O espetsculo colaborativo nao € Go apolineo, mas salta no paleo o dionisiaco e na relagio com a platéia isso & 0 que mais impressions. Segundo Abreu, af esti a diferenca, por cxemplo, de quando se Ié um texto escrito no processo colaborativo ¢ quando se assiste ao espeticulo. O texto talver nao parega tio interessante, mas 0 espet- culo, muitas vezes, 0 €. E, por motivo semelhante, a grande maioria dos textos criados coletivamente io foi publicada, pois é praticamente impossivel dissocié-los das montagens. riasa0coletivae process colaboratio: algunas semelnansas ediferengas no trabalho colaborativo selccionadas em detrimento da unidade ¢ do objetivo do espericulo. No proceso colaborativo, 0 dramaturgo €um dos principais responsiveis pela selesio do material — sempre junto com a equipe. Nesse momento, diz. Abreu, ele deve saber que € eria- dor do espeticulo e no apenas criador de um texto que vai permanecer; deve buscar nio 0 texto escrito da melhor forma, mas, muias ve~ es, decidir riscar uma pégina que est extrema- mente bem escrita, em fungio de uma eficién- cia maior do espeticulo em relagio ao puiblico. Outra coisa importante que o dramatuzgo deve aprender € trabalhar em conjunto, pois o pro- ccesso requer paciéncia ¢, muitas vezes, discus- s6es acirradas, jd que, segundo Abreu, o melhor processo colaborativo &o de relagdes fortes. No fim, o que deve prevalecer, para todos, € 0 pro- duro final — sua coeréncia, seu atendimento aos anscios originais da equipe. E quem participa esse processo sabe que, muias veres, isso im- plica em abrir mio de criagGes preciosas, sejam atores, diretores ou dramaturgos. Foi dito anteriormente que no processo colaborativo, © dramaturgo encontracse em pé de igualdade com os demais artifices da cena Vale dizer que isso difere significativamente da ‘igualdade’ de fungSes caracteristica da criagio coletiva. Se, nessa, todos participavam ativa- mente de todas as funcGes criativas e até da ma- rnufatura dos materiais de cena e de divulgagio, assinando coletivamente as criages, naquele ha uma limitagio, ainda que virtual, de fungoes, uma centralizagio maior de competéncias: cada um trabalha responde pela sua fungio— 0 que rio impede que haja uma imbricagio ou uma fusio de interesses ¢ especialidades em nome da construgio do espeticulo, Os limites de atuagio no processo cola- borativo sio ténues. Hi momentos em que os atores ¢ a direso apresentam questionamentos ce solusbes relatives & dramaturgia; ou em que dramaturgo propde uma solucao cénica ou con- duz a interpretagio do atores. Provoca-se, as ve- 2es, uma sensacio de estar ultrapassando a prépria rea e invadindo a competéncia do outro, 0 que gera uma tensio criativa — jé presente pela inse- jguranga provocada pela auséncia de um pré-tex- to. (“Quando seri que essa dramacurgia vai car pronta? Quando seré que vamos parar de reescrever esta cena? Algum dia esse roteiro v: ficar bom?"). Na verdade, como assinala Miriam Rinaldi, cm nome dos atores do Teatro da Ver- tigem, o que parece existir “é a expressio do di- logo artistico, num jogo de complementa- ridade” (Rinaldi, 2002, p. 46). Cada grupo acaba encontrando a sua propria maneica de li- dar com isso, seja estabelecendo regras, acomo- dando ou discutindo — mas 0 fato é vvasbes’ existem e sfo parte indissociavel do processo. E para que haja um aprofundamento cada vez maior desse tipo de trabalho, o drama- turgo de O livra de Jé recomenda o estudo de cada uma dessas dreas por parte da equipe. Para ele é importante que 0 dramaturgo entenda também de diregio ¢ de interpretagio, que os atores ¢ diretores estudem também dramatur- gia, tudo em nome do compartithamento ¢ da complementaridade apontada por Rinaldi e que fazem com que cada ‘ultrapassagem de limite’ seja 0 mais apropriada possivel e acontega em beneficio do espeticulo. E. é em beneficio do espeticulo que deve ‘ocorrer, no processo colaborativo mais ainda do que ocorria na criagio coletiva, a relagio dra- maturgo-diretor. O dramarurgo daquele tipo de processo tem maior autonomia em relagio a0 texto, sua relagio com o diretor € praticamente de igual para igual (digo “praticamente” pois a assinacura geral do espeticulo sempre do en- cenador). Ambos analisam 0 material surgido em sala de ensaio na tentativa de compreender © andamento do proceso ¢ a melhor maneira de encaminharem, juntos, o trabalho levantado pelos atores para que atinjam determinado pon- to. Nesse sentido, o dramacurgo funciona tam- bbém como dirctor— assim como, ao ter suas su- gests de texto vivenciadas pelos atores, estes sugerem coisas e atuam, nesse momento, como “dramacurgos’ Na criagio coletiva, essa integrasio dire- cor-dramacurgo era mais ténue, até porque o jue as ‘in- sale preta texto nascia do conjunto ¢ a atividade do res- ponsivel pela dramaturgia era mais de alinha- var, juntar ¢ adequar os materiais individuais num todo interessante e coerente~ mesmo den- tro de uma incoeréncia proposital, Em alguns casos, as fungbes de dramaturgo/organizador e dirctor/coordenador cram desempenhadas pela mesma pessoa, 0 que garantia em si uma integragio no encaminhamento dos trabalhos ‘ou, como ji foi dito, 0 prdprio grupo se encar- regava de escrever e dirigir, diluindo as especi- ficidades. Na tentativa de concluir essa breve refle- xo sobre alguns dos procedimentos contempo- raneos do dramaturgo junto & cena, é impor- ante lembrar que no hi, nem nunca houve, um padrio a ser seguido no que se refere a cria- i0 coletiva ou a0 processo colaborativo. Em relagio a este dltimo, & parte a constante pre senga do trinémio dramaturgo-dirctor-atores, cada equipe desenvolve seu proprio método de trabalho e as pesquisas sobre 0 processo avangam, em ntimero e qualidade. Exemplos que merecem destaque, mas permanecem margem dos no- Liciétios, sio os projetos da Escola Livre de Tea- tro (ELT) de Santo André, 0 Niicleo de Dra- maturgia do Grupo Galpao, de Belo Horizonte. Antonio Aratijo vem, hd tempos, coorde- nando estudo e pritica do processo colaborative com os alunos da ELT, da USP e de diversas ofi- cinas culturais. $é em Santo André foram mais de vinte produgées, originais ou a partir de releitura de obras, em que o diretor do Teatro da Vertigem orientou o trabalho dos diretores, os dramaturgos foram assistidos por Abreu, e os atores tiveram a orientagio de Luiz. Fernando Ramos ¢, atualmente, Lucienne Guedes. O atu- al projeto pretende a releitura de Crime e castigo de Dostoievski ¢ conta com um grupo de apro- ximadamente 40 pessoas, entre direcores, dra- maturgos ¢ atores, trabalhando colaborati- vamente, distribufdos por equipes ¢ com resultados previstos para dezembro de 2002. © Grupo Galpao conta, desde 1999, com ‘um Niicleo de Dramaturgia que atua de modo colaborativo para a produgio dos espeticulos do chamado Oficinao — curso para atores, com du- ragio média de um ano, ¢ que culmina com a montagem de uma pega dirigida por um com- ponente do Galpio. Criado c coordenado por Luis Alberto de Abreu, 0 Nuicleo esté em seu quarto trabalho ¢, a cada ano, recebe novos in- teressados em dramaturgia que vio se adapran- do a0 modus operandi em constante evolucio dos veteranos. O proprio Galpio produziu seu mais recente espetéculo, Um trem chamado de- sgjo, nos moldes colaborativos ~ quase vinte anos depois de suas primeiras experiéneias com ctiagio coletiva, rll Referencias bibliograficas ANDRADE, Welingron Wagner. O livro de J, de Luis Alberto de Abreu; mito e invengio dramati- a, 2000, 199 p. (Disscrtagio de mestrado, Universidade de Si Paulo) ARAUJO, Antonio, Ea carne se fez verbo. 1 filogia biblica, Sio Paulo: Publifolha, 2002, p. 81-4. CARVALHO, Sérgio de. A escrita cénica de ‘O Paraiso Perdido’. In: Trilogia biblica. Sao Paulo: Publifolha, 2002, p. 55-7. riasa0coletivae process colaboratio: algunas semelnansas ediferengas no trabalho colaborativo FERNANDES, Silvia. Grupos reatrais: anos 70. Campinas: Unicamp, 2000. . Apontamentos sobre o texto teatral contemporiineo. Sala Preta, Sao Paulo, v. 1, n. 1, p. 69-79, jun. 2001. REWALD, Rubens A. Caov/dramaturgia. (Dissertagao de mestrado). Universidade de Sa0 Paulo, 1998). PAVIS, Patrice. Diciondrio de teatro, Sa Paulo: Perspectiva, 2000. RINALDI, Miriam. O que fazemos na sala de ensaio. In: Trilegia biblica. Sao Paulo: Publifolha, 2002, p. 45-54. URBINATTI, Tin. Pensio liberdade: uma criagio coletiva. In: GRUPO DE TEATRO FORJA. Pensa liberdade. Sao Paulo: Hucitec, 1981

You might also like