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“Qual € motivo de sua presenga em minha vida, se nao consigo sentir a sua falta? © que se move dentro de mim Reece ok cocoon existéncia se anule dos meus pensamentos? O que, afinal, resta de Assaad em mim? Qual segredo? Qual gesto? Qual sentimento? Qual palavra ainda pronuncio como eco de Rrterecee Cont en te artes nn TS abandonar? Ou mesmo langar ao fogo? Olhe para mim, meu Ae SOUR eee aN een Knee ey Pree Menace cs Renee eee oes il) ll Meader Marcelo Maluf A Imensidao Intim dos Carneiros ee ee ey eS eee COCO ne eee on ee nhecido. © medo de se conhecer, de viver em pleni O medo do fracasso, © medo da morte. © medo como Seca PST coae ny ec a at ees ee ter Re Cente Assad Simo Maluf veio do Libano para o Brasil ainda ere Sec eo eee SOE OR Oa Or Sete ceed Son ocr ecco tt rte ee een eee Ere eae See eet oa OSes teats no ano de 1966, na casa de seu avo, ET RCOLEM Eten ey D'Oeste, interior de Sio Paulo, Sentado & jancla da casa, Soe ee ee Once tet Neos SO Sen eee Se ete ana Te Assaad ¢ a narrativa de Marcelo, que Den ce ete ete eee Marcelo Maluf A Imensidao Intima dos Carneiros I* Reimpressio cron Copyigi@ 2oss Marcelo Mala A mens inna des carer © ors Reformatiio Marcelo Noceli Rensan Martens EM Comunicagio ‘Marina Rav pep Agnas Des pinta Slo, Francie de asbacin, 163540 Negtito Produsio Editorial ‘Dados Inemasons de Cage a Pb (te) ‘Bibra Joana Fs Mot fens) Mau Mala 974- ‘Atinevdi iin dos anc / Mecel Mi. ~ So Po: Rfoe ‘Linn Bend: Liane. 3 Feo Br. 5 Romane, 1h Inde ere caog seni ‘Lia Bl ibio 1. Bega Bae 5 Romance Tasos os decor ders eg tserados EprTona ReronuaTOnto -woncefrmatorocombe Para Kinum. Para 0 Cristo, Para os meus ancestrais, os carneiros, Para Daniela. Para agueles que vieram¢agui fcaram. “E 0 verbo sefex carne e habitow entre nbs” (Evangelho segundo Joio, 114) “Obseroar o nascimento ea morte dos seres como olhar ‘0s movimentos de uma dana. Uma vida é como o cla: rio de um relimpago no céu, répida como uma torrente ‘que se precipita montanha abaixo.” (Sidarea Gautama, 0 Buda) “(oJ toda drvore gana beleza quando tocada pelo so” (Djalal Ud-Din-Rumni) Sumario L OVENTO....ceceeeseeseeeees 2 AMONTANHA.. 17 3 OFoco.... “7 4 OOCEANO..... O Mepo estava no principio de tudo. © medo dominou geragdes e bebeu em pequenas do- ses a coragem de muitos homens ¢ mulheres de nossa fax inlia. Nés sempre estivemos sob o seu dominio. O medo estava em nossos ancestrais, os Gassanidas, em Huran, préximo as colinas de Golan. No ano 427 d.C, um sujeito chamado Abu Abdallah, nosso ancestral mais remoto, foi perseguido e morto pelos mugulmanos com 128 golpes de sabre, apenas pot ser cristo, Sua mie, que assistia a tudo, gritava para ele: “Morra como um homem, meu filho, nao chore”, Mas Abu Abdallah chorou. Foi ali, nas lagrimas que escorriam de seu rosto, que nasceu © medo que itia chegar até nés. © medo seguiu sua jornada, como as aguas de um tio fazendo o seu percurso, ¢ desaguou em Siméo, meu bisavé, ao ouvir o trotar dos cavalos dos soldados turcos ‘Almera facia dos Carneos 11 aproximarem-se da aldeia. © medo estava em Assaad, seu filho, quando pastoreava cameitos nas montanhas de Zable, ¢ estava em Michel, meu pai, quando vendia cam- braia, gabardine e organza em sua pequena loja em Santa Barbara D’Oeste. Quando cu nasci, sob o sol daquele més de janeiro, ‘© medo estava no meu primeiro choro. O mesmo medo que hoje ainda vive em mim. Um medo genético passado de pai para filho, de avé para neto. Um medo que subiue desceu as montanhas, que atravessou o oteano num navio €veio se misturar ao fluido amniético que me envolvia no ventre materno. © medo estava nos olhos da minha mie nna hora do parto, nas maos suadas do meu pai e no cor- po inteiro do médico que me segurava pelos pés. O medo estava na corda envolvendo os pescogos de Adib e Rafiq e estava nas maos do algoz que forjou 0 seu né. Aprendi que o medo nos preserva de viver ¢ nos da a ‘morte em vida. O medo também nos toma cruise, escra- vos dele, podemos nos tornar assassinos. E éda morte que todos da nossa familia tém medo desde sempre. Temos medo e por isso preservamos tanto as nossas vidas a ponto de nao vivermos tudo o que poderfamos ter vivido. 12 Marcelo Malar ‘6 ALGUNS dias apés a morte de meu pai, em fevereiro de 2000, eur me vi numa pequena praia no litoral norte de Sao Paulo, Os raios de sol aqueceram o meu corpo ¢ todos, (0s meus Srgéos internos se encheram de entusiasmo. As ‘ondas arrebentando nas rochas funcionavam como um ruldo zen ¢ abafavam os barulhos do mundo. Confesso nao haver nada melhor do que a imensidéo do oceano para colocar as coisas no lugar certo dentro de mim, Sentado na areia, sem desejar nada além de estar ai, centregue quela contemplagio, eu me deparei com um ‘grupo de carneiros se debatendo em alto-mar. Caminhei desorientado pela praia, esfregando os olhos, esforgando- -me para acordar, caso estivesse sonhando. Mas os carnei- 10s continuavam ali ¢ outros iam surgindo, como se bro- tassem das dguas. Foi quando eu engoli uma gota de agua salgada do oceano Atlantico trazida pelo vento. [Almensidio lina dos Carncivos 13 A praia estava deserta, Nio havia com quem eu pu- desse dividir a minha davida: ra uma miragem ou os car- nciros estavam realmente lutando por suas vidas? Pensei que se caso cu tivesse um pequeno barco, conseguiria 20 menos salvar alguns. Mas nao havia nenhum barco. Fi- quei assistindo, passivo, durante horas os carneitos se de- baterem e se entregarem aos bragos de lemanjé. O vento a coordenar a danga das ondas. Naguela noite eu sonhei com Assaad, meu av6, € com Michel, meu pai. Vestido de branco, Michel colocava em minhas mos um punhado de pelos iimidos de carneiro. Assaad dirigia-se a mim como irmio e dizia que tinha uma histéria para me contar. Pela manhi cotti paraa praia, certo de que iria encontrar alguns corpos de carneiros na arcia. ‘Mas ao invés de carneiros, encontrei dezenas de dguas vivas, Passei a acreditar, de mancira obsessiva, que eu preci- sava de alguma maneira me comunicar com Assaad. E 0 sonho ainda se repetiu algumas madrugadas, Sempre com Assaad me dizendo a mesma frase: “Tenho uma historia para te conrat”. Eu pensava que ele poderia usar o proprio sonho para dizer. Mas por algum motivo que me é des- conhecido até hoje, nos sonhos ele apenas dizia: “Tenho ‘uma historia para te contar” E essa frase se repetia em mi- nha mente como um mantra involunté i. Pela manha fii surpreendido por um careito subin- do 0 morro préximo as rochas. “Nem todos os carneiros 14 Marcelo Malut se afogaram’, pensci. Pelo menos um deles sabia nadar. Subi o morro, queria vé-lo de perto. O carneiro dormia Asombra de uma velha drvore e fingiu no dar nenhuma imporcéncia para minha presenga, nem para a ventania gue langava as folhas da arvore em seu rosto. Quando me aproximei, quase a ponto de tocé-lo, ele disse: “Por que nio se langou ao mar para nos salvar?”, Nao havia rancor em sua voz, mas decepgao. Eu estava diante de um carneiro que lamentava a minha falta de heroismo. “Eu nfo tive como.” Tentei me justficat. “Vocé nao sabe nadar, é isso?” Agora o carneiro estava sendo irdnico. “Sim, eu sei.” “Entio por que voce ficou Ii, feito um idiota, apenas observando a morte vir e levar com ela todos os meus it~ maos?” Eu nao soube dizer nada. Nao encontrei nenhu- mma palavra que se encaixasse e pudesse me redimir de seu questionamento. Deixei apenas escapar, do mesmo jeito idiota, um suspiro. “Mas.” “$6 havia vocé lé. E mesmo assim nao nos socorreu. Por qué?” Nesse momento senti que nunca havia feito nada diante das turbuléncias. Sempre ficava esperando, como uum espectador passivo, a cena se completar minha fren- te, E antes mesmo que eu pudesse elaborar qualquer per- Alimensido ovina dos Carneiros 15 gunta, cle se levantou, chacoalhou o corpo e algumas fo- Ihas se soltaram de seus pelos. Ne “Os seus antepassados teriam vergonha de voc’. Ago- ra vie me deixe sozinho aqui com a minha dor” Fui. En- vergonhado, 16 Marcelo Maluf ASSAAD estd sentado a janela de sua casa em Santa Bar- bara D’Oeste, um ano antes de sua morte, em janeiro de 1966. Algumas palavras saltam de sua mente ¢ desabro- cham em um sussurro: “O eempo de calar a dor ficou para trds”, Digo tudo isso, mesmo sabendo que ele nao pode me ‘ouvir. Mas 0 que importa? Mesmo ignorando as minhas palavras, ew o levarei comigo. Mesmo que ele grite, esper- neie, chore como uma crianga mimada, eu 0 conduzitei 20s berros, como tum carneiro que sabe que ser sacifica- do. Mas Assaad nao faré nada disso. Hé tempos que o seu corpo foi consumido pelos vermes. Em frente a0 retrato de Sio Charbel, na sala de sua asa, um relégio de cuco, na parede, anuncia que sio nove horas da manha de um sébado. En também estou ali. Ele nao me vé. Ainda nao nasci. Estamos separados pelo tem- A imensidio fia dos Caneiros 19 o. Sé irci existir nesse mundo daqui a oito anos, em ja- neiro de1974, Mesmo diante da impossibilidade do tempo que nos separa, insisto, Nao me interessa 0 monélogo mudo com © seu retrato. Quero Ihe falar contemplando os seus olhos vivos. Por isso estou em sua casa, me coloco & sua frente e dig “Vocé me parece um estranho, Assaad. Suas mios. estio suadas. Minhas mios também se inundam’, As suas pélpebras volumosas,.o nariz. assimétrico, 0 sorriso no olho direito que me traz.esperanga, o medo no colho esquerdo me inguicta,o épice das suas orelhas apon- tado para fora da cabega, o pescogo curto, ripico de alguns de nés. Dizem dos homens que tém 0 pescogo curto, que cles io os parentes mais préximos dos animais no huma- ‘hos, em que acabega c 0 corpo formam um conjunto mais integrado, a ponto de que as suas vontades estejam mais ‘nas mos, nos bragos, no tronco, nos quadris e nas pernas do que em uma ideia elucubrada com a ciéncia da razio, Tudo em Assaad me é estranho, Néo sinto 0 carinho que, normalmente, um neto deveria sentir por seu avé. Michel me falava dele. E é da vor de Michel falando a respeito de ‘meu avé que sinto saudade, nio dele. Qual é 0 motivo de sua presenga em minha vida, se ‘nao consigo sentir a sua falta? © que se move dentro de mim com tamanha forga, a ponto de nao permitir que a sua existéncia se anule dos meus pensamentos? O que, afi- 20. Maelo Maluf nal, testa de Assaad em mim? Qual segredo? Qual gesto? Qual sentimento? Qual palavra ainda pronuncio como eco de sua existéncia em mim? O que devo guardar? Eo que devo abandonar? Ou mesmo langar ao fogo? Olhe pata mim, meu avd. Estou aqui, em pé. Na sua frente. Pronto para ouvir a sua histéria. Ou vocé deseja que cu suplique ¢ me ajoclhe? Assad no me responde, mas olha de sua janela para a rua e um grupo de garotos joga futebol num campo im- provisado no asfalto, Nitidamente Assaad estd torcendo pelo time dos que estio sem camisa. Um pequeno ma- gricela vem driblando todos os jogadores de camisa e faz © primeiro gol quase acertando a trave matcada no chao com paus ¢ pedras. Assaad festeja Volta o seu olhar para dentro de casa e pega um ca- derno. O som dos meninos jogando bola é abafado pelo transito de suas lembrangas. ‘A lmensidio fatima dos Carneicos 24 AS MAos de Assaad vacilam. A sua respiragio é curta, 0 sangue em suas veias tem dificuldade para alcangar 0 co- ragio. Uma mesa retangular, de madeira de mogno ~ para a qual ele fixa o seu olhar agora ~,esté no centro da sala, delimitada por dois sofs de couro marrom. Em verdade, ‘Assaad olha para o pote, em cima da mesa, com balas de goma e fica em diivida se come uma bala ou nao. Preserva as bala, o excesso do agéicar no sangue nao Ihe faz bem. Est descalgo e sem camisa, do mesmo modo como fazia o seu pai, na janela da casa, em Zahle, no Libano. Ele se lembra de outras manias do pai e ri. Suspira uma leve saudade e reproduz um gesto negative com a cabe- ga, semelhanga dele, mesmo sem ter consciéncia disso. Eu, num ato involuntario, reproduzo os mesmos gestos. Assaad nunca compreendeu 0 motivo pelo qual 0 seu pai no quis ficar no Brasil. Ele apenas dizia que sentia falta das montanhas. ‘Anenside fatima dos Carnicon 23 E manha. Nao h4 nada de extraordinério com ela Apenas reproduz os milénios de muitas outras manhas, com 0 seu mesmo sol a incidir seus raios ¢ a produzir luz e calor. Assad esta preenchido pelas memérias do passado. Também nao h4 com ele nada de extraordina- tio. Apenas reproduz os anos, os meses ¢ os dias, com 0 seu mesmo dilema a nao cicatrizar suas feridas. Fecha os olhos para ouvir a melodia vinda do Zamur, nas festas. cheiro da chuva em contato com a tetta. © sabor dos charutos de folha de uva, feitos por tia Zakiya, Os seus pés mergulhados nas aguas do rio Bardauni, As drvores dangando com o sopro do vento ¢ os pelos macios dos carneiros preenchem o seu corpo de lembrangas. Sabe que o sangue o trai e pode golpear o sew coragio de ma- neira fulminante a qualquer momento. Por isso tem um caderno no colo e um lépis na mao esquerda, Ele canho- to, assim como eu, Assaad no tem intimidade com as palavras, prefere as cambraias, as sedas, 0 algodao ¢ o tule. E mascate. As folhas em branco esperam o momento em que suas lem- brangas possam descansar no papel e, quem sabe, curi-lo de tanto sofrimento. A imagem dos dois irmaos mais ve- Ihos pendurados na drvore do quintal da casa, enforcados na frente de toda a familia pelos soldados turcos, é um se- gredo trigico que ele guarda desde que chegou 20 Brasil, ainda menino, em 1920. Ele se lembra de como 0s solda- 24 dos do império turco-otomano caminhavam pela aldcia exibindo seus tipicos chapéus em formade cone, de ponta amassada, suas botas de couro, adagas ¢ pistolas na cintu- ra, Lembra-se de como viviam a cuspir no chlo ¢ a rosnar para os cristios da aldeia. Eu terei de Assad apenas vestigios. Rekimpagos de historias. Abaixo dos meus misculos habita um sentimen- +o de auséncia, a falea de um lugar para apoiar os meus pés, um modo de viver sempre em suspensio, entre 0 céu ea terra, sem reconhecer um territério que seja meu. Talvez por isso cu esteja aqui, para tentar compreender por que Assad guardava tantos segredos. Nao. Nao € nada disso, Nio estou aqui por Assaad, Estou aqui por mim mesmo. Egoismo é a palavra certa, Jé tentei comecar a contar essa histria de diversas maneiras, jé me coloquei em terceira pessoa, por exemplo: “os nowe anos de idade, Assad Siméo Maluf, avi de Marcelo, pastoreava carneiros nas montanhas de Zable, no Libano, Alimentava os bichos com as méos e fazia-thes ca- rinho no queixo. Marcelo néo conbecera 0 avb, mas sabia que ele havia morrido por engenho e obra de sua mente, ainda que a sua mente estivesse vestida de outro corpo na- queles tempos Mas nio me senti vontade, Ou seja, estou aqui por- que preciso. Preciso, como um jardineiro, revolver a terra para que ela respire e acomode novas plantas, para que A tmeasidie fatima dos Camels. 25 loressam. Ou a exemplo de um miserivel, 4 procura de abrigo e alimento, Eu preciso me abrigar e saciar a minha fome. Quando o vi pela primeira vez, meu avé estava numa foro em uma lipide, Eu tinha apenas cinco anos de idade, meu pai me carregou no colo e pedi que eu beijasse 0 seu retrato, Aquele beijo modificou para sempre a manci ra como eu entenderia a morte de todos os que morre- riam depois dele, assim como aleerou a minha percepio de qualquer retrato do rosto de alguém. ‘Todos eles to cheios de uma permanente impermanéncia. E sempre o visicfvamos para levar lores e beija a sua imagem. Tudo o que eu sabia dele cram as histérias que os meus tios e meu pai me contavam. E nao eram muitas, Vivi minha infincia em Santa Barbara D'Oeste du- ante 0s iltimos anos da ditadura militar, enquanto no Libano acontecia, desde 1975, a guerra civil, que durou até a minha adolescéncia, em 1990. Ambas aconteceram distances dos meus olhos. E claro, sa ileso, vivendo no in- tetior de Sao Paulo, protegido pela familia. Nunca soube ‘© que acontecia nos pordes da ditadura. Todos os dias, na escola, eu riscava na transversal com lapis verde e amarelo as folhas do meu cadetno antes do inicio das aulas. Canté- ‘vamos o hino nacional. Saudvamos a bandeira. Longe do fogo cruzado. Ileso da guerra civil ibanesa Longe de tudo. Ileso do mundo, confabuilando desejos em 26 Marcelo Malet meu planeta imagindrio, Mais uma vez, descendente do ‘medo. Ileso da hist6ria familias, apenas de vez em quando beijando a foro de um sujeito em sua lipide que Michel me apresentava como meu avd. Por quem eu deveria tet afeto, Mas que nunca me carregou no colo, nem me levou para passear em seu caminhio de mascate, nem me com- prou doces ou balas. Eu vivi longe da sua lingua materna e da sua cultura, ileso da sua histéria. eso também dos generais brasileiros {que assassinavam impunemente. Protegido pela infancia. Sem receber nenhum estilhaco de bomba ou bala, sem ter qualquer arranhao, ileso, inclusive, de saber sobre a guer- 1a, de saber sobre os presos politicos no Brasil, de saber sobre a verdade tanto de Id quanto daqui. Mesmo assim eu tinha medo, Medo da sombra do abajur no quarto, do bicho-papio na madrugada, ¢ foi sempre pelo medo de ir ao banheiro sozinho que eu deixava o lengol molhado quase todas as manhis. Tive medo, em 1981, de ir para a escola, medo de pu- lar na piscina pela primeira vez, medo de dar o primeiro beijo, medo de perder nos jogos ¢ competigoes esporti- vas da escola, medo de caminhar no meio do mato, medo do siléncio, medo de barata, de rato e de sapo. Eu tinha medo do Cristo morto, medo de Deus ¢ dos castigos que ‘eu receberia invocados pelo seu nome, medo do diabo e do inferno. ‘Amensd fovima dos Careiros 27 Da guerra no Libano, eu nao tinha medo. Nés s6 re- cebiamos noticias a seu respeito de minha tia-avd, Vidb- kia, ou dos telejornais. Em 1983, Viddkia veio a0 Brasil ¢ trouxe Rita, sua filha, minha prima distante. Rita tinha 13 anos ¢ eu 9. Eu a investigava como um bidlogo diante de tum animal exético muito afastado da sua realidade. Rita sentia saudades do seu pai e chorava a todo 0 momento, Lembro-me dela chorando dentro de um trem fantasma ‘num desses parquinhos de diversées. Nio chorava por medo dos fantasmas. A guerra era algo mais amedronta- dor do que qualquer simulacro de monstro. Formamos lum pequeno grupo, eu, Cristiane, minha ima, e Karima, minha prima, que carrega o mesmo nome de minha avé, Nossas brincadeiras nao faziam muito sentido para la. Rita tina outros modos, um jeito de ser crianga diferente do nosso, se astimava em outra lingua, 0 érabe, que a nés, seus primos de segundo grau, fazia rit. Achavamos graca € ficvamos imaginando se ela realmente compreendia aquelas palavras estranhas. Com seus dculos enormes ¢ sempre sorridente, devo a ela minha primeira visio de um djinn, Estévamos fazendo um piquenique no quintal da casa de minha prima, Karima e Cristiane foram preparar ‘mais suco de morango. Eu ¢ Rita ficamos olhando e rindo tum do outro. Ela me achava engragado e me cutucava para ver o quanto eu ficava nervoso, Eu a achava esquisita por ficar me curucando para que eu ficasse nervoso, Foi quan- 28 Marcelo Malu do cla me puxou pelas maos me levou até uma manguei- raque ficava no fundo do quintal da casae fez com que eu me sentasse, e fazendo mimica sugeriu que eu fechasse os olhos. Quando fui tocado no ombro, senti o peso de sua mio quente. Abri os olhos ¢ 0 vi. Foram poucos segun- dos, mas eu 0 vi. Tive medo, suas unhas eram pontudas ¢ azuladas, seus olhos brilhavam, Sua pele era translicida, Ele sorriu para mim e atravessou como um vento o meu corpo, ¢ desapareceu. Mas Rita nao tinha medo, ele pare- cia protegé-la. Assim que ele se foi, Rita pds as suas maos ra minha e, em seguida, me beijou nos labios. Eu com- preendi que era para manter segredo. E mantive o segredo daguela apatigio e do beijo ‘Rita marcou minha infincia ¢ foi o contato mais pré- ximo que cu tive com a terra de onde veio o meu avé. Rita amou o programa do Chactinha na televisio ¢ amou 0 Raul Seixas cantando “Carimbador maluco”, ¢ toda vez gue via um 6nibus safa correndo atrés gritando: “Busta!, Bustat’, em Arabe. Surpresa a0 descobrir que tinhamos <énibus em Santa Barbara D’ Oeste, O som produzido pela palavra “busta” nos deixava constrangidos. Mas depois caiamos na risada. Quando Rita ¢ sua me voltaram para Beirute, tive- mos a ideia de enviar, nio uma carta comum, ¢ sim uma 4udio-carta em fita cassete. Gravamos nossa mensagem no lado A ¢ reccbemos a resposta no outro lado da fia. ‘A tniensii fxima dos Carncitos 29) Quando fomos ouvir, entre as palavras de Vidékia e Rita ~ que havia aprendido algumas palavras em portugues -, ta possivel reconhecer os ruidos das bombas. Do abri- g0 subterrinco, elas diziam: “Venham visitar o Libano, aqui ¢ lindo!” Nés nunca fomos. Vidékia morreu sem gue tivéssemos a chance de itv té-la. De Rita, restaram apenas vestigios de nossa infincia e ficamos cada ver mais afastados. Conto tudo isso a fim de organizar minhas lembran- ‘28 encontrar algum gesto perdido de Assaad nessas his- tOrias. Sei que cle esta ansioso para contar 0 que talvez seja 0 seu maior segredo, Sei que a sua mao esquerda va- cila, mas também sei que Assaad se esforgou para conse- ‘guir escrever ¢ relembrar. Algo dentro dele ainda resiste, prefere nao dizer, deixar que as histérias tenham apenas © seu corpo como inicio e fim. “Mas nao dé para desist, Assaad’, ele diz para si mesmo. “E preciso seguir adiante”, cle reproduz o conselho muitas vezes dito pelo seu pai Por isso me aproximo dele e sussurro em seu ouvido que estarei ao seu lado, Assaad esfrega as maos nos olhos repetidas vezes, Des- mancha os cabelos, reconta os dedos, cruza os bragos com forga sobre o peito, faz rabiscos em seu caderno, cucuca a caverna escura das natinas e detém o seu olhar para a palma de sua mao esquerda, 30 Marcelo Mal ACASA esté quieta, preenchida apenas pelo cheiro do ba- baganuche ¢ do tahine que Karima, minha avé, prepara na cozinha. Vé-la em atividade é como presenciar um mi- lagre. Quando a conheci ela morava em uma cadeira de balango e raramente a via em pé. Karima, sete anos mais velha que Assaad, teria sobre ele uma influéncia materna, deverminando muitas de suas agdes ¢ gestos, censuran- do-o ¢ desenhando o seu caminho no mundo, O pai de ‘Assad o alertou: “Uma mulher sete anos mais velha, As- saad! Cuidado para que ela nao te domine os passos” Na noite em que s¢ casou, Assaad viu uma estrela ca- dente e se lembrou do que dizia sua tia Zakiya: “Uma es- rela cadente é um segredo que se guarda para sempre nos olhos, pois cles contemplaram o tiltimo sopro de uma luz’, Essa frase esteve presente na familia como uma maxima «que repetiamos todas as veres que viamos uma estrela ca- A Imensid [cima dos Carnccos 31 dente, “Quem foi mesmo que disso isso, perguntavamos uns aos outros. Esqueciamo-nos da autoria. Essas palavras tinham o mistério necessario para que sc transformassem em uma citagio recorrente. Assaad nao fer. nenhum pedido naquela noite. Ape- nas ficou durante toda a celebragio do casamento com as palavras de tia Zakiya dangando em sua mente. E vaga- ‘vam: olhos que contemplaram, sopro de luz, segredo que se guarda, para sempre, 0 tiltimo segredo, sopro de segre- do, luz nos olhos, luz que se guarda. Quando as palavras pararam de brincar, Assaad jé estava casado com Karima, O cheiro da berinjela queimando desvia a minha aten- ¢fo de Assaad e me volto para a minha avé na cozinha. Ela prepara o tabule e lava as folhas de alface. Aproximo-me do seu rosto e vejo que os seus olhos séo da cor carame- Jo. Creio que nunca havia antes olhado de tio perto para os olhos de Karima, Vejo as primeiras rugas se formando. Karima tem medo que Assaad nio a deseje mais como mulher, que esteja ficando velha para cle. Ela aperta a faca em suas mos ¢ por um instante fica em suspensio, a ad- mirar um ponto de luz que invadiu a cozinha. Eu gostava de visitéla para comer as balas de goma que sempre fi- cavam dentro de um pote de vidro, em cima da mesa da sala, Lembro-me de quando menino ouvir Karima gritar: “Michel, vé se dé um jeito nessas criangas!”. Corriamos cm volta de sua cadeira e escapivamos pelos vios 32 Maelo Maluf Quando Karima morreu, em 1985, cu tinha 11 anos de idade e foi a primeira vez que conheci alguém cuja vida expirou. Chorei em seu velério ao imaginar que um dia também os meus pais morreriam. O rosto velho de minha av6 no caixio me trazia alivio, eu pensava que s6 quando a pele murchasse de vez.é que a morte poderia dizer: aqui cescou, O que mais tarde eu descobri se tratar de uma des- Javada mentira da existéncia Mas aqui, no ano de 1966, Karima é outra 0 cheito de sua comida invade toda a casa, Sua vor. nio ¢ fedgil como me lembrava, nem suas mios tio rugosas. Karima parece mais alta. Grita alguma coisa em arabe para As- saad. Vejo que ele responde, também em drabe, e perma- nece imével. Ela torna a gritar ¢ Assad coga a cabega ¢ pega o caderno. Mas nao responde. Prefere abafar a vox de Karima rabiscando circulos nas folhas em branco, A voz de Karima se perde de vez ¢ Assaad se vé agora na aldeia em que nasceu, em Zahle, no Libano. Os circulos vio cedendo lugar &s palavras. Amensdio [via dos Carneiros 33 Fico na ponta dos pés, diante da janela. Assaad escreve: Nossa casa, em Zahle, ficava & beira da montanha e Deus morava li conosco, era o que minha mae dizia. Meu pai sempre falava que Deus nos ajudava no manejo, naen- gorda dos carnciros ¢ no cultivo da terra, pois sabia que cles eram a nossa salvagao. Alimentivamos os bichos com as maos para que tivessem boa gordura. E cultivavamos o tigo, a cevada e a fava. EE preciso observar © movimento dos carneiros para manejé-los com destreza. Saber 0 que dizem os olhos de um camneiro é como traduzir um hierd- glifo de uma civilizagio perdida. Quando somos capazes de desvendé-los, necessitamos apenas de pés firmes para seguir a caminhada ao lado deles. (Os poucos carneiros que tinhamos eram mansos, Si- ‘mio, meu pai, dizia para nao olhar diretamente nos olhos dos bichos, ‘para nao se afeigoar’, ele aconselhava. Os car- A mensidio fntima dos Cameivos 35 neiros carregam tanto a dogura quanto a ira. Preferem a brisa, ndo tempestades, mas sio capazes de explosdes que amedrontariam uma alcateia, A primeira lembranga que tenho da minha infincia era o modo como a mie nos chamava para 0 almogo: “Assaad, Adib, Rafiq! A mesa esta posta!”. Ela sempre dizia assim, nessa ordem. E uma s6 vez. A mie era 0 nos- so esteio, nossa morada € sossego. Ouviamos a sua voz, mesmo se estivéssemos no alto da montanha, Eu chega- va depois, gostava de ficar a sés com os carneiros. Minha mae insistia: “Assad! Venha logo, meu filho, antes que cu pega para seu pai ir buscé-lo”. Nao precisava falar uma segunda vez. Eu descia a pique. “Maria Martha, chame © Assaad. Diga a ele que se sente & mesa conosco antes da comida esftiar’, 0 pai ameagava. Quando se tratava de reunira familia para comer, Simao era rigido, “Nao se faz desfeita para comungar o alimento, onde ha lugar para todos, nao se deve comer em soli 10. Deus deseja que es- tejamos juntos” A intimidade que 0 meu pai tinha com Deus era algo que impressionava a todos. Falava com o Criador como se falasse com um familias, um amigo ou um aldedo. Nao fo- am poucos 0s momentos em que © ouviamos expor seus ppontos de vista e, depois de um siléncio, balangat a cabe- ‘ga. como quem consente: “O Senhor sempre sabe o que ¢ melhor para mim, sempre!”. E cinhamos quase a certeza 36 Marcelo Maluf de que o proprio Deus havia dito a ele que desejava que ‘coméssemos juntos nas refeigées. E nao suportava desper- dicio, o alimento era para ser comido sem deixar restos. Considerava uma ofensa gravissima quando, as vezes, nio comiamos tudo o que colocévamos nos pratos. Era tama- nho o seu aborrecimento que em dias de calor era capaz de nos dar uma surra por esse motivo. Em dias de frio, chora- va diante da Biblia e pedia perdio a Deus em nosso nome. Nossa casa era sempre muito cheia. Desde pequeno senti a necessidade de ter os meus momentos de solidéo ¢ ficar um pouco longe da familia. Era como se eu pre- cisasse pegar distancia para poder enxergar melhor e de maneira completa tudo 0 que acontecia dentro de casa F claro que naquela ¢poca eu nao percebia as coisas dessa ‘maneira, mas hoje posso entender que era por esse motivo que eu gostava tanto da montanha. Ela era o meu refiigio, aminha fortaleza. Quando eu nao me refugiava nas mon- tanhas, ia me deitar 3s margens do rio Bardauni, Também contava, para ele, os meus segredos. Certa vez ouvi do rio a seguinte histéria que ele nomeou Os trés ladries e 0 gé- nio do reino dos sonbos: “Muito tempo atrés, num mundo bem diferente do nosso, trés ladrdes, um velho, um jovem ‘¢ um medroso, decidiram enganar o grande génio do rei- no dos sonhos ¢ trazer do seu mundo todo tesouro que fosse possivel. Para que isso acontecesse, 0 ladréo mais velho sugeriu que dormissem no mesmo quarto para fi- Aliens fotima dot Carneizos 37 car mais facil se encontrarem durante 0 sonho. Os outros dois concordaram que se tratava de uma boa estratégia. “Mas como iremos sonhar o mesmo sonho? perguntou 0 jovem ladrio. ‘Ah, isso é muito facil, disse o mais velho. ‘E preciso que estcjamos amarrados por cordas para que ‘quem sonhar primeiro leve os outros consigo. O ladrio medroso certificou-se de que era ficil desatar 0.n6 da cor- da, Se algo desse errado, ele escaparia com facilidade. O mais velho verificou se a cordaera forte o suficiente para trazé-lo de volta. O mais jovem, sem pensar, amarrou-a na cintura. Quando 0s tr ladroes adormeceram, 0 medroso tratou logo de afrouxar 0 nd, O primeiro a sonhar foio a- dro mais jovem. Em seu sonho, ele chegava a um casario onde vivia um familia que colecionava mini-esculturas de animais selvagens banhadas a ouro. Entio, puxou a corda ¢ trouxe os outros dois para ajudé-lo com o roubo. Cada uum conseguiu carregar 12 mini-esculturas. O segundo a sonhar foi o mais velho. Em seu sonho, ele estava em um. navio pirata com toda a tripulagio morta. Entendeu que 0s piratas deviam ter se desentendido e acabaram se ma- tando, © que ele encontrou no porto do navio foi uma chorme quantia em prata, ouro, joias e rubis, Puxou a cor- dae trouxe os outros dois para ajudarem com a mercado- ria. O tiltimo a sonhar foi o ladrio medroso, que se viu diante da casa do genio do reino dos sonhos, onde ficava ‘um enorme diamante vermelho em forma piramidal ~ a 38 Marcelo Malu joia mais valiosa do mundo. A prineipio vacilou se devia ‘ou nao puxar a corda, E se o génio dos sonhos os pegasse em flagrante? Puxou, mas como estava frouxa, 0 né de- satou ¢ os outros dois nao vieram para ajudé-to. Quando acordaram, viram que 0 ladrio medroso ainda dormia e que os tesouros que haviam roubado nao estavam mais com eles. © ladrio medroso, para ndo morrer assassinado, teve que revelar todo o seu plano ao génio do reino dos sonhos ¢ Ihe entregou o tesouro roubado. Como castigo ele jamais pode acordar e viveu dormindo para sempre. Quanto aos outros dois ladrées, jamais puderam sonhar novamente, assim como nunca mais conseguiram desatar ond da corda que os unia’, Eu me lembro muito bem dessa hist6ria. Naquela noi- te sonhei com o genio do reino dos sonhos e ele me per- guntou secu tivesse que escolher ser um daqueles ladroes, qualeu seria? Dissea ele que naquele sonho eu preferia ser cle, jd que os outros trés ficaram presos para sempre. Ele me respondeu: “Entéo por que voce insiste em viver como. um ladrio?”, Acordei com a garganta seca ¢ buscando ar com a terrivel possibilidade de viver para sempre dentro de um sonho. Olhei o meu rosto no espelho e descobti os trés ladrées vivendo em mim. O jovem, em minha von- tade de conquistar muitas coisas. © velho, em saber da vida os seus segredos e softimentos. O medroso, temendo o destino ¢ preferindo, as vezes, fugir de tudo. ‘Atmensid fatima dos Carneitor 39) Assim como o rio, as montanhas também me ensi- rnaram muica coisa. Meu tio Salomio dizia que as mon- tanhas eram sagradas ¢ que no topo delas os carneiros se sentiam & vontade para falar com alguns homens. Eu podia conversar com os carneiros ¢ ouvir as suas quei- xs. Assim como tio Salomio, eu também compreendia a lingua deles. Poucos em nossa familia tinham esse dom. Para mim, na verdade, uma maldigio. Minha maldigio hereditéria. Tio Salomio contava que éramos descen- dentes do carneiro que assistiu ao nascimento do menino Jesus, por ter visto Maria dar a luz, havia se tornado ho- mem, Por esse motivo, muitos de nés compreendiamos o gue diziam. Nossa aldeia era pequena, tinhamos um pedago de terra onde cultivivamos a lavoura ¢ eriévamos os carnei- ros. A casa era feita de pedra, com uma sala onde nos espa- Ihévamos e nos dividiamos sobre os tapetes, para dormir, Ainda me lembro dos desenhos que se formavam entre as frinchas das paredes. Sou capaz de reproduzir as linhas do teto com preciso. Acima da porta de entrada, um velho crucifixo. A Biblia ficava sempre aberta numa pequena ‘mesa no canto da sala, Meu pai orava todas as manhis. Ajoelhava-se diante da Biblia e se punha a sussurrar suas oragées. Sé depois que conversava com Deus diretamente, Dizia que um hhomem gue nao se dobra diante daquilo que € maior do 40° Marcelo Malu que ele, nao é configvel. Ouco suas palavras assim como me vem As narinas o cheiro do perfume de alfazema dos cabelos de minha mie, O que fica das coisas é 0 cheiro, ‘Nio sei explicar, mas sinto &s vezes o cheiro de minha mac como se exalasse de meu préprio corpo. Sao as vores de todos da familia, os cheiros de cada canto da casa, os sabo- res dos alimentos que minha mée preparava, as imagens dos gestos dos meus irmios que se fixam em mim, Me vejo muitas vezes reproduzindo seus trejeitos, palavras, anseios Quando me sentava com a familia para almogar, agra- deciao camneiro no prato. Quando tinhamos, em ocasides especiais, a dédiva de comungar um carneiro, me punhaa devoré-lo com as mios, com pressa, apenas para me livrar de saber se aquele animal havia sido, em algum momento, ‘um interlocutor para os meus anseios de menino. “Coma devagar, Assad!” ~ pedia a mae, Sentévamos a um lado da mesa, o pai, eu ¢ os meus iemios mais velhos, Adib e Rafig. A nossa frente ficavam minhas irmazinhas Vidé- kia, Lucia e ama Na parede da nossa pequena cozinha, a pintura da Santa Ceia feita por tia Zakiya, irma de meu pai, ficava em frente ao lugar dos homens. Intrigava-me nao saber dual deles era Judas Iscariotes, 0 traidor. Minha mae sem- pre sereferia aalguém que ela nao gostava, como: “Aquele Judas, traidor!” Mas qual deles era Judas? Como adivi- ‘Aliens faim dos Carneios. 4 nhar sé olhando para o rosto de cada um dos doze apés- tolos? Nada diziam, Nenhuma evidéncia, $6 reconhecia © Cristo porque estava em destaque no centro da pintura, A principio, eram apenas amigos, comendo ¢ bebendo juntos. Como quando a prima Fatima se casou e todos os parentes se reuniram em festa, na casa do tio Faruk. Do mesmo modo que o meu pai, eu sempre compreendi a santa ceia como uma celebracio da vida e, por isso, sempre ‘me foi importante estar junto com todos na hora de cada refeicio, para agradecer, Em nossa casa, sentarmos & mesa para nos alimen- ‘tarmos, ¢ no para repetitmos palavras sagradas, era uma forma de oragao. Hoje posso perceber que meu pai fazia daqueles momentos o nosso ritual cotidiano de nos saber- mos filhos, pai, mae e itmaos. Nao pensdvamos em nada, ‘comfamos, sorriamos uns para os outros, ¢ nos serviamos. Nossa existéncia era estarmos ali juntos, compartilhando arefeicao, Lembro-me de um jantar, em que, depois de um dia de muito trabalho, nos sentamos ¢ minha mae havia feito homus. Meu pai, a0 tentar se servir, percebeu que esta- va sem © pao & mesa. Pediu a Lucia que o pegasse ¢ cla cruzou os bragos, a Adib, e ele fingiu nao ter ouvido, pe- diu entéo a mim que estava jé sonolento, ¢ também nao atendi ao seu desejo. Impaciente, ele se ps a servir-se de homus com as mios, mas ao invés de comé-lo, ele o esfre- 42 Marcelo Malut gou no rosto de modo a compor uma mascara. Ficamos por alguns instantes, eemerosos, olhando para o seu rosto maquiado pelo homus, aguardando qual seria a sua pré- xima agio, Simo olhou para os nossos rostos perplexos ¢ deixou escapar um sorriso, em seguida uma gargalhada, ¢ todos nés nos entregamos ¢ explodimos em risadas, ¢ sabfamos que estivamos vivendo naquela instante nossa oragio em famil Foi nessa mesma noite que eu vi a minha primeira es- trela cadente. Havia esperado por aquele momento des- de quando tia Zakiya havia dito que as estrelas cadentes eram segredos do céu, rastros luminosos. “Segredo que se guarda para sempre nos olhos, pois eles contemplaram 0 tilimo sopro de uma luz” Quando o eéu foi riscado, eu pedi um destino longe dali. Eu queria conhecer 0 mundo. Lembro-me que vivia imaginando minhas avencuras. Em um dos meus deva- neios recorrentes, me via, jd adulko, escalando monta- nihas, saltando de cidade em cidade, conhecendo pessoas endo me fixando em lugar algum, De certa forma, aestre- Ia atendcu ao meu pedido, vim para o Brasil e me tomnei mascate. Almensii intima das Carnctor 43 Assaap comprime a lingua entre os dentes. Vé Karima preparando o almogo ¢ sente saudade do dia em que se conheceram. Ela ainda jover, sem esse ar exausto que car- rega agora, de quem jé néo espera nenhuma surpresa da vida e se acomoda sem querer mais nenhuma mudanga. ‘Assaad, pelo contrario, vivia recompondo a paisagem da casa. Trocava os sofis de lugar, a disposigio dos quadros na parede, Num mesmo ano chegou a mudar trés vezes a cor da pintura externa da casa. Vem dat a frase que Michel sempre repetia: “Se eu no posso fazer grandes mudangas na minha vida, ao menos mudar a cor da parede da mi- tha casa eu posso”, Michel herdou de Assaad essa mania dde mudar as coisas de lugar. Lembro-me de suas repenti- nas ideias, Algo sempre novo parecia crescer dentro dele, como se uma voz Ihe guiasse 0 desejo de mudanga. Assim, tirava os méveis do lugas, reordenava os tecidos ¢ as es- antes em sua loja, Agia por impulso, era um sujeito da ‘Amensidio fatima dos Carneros 45 agzo. Por isso eu o admirava, tinha a capacidade de errar, se irritar e, em seguida, rir de si mesmo. Os filhos de Assaad, agora adultos, Sami, Michel ¢ Marcha, estavam comegando a criar seus préprios filhos. Apenas Sabri vivia com Karima e Assaad. Por este filho dedicavam uma atengao maior. Vitima de meningite ain- da menino, precisaria de cuidados especiais ¢ viveria na. casa deles. Sami se parecia com Rafiq, iemio mais velho de meu avé. Tinha uma austeridade que, as vezes, escapava pelos olhos. Um jeito de caminhar com a barriga para frente e os ‘ombros alinhados que o fazia parecer um soldado turco. Assaad implicava com ele, Pedia para relaxar 0 abdémen, batia na barriga de Sami com as costas das mios: “Ponha essa barriga para dentro, meu filho” Michel era como Adib, irmio do meio de Assaad. Meu avé tinha receio que ele se perdesse com suas ideias. Mas um pouco diferente de Adib, Michel parecia se valer do bom humor para atrair a simpatia das pessoas, enquan- (0 Adib o fazia por seu aspecto litico e temo, Mas foi pelo inventor que morava dentro de Michel que Assaad exigit dele que cursasse a faculdade de Direito. Quando comple- tou o curso, entregou o diploma para Assaad ¢ foi viver a vida 4 sua maneira. Gostava mesmo era do comércio. Martha, a tinica mulher, assemelhava-se & sua irma Vidékia. “Uma fortaleza de fragilidades” ele dizia. Mas 46 Marcelo Malu sentia por nao ter muito acesso ao que ela pensava. Um mistério para ele, assim como era a sua mac, Nao era toa que herdara o nome dela. Por todos 0s filhos, Assaad temia. Por isso nao lhes ensinou o drabe, amaldigoou o Libano e nao thes contou de sua infancia, nem de como Rafiqe Adib foram mortos. ‘Assaad dizia sempre que havia renascido para o mundo dentro do navio cheio de imigrantes que o trouxera para Brasil. ‘Assad tem a consciéncia de que aos filhos negou 0 seu passado, Mas do mesmo modo que embarcou naquele navio e veio para o Brasil sem olhar para tris, agora ele precisava escrever sem lamentar © que nio foi feito. San- rar o papel com palavras que estiveram esquecidas por muito tempo nas montanhas de Zable, deitadas sob o gelo da neve. Contar talvez fosse o destino que negou a si mesmo, Foi por ter calado tantos anos que o sangue em suas veias ficara espesso € comegava a entupir as veias do coracio. Mas como narrar sem ter uma montanha por perto? As montanhas, apenas as montanhas conheciam a sua inti- midade, Apenas aclas ele revelou os seus desejos. As mon- tanhas eram generosas ¢ pacientes, Considerava-se filho das montanhas, tanto quanto sabia ser filho de seus pais. ‘A quem confiar as suas lembrangas? Em Santa Barbara D’Oeste nao havia montanhas. ‘A mensdio ovina dos Carnicos 47 Quass todasas noites eu subia até a mecade da montanha, acompanhado de um dos poucos carneiros que tinhamos. Em uma dessas caminhadas, um carneiro de pescogo cur- to, a0 qual por algum motivo eu tinha me afeigoado, dei- tou-se a0 meu lado ¢ pos-se a contemplar 0 céu. “Sabe, senhor, um dia vou morar na lua.” “Nao é posstvel morar na lua’, afirmei. “Nao hé pastos, nem montanhas como as nossas, nem casas, nem pastores de carneiros, nem gente, nem animais. Nada. O que voce facia li, vivendo sem ninguém?, eu tentei convencé-lo do absurdo que era a sua ideia de morar na lua, ¢ disse mai “O que eu ouvi dizer é que li vive um dragao desalmado" “Quando eu ja estiver bem velho e sentir que o meu fim estd proximo’ explicou o animal, “mudo-me para i.e espero a minha morte. Antes fago um pacto com o dragio the entrego a minha alma. Assim, viverei para sempre na lua, no corpo do dragio.” A lmensidio fatima dos Carneiros 49 Quando ouvi o carneiro dizendo aquilo percebi que nio se tratava de um carneiro comum ¢ logo quis que cle fosse 0 meu animal de estimagio. Passei a chaméclo de Mustafa. pai quis maté-lo no Natal. Eu me lancei sobre 0 bicho para protegé-lo ganhei uma cicatriz na coxa. Por sorte 0 facdo nao estava tio afiado. © pai prometeu deixar Mustafa morrer de velhice, mas me imps uma semana de castigo sem poder subir a montanha, Das historias que sci a respeito de meu pai, guardo em minha meméria a do falcio-peregrino. Dizia cle que aos dezesseis anos de idade (ele sempre contava essa historia sem nunca modificar nada, 0 que me faz acredicar, sem nenhuma nesga de diivida, que era real) adormeceu de- baixo de um cedro e acordou com 0 toque rude dos dedos de um djinn. O génio estava vestido com roupas negras ¢ sorria para ele como se soubesse quem cle era no passado, no presente ¢ no futuro, “Fag seu pedido’, a voz do djinn era rouca ¢ profun- da, E 0 meu pai desejou voar. “Voar?”, parecia surpreso o djinn. “Sim, eu quero voar!” O diinn sabia que esse era um desejo perigoso para um |humano. Muitos dos que se transformaram em péssaro ja- ‘mais retornaram 3 sua forma humana. A liberdade do voo causava esquecimento. 50 Marcelo Maluf Mctamorfoscado cm falcio-peregrino cle bateu as asas pairou sobre a corrente de vento entre as montanhas do Vale do Bekaa. A ressalva do djinn era que quando ele comegasse a ter dividas sobre a sua natureza, se homem cou ave, deveria pousar ¢ comer um pouco de terra. “56.0 gosto da terra trard de volta o seu corpo de ho- mem’,o djinn foi claro. Meu pai se esqueceu do consetho e ficou durante trés dias ¢ trés noites vivendo como falcio-peregrino, com lampejos de lembranga de uma vida anterior, como ho- mem. O djinn nio teve escolha, langou um raio que 0 der- rubou das alturas. Acolhido por uma garota, ainda como péssaro, recebeu cuidados e sobreviveu. “Nao deixarei que vocé morta’, ela 0 envolvia no calor de seu peito e repetia a frase sem parar. Acordou nu, em sua forma humana. Fugiu. (O que a garota nao sabia é que a0 cuidar da ave estava dando a sua vida por ela. Meu pai ganhou uma cicatriz do raio que o atingiu no centro do peito, e que ele exibia to- das as vezes que contava essa histéria. A garota foi levada pelo djinn ¢ nunca mais foi vista. Por muitos anos, du- rante 0 verio, meu pai dizia receber a visita de uma linda ave de rapina que se aproximava dele a ponto de deixi-lo tocar em suas penas. Sempre acreditou que a ave era a ga- rota que o salvou. ‘Alimensidio lvima dos Carnelsor $1 Por isso, o pai era apegado a terra, sinha medo de al- tura ¢ vivia pedindo perdio a toda menina de dez anos que encontrasse. Com aquele jeito impaciente de dizer ele ensinava que nao havia vida nenhuma no cdu. Era sé um teto, as vezes azul, outras vezes cinza, sob nossas cabegas. “Ninguém mora Id. A vida é aqui que acontece, mew filho". “Mas e Deus?” Eu ingenuamente questionava. Ble apontava o dedo médio para o centro da mio e afirmava: “Aqui, Ele estd aqui. £ por isso que Ele é tio grande” Dizia isso olhando para as suas mios. Eu ria. Ele espalmava as ‘ios voltadas para a terra. Eu corria para o alto da mon- tanha ¢ dizia que ia para lf me encontrar com Deus. Ele ameagava correr atris de mim, depois soltava uma garga- Ihada que s6 de ouvir na lembranga me dé saudade. Toda vez que Simao pronunciava 0 nome de Jesus Cristo sua voz amiudava ¢ saia rouca, aos pedagos. Vivia contando aos que nos visitavam as parabolas do Evange- Iho. Tinha uma em especial que ele sempre gostava de contar. Ea dizia de um jeito muito particular. “Vejam vocés’ ele sempre iniciava assim: “Um gro de mostarda o que é? Mitido. Sim, mitido a ponto de quase ‘no 0 conseguirmos seguré-lo entre os dedos. Mas se qui- sermos, poderemos nos aproximar dele ¢ semed-lo. Ese tivermos maos pacientes veremos o arbusto crescer e ficar maior do que todas as hortaligas do campo, Aquele mes- 52 Marcelo Matuf mo grio de mostarda. Mitido. E encantados, presenciare- ‘mos os cantos dos passaros a fazerem os ninhos em seus ramos. Esse & 0 reino dos céus, E um grio de mostarda, 0 que é?” Deixando sempre a pergunta vagat, ele j4 com os olhos timidos, mirava a todos. Assim era Simao. Depois indagava: “Por que tanta beleza, meu Deus, por qué?” Amensdo forima dos Carnciros $3, O croro de Lucia penctra a casa ¢ interrompe a cscrita de Assaad. A irma mais nova que migrara para o Brasil al guns meses depois dele, Chora como sua mae Maria Mar- tha, Soluga palavras, nao consegue dizer. Lucia se ajoelha no centro da salae despeja algumas joias de dentro da bol- sa, Soluga ainda, enquanto acaricia um anel de ouro. “ saad! Assad! Mataram o pai, Assaad!”, as palavras saem de uma s6 vez. Diretas, sem preambulos, secas. ‘Meu avé se ajoelha e abraga a irmi que hd muito nao abragava. Olha em minha diregio como se pudesse sentir a minha presenga e cerra os olhos com ternura. Pede um copo com agua para Karima e espera que Lucia recupere 0 folego. “Invadiram a casa do pai, meu irmao, roubaram 0 pouco do dinheiro que ele guardava no colcho, depois o mataram. Por qué? E cu aqui comprando joias. Joias! O que foi que eu fiz?” ‘A mensio fatima dos Carncicos. $5 Assad a consola em seus bragos sem dizer nenhuma palavra. O siléncio da casa s6 € perturbado pelo choro sentido de Lucia. Um pdssato invade a salae se debate nas paredes. Esta machucado. E pequeno, tem o peito branco, as asas pretas e um desenho como um colar negro contor- nando o seu pescogo. Assaad consegue envolver o passaro em suas mios € 0 aproxima do seu peito. O entrega para Lucia. Nenhum dos dois diz qualquer palavra, mas eles se entendem. Est dito. Lucia pisca os olhos de maneira lenta e se despede calada, apenas com um movimento de cabeca. Levao passaro, carrega-o com ternura. Era preciso cuidar daquele ser tao frégil. Quando Lucia deixa a casa, Assaad quebra o siléncio com um berro. Sabe que nao pode velar 0 corpo de Simao. Apenas orar por ele em siléncio. Nao é possivel viajar para o Liba- no, nao chegaria a tempo para o seu funeral. ‘Meu avé se senta & janela ¢ se pée a escrever. Sua mio esquerda treme ao contato do lépis com 0 caderno, pois a palavra no consegue legitimar a sua aflicéo. A palavra € um arranjo ilusdrio. Um artificio incapaz de fidelidade ‘para com o sentimento da perda, A sua mao esquerda tre- mendo é mais fiel a ele do que qualquer palavra escrita. A escrita ndo Ihe conforta. Assaad precisa aceitar que 0 seu corpo chore. 56 Marcelo Malut Quando Simao enviou Assad para o Brasil, cle des- pejou sua fé naquele menino. Esperava que ele vingasse os seus imios e cumprisse 0 destino que fora interrompido pelos soldados eurcos. Agora, a morte de Simio 0 liber- tava desse compromisso. Nao tinha mais a quem prestar contas, O seu destino era uma escolha e nao um dever. Estava aflito, e quando ficava assim desandava a di- zer em vor alta orag6es em drabe. Declamava trechos do Evangelho de do frequentava igrejas, nem mesquitas. Preferia refugiat- isto ¢ suratas do Alcorio. Mas Assad sc ibeira de um rio e contemplar o fluir das éguas. A lmensidio farina dos Caumeitos $7 O séncro do pai no mundo me faz lembrat 0 quanto cle insistia comigo, Adib e Rafiq, sobre a importincia de se ter um trabalho. “A vida nos é dada para reconhecermos o destino sagrado de cada set. E sé poderemos ofertar a Deus em sgratiddo com 0 esforgo de nossas mios”, Meu pai tinha calma em dizer. E parecia que até o timbre de sua voz se modificava. As palavras saleavam de sua boca, subiam a montanha e se perdiam entre as patas dos carneiros. Era assim que eu imaginava o destino dos seus conselhos, sen- do pisoteados pelos carneitos pastando. Rafiq, meu irmao mais velho, era o mais parecido com. © pai. Os olhos atemorizados, como se estivesse observan- do a chegada de uma tempestade de arcia no deserto. Os ‘ombros langados para frente ¢ a boca sempre seca, arto- xeada, com rachaduras. Mas no era apenas em sua he- Almensdio lncima dos Caeizos 59 ranga fisica que se parceiam, Era cheio de surpresas tanto quanto 0 pai Lembro-me de quando apareceu nu em nosso quintal. Explicou que no caminho da escola para casa, devaneou sobre o quanto as roupas aprisionam o nosso pensamento que tinha tido um péssimo desempenho na prova de his- t6tia por estar vestido, Se estivesse nu, suas ideias luiriam, “Se me colocassem o teste aqui na minha frente agora, cu saberia todas as respostas.” O:pai correu atris dele por toda a aldeia, e gritou: “Rafig, o que eu fiz para merecer essa humilhagio?", Naguela noite, Rafiq dormiu nu, ao relento. Era ini- cio do inverno e nao fosse a mie levar uma coberta para cle, meu irmio teria congelado. “Vocé pode até o acobertar, mulher, mas essa noite ele no entra em casa. Quero saber se as suas ideias resister melhor ao frio ou ao calor.” © pai o provocava. Pela manha, Rafiq pediu permissdo ao pai para ir se vestir “Eo que mais vocé tem a dizer, meu filho?” “Sem querer desrespeité-lo, meu pai, nao foi o cober- tor que a mie me deu que me tirou o fro, foram as ideias, em meu corpo livre que me aqueceram. Mesmo a sua frie- za nio péde ser maior que a compaixio de minha mae. E foi essa ideia que me salvou de congelar 0 corpo I fora. Aqueceu tudo aqui dentro”. A fala de Rafiq atingiu Simao. 60 Marcelo Malut O pai, com a voz desorientada ¢ os olhos frouxos, s6 foi capaz de dizer ao meu irmao que se vestisse, O dia seria longo ¢ de muito trabalho “Talvezo trabalho o faga compreender, meu filho, que 0 melhores pensamentos que vocé possa ter nascem da terra ¢ para ela retornam. E sio melhores quando deixam de vagar e se concretizam pelo labor. A terra ha de cobrir um dia 0 seu corpo com a delicadeza com que uma mae cobre o seu filho o embala para dormir. Nao ha liber- dade maior, meu filho, do que a alma separada da carne” Rafiq parecia nao prestar atengao &s palavras do pai Mantinha o olhar mirando o topo da montanha. “Rafiq, vocé esta me ouvindo?”, jimao gritow. “Um dia vocé também quis voat, meu pai, por que no consegue compreender 0 meu bater de asas?” Almensidio losin dot Carneios 61 ASSAAD interrompe a escrita de suas memérias. “Por que, ‘meu pai, vocé foi dizer aquilo?” A pergunta transborda de sua boca e se espalha pela casa. Minha avé grita da co- zinha querendo saber se ele necesita de algo. Assaad nao responde. Ele apenas vé a sala inundada por seu questio- namento ¢ cerra os olhos. Karima nao suporta o marido naquelas vestes, néo su- porta que ele sente & janela como um homem do povo. Ele, que tinha posses, que enriquecera. Karima sonha, em. 1966, em voltar para a Siria, Nunca se habituou a0 Brasil Ao contrétio de Assaad, que se mistura ao povo ¢ agrega, aos seus modos, o jeito de ser do brasileiro. Sentado no sofii, Assaad abre os bragos ¢ se entrega & fadiga, a uma luta em que ele esti prestes a perder, leva as maos ao centro do peito, ha uma pressio que o angustiae um desejo de se deixar veneer, Almensidie fatima dos Carnsitos. 63 Hi pouca luz na casa. Assaad remexe os bolsos da cal- ga encontra um papel amarelado. As palavras jé nao es- tio legiveis. Assaad se apega 4 folha envelhecida e enxuga as poucas légrimas em seus olhos, era um poema de seu irmao Adib, Mas as palavras legiveis nao s4o mais necessé- rias, Assad tem o poema em seu corpo. 64 Maceelo MaloF ‘AbrB, meu irmio, nao havia nascido para a lavoura, mui- to menos para os carneiros, era capaz de perder-se com ‘© movimento de uma folha ao vento ¢ esquecer-se de colher a cevada. Ao contrario de Rafiq, nfo desafiava 0 pai. Sabia de sua diferenga. Apenas o temia eo respeitava, Passava as noites com um caderninho. Parecia ter mais idade do que aparentava, nao fisicamente, mas no jeito de falar as coisas “O que voce tanto escreve ai?”, eu quis saber. Adib passou as mios em minha cabega. “Assaad, meu irmiozinho, escrevo agora o meu il- timo poema. Feche os olhos ¢ imagine que nao teré um novo dia. £ 0 que eu fago sempre, registro em palavras 0 que esse pensamento me traz.” “Deixa de dizer besteira, Adib. E claro que vocé sem- pre teré um novo dia’, eu o contrariei. Alnensidio fotima dos Careiros 65 Ele escreveu com letras grandes em seu caderno: VEREMOS. E 0 mostrou para mim. “Agora ja é tarde, vd dormir, ‘Assaad.” Figuei debaixo da coberta tentando imaginar ‘como seria nio ter um novo dia para viver. Fui dominado por um terror, nao consegui adormecer profundamente, Como era possivel que Adib conseguisse todos os dias, antes de dormir, pensar uma coisa dessas? Ainda hoje nao sou capaz. ‘Adib tinha apenas dezesseis anos quando me disse sso. Como eu poderia imaginar que o tempo me faria fi- car mais velho que o meu irmao? Assaad quebra o lapis ¢ joga 0 caderno contra a pa- rede. “Chega, Nao posso continua.” Arrepende-se desse gesto, Ajoelha-se diante do cader- no € 0 recolhe, como se socorresse um objeto precioso, algo que o mantém sadio diante de sua secreta tragédia, “Preciso seguir em frente”, diz em voz baixa para si mes- ‘mo, como se aquelas palavras fossem um desejo soprado em seu ouvido, por um anjo. Pega outro lipis ¢ ajita as paginas maltracadas do ca- derno. Sente a minha presenga ¢, pela primeira vez, meu avé pergunta: “Tem alguém aqui?’ c olha para todos os lados como se procurasse uma sombra, um vestigio de algo ou alguém. 66 Marcelo Mala Apenas penso que ele deve continua. Nao pare ago- ra, meu av6. Todos da familia precisam que voc’ con- tinue. Eu preciso que as suas palavras venham ao meu encontto. Eu preciso devorar o passado, para nao ser por ele consumido. Dentro de mim, meu avé, também habi- taum carneiro, ‘Alimensidie fatima dos Carneizos. 67 No ANo de 1919, 0 frio nas montanhas me deixava imével durante as primeiras horas da manha. As vezes, eu abra- ‘ava Mustafa e me aquecia em seus pelos. As montanhas se vestiam de branco ea vida se tornava menos gil com as temperaturas baixas. Eu me irritava com o clima, mas Mustafa parecia compreender o inverno, Com o ftio, ele parecia ficar menos agitado, até o seu modo de falar se modificava, ele percebia que eu ficava desconfortivel com © inverno e que tremia batendo os dente. ‘Mustafa tentava me explicar que eu sé ficava daquele jeito porque resistia ao frio. Achava a sua conversa uma remenda besteira. “Eu posso morrer, sabia? Nao tenho todos esses pelos para me proteger.” “Ouga, Assaad, ouca’,o carneiro dizia, “nao hd conhe- cimento que possa luzir sem a geada, nem vida que possa Almensdio forima dos Carnelsos 69 existir sem o tempo de vigtlia. Poiso inverno éa vigilia do tempo, é 0 segredo do que vird. E 0 gesto de compaixto da terra para com os seres que nela habitam. O inverno 6a medida de nossa permanéncia ¢ logo concluimos que sem 0 cuidado miituo somos mais frgeis que as asas de uma borboleta. Aprendo a ter gratidao pelo Criador que me deu esses pelos ¢ 0 inverno me traz mansidao. Um car- neiro quando sabe disso esta pronto para viver a sua vida, para compreender a imensidao que carrega em seu inti- ‘mo. Qualquer camneiro sem gratidio cai em desgraca¢ en- Jouquece. Jé vi muitos irmios se perderem nas montanhas vi homens que se perderam de si mesmos ¢ sé depois de muitos anos volearam a se encontrat.” Eu sempre o ouvia com muita atengio, Muscafa era ‘um desses carneiros que falavam por horas. Mas, apesar de ‘me enfastiar muitas vezes com seus discursos, eu gostava de owvi-lo, “Ouga, Assad, ouga, eu jé fui um homem.” ‘Minha cara de espanto com a noticia, dada de manei- 1a tio abrupta, fez com que Mustafa repetisse: im, Assad, eu jé fui um homem. Jé pastoreei car- neiros como eu. Jé tive uma familia humana, Jé desejei o mundo. Vivi como os miseraveis ¢ como os reis. E mor- 1i cercado por ladrdes ¢ inimigos. Sempre tive medo. Como miseravel, eu tinha medo de néo ter o que comer ¢ morrer de fome. E como rei, eu tinha medo de que os 70 Marcelo Malar miserdveis se revoltassem, me derrubassem do trono ¢ ‘me marassem. Quando 0 seu pai nasceu eu ja era bem velho e vivia uma vida pacata como aldeao. Mas eu tam- bém tinha medo de que os turcos atrombassem a minha casa € roubassem a comida, ¢ matassem os meus filhos € netos. Mas nao foi assim que eu morri a Ultima vez. Um carneiro desembestou e me deu uma cabegada e eu rolei montanha abaixo. A morte pode estar em qualquer lugar, Assaad.” Enquanto eu ouviaa revelagio de Mustafa, a neve caia sobre a minha cabega ¢ o meu estémago se inundava de saliva, Mustafa néo parou: “Quando chegou o tempo de retornar, eu renasci como camneiro para servi-lo. Nao é de hoje que eu perten- {40.4 familia, meu bisneto, Por isso, tenho que avisi-lo, Os préximos dias serio de tormenta.” ‘Ao revelar a sua identidade, Mustafa se levantou, era ‘um homem agora. Tinha os olhos calmos, barbas longas ¢ brancas, Nao era possivel dizer dele que era triste, nem feliz. Tinha apenas uma presenga int~gra. E me olhava com ternura. Eu tive uma reagio que nao consigo explicar. Disparei a correr ¢a subir ainda mais a montanha. Lembro apenas que o meu desejo era fugit, néo queria aceitar o absurdo de ter um bisavd num corpo de carneiro. E corri o mais rapido que pude, Mustafa veio atrés de mim. Mas eu segui ‘Almensdi ovina dos Carneros 71 por caminhos desconhecidos entre as pedras ¢ me perdi no topo da montanha. Quando olhei para tris jé nao sabia mais onde eseava, desorientado pela névoa e pela paisagem desconhecida, Deitei-me na neve para descansar € segui com os olhos algumas nuvens se desmancharem no céu ¢ desenharem novas figuras, Minhas maos e pés formigavam ¢ eu fui to- mado por um desejo de dormir. Fechei os olhos ¢ depois nio sei dizer o que me ocorren: 72 Marcelo Malu Uma rorTE dor no peito, desta vez, tomba Assad da janela, Esparramado no chio olha para a pintura de Sio Charbel. © santo he estende as mios, mas Assaad no consegue alcangé-la. Ele se aproxima, Assad contava que Charbel aos vinte ¢ trés anos de idade havia abandonado o lar para viver o seu destino espiritual. Ficara drfio de pai aos trés anos de idade, Requisitado pelo exército turco- -otomano para trabalhos forcados, o pai de Charbel mor- rera trabalhando como escravo para o impétio. O santo viveu como eremita durante vinte ¢ erés anos de sua vida, morando em um pequeno quarto, apenas com um colchao de folhas de carvalho, uma limpada de azeite, um prato, um jarro para 4gua, um banco e alguns livros. Sabe-se que um ano apés a sua morte o seu corpo ainda intacto vertia uma mistura de agua e sangue, ope- rando milagres em quem 0 tocasse. Amensido faim dos Carneeos 73 Charbel articula algumas palavras, mas Assaad no compreende o que ele diz. Ele estende novamente as suas ios. Assaad se esforga e consegue aperté-las. O calor das mos de Charbel penetra a sua pele ¢ atinge os seus mt culos, que se afrouxam, sente a presenga do santo em todo ‘0 seu corpo e comega a bocejar. Charbel olha para mim ¢ faz um gesto para que eu me aproxime. Pega a minha mao esquerda ¢ a posiciona no centro do peito do meu avd. E, coloca as suas méos no centro do meu peito. Assaad se agarra & pintura e desmaia. O rosto de Charbel esta encoberto pelo capuz, as pa- lavras dele estao cheias de lentid: “Nao hé outro caminho senio o siléncio de todos os ‘medos. Para que se alcance o segredo de se saber pleno, deixe adormecer abaixo da pele os ossos e miisculos de sua face. Hi que se esquecer de ti, de suas vestes, de sua maneira de agir c de falar. Ha que deixar que os antepassados, 0 pai, a mac, os irmios se desprendam dos seus bragos, hé que fugir do que the é conhecido e investigar 0 tesouro negado pelos sabios, esquecer a cor de sua pele e desejar o nao desejar. Caminhar sem que os pés saibam do que so feitas as estradas. Vocé ¢ 0 obscuro clario do raio por detrés das monta- nhas. Vocé ¢ eu sempre estivemos aqui, mesmo que aqui seja, em outros tempos, o casebre de um miserével campo- nés ou o palicio de um sultao. 74 Marcelo Mau Sc quiseres ouvir, nao hé outro jeito sendo tapar os ou- vidos com as maos, assim como, se quiseres vencer no ha outro modo senao comungar a vida junto aos vencidos. Nao hé outro tempo, nem outro espago, néo ha como ser mais ou menos do que plantar os pés na terrae saber que somos apenas a miragem de uma gota de agua no deserto. Comece hoje a existir naquele infimo momento em que jé ndo se reconhece nas coisas que te reflete ¢ percebe na luz dos outros a porgio minima de falgor que escapou de ti, Ha que reinventar os gestos para nao se ignorar ¢ ter a sensago de nao saber que em ti se movimentam os pés, 8 bragos, os miisculos, os ossos, os dedos ¢ os olhos de tudo o que é maior, menor e na medida exata de ti Ouga 0 mondlogo do ar, da terra, do fogo e da Agua, ouga 0 que te dizem, eles no sabem mais do que aqui- Jo que so. Mas nao tente, em hipétese alguma, ser 0 que cles sao. £ preciso que vocé saiba. A nés nos cabe apenas apreciar 0 canto que entoam ¢ seguir como guardides ¢ servos, protegendo a sua jornada, Por isso, vive. Seja ape- nas aquilo que €. E nao anseic por nenhuma verdade, além da compreensio da sua prépria sombra’ ‘Assad abre os olhos, esté abragado a pintura. Lem- brra-se que seu pai esteve presente a tiltima missa celebrada pelo santo. Charbel era um primo distance. Youssef era 0 seu nome antes dos votos. Meu bisavé tinha doze anos de Alenia dos Caracicos 75 idade e assistiu o monge ser tomado por paralisia durante 4 missas inicio dos seus dias de agonia. “Primo Youssef” como o chamava meu bisavé, “preencheu todo o seu quarto de luz no dia de sua morte. O seu corpo brilhou durante horas e s6 apagou quando o cencerraram em um caixdo". Assaad se levanta¢ pendura o retrato na parede. Reco- Ihe o lapis ¢ 0 caderno do chao. Ainda nao havia chegado a sua hora, Quando Charbel posicionou suas méos no centro do meu peito, veio em minha mente a lembranga do dia 7 de serembro de 1980. Nunca antes desse dia eu havia sentido tanto calor. Eu desfilei montado num cavalo de madeira dentro de um jipe, rodeado por meninas vesti- das de princesa, fantasiado como D. Pedro pelas ruas de Santa Barbara D'Oeste. Imitando © nosso primeiro im- perador, empunhei uma espada de plistico encapada com papel aluminio praceado e um bigode e costeletas postigas ‘me transformaram naquele que bradou em 1822: “Inde- pendéncia ou moree!”, E assim, com a espada em punho, escorrendo cola branca por cima da luva, sob um sol de rachat, passci o maior calor da minha vida até aquele mo- mento em que as mos de Sio Charbel pousaram em meu peito. Naquele dia 7 de setembro de 1980, decidi que ja- ‘mais seria imperador de nada. Assim como hoje eu tam- bbém sei que nao serei ¢ nem sou nenhum santo. 76 Marcelo Maluf Derots que eu fugi de Mustafa, nio sei dizer se desmaiei ou adormeci. Fiquei por muito tempo desacordado. Mew corpo foi encoberto e fiquei cego pela brancura da neve. Ensurdeci, Minha pele frigida jé nao podia sentir nem a dor do gelo a queimando, Mas de alguma maneira eu sa- bia que estava ali. Inerte. Tudo era branco, nada além de ‘um imenso espago em branco. Nao havia nada. Nao ha- via ninguém, Apenas a invisibilidade e o frio. Jé nao havia mais luta nem desejo, nem esforgo, estava sendo tragado pela montanha. Naquele dinico instante em que eu estava caido, pude sentir 0 que seria um dia sem o dia seguinte, eu jé nao me pertencia, jé nao era mais filho, nem irmao, me entregava estava quase esquecendo o meu nome, Fiquei pensando se era assim que Adib imaginava néo acordar no dia se- guinte, Atmensidio laxiena dos Camciros 79 Se nao fossem as mios asperas ¢ cheias de calor que senti massageando os meus pés, talvez eu tivesse ficado ali para sempre, como um tronco de érvore sepultado pela neve. Entte a extensio do mando do sono ¢ a vigilia, no tive a certeza de que minha experiéncia era real ou imagi- nitia, Quando abri os olhos, me vi numa caverna. Havia uma fogueira na entrada, que o homem que me resgarou nunca deixava que se apagasse. Sentia como sc o meu cor- ‘po estivesse congelado por debaixo da pele, entre os ossos € 0s mésculos. icas, tinha os olhos firmes © homem, com vestes 1 € grandes ¢ uma tranquilidade nos gestos. Sentado & mi- nha frente, balangava o corpo de maneira circular ¢ pro- nunciava um tipo de oragio desconhecida para mim. Eu tentava articular alguma palavra, mas ndo me era possivel descongelar os labios. Diante do fogo ele aqueceu as maos ¢ as posicionou no centro do meu peito, O calor que irradiava de sua pele ia aos poucos derretendo o frio dentro de mim. Como se o calor de suas mios pudesse alcangar 0 meu coragio. Pediu, apenas gesticulando, que eu me sentasse e me deu. uma caneca com cha, “Beba, ird te fazer bem.” Sua vor era suave, falava pau- sadamente. Agradeci pelo cha. E, um pouco sem jeito, lancei a pergunta que estava agitando minha curiosidade. 80 Marcelo Malu “Por acaso morri e o senhor é Deus?” Ble sorriu e me disse: ‘Scja bem-vindo & minha casa, nao € sempre que rece- bo visitas”. Sentou-se ao meu lado, pés as mos em meus ombros; “Eu sou apenas isso que vocé vé. Nada mais”, “Jsso quer dizer um Nao ou um Sim?” insisti “Depende. © que vocé vé? Mas se quiser saber se esti vivo ou morto, olhe para a vida li fora. Se ao sentir 0 chei- ro da montanha ¢ das drvores timidas, se a geada Ihe fizer ‘cécegas na face ¢ isso Ihe trouxer uma vontade de cami- nhar mesmo sem saber para onde, é porque estd vivo. Se ‘mesmo presenciando tudo isso nio tiver nenhuma vonta-~ de de fazer nada, ¢ por que esté vivo também.” Fiquet sencado pensando nas palavras daquele estra- nho homem. Ele falava como Mustafa “Qual € 0 seu nome, senhor?” Era o que me restava perguntar, “Abdul-Bassic.” “Eo que faz morando numa caverna?” “Sou um eremita” Diante do meu olhar ingénuo, 0 homem explicou: “Vivo em paz e em guerra, medicandoe orando para Allah, o misericordioso,em nome do profera Maomeé’, “Em guerra", para mim a palavra guerra nio poderia estar junto da palavra paz. A menside fin dos Carneizos 81 “Sim, em guerra.” Ele afirmou. “Mas nao falo da guer- ra que se luta contra um inimigo & sua frente, tao cheia de vaidades ¢ sede de poder e gléria. Falo da guerra travada consigo mesmo, a fim de nao deixar que a sua voz abafe os sons preciosos que vem da boca de Allah” $6 mais tarde eu soube que Abdul-Bassit era um mon- ge sufi, E.a partir daquele dia passei a ler, em segredo, 0 livro que ele me deu de presente: 0 Alcordo. Eu sabia que meu pai ndo compreenderia e que minha mie diria que no era certo. Que religido s6 se tem uma e que nés éra- mos cristios. Mas Abdul-Bassit nao me disse para mudar de religido, apenas me falou de Allah com a intimidade que 0 meu pai falava do Cristo. Percebi que os seus olhos, que a prine(pio se apresen- taram enormes c firmes, agora estavam miidos ¢ frouxos, a ponto de escaparem deles pequenas goras de lagrimas. Ajoelhado diance de mim, Abdul-Bassit apertou as suas mos sobre as minhas e pediu que eu o perdoasse. Eu ndo tinha motivos para perdodlo, j4 que ele ndo tinha me causado nenhum mal, pelo contrério, havia me salvado de morrer congelado na neve, Ainda assim ele insistiu € suplicou o meu perdio, Confuso, sem saber 0 que fazer diante daquela situagio absurda, disse que o perdoava. ‘Abdul-Bassit me abragou e se prostrou aos meus pés. “Nao o havia reconhecido, meu Senhor. Perdoe-me por nio saber que eras tu, sempre tu, aquele que eu resga- cei da neve” 82, Marcelo Maluf Ao pronunciar tais palavras, Abdul-Bassit se pés a gi- rar fixado sobre uma das pernas, os bragos, a principio, ctuzados sobre 0 peito, lentamente foram se soltando e, abertos, com a mao direita espalmada para cima e a mio esquerda levemente voleada para baixo, ele girava. Fiquei assistindo a sua danga e pude ler algumas palavras do pro- fera no tecido esvoacante que vestia. A caverna foi invadida por dezenas de pissaros e uma luz azulada tingiu as paredes. O fogo dangava com ele. Quando parou de girar, perguntei o que ele estava fazendo. “Eu estava louvando a Allah, por ele me permitir en- xergar para alm dos meus mtisculos ¢ ossos.” Figuei hip- notizado por sua danga, pelo modo como me senti vazio, preenchido apenas por sua “oragio em movimento”, como ele explicou. Em seguida, Abdul-Bassit me deu um abrago, sentou- -se a0 meu lado, bebeu um pouco de cha e me perguntou se eu conhecia a historia dos cinco cagadores famintos. Diante do meu gesto negativo com a cabeca, ele pos mais lenha na fogueira e me contou: “Cinco cagadores famintos sairam para cagar um gan- so. Um deles era cego, o outro era coxo, 0 terceiro era sur- do, o quarto estava nu ¢ 0 quinto tinha uma espingarda sem canos nem gatilho, Entre arbustos que néo haviam crescido, buscavam uma ave que ainda nao havia nascido. Caminharam e caminharam, por montes, vales ¢ deser- A tmensidiofnsimados Carneis 83 tos, atravessando topos ¢ abismos. Quando olharam para trds para ver 0 caminho ja percorrido, se deram conta de que sé haviam avangado dez centimetros. © surdo disse: “Atengio, ougo o alarido de um péssaro!” O cego pds uma mao sobre os olhos e disse: “Vejo se aproximar um ganso”. que tinha uma espingarda sem canos nem gatilho dis- parou ¢ matou o péssaro, O coxo foi buscé-lo, O que esta ‘va nu guardou o péssaro em um dos seus bolsos. A beira de um lago, sem Agua ou margets, fizeram uma fogueira com galhos de arbustos que ainda nao haviam brotado. Puseram a ave em uma panela sem fundo ¢ comegaram a cozinhé-la em uma Agua que nao estava timida sobre um fogo que nao brilhava. Mas o ganso esticou o pescogo ¢ nao se deixou cozinhar. Mirava apenas o céu, nada mais, ¢ deixava passar os dias. Quando quiseram comé-lo, viram que sua carne era mais dura que os seus ossos. Apesar de tudo, o devoraram, mas isso nao os deixou satisfeitos. Os cinco cagadores nao sorriram, nem tiveram prazen.” ‘Ao fim da histéria, Abdul-Bassit se prostrou ¢ uniu as maos, silenciando por alguns minutos. A histéria tinha me causado tamanho estranhamento que nao pude segu- taro riso, Abdul-Bassit, depois de sua reveréncia, juntou- -se a mim ¢ ficamos alguns minutos gargalhando dentro da caverna. Essa historia nunca mais saiu de minha cabega. Con- tei-a aos meus amigos ¢ aos meus filhos, quero conté-la 84. Marcelo Maluf aos meus netos. Confesso que ainda hoje nao sei o real motivo de Abdul-Bassieté-la me contado, mas diante da possibilidade da morte lembro-me dessa historia todos os dias, o que me deixa ainda mais perplexo. Abdul-Bassit se despediu de mim com outro abrago¢ essa nao seria a tiltima vez que nos verfamos. “Volte mais vezes, visitante da neve’, ele disse. E foi nessa hora que me presenteou com 0 Alcorio, “Para que te aquega’, € 0 aproximou do meu peito. Ainda nevava quando iniciei a descida da montanha, ¢ quase havia me esquecido do motivo de eu ter me perdido na neve. Mustafa surgiu correndo em minha diresio. Ti- rnhaos olhos tensos. Tremia nas patas. Os outros carneitos berravam, “Nao desga, Assad! Nao desca! Vi nossa casa cercada por soldados! £ melhor que vocé fique por aqui.” Olhei para aaldeia e vios soldados turcos montados em seus ca- yalos ¢ armados, cercando a casa dos aldedes. Mustafa in- sistiu para que eu nao descesse. Achei melhor esconder 0 livro que ganhara de Abdul-Bassit debaixo de uma pedra. Talvez, se eu nao tivesse descido, Talvez as coisas es- tivessem de outro modo em minha mente hoje, Talvez eu fosse outro. Talvez a minha vida tivesse tomado outro rumo. Talvez, se eu nao tivesse dito 0 que eu disse. Talver, se eu tivesse ficado no alto da montanha com Mustafa ¢ Abdul-Bassit. Mas nao foi o que fz. En desci, Almelo fvina dos Carneicos 85 ‘A cada novo passo que eu dava em diregio a nossa ‘casa, Mustafa gritava ¢ se punha & minha frente tentando me impedit, o céu se abrira e nfo poderia haver céu mais anul nem mais bonito do que aquele, as pedras incrus- tadas na montanha pareciam tomar novas formas, a neve pintava a paisagem e ocultava a pele nua da montanha. Eu cambaleava, cafa, teromava 0 félego, 0 coragio descom- passado determinava os meus passos incertos. Mustafa berrava,o pai viu lide baixo que cu descia. “Puja, Assad!” ee gritou. © chute que meu pai recebeu no estémago abafou 0 set grito, que ficou encarcerado na garganta. Mas 0 gesto persistente com a mio dizia que era para eu nao descer. Nio havia mais essa possibilidade. Avistei Adib ¢ Rafiq, sendo levados para o alto da arvore. E.cheguei até o quin- tal de nossa casa, Os soldados nao se preocuparam com a minha presenga. © algoz que forjava lentamente 0 né da corda olhou-me nos olhos. Ele estava calmo ¢ patecia se importar com o sofrimento de minha mie. “Assad da voltas na pequena sala arrastando os pés no chao, As rugas em sua testa somam-se aos seus olhos ver~ methose borram a sua meméria, Eu pego a ele que se acal- me, mas Assad nao me ouve. Assaad nao pode me ouvir “Por que vocé nao vai embora®, ele grita. Como se soubesse da minha presenga. Mas, em verdade, 0 recado no é para mim, € para a sua lembranga tertivel. Assad 86. Marcelo Malut prefere esquecet, Era sempre assim que lidava com aque- la meméria, como se ela nao the pertencesse, como uma histéria das mil e uma noites, como um lugar que ele s6 visitava quando estava sozinho e podia, sem ninguém por perto, esmurrar a parede e grtar, depois chorar como uma crianga ferida. A verdade é que ele nao esquecia. Esperava pelo milagre de ter um dia de pleno esquecimento, um dia sem lembrangas, sem que o seu presente fosse atormenta- do com as histérias do seu passado, Essa meméria ficaria enterrada e distance das hist6- tias de nossa familia. Lucia e Vidékia eram muito novas quando tudo aconteceu, talvez pelo trauma elas néo car- regavam essa lembranga, Apenas meu tio Sami a receberia como heranga de meu avd, Michel, meu pai, morreria sem conhecé-la, No entanto, uma meméria por muito tempo aprisionada, um dia transborda e preenche com um liqui- do espesso as fendas ocultas das sensagSes e experiéncias de toda a familia, Por muito tempo culpei Assaad por ter guardado esse segredo, Mais um dos seus muios segredos, No entanto, agora ao seu lado, assistindo-o escrever suas memérias, dou inicio a sua ea minha absolvigio, porque também eu carrego essa culpa. A culpa por nao ver impedido os sol- dados turcos de matarem os seus irmos. Mas como eu poderia? Mesmo assim, ainda sinto essa culpa correndo em meu sangue, esse colesterol genético, Essa gordura. A Imes fina dos Carneros 87 Ouvi de meu tio Sami outras histérias sobre a vida do ‘meu avd no Brasil, De quando se prostrou ao cho de um posto de gasolina aos pés de um caminhoneiro que amal- digoava o pais ¢, Assaad, solucando, vociferava ao homem que ele nao fazia ideia do que era um pais amaldigoado, e beijava 0 chao, ¢ levantava os bragos para 0 céu. Foi nesse dia que Assaad revelou para ele o segredo que lhe pesava. E pediu a ele que jurasse nfo contar aos seus irmios. Sami accitou o fardo como uma heranga silenciosa. Cada palavra de meu tio reverberava em mim como uma tomada de consciéncia. Eu podia sentir que 0 meu corpo inteiro reconhecia aqueles fatos, como se soubesse antes de todas aquelas histérias, antes mesmo de serem contadas. ‘Alguns anos apés a morte de Michel, eu recebi em sonho uma carta sua. Nao consegui me lembrar de tudo, transcrevi o que me ficou na meméria. Entre as suas pala- ‘ras, uma frase: “Agora jé nao te chamo mais meu filho”. Carreguei a carta durante quarenta dias em meu bolso. Depois, viajei para Santa Barbara D’Oeste ¢ fui ao tamulo onde ele esti enterrado junto aos meus avés. © mesmo tximulo a0 qual cle me levava quando crianga para beijar a imagem de Assaad. Sussurrei na grade que dava acesso aos caixes que no queria mais aquela histéria, que no precisava mais repetir os fracassos, as dores, as doengas, o ddio ¢ os me- 88 Marcelo Maluf dos que assombravam a familia hi canto tempo. Sussur- rei, articulando muito bem as palavras para que também Assaad pudesse ouvi-las com exatido, Eu quero a paz de meditar sobre o seu jazigo, meu avd, sem que a desgraga do seu édio permanega em mim, Saiba que carneiros com insOnia vagueiam em meu corpo. Estetas da meméria a me sufocar enquanto durmo. Sou como um navio trans- portando entre os mares uma carga de lembrangas alheias. Pedi para que ele perdoasse os soldados eurcos que mataram os seus irmaos em Zahle, Depositei a carta sobre ‘© marmore ea cobri com mel. Deixei uma foto minha 3x4 atrds da placa com a imagem, o nome, adata de nascimen- toe morte de meu pai. Sai de li com a certeza de minha escolha, a de nao tet filhos. Nao carregarei ninguém em meu colo para beijar 0 retrato do avé em sua lipide. A lmensido fsima dos Carnetos. 89 MEU CORAGAO se impacienta com 0 sangue grosso nas ‘elas. Antes preciso dizer dos meus irmaos, Adib ¢ Rafiq, esse dspero segredo que me lagela os ossos e me queima. Preciso dizer que até hoje nao ¢ possivel que eu adormesa sem que eu veja, como uma pintura na parede do quar- to, aquele carvalho, os seus velhos troncos ¢ sua copa, ¢ (05 meus dois irmaos mais velhos ali, dependurados e sem Vida, com o tecido da corda amarrado aos seus pescogos curtos, as linguas expostas roxas. Dou uma pausa na leitura do que Assaad escreve para dizer que enquanto ele ordena as palavras no papel, respi- ra com dificuldade e engasga com a saliva, E essa imagem ‘me pe aqui como observador a lembrar da dificuldade que eu tive na escola ao escrever as minhas primeiras pala- vras, a mesma falta de ar, a mesma respiracio descompas- sada. Sou capaz de lembrar perfeitamente da primeira vez Almensde fevimados Casncvos 91 que escrevi no caderno escolar palavra “cadeira’ e me dei conta de que néo poderia errar, pois se isso acontecesse eu poderia cair da cadeira onde estava sentado. E depois vieram as palavras “mie’, “pai’, ‘casa’ “cavalo’, “cebola’ E ‘o mesmo medo nao me fazia errar. Assim me tornei o me- Ihor aluno da turma. Pois eu tinha medo de que minha mie co meu pai morressem, de que minha casa desabas- se € que um cavalo me acertasse um coice, ou que tivesse que descascar cebolas no porao de um navio para sempre, como castigo. Penso que Assaad talvez esteja com medo de errar a0 narrar 0 assassinato dos seus irméos. Medo de nao ser fiel sua histéria e que ela se apague, como um sonho que se esquece ao despertar. ‘Assad escreve Os soldados turcos riam do desespero do meu pai. ‘Menos um, Havia um soldado que parecia ter compaixio pelo nosso softimento, Meu pai suplicava para estar no lugar dos filhos. Riam de minha mae com seu choro mo- nocérdico. Riam das minhas irmazinhas, da pequena Vi- dékia ea doce Lucia, que brincavam sem perceber a gravi- dade do que acontecia em seu quintal. Eu me lembro, cu tinha apenas nove anos de idade, © pai arranhava com as unas a terrace tingia com o pé do chao o seu rosto. Os soldados fizeram com que ele escolhesse entre asa- fra de cevada e trigo ou entregar os filhos para lutar pelo 9% Marcelo Malaf império. Meu pai concordou que os meus irmaos fossem com eles, era uma época dificil e minhas irmas, a mae e eu poderiamos passar fome. Mas naquele dia talvez os sol- dados estivessem fartos do jeito tedioso de nossa aldcia e mesmo sem motivo penduraram Rafiq ¢ Adib na drvore, Lembro-me de ouvir os berros dos meus irmios sen- do levados para o alto do carvalho, iguais aos bertos dos carneiros que fizeram coro com cles. Os olhos de terror de Rafiq e as légrimas compassivas de Adib. A mie encolheu- -se ao pé da tvore, ficara mitida, engasgava. Eu avancei sobre um soldado que com apenas uma das mios agarrou- -me pelos cabelos e me langou 2o chio ¢ me chutou, Percebi que apenas um dos doze soldados mantinha 0s olhos fixos em meus irmios e parecia chorar, Lembrei- me do que dizia o pai, para nio olhar nos olhos, referin- do-se aos carmeiros, sendo corria-se 0 tisco de se afeigoar. Pensei que, assim como Judas Iscariotes, aquele soldado era um traidor, por ter olhado em meus olhos, nos olhos dos meus irmaos ¢ nos de minha mae. Nao apenas por ter olhado, mas por ter deixado escapar uma faisea de com- paixo. Eu vi suas maos trémulas forjando os nés. Quando 0s soldados nos deixaram, corti para 0 quar- to de Adib, revirei as suas coisas ¢ encontrei o sew “tltimo poema’, como ele dizia. Escrito na noite anterior, ‘Alimensdio fatima dos Cameicos 93 A eternidade reside no colapso do agora, quando amanhecemos uma imagem sélida nos pulmées eum sopro de ar escapa liguido por entre os dedos dos pés. A alma em carne viva 40 fardo obscuro da casa, sem peso, sem medida, sem sombra nem luz. Geometria sem satda no ventre ou no timulo, onde moram os fetos € os afttos nao nascidos. Dangam de méos dadas a minha covardia ea minha coragem. “Arranguei 0 poema do seu caderno € 0 carrego até hoje comigo. Corti em diregio ao meu pai que se abriu num abrago doloroso, Mas eu neguei. Cuspi no chao ¢ 0 amaldigoei por ter deixado que os soldados matassem 03 meus irmaos. “Covarde’, eu griteie repeti: Suas mios se levantaram contra mim ¢ levei uma surra ‘Covarde”. silenciosa, Quando eu jé estava caido, o pai se deitou a0 94 Marcelo Malt meu lado. © seu choro doia mais em mim do que a gravi- dade de suas mios. Vidékia ¢ Lucia, agora assustadas, corriam pelo quin- tal 20s berros. Aos poucos, os vizinhos foram surgindo ¢ ‘os homens da aldeia subiram no carvalho para desamarrar os corpos de Rafiq e Adib. Alguém trouxe um tecido para cobriclos. Algodio cru, Nossa casa estava povoada, quase todas as familias dos aldedes estavam 2 . Exaltados, alguns gritavam: “Morte 1”. Outros diziam que o problema era o profera Maomeé. Eu me lembrei de Abdul-Bassie, que havia dito ue vivia em paz eem oragio, em nome do profeta, Assim como ele, o pai também orava. Abdul- ria os meus irmaos, Na 0s ture jassit jamais mata- cle no seria capaz, Abdul-Bassit havia me salvado de congelar na neve, Abdul-Bassic havia me contado historias, “A culpa nao é do profetal”, cu gritei. O silencio se propagou pelo quintal e penetrou o ven- tre de minha mae. Com um punhado de terra nas maos, cavoucadas na hora com brutalidade, cla encheu a minha boca ¢ pressionou os meus Iébios contra as suas maos até que eu engolisse todo o conteido “Coma terra, meu filho, Coma!” Ela ordenava. “Es- sas palavras devem voltar de onde vieram.” Agora, ao escrever, sinto ainda o gosto da terra em mi- nha lingua. Meus ouvidos naquele momento se fecharam Almensidio fatima dot Casneirs 95 para as bocas que pronunciavam, provavelmente, frases de desaprovagio, ¢ mios se levantaram, ¢ dedos ficaram apontados para o meu rosto. Meu pai ajoelhado diance de Rafiq ¢ Adib, mortos, sinha o olhar boiando sobre que restou da familia. Meus irmaos foram velados ali mesmo no quintal da nossa casa. Pela manhé, sepultamos 0s seus corpos no pe- queno cemitério da aldeia, & beira da montanha. Quando nos sentamos & mesa para o almogo ea perce- bemos desabitada, meu pai olhou para mim esentenciou: “Vocé deve ir embors’, ¢ juntou as méos de maneira tensa, “Nossa vida desmoronou, meu filho. Temos amigos {que viajaram para o Brasil” Minha mae o interrompeu di- zendo que era uma loucura enviar um menino, era muito perigoso, A mie quase nunca falava, era pela agao que se fazia notada. Quando mamae falava algo era porque nto podia explicar de outra maneira 0 que @afligia. “Assad terd sorte, Afinal, Deus 0 escolheu para ficar conosco. Ele deve seguir adiante, honrar a familia” [As palavras do pai me preencheram de coragem. E foi em nome de vingar os meus irmaos que cu fugi de casa naquela noite, isposto a matar um soldado turco. 96. Marcelo Malt Mao nao tinha culpa, nem Abdul-Bassit. Como era possivel culpar o profera pela morte dos meus irmaos? Abdul-Bassit falara dele com tanto amor que nao me era aceitavel atribuir o assassinato dos meus irméos a ele ‘Mas eu queria que minha mie ¢ meu pai soubessem que eu amava os meus irmaos, que cu também estava so- frendo e que os turcos deveriam pagar pelo que fizeram. Depois que todos repousaram, eu peguci a adaga que ‘meu pai guardava em um bai fui para longe da aldeia até um dos quareéis da milicia turca. Eu sabia que um garoto como eu nao chamaria tanta arengio, Na madrugada era provével encontrar alguns soldados dormindo. Minhas mos tremiam ao contato com a limina fria da arma, minhas pernas formigavam, Eu estava pronto. Sabia que precisava fazer aquilo, que os meus irmaos deve- iam ser vingados. Meu pai sé usava a adaga na cintura em Almensidio ftima dos Caaciros 97 ocasiées especiais, como casamentos, festas, ou quando precisava viajar até ouera cidade ou aldeia para negociar alguma mercadoria. Mas ele afiava a limina toda semana. ‘Um pequeno grupo com cinco soldados conversava em frente a0 quartel. Passei longe da vista deles ¢ segui paraos fundos. Avistei um soldado de aparéncia bem mais jovem do que aqueles que eu acabara de ver. Estava en- costado em uma porta, segurando uma baioneta entre 0s bracos, ele roncava, Tinha as botas desamarradas ¢ o cin to da calga afrouxado. Eu no poderia demorar ali muito tempo, qualquer vacilo eu morreria. Aproximei-me escolhendo cada movimento para nio provocar nenhum ruido. Mas aquele soldado parecia es- tar exausto e nio acordaria tio facil, Pensei naquela hora, olhando para 0 seu rosto, que talvez eu devesse desistit. Aquele lugar cheirava bosta de cavalo e sangue. Cheira- vvavinganga e morte, dor e riva, humilhagio e desespero. Meus pulsos agora, além das minhas mios, tremiam, 0 tremor subia pata os bragos ao segurar a adaga. Recuei. Respirei com dificuldade. C foi olhar para o rosto do soldado dotmindo e mirar ape- meti dois erros: o primeiro nas algumas partes, como 0 nariz, depois as orelhas, 0 queixo e 0 contorno das sobrancelhas. Era preciso olhé-lo por inteiro, como algo, como coisa eno alguém com suas particularidades. Eu nio havia aprendido nada com meu pai. Segundo e pior erro: vi-me sentado em seu lugar. Ves- 98 Marcelo Mauf tindo a sua roupa, dormindo 0 seu sono, usando as suas, botas. Percebi que mesmo naquele frio meu corpo inteiro estava molhado, coberto por um suor viscoso, com cheiro de sangue ¢ bosta de cavalo. Era preciso decidir. Espantei todos aqueles pensamentos como quem expulsa um ca- chorto de dentro de casa.e fiz 0 que deveria ser feito. Jamais me esquecerei da sensagio da lamina rasgando apele do seu pescogo, ¢ de como os seus olhos aterroriza- dos se abriram ese fecharam num instante, denunciando a minha covardia, do suor em minhas méos misturando- -se ao seu sangue que lhe escapava desorientado, Do som mudo do seu corpo tombando junto com a baioneta. E jamais me esquecerei do crucifixo que saltou de dentro de sua farda, E da frase que, em seguida, escapou da minha boca, miniiscula: “Ele era um dos nossos". Corti para o rio e mergulhei em suas 4guas para me limpar, Fiz.do Bardauni meu ciimplice elhe implorei que lavasse aquele sangue de minhas maos, que limpasse aque- fa mécula do meu destino. Prendi a respiragio o maximo de rempo que pude aguentat. Naquele dia, eu deixei mi- nha inocéncia no rio. ‘Aliens [ovina dos Carneros 9 ASSAap grita para Karima, dizendo que ird saire voltard logo. Eu 0 sigo pelas ruas de Santa Barbara D’Oeste, até chegarmos a0 rio Ribeiro dos ‘Toledos. Assaad senta-se& margem e mergulha os pés na dgua. Encontrar 0 ribeirio ainda possivel para o banho é uma suspresa para mim, Assim como descobrir que Assad havia assassinado um soldado. Esse segredo de meu avé nem mesmo Sami o conhecia. Sento-me ao seu lado e também mergulho os pés na Agua corrente. Assaad retira um canivete do bolso ¢ espeta a ponta do dedo indicador. Mergulha a mio no rio ¢ dei- xa que as éguas levem um pouco do seu sangue ¢ do seu segredo, Assaad esté sozinho, povoado de maneira doloro- sa por suas lembrangas. Quase nao tenho acesso a0 que Assad pensa agora, 0 transito de mil pensamentos nu- A mensidio fatima dos Csnsivos 101 bla minha visio. Mas um pensamento, especificamente, é muito forte ¢ escapa como se quisesse se sobressair aos outros. Ele sente que poderia morrer ali, a0 lado do rio. E fica tranquilo com essa ideia. O rio 0 acalma, diante dele até a sua respiragio muda, suas mos relaxam, os olhos se amansam. Assaad mergulha as mos na terra ¢ arran- ca.um pouco do mato rasteiro ¢ o esfrega entre os dedos. Faz tudo isso num gesto lento e compassivo, como se cada movimento fosse algo especial, para ser vivido sem press. Fecha os olhos. Ougo-o sussurrar algumas palavras. “Tento compreender o que cle diz, mas Assaad fala em ra be. Sé consigo reconhecer a palavra Allah. Provavelmente deve estar pronunciando alguma surata do Alcorio. Ab- dul-Bassit esté agora em sua mente, Esse € outro segredo que meu avé guarda. E sempre guardou, pois ninguém da familia jamais falou sobre o fato de que, apesar de ser cris- do, meu avé também liao livro sagrado dos mugulmanos. ‘Assad tira os pés da Agua, veste os chinelos ¢ eu 0 sigo em diregao a casa. Pega 0 caderno. Senta-se a janela ¢ es- creve: Saudades de Abdul-Bassit. Saudades de Mustafa. Saudades de Abdul-Bassit. Saudades de Mustafa. Saudades de Abdul-Bassit. Saudades de Mustafa. Saudades das montanhas de Zahle. 102 Marcelo Maluf Espera que, ao repetir diversas vezes 08 seus nomes, les possam ouvielo e, quem sabe, virem ao seu enconero. Assaad interrompe a escrita a0 toque da campainha. Sio os seus filhos, Sami e Michel, que vieram visité-lo, Quando decidi aproximar-me de meu avd ¢ acompanhé- -lo-em suas memérias eu sabia que correria esse risco, o de vero meu pai jover Michel cumprimenta Assaad com um aperto de mio. Eu me encosto 4 parede para me apoiar e tento reestabele- ‘cerem mim 0 motivo de eu estar ali, Jéaprendi a viver sem a presenga de meu pai em minha vida. Michel morreu ha mais de dez.anos, mas. sua apatigio inesperada, confesso, me deixa desorientado. A ferida de sua auséncia demorou anos para cicatrizar. Por um instante, quero levantar ¢ it até ele para abragé-lo. Mas sei que isso nao ¢ possivel. Lembro-me que no dia de sua morte persegui 0 seu cheiro nos méveis da casa ¢ em seus objetos pessoais, como um pequeno pente que guardo comigo, quis pegar sua mao fria dentro do caixio na esperanga de que algum calor pudesse existir em seu corpo, quis dar a minha vida para que ele vivesse, quis que ele falasse ou escrevesse algo para mim. Eu, que s6 conhecia © mundo nos livros. Eu, {que nio percebia a vida, que somente reagia a gestos bru- tos edeixava coisas inacabadas pelo caminho, Passei horas em frente ao seu timulo, tentando compreender que ja- mais tornatia a ver o seu corpo novamente, que ele escaria ‘Alimeasdo fvima dos Carneros 103 ali por algum tempo se decompondo ¢ que sua imagem iia aos poucos se tornar a minha meméria. Eu teria dele as impresses que, a partir daquele momento, comecei a reinventar para mim. Como nossas vidas juntas ¢ 0s nos- 05 momentos bons ¢ ruins, ‘Tudo seria transformado em experiéncia que néo sei mais dizer o que realmente acon- teceu ou o que eu hoje acredito ter acontecido, ou mesmo tenha inventado. Mas no ano de 1966, Michel esti morando em So- rocaba, estudando Dircito ¢ s6 pode vir visitar meu avé poucas vezes, aos finais de semana. “E o meu neto e minha nora, onde esto?” Meu avo se refere ao meu irmao mais velho e a minha mae. Michel explica que esto com os meus avés maternos. “A mac disse que o senhor nao est4 muito bem, que anda estranho. E as dores, passaram?” Michel pergunta. Da tiltima vez que o viram, Assaad estava acamado € sentia pontadas no peito. Disse que nao suportava tama- nha dor. Era melhor morrer. E.em voz baixa deixou esca- par: “Eu deveria estar morto hé muito tempo”. “O que tem nesse caderno, meu pai?”, Sami observa gue ele o segura com forga. “Contas, meu filho. Contas a pagar.” ‘Minha avé se aproxima e serve um aperitivo. Pao ¢ zaa- tar com azeite. Assaad veste 0 chinelo ¢ uma camiseta bran- ca, Ajeita-se no sofie, enquanto come, observa que Michel 104. Marcelo Malof esta mais calvo e Sami parece ter engordado um pouco. Michel preenche o pio com a pasta de zaatar ¢ lembra de quando o pai amarrou Sami & mesa para Ihe dar uma sur- rae dle teve que se calar para no apanhar também. O pai agora Ihe parecia um homem menos ameagador e amargo. Sentia-o mais cansado, Lento, Sami olha para o religio de cco ¢ se lembra do dia em que ele foi colocado ali. Presen- te do tio Amin, irmao de Karima. Assad capta o olhar de Sami e diz: “Ainda arrebento esse cuco maldito”, ‘Michel, mastigando o segundo pedago de pio, lem- brou-se ainda da iltima viagem que os trés fizeram juntos, para vender os tecidos no caminhio de Assaad. Na estra- da, enquanto Michel discursava sobre o futuro promissor dos negécios da familia, de como poderiam investi, nas possibilidades de ganhos e em como conseguir mais fre- gucscs, um caminhdo cheio de bananas passou por eles. Assaad interrompeu a fala entusiasmada do filho: “Michel, mesmo que voce estivesse com muita fomne agora. Quantos cachos de bananas daquele caminhio vocé conseguitia comer?” “Mas que pergunta é essa, pai?” “Quantos? Responda?”, Assad quis saber, A estrada estava vazia, apenas um ou outro caminhio cruzava 0 ca- minho deles “Sei li, talvez um cacho”, Michel respondeu. “Pois entao, por que vocé quer o caminhio inteiro?” A lmensdio fcimados Carneiros. 105 Sami soltou uma gargalhada. Depois Michel. Assaad foi o tiltimo. Durance os trinta minutos que se seguiram até a cidade mais préxima, os trés riram e contaram pia- das, lembraram-se de cenas engragadas da familia, como quando Martha nasceu e familia de Karima se hospedou nna casa, ¢ Assaad soltou um peido silencioso na sala. Tia Zuleica rezava o tergo. Ela se contorcia rezando a Ave-ma- tia, mas nao safa de ld. Apenas cogava o nariz.para espan- tar o mau cheiro. Os trés quase miorriam de tanto rit na cozinha, imitando os gestos da tia Michel engole 0 pedago de pao ¢ a campainha toca. “Todos os que estavam faltando para o almogo chegam. Martha e Juarez, Cleusa; minha mae trazendo 0 meu ir- mao mais velho, Marco Antonio, com apenas dois anos de idade. Zenide, esposa do meu tio Sami, Lucia, irma de meu avd, ¢ José, seu marido. Karima pede a Sabri que venha se juntar & familia. Eu prefiro deixi-los a sés. Eu ndo sou um convidado deste almogo. Ainda nao sou uma existéncia, apenas uma pro- babilidade. Saio e me sento & calgada, Ougo os ealheres se tocando nos pratos ¢ embaralhar de vozes. O sol alto atinge a minha pele com forga ¢ deixo que me queime. O suor que se forma em minha testa desagua pela témporae percorre a nuca eo pescogo. Estou envolvido por minhas sensagdes quando sou acometido por uma tentagio, a de abandonar 0 mew avd 106. Marlo Maluf estas memérias e voltar& banalidade do meu cotidiano, € no mais saber de nada, e esquecer 0 ano de 1966,¢ deixar a8 coisas como sempre foram, Decido caminhar um pouco pelas ruas da cidade. Mas néo posso mentir, meu objetivo é chegar Rua Inicio Antonio, 630, endereco da casaem que vivi durante vinte ¢ cinco anos de minha vida, Em 1966, 0 sobrado ainda ndo pertence & nossa familia. Meus pais s6 se mudaram para ld na década de setenta. No momento em que escrevo estas linhas, ele jé deixou de nos pereencer. No centanto, sonho com ele quase todas as noites. Sentado na calgada e contemplando a casa, sei que Michel também esperava de nés, de mim ¢ de meus ir- méos, que vingissemos o destino da familia, Mesmo ele no tendo consciéncia das historias por detris desse dese- jo. Michel esperava, como um soldado ferido em batalha, ‘que os seus companheiros viessem resgaté-lo ¢ curé-lo. Por muito tempo carreguei, mesmo sem saber, essa Imissio nos meus bolsos ¢ em todos os orificios do meu corpo. Hoje sei que nao tenho esse dever a cumprir. Nao me cabe petdoar ou amaldigoar os soldados que mataram 0s irmaos do meu avé. Meu tinico propésito néo é nem com Assad, nem com Michel, mas com as palavras que escrevo nesse momento. Estas palavras servem & minha consciéncia, que nao me trai, assim como eu nao aengano. © fato de nao ser um convidado daquele almogo me traz um sentimento de nio pertencer a familia, de ndo ter A tmensidio faim das Catnesos 107 ugar naquela mesa, de nao fazer parte da histéria daque- las pessoas. Mas ¢ inevitdvel. Bu pertengo. E 0 que a prin- cipio me causa estranhamento, em seguida me liberca, Nesse momento cm que eles se confraternizam posso vera todos como estranhos. Michel ainda nao é meu pai Sami ainda néo é meu tio. Karima e Assaad ainda nao sao meus avs. No ano de 1966 eu ainda nao nasci. $6 terei acesso Bs suas vidas muito tempo depois e de outro ponto de vista, como filho, sobrinho e neto. 108 Marcelo Mala Assaap esta dormindo no sofa. Todos jé foram embora. Sento-me numa poltrona & sua frente ¢ me distraio com uma rachadura na parede, Lembro-me de Haia. Estou ha tanto tempo longe de pensar em Haia que no posso se- quer imaginar o motivo de sua imagem ter sido evocada para mim ao olhar para uma rachadura na parede. Quase no sei mais quem cla é. Mas penso que nio foi a toa que cla apareccu cm minha meméria. Gostaria que Haia esti- vesse aqui agora. Que ela pudesse romper, assim como eu, a barrcira iluséria do eempo ¢ do espago. O siléncio entre nés jé dura muitos anos, mas sinto a sua presenga, € quase fisica e posso tocar a ponta de seu nariz. com meus labios sentir 0 aroma de mirra que o seu corpo sempre exalou nos dias quentes, Filha bastarda de meu av6, eu me apaixonei por Haia antes de saber que ela, na verdade, era minha tia. Haia ti- nha vince ecinco anos e eu dezessete quando nos beijamos Amensdio intima dor Caneiros 109) pela primeira vez. Foi Haia quem me ensinou a mover os quadris de mancira circular durante o sexo, foi ela quem Jew para mim poemas de Whitman, Pessoa e Drummond. Dizia que todo poema deveria ser lido em vor alta. Haia me apresentou o Livro da vida, de Santa Teresa D’Avila, e foi com ela que dividi minha primeira garrafa de vinho, meu primeiro porre e minha primeira ressaca. Com Haia eu irrompi minha consciéncia para as dores do mundo, para os miserdveis, os oprimidos das cidades ¢ dos campos, para libertagio da Palestina e do Tibet, para a seca no Nordeste, a devastagio na Amaz6nia, para os esfomeados na Exiépia ¢ os horrores de toda ¢ qualquer guerra. Com Haia aprendi a meditagao de tradigio zen- - budista ea conhecer melhor os desejos do meu coragio. Encontrévamo-nos em sigilo, longe de todos. Haia nao morava em Santa Barbara. Vinha de Sao Paulo e fi cévamos numa pequena casa que ela alugava na periferia da cidade. Nao podiamos ser vistos no centro. Nao foram poucas as vezes em que amanheci com Haia sentada i bei- rada cama. Os seios em oferenda. Ela fingia nao saber que se oferecia. Vestida de branco, sempre de branco. A luz do quarto a revelar a sombra morena do seu corpo. Haia me fazia cocegas quatro dedos abaixo do umbigo. Suas unhas leves me contorciam o corpo. Acolhia-me em pose de bebé no ventre. Esquecia, em éxtase, do meu préprio nome ¢ de onde estava. 110. Marcelo Maluf “Cécegas?’, ela me provocava. Diante da interroga- «20 eu meneava a cabega gesticulando um sim sonolento. “Sai dessa cama!” E puxava o lengol. O meu corpo nu revelado. Haia ajoelhava-se fingindo timidez, enquanto ‘uma melancolia tensa me dominava, o membro em de- salento, Ela me cobria. Depois, num gesto rpido, tirava acalcinha por debaixo da saia ¢ a langava para mim, “Se vista. JA ¢ tarde.” Vestido com a calcinha de Haia eu corria para o jardim. E ld a encontrava espichada na grama sob 0 sol, de biquini negro. Mintsculo. Os olhos também nnegros, indispostos nas pilpebras, fingiam no perceber a minha presenga pelas fendas. “Venha banhar-se des- se sol. Vocé esta desbotado’, ela dizia. Pedia que eu me aproximasse ¢ cheirava 0 meu pescogo ¢ lambia o pice da minha orelha, “Um gosto de mofo, uma coisa simida velha’ ela sentenciava. Talver eu devesse esquecer Haia para sempre. Talvez cla esteja morta, Talvez eu devesse mati-la. Mas o biquini negro. Mintisculo, Escondendo apenas 0 sexo ¢ 0 bico dos seios, nao podem fazer bem a uma morta. Penso que Hai, transformada em cadaver, quisesse a mesma coisa que eu em suas fantasias. Haia no conheceu Assaad. Quando ela nasceu, ee ja havia morrido. Karima nunca a aceitou, pediu a ela que fizesse o favor de desaparecer do mundo. Apenas eu co- heci esse segredo de Assaad, ‘Alimensii fcima dos Caraeleos 111 Haia saiu da minha vida quando eu completei vinte e lao mais”. Disse um anos. Apenas se despediu dizendo: “ que o universo tinha uma missio maior para cla. A tilrima carta que me escreveu vinha do Japio. Haia fora estudar 0 zen-budismo, Na carta, sem nenhum enderego no reme- tente, havia apenas um koa “Qual era a tua face antes dos teus pais nascerem?” E nunca mais tivemos contato. Haia me dizia que ‘meu avé era loucamente fiel 3 sua mae. E que a amou ver- dadeiramente. Eu preferia que ela calasse e nfo fizesse tantas pergun- tas, Sabia da devastagio causada por uma pergunta. Sabia que algumas indagagées deveriam ser espancadas até res- ponderem a si mesmas 0 que temem saber. S6 que antes de evaporar-se da minha vida, Haia me deu um presente. “Bu the trouxe um cordeiro” © pequeno animal cho- rava em seu colo, “O que?” “Um cordeiro, Marcelo, vai me dizer que nunca tinha visto um cordeiro antes?” “Mas voc’ sabe que eu nio como mais carne, Haia. Nés jd conversamos sobre isso.” “Nio se trata de um animal para ser comido, Achei ue voct estava muito sozinho nesse lugar. O pobrezinho ia ser sacrificado, nasceu coxo.” E foi assim, dando énfase & 112 Mucsto Maluf frase: “O pobrezinho ia ser sacrificado, nasceu coxo”, que eu me compadeci c aceitei aquele cordeiro como meu ani- mal de estimagio, “Voce o aceita? Eu até venho te visitar mais vezes se vocé ficar com ele.” Pensei na figura do Cristo, que a mi- nha mae tantas vezes evocava & mesa ances das refeigbes, nna coroa de espinhos a ferir a sua carne. Em Assad ainda ‘menino pastoreando cameiros nas montanhas de Zahle. Nessa época eu ainda nao sabia da relagao de meu avé com Mustafa. O que hoje me faz pensar que Haia sabia muito mais de Assaad ¢ de suas histérias do que ew. Dei ao cordeito 0 nome Khnum, igual ao deus egip- cio, metade homem, metade carneiro. Prometi a Haia alimenté-lo com as mios, fazer carinhos em seu queixo levé-lo para passear como um animal doméstico. Quem sabe até encontrasse uma montanha. Alids, poderiamos nos mudar ¢ ir morar numa montanha. Em Minas Gerais. ‘Mas eu nunca fiz a proposta. Ha um dito popular que diz que do carncito sé nao se aproveita 0 berro. Mas como eu nao iria explorar a vida de Khnum como fazem os criadores, eu tive tempo de saber que o berro de um carneiro é a sua imensidao intima, doa- da em forma de som para o mundo, Quando um carneiro berra ele expressa a sua angistia, iva, medo ou alegria. O berro de um carneiro éa maneira dele de se comunicar com Deus. O Cristo berrou: “Pai, por que me abandonaste?”, Almensidie fina dos Careiror 113 Hai se foi. Desapareceu da minha vida. Eu também fiz as malas ¢ levei Khnum comigo. Precisava estar longe de todos e pensar em meu futuro. 114, Mascelo Mala SE NAO fosse o surto de tosse de Assad, eu nao tetia acor- | dado. E saberia de Haia muitas outras coisas, como o seu atual endereco, ou talvez eu pudesse perguntar mais sobre a vida de Buda ou do préprio Assaad. Penso se isso é pos- sivel, se apaixonar por alguém que vocé apenas conhece em sonhos. Hi toda uma vida acontecendo i no incons- ciente. © bom de sonhar com Haia é que eu nao preciso trazer para a minha vida a crise de ter uma relagéo inces- tuosa ¢, assim, vivendo o meu amor por Haia, apenas na recorréncia dos meus devaneios, sou livre para fazer 0 que eu quiser com ela. A lmensidio focina dos Caneiros 115 Saupape de Abdul-Bassit. Saudade de Mustafa, Saudade das montanhas. Assaad escreve. Alguns dias depois de eu ter assassinado aquele joven soldado, subi a montanha & procura de Mustafa e Abdul- -Bassit. A geada feria os meus ossos ¢ queimava a minha pele. A neve cafa mansamente dos céus e se sobrepunha as camadas de gelo no solo, Encontrei-me com Mustafa que adivinhara em meu rosto um sinal de desespero. “Venha e se aquesa em minha I” Sua vor estava grave ¢ diferente das primeiras vezes em que nos falamos. Pare- cia que Mustafa havia envelhecido muito ripido em pou- co tempo. Encostei-me a uma arvore ¢ tecebi o calor do seu corpo. “Agora esté feito”, ele me disse. “Nao hd como ali na tomar-se agulha para fazer a surura do corte. Nao hé como a kimina deixar de ser lamina para ser pedra ou pat. ‘A oensid fina dos Carneisos 117 Nio ha vinganga possivel que possa trazer de volta aqueles que foram mortos.” “Mas ¢ agora, Mustafa, o que sera de mim?" Foi quan- do ouvia vor de Abdul-Basst. “O que sera da pedra, senio pedra. Do animal, senao animal, do vegetal, senio o vegetal. © que seri da dor, se- nio dot, Eo que sera de Assaad, senio Assaa Abdul-Bassie também parecia mais velho. O que no fazia sentido para mim, pois s6 havia passado poucos dias. Estava mancando, Tossia. Pediu que eu me levantasse, ajeitou a minha perna esquerda como ponto de apoio na eu fosse dando neve e me pediu que com a perna di pequenos impulsos de modo a girar sobre o meu prdprio corpo, Cruzou os meus bragos sobre 0 meu peito, acomo- dou minhas mios na altura dos ombros, mantendo o meu braco dircito por cima do esquerdo e, depois de algum tempo, solicitou que eu abrisse 0s bragos; 0 direito com a mio voltada para 0 céu ¢ 0 esquerdo que 0 abaixasse € mantivesse a palma da mio voltada para a terra. Os meus olhos deveriam se fixar na mio esquerda. Pediu que eu continuasse girando, girando, girando, da direita para es- querda, “Ao redor do coragio” ele dizia. Eassim eu dancei com Abdul-Bassit, a danca sagrada dos dervixes. Ficamos por pelo menos umas duas horas dangando, creio eu. Ou apenas por alguns minutos. Nao sei. U8 Marcsto Malt Abdul-Bassit parecia estar mais jovem depois da dan- 2. Olhei para ele e perguntei, “Afinal, quantos anos vocé tem, Abdul-Bassit?” “Eu tenho cinco anos’, ele respondeu “Isso nao é possivel’, eu ri, “Diga a verdade”, “Foi o que o santo sufi Bayazid Al-Bastami respondew em certa ocasiéo, quando lhe perguntaram a sua idade. Disse 0 santo que tinha apenas quatro anos. Pois a visio de Allah fora abafada pelo mundo durante setenta anos ¢ s6 havia se revelado a ele nos tiltimos quatro anos de sua vida. Quanto a mim, tenho apenas cinco anos, fiquei na escuridao nos tiltimos cinguenta.” Encontrei-me com Abdul-Bassie mais duas vezes an: tes de vir para o Brasil. Em nosso tiltimo encontro ele me disse que a sua vista embagara e jd no enxergava tio bem, Ele pedia que eu me sentasse proximo para que pudesse sentir o calor da minha presenga. Fiquei sabendo pela tinica carta que me enviou que haavia ficado cego. “Querido Assaad, Dito esta carta para uma grande amiga sua, Samira, ‘pois jd ndo consigo escrever, as letras escorregam no papel ¢ nao formam um conjunto de palavras que possam ser com preendidas. Desde que vocé se foi para 0 Brasil, muitas coisas ‘aconteceram por aqui. Meus olhos néo suportaram ver tanto A tmeasidée fain dos Carneros 119 softimento e édio. Fui expulso da montanha e da caverna em que nos conhecemose vivo, hoje, sem me fixar a nenhum Lugar. Conto com a bondade de alguns poucos moradores da aldeia e das cidades vizinhas por onde passo. Allah se mostrou em plenitude para mim, meu pequeno amigo. Ex o vejo todas as horas do dia e o sinto em todas as minhas agies. Gostaria que voct pudesse estar agui para que visse comigo essa luz, mesmo sem poder ver as coisas do mundo en consegui vé-lo, E toda vex que toco a face de al- guém ele aparece para mim. Assaad, meu pequeno amigo da neve, eserevo também para me despedir, néo devo viver muito mais, Sinto que o men tempo esté se esgotando, Sou _grato por nossa amizade e por ter dangado comigo. Com Amor do misericordioso, Do amigo Abdedl-Bassit Assaad afasta a mesa do centro da sala, ajita-se repe- tindo os gestos e movimentos ensinados por Abdul-Bassit no alto da montanha em Zahle, quando ele era apenas um menino, Gestos que nunca escaparam de sua meméria. Se Abdul-Bassit estivesse ali, ele pensa, diria que & preciso se concenttar, silenciar a mente, deixar que 0 seu corpo se entregue ao universo ¢ nao se apegue a nenhuma dor € a nenhum desejo, que apenas esteja presente. Assaad sente faltar 0 ar ¢ o seu coragéo parece avisé-lo de que nao hé mais muito tempo. 120. Marlo Malur Eu me sento a janela e me dou o direito de ser espec- tador. Acompanho a corcografia mistica de Assaad. Suas mios eruzadas sobre 0 peito aos poucos vio se soltando em dirego a0 céu. A cabega levemente para o lado. O cor- po girando lentamente no sentido anti-horirio, © brago direito com a mao espalmada para cima ¢ o brago esquer- do para baixo com a mao voltada para a terra. Assaad gira e parece nao se importar com a presenga de Karima na cozinha. Mas minha avé esta concentrada endo vé. Eu 0 assisto glorioso e sei que para se lembrar de maneira tao préxima de Abdul-Bassit, Assad precisa dangar como um dervixe. ‘A sala parece respirar, transforma-se num templo ¢ as paredes também se movimentam. Assad busca o ar com dificuldade e gira fora do eixo. Cambaleante, tropega em seus pés, nao consegue se equilibrar e cai. Deitado no meio da sala, os olhos voltados para 0 teto, Assad diz em voz alta: “Abdul-Bassit, seu professor de merda!",e solta uma gargalhada que chama a atengi0, de Karima. “Estd rindo do que, Assaad?” “De uma velha piada.” Ele responde. Mas Karima nao Ihe dé mais atengio. ‘Assad pensa que se Abdul-Bassit o visse despencan- do no chao, diria: Alinensidio fotima dos Cameiros 121 “Allah tombou ao chao contigo, para que nio tivesse medo da queda”, Ss ccan 122. Marcelo Mala “PRoLarso da vilvula mitral” Foi o resultado do meu Ecocardiograma. “E benigno, nao se preocupe. Disso vocé nao morre. ‘Tem muita gente que vive assim e nem sabe, Nasceu com voc®, Marcelo. Vé2” ~ Dra, Barbara disse exatamente essa frase apontando para as imagens no exame. “E.uma curvatura leve bem aqui no coragio. Provavel- mente genético” Mais um nome para a minha colegio de herancas ge- ndticas: Prolapso da vélvula mitral ou Sindrome de Bar- ow. Colesterol. Gordura no sangue. Camciros. Medo. Fungos nas unhas dos pés, calvicie, écido tirico, O que significa que eu ja nasci assim, com todos esses atributos. Assim como nasci com esse nome, essa boca, esses olhos, essas orelhas, essas aos ¢ esse nariz. Minha salvagio. O nariz eu pude modificé-lo com uma cirurgia plistica, aos Almensdio focina dos Carsciros 125, aquinze anos de idade, Era muito grande para a minha ca~ besa pequena. © gue talvez seja um bom sinal, nio 0 ta- manho da cabega, mas a possibilidade de mudanga. Nem tudo no mundo é maldigao hereditéria. Compreendi que a maldigio pode ser redesenhada aos pés das nossas érvo- tes geneal6gicas, pela didatica do devaneio. En tenho uma deformidade ligeira no coragio, que pode romper deixando com que o sangue o inunde ¢ af £0 fim, Mas é raro, Talvez seja necessatio romper 0 ci- clo genético, nao sei como isso seria possivel. Meu pai, meus tios, meu avd, Mustafa, todos com sangue grosso nas veias. Por isso, preciso evitar comer tudo que provém dos animais: leite, queijo, carne, ovo. Uma lisca infinda. Quando se vé, quase nao sobra nada. Jé me perguncei di ‘yersas vezes, por que existem quindins? Eles nao deveriam ser proibidos? E quem fosse pego comendo um deveria set preso, no minimo multado, ¢ prestar servigos & comu- nidade, acusado de ser ctimplice do Lot. Agora me diz como é que se faz para manter uma alimentagao saudével com tanta porcatia iresistivel por al? Azeive de oliva extra virgem. Abacate. Castanha-do- -pard, granola, aveia, fibras. Vinee miligramas de sinvas- tatina por dia, minhas oragdes a Sao Francisco de Assis, ‘Maomé, Buda, Krishna ¢ Jesus Cristo. Minha comunhao com os entes da floresta. Nao meco esforgos para salvar de um colapso as minhas artérias. Chocolate? Proibido. 126 Marcelo Maluf Recomendado é beber muita égua, fazer exercicios fisicos, no ficar estressado. Por isso ougo Bach, tenho todos os discos dos Beatles, uma compilagio de music for medita- tion. Adoro ler contos de fadas antes de dormir ¢ bebo um cilice de vinho tinto seco por dia para afinar 0 sangue. Mantras budistas ¢ cantos gregorianos também me acal- mam. Mas 0 meu verdadeiro dilema é a dispersio ea falta de disciplina. Nao consigo manter regularidade por mais de trés dias. Esquego € nao fago exercicios fisicos, ougo Joy Division, leio Kafka, Camus, Dostoiévski, nao como os remédios, vou meditar ouvindo Lou Reed, esquego- -me das castanhas-do-pard. Simplesmente esquego. Nio se trata de ato falho, Nio sou um suicida moderato, Se tivesse ‘que me matar seria de uma sé vez. Um mergulho no vazio. Um salto como aquele do Yves Klein, Mas definitivamen- te, essa possibilidade néo esté dentro dos meus planos, “Talvez minha meméria seja genética. Minha falta de disciplina ¢ o meu corpo inteiro, genéticos. Os meus ca- belos caindo, genéticos; as minhas duvidas, as minhas es- colhas, os meus éculos, os meus sapatos. Todos genéticos. Ser que o fato de eu gostar do Nat King Cole € porque ‘© meu pai também gostava? Mas o James Brown fui ew quem apresentou a ele. Talvez. eu continue gostando de ouvir James Brown porque Michel também gostava. Talvez.tudo 0 que sou ¢ vivi eli também faga parte, hoje, da minha estrutura genética. O que em tese me faria Amensio vim dos Carneros 127 nao saber identificar aquilo que recebi daquilo que, su- postamente, nasceu comigo. Talvez seja assim, 0 edificio genético ¢ uma obra em constante construgio. “Vocé tem 0 pescogo curto, rapaz! Ih, é igual ao meu. ‘Ve2" Meu tio Sami me disse isso como se soubesse, a0 olhar para o meu pescogo, qual seria o meu destino. 128 Marcelo Malt N&o FALEI sobre Samira. Minha paixdo na infincia. Eu iria me casar com ela ¢ itfamos viver juntos para sempre, Viajarlamos pelo mundo todo. Era o que sonhivamos olhando para as nuvens € torrando os nossos miolos, deitados sobre uma pedra na montanha, expostos ao sol. Brincdvamos nos cerros ¢ estévamos prometidos um a0 outro, Lembro-me quando Samira nao pode ir A festa de meu aniversdrio de sete anos. Escondi-me de todos e pas- sei o resto das horas softendo a sua auséncia dentro de um armario. Nio fosse o dominio turco e a guerra, hoje eu poderia morrer com as maos de Samira segurando as minhas. A imagem de Samira est sumindo aos poucos da minha me- méria, uma velha foografia apagada pela acio do tempo. Primeiro o lado esquerdo do seu corpo foi se esquecendo, Depois foram os scus dedos que se borraram. Jé nio a te- A Imensisio intima dos Carneros 129 ho com precisio. Lembro-me apenas dos olhos cor de caramelo, dos labios grossos e dos cabelos longos e negros. Mas nao me lembro do som da sua voz, nem de suas can- {goes preferidas ou do jeito como sorria, Nao sou capaz de ‘me lembrar dos seus gestos minimos. Com qual mao ela segurava uma caneca para beber égua? sandilias ou penteava os cabelos? Lembro-me apenas que Samira adorava comer o arroz com aletria. ‘Agora sei que a minha morte'se aproxima. Queria as ios de Samira para apertar. O sentimento de se saber fi- ‘ito nos leva & infancia, quem sabe a lembranga da alegria de Samira correndo pela aldeia seja apenas um conselho que a morte me di, de que nao € o fim. Nao sei. © iltimo dia em que vi o seu rosto foi no porto de Beirute. Samira pediu a seu pai que viesse junto com mi- nha familia para se despedir. Eu imaginei que nunca mais ros veriamos ¢ chorei por nossa amizade perdida, e nunca mais nos vimos. Chorei por nosso amor nao consumado, por nosso destino seguindo caminhos diferentes. Chorei naquele navio por tudo o que eu nao poderia levar comi- go. Chorei por Mustafa, por Abdul-Bassit, pelas monta- has, por minha mie, por meu pai, por minhas irmézi- has, Vidékia e Lucia, Chorei por Rafiq e Adib. E chorei pelo jovem soldado. ‘Subi ao navio com dezenas de pessoas. Consegui no meio de tantos rostos, que choravam no cais a partida de 130 Marcelo Mala seus familiares, encontrar 0s rostos por quem eu deveria chorar. Coma io esquerda eu me despedia deles e man- tinha os olhos em Beicute. Com a mao direita eu mesegu- rava, com medo de cair do navi. “Adeus, meu pai! Adeus, minha mae! Adeus, Lucia ‘Adeus, Vid6kia!”, eu gritava o mais alto que minha voz de menino podia alcangar. As vozes dos tripulantes, os gri- tos das familias no cais € 0s choros lamentosos de todos se misturavam ao som das ancoras sendo levantadas ¢ da buzina do navio. Eu me lembrava das palavras do mew pai antes de sairmos de casa. “Assaad, meu filho, faga um favor ao seu pai, Nunca diga a ninguém o que aconteceu em nossa casa’, ele me pegou pelo pescogo me fez olhar em seus olhos, “Uma desgraga como a nossa é para ser enterrada, Ninguém gos- ta de estar ao lado de gente que vive lamentando as suas tragédias, VA viver a sua vida e nos esquega. O Brasil Ihe faré bem?” Eu nfo sabia, mas nunca mais veria aquela paisagem. Em mim, havia o desejo de ficar, ao mesmo tempo que partir me trazia leveza. Deixar o Libano, que meus an- tepassados me perdoem o que vou dizer, nao apenas eta a melhor coisa que eu poderia fazer naquele momento, mas foi a melhor coisa que eu fiz da minha vida, Ouvi tum senhor dizer para uma jovem que estava desesperada: “Agora é seguir em frente, reconstrnir das ruinas uma vida Almensdio lnina dos Carnizos 131 nova. E, se puder, esqueca 0 que ficou para tris, para que vocé possa viver”. Apeguei-me aquelas palavras, assim como &s palavras de meu pai e antes que os rostos de minha mae, de Samira das minhas irmas sumissem, eu me virei para 0 outro lado, para o occano, ¢ senti que havia nascido ali, para ou- tra vida que ainda era um mistério para mim, Nao olhei mais para erds. Lembro-me da vastidao do Atlintico. De que me pus a imaginar quais seres poderiam viajar por aquelas éguas e de como estévamos nés, naquele navio, protegidos apenas, pelo céue pelasestrelas. O mistério das 4guas me trazia es- perangae medo. A mesma esperanga e medo que eu sentia 20 pensar nas possibilidades de uma nova vida longe do Libano. Lembrei-me do que minha mie contava sobre o dia em que nasci: “Eu estava com medo quando vocé nasceu, meu filho, Naquele dia, os soldados turcos invadiram a nossa aldeia e saquearam as casas e levaram os homens sais velhos para escravizé-los com trabalhos pesados, ser- vindo a eles como mulas de carga. Figuei com medo de que levassem seu pai. Mas Simao escondeu-se. Eles viram aque eu estava gravida ¢ me deixaram em paz. Assim que eles foram embora, a bolsa rompeu e voc’ veio 20 mundo, um més antes do previsto, em fevereiro de 1910” 132 Marcelo Malof Ainda com poucas horas de viagem, a lembranga do ‘meu nascimento me trouxe minha primeira saudade de casa. As palavras de minha mie sempre me deixavam in- quieto a respeito de qual destino nossa familia teria se, na- quele dia, os soldados tivessem levado 0 meu pai. Na bagagem, en levava apenas algumas pegas de rou- a, pouco dinheiro e o poema de Adib. Algumas noites eu fiquei acordado com receio de que 0 navio afundasse, eu tinha ansiedade para pisar em cerra firme. Ao mesmo tempo, uma sensagdo de liberdade, de mudanga, de nao ter nada a nio ser a mim mesmo me consolava. O pai es- perava de mim que vingasse a familia, que pudesse mudar o tragico destino de Adib e Rafiq, Eu tinha medo de tudo, de nio honrar meu com- promisso, de nao trazer paz para o que restou da familia. Tinha medo de errar novamente, como ertei com aquele soldado. ‘A mens fvina dos Carnizos 133 ‘ASSAap deixa cair das maos o caderno eo lapis, Grita para Karima, diz que est sentindo uma forte dor no peito, Eu estou ali, mas no tenho como ajudé-lo, Assaad se joga no sofé e se contorce. Olha em minha diregio como se pedisse socorro, Atrés de mim a imagem de Sio Charbel. Karima telefona para um médico. Assad recupera 0 folego. Ajeita-se no sofa ¢, por um momento, lembra-se das maos quentes de Abdul-Bassit. Elas Ihe trazem sere nidade. Fecha os olhos e resmunga algumas palavras em drabe. Parece uma oragéo. Karima apenas o observa, com respeito a sua dor, como sempre faz em suas crises. A cam- painha toca e Assaad é levado para o hospital da cidade. Eu saio da casa de meu avé e caminho a pé pelo cen- tro de Santa Barbara D’Oeste. A cidade em 1966 é outra, muito diferente daguela em que vivi minha juventude. Caminho pela antiga praga e, olhando agora, confirmo a ‘A lmensdio fntima dos Carneiros 135, minha opinido de que cra muito mais bonita na década de 60 do que é agora. Hé uma fonte € um coreto, bancos, Arvores e flores. Hé siléncio ¢ um movimento harméni- co entre as pessoas, a praca e os pissaros. A vida é menos acelerada. Ainda resiste a autenticidade de uma cidade do interior que, hoje, j4 nao existe mais. Entro na igreja matriz ¢ encontro um jornal no chao. Verifico que estamos no dia 15 de dezembro. Assaad tem apenas vinte ¢ cinco dias de vida. Espero que ele tenha tempo para escrever tudo que gostaria de suas memérias. A igreja esta vazia. Oho parao altar e me lembro das mis- sas do Padre Vitério, de sua peruca que quase sempre €s- tava desajustada. Quando erianga, eu ia as missas com a minha mae, Certa vez, entediado com a monotonia dos cantos ¢ da ladainha, me pus a balangar para frente e para trds num banco da igreja. O Padre Vitério tinha.a voz aba- fada e uma dicgao ruim, Era timido. Mas um homem que ‘obtinha a simpatia de todos. Como pode um sujeito des- ses se tornar padre? Talvez sua vocagao estivesse dentro de ‘um mosteiro, Eu estava ansioso & espera do “Ide em paz € ue o Senhor vos acompanke’, para poder comer pipoca e correr na praga. Num erro de caleulo gerado pela minha impaciéncia 0 banco se jogou sobre mim, prendendo-me a0 chao. Algumas risadas ¢ outros olhares de reprovagio ime fizeram chorar olhando para a figura do Cristo pin- tada no teto da igreja. Eu ouvi o Padre Vitério dizendo: 136 Marcelo Malu “Senhor, eu néo sou digno de que enereis em minha mo- rada, mas dizeis uma s6 palavra e serei salvo”. Nunca mais ouvi esse trecho do Evangelho do mesmo jeito. Sempre que 0 ougo me lembro do banco me pressionando contra 0 chao, da chuva de pipocas que imaginei cobrir o meu corpo, a me ocultar dos olhares de censura. © Cristo crucificado ao fundo da igreja me trouxe & boca © gosto das esfihas feitas por minha tia-avé, Lucia, Eu me lembro de algumas festas em sua casa em que nos reuniamos para saborear suas famosas esfihas e os charu- tos feitos com folha de uva, Naquela época eu imaginava que comungar 0 corpo de Cristo poderia ser bem melhor com as esfihas de Lucia. Minha mie dizia que era pecado pensar tal besteira. “Mas é que aquela bolachinha no tem gosto de nada’, eu reclamava. “Cristo nio pode ser algo sem sabor.” Minha mac aconselhav: “Nao diga nunca cs- sas tonteiras a ninguém, meu filho”. Saio da igreja e sigo em diresio ao hospital para en- contrar Assaad. Caminho por uma das principais aveni- das da cidade, a Monte Castelo, ¢ sinto 0 cheiro de cana queimada, O mesmo cheiro de sempre, de quando eu tinha dezesseis anos de idade e me imaginava um poeta modernista a escrever versos sobre os postes elétricos ¢ os boias-frias. Os ciscos a manchar as roupas no varal. Ou me imaginava um estrangeiro vindo visitar a cidade ¢ a encontrando vazia. Em verdade, eu sempre me senti um Atinensidio fatima das Catneitoe 137 estrangeiro em Santa Barbara D'Oeste, como os homens da hist6ria que Michel me contava. Dizia ele que, no final do século xnx, trés forasteiros vieram a cidade e foram provocados, cercados, mortos € esquartejados. O motivo é que os homens da cidade te- ‘miam que forasteiros viessem roubar as suas mulheres. Esse temor, ainda hoje, percorre o sangue de alguns mo- «gos daqui. Em torno da igreja macriz expuseram seus cor- pos mutilados ¢ os deixaram & venda. Tamanha estupidez foi amaldigoada pelo piroco da época, que num gesto bi- blico bateu as sandalias, dizendo: “Daqui cu nao levo nem © p6" E se foi, Esse episédio ou maldigio talvez explique © fato de que a cidade se congelou no centro, sem vida, € cresceu pelas bordas de maneira triunfance. Por isso, Michel me aconselhava: “Vai embora, segue seu rumo longe daqui, meu filho. Aqui nao plante nada Sua raiz ficard seca e morrer®” 138 Marcelo Malu No Quarto do hospital em que Assaad esté internado, Sami, Michel e Martha aguardam a visita do médico. De- baixo do seu travesseiro, reconheso © caderno, Assaad tenta evitar que alguém o questione mais uma vez sobre © que tanto escteve € ajeita 0 corpo a fim de escondé-lo da curiosidade dos filhos. Martha sai do quarto ¢ Assaad aproveita a sua auséncia para pedir a Michel e Sami que deem um fim a sua dos. “Acabem logo com isso, me matem’, ele implora. Mas 6s filhos nio obedecem ao pai desta vez. Assad insiste, mas eles abaixam a cabega ¢ 0 deixam sozinho. Assaad vai até a janela. “E muito alto” Morteria se pulasse. Quem sabe no fosse uma morte mais digna se jogar dali do que ser vitima de um infarto? © médico the diz que sera necesséria uma cirurgia de emergencia, que as paredes das artérias estio tomadas Almensd fovima dos Carneios 139 por placas de gordura e que suas veias estio entupidas. Assad ouve a palavra gordura da boca do médico ¢ se Jembra de que para alimentar os carneiros em Zable era preciso lhes dar a comida com as miios, para que tivessem boa gordura. Os carneiros gostavam de carinho no quei- xo. Se a gordura era boa para os carneiros, por que para cle era uma maldigio? A gordura estava em seu sobrenome, Sabia que um dos significados para Maluf era “engordado”, de carneito gordo, de boa gordura. Era 0 que sempre fizeram os seus ancestrais. Criavam € matavam os carneitos pata comer, para usar a sua la, a sua pele. Era comum se repetir que dos carneiros 56 nao se aproveitava o berro. Mas o que resta- ria dele, para que pudesse servir aos outros? Assaad temia no ter sido dvl para ninguém. 140. Marcelo Mala Na MADRUGADA de 9 de jancito de 1967, quinze dias apés a cirurgia para tentar salvar 0 seu coracio, Assad Simao Maluf, meu avé, arranca dos bragos os soros, desce da camae decide fugir do hospital. Eu o sigo. No céu, uma Jua minguante envolve uma estrela. Uma lua drabe no céu. de Santa Barbara D’Oeste. Ele volta para sua casa, veste 0 seu terno cinza, aeita a gravata, o mesmo terno que usow no casamento dos meus pais, Michel e Cleusa. Contem- pla Karima dormindo, dé um beijo na testa de Sabri, pega a chave do seu caminhio e segue pela estrada. Assaad esta feliz, ri. Algumas ligrimas também descem pelo seu rosto. Sio inevitiveis. Eu estou com ele. Seguimos lado a lado, av6 e neto. Mesmo sem nos conhecermos, estamos juntos. ‘Mesmo sem trocarmos palavra, seguimos. Eu nao faco ideia do que Assaad plancja, mas nao me importo. Estou com ele, ¢ isso basta para mim, O sol no A Imensidéo ncima dos Catnelios 141 horizonte se manifesta. As estrelas se intimidam, Assaad abre ajanela e grita: “Eu jé nao tenho mais medo de voeé. Estou livre!” Nao compreendo para quem Assaad dirige suas pala- vras, Sua euforia é ade um jovem militante. Assaad parece um herdi resistindo as forgas inimigas do opressor. Nunca © tinha visto em tio bom estado, tinha o entusiasmo de ‘um guerreiro. Seguimos viagem por mais umas trés ou quatro horas, o siléncio s6 é violado por uma melodia cantada em drabe por Assad, Sua imagem oscila como se fosse um hologra- ma. Nao ha mais muito tempo para ele. Logo nao estard ‘mais aqui. Mas nao posso chegar ao fim sem a sua compa- nia. Precisamos estar juntos nessa jornada, a tinica que poderemos seguir lado a lado. Avé e neto. Agora até sinto ‘meu avé como alguém intimo ¢ familia O céu se preenche de cinza e uma inesperada tempes- tade de gelo nos obriga a parar. As pedras sovam a lataria do caminhio ¢ 0 vidro traseiro se parte em minasculos cacos. O vento arrasta a chuva para dentro e somos banha- dos pela agua gelada. Assad estaciona no acostamento. ‘Agora esti fraco, Abre a porta. Quase tombaee grit: “Vocé acha mesmo que esse gelo ridiculo pode me parar?’, ele rodopia mantendo o eixo numa das pernas. “Faca nevar, vamos! Eu quero a neve!”. Assaad cai no as- falto, leva as maos ao peito e tensiona os missculos da face. 142 Marcelo Maluf A tempestade cessa do mesmo modo repentino com que nos surpreendeu. Raios timidos de sol dissipam as nuvens ¢ revelam um novo céu, menos triste. Azul. Assaad se le- vanta, Esté um pouco fraco ainda, Sabe que precisa pros- seguit. Ajeita-se no terno, limpa o rosto molhado com as costas da mao esquerda. Voltamos para a estrada, Os olhos de Assaad estio diferentes. Parecem mais confiantes agora. Leva a mio ao peito, Uma nova dor Una lembranga. Talvez dos filhos, dos irméos, do pai, da mae, dos netos que nio conheceré, de Samira, de Abdul- -Bassit, de Mustafa, Assaad ri, canta e grita para a estrada vazia. Eu apenas o sigo, como uma sombra, i qual cle néo dé imporcincia, Assaad nio depende dela para caminhar ‘Quilometros rodados,avistamos um grupo de monta- nihas, Ele estaciona o caminhao proximo aum bar na beira da estrada, retira debaixo do banco uma garrafa de Arak € pede um copo, agua e gelo ao velho senhor que parece surpreso com a nossa aparigio, Toma uma dose. Eu creio que Assaad nao se importars se eu tomar um gole de sua bebida. O liquido desce por minha garganta carregado de meméria. Com a mesma velocidade com que descet, sobe se aloja em meu cérebro, Fico espantado com seu efeito, no sou tao fraco assim para bebidas. Vejo, como em so- ‘nho, minhas maos trémulas forjando 0 né de uma corda, depois outra, ¢ Assaad, ainda menino, descendo a mon- tanha em disparada, Olho em seus olhos e nos olhos de Almensdo fnima dos Carneiros 143, sua mic. Tudo acontece muito répido e me recupero dessa visio ouvindo sua risada. Ele se despede do dono do bar e segue em diregio a trilha para o alto da montanha. Pega 0 caderno de suas memérias de dentro do paleté, timido, ¢ corre, abrindo passagem na mata. Eu o sigo. Desfaz 0 né da gravata, se livra dos sapatos, desabotoa a camisa. Os pasos contados no caminho da montanha. Dois quilé- metros até alcangarmos 0 topo. De ld avistamos um vilarejo. Assaad rasga as paginas do seu caderno e deixa que o vento as leve. Flutuam imi- tando passaros. “Libertem-se!”, sua voz agita o silencio. Deita-se a0 chao, sua respiragao é seca. Ele tosse. Chora ri 20 mesmo tempo. As maos ao peito. Retira do bolso incerno do paleté uma adaga. A mesma adaga com que matou aquele soldado, em Zahle. Ex fico pensando na visio que tive no bar. Em minhas mos forjando os nds. Sinto-me envergonhado diante do meu avd, ao mesmo tempo em que compreendo o real motivo pelo qual Assaad me trouxe até aqui. Ele sempre soube quem eu era, Sempre soube da minha presenga, fin- giu nao saber que eu 0 acompanhava, ensaiou este mo- ‘mento, Nés dois ali, no topo da montanha. A revelagio de que fora cu, numa outra vida, quem compés os nds que enforcaram Adib e Rafiq. ‘Assaad olha para mim. Levanta-se ¢ caminha em mi- nha direcao. “Eu sei quem voce é.” Ele me vé. Ele sempre 144. Marcelo Mala —- me viu. Eu me calo, Tento me aproximar para Ihe dar tum abrago. Ele se afasta. “Nao me diga nada.” E se vira. “Tome.” Estende a mao com a adaga para que eu a pegue. “Por favor, me mate’ ele pede, Eu hesito, O mesmo pedi- do que fez.a Sami ea Michel, “Nao vi me decepcionar, nio agora. Voce jé deveria ter feito isso” Ele insiste. “Mas eu nio posso.” “Entio por que vocé ficou Ii, feito um idiota, apenas observando a morte vir e levar com ela os meus irmaos?” Eu nao soube dizer nada. Nio encontrei nenhuma palavra que se encaixasse e pudesse me redimir de seu questiona- mento. Deixei apenas escapar, do mesmo jeito idiota, um suspiro, “Mas.” E tivea sensagio de que jé havia dito aquiloem ‘outro momento. “Nao cometa duas vezes o mesmo erro, Nao me deixe aqui sozinho com a minha dor” Assad estende mais uma vez.a mao ¢ exige que cu pe- gue aadaga, Eu resisto a ideia. Nao posso fazer o que ele me pede. Ele segue até uma grande pedra ese deita. Retira do bolso da calga 0 poema esctito por Adib. Fica alguns minutos concentrado naquelas palavras borradas pela tempestade € pelo rempo. “Nao seja volo’ ele me diz. “Eu jé perdi o medo” Alessio fina dos Carneiros 145 “Perdeu o medo do qué?” “Perdi, enfim, o medo de estar aqui, de caminhar sem saber para onde, de tropegar, de entediar-me, de ganhar ede perder, de nao cumprir o desejo de Simo, meu pai, da corda amarrada aos pescogos de Adib e Rafiq, perdi o medo de minha mie com suas maos cheias de tetra, de dizer ¢ nio dizer. Eu perdi o medo das minhas memérias ¢ do meu coragio, com suas veias entupidas. Eu perdi o medo do céu e do inferno. Eu perdi o medo da morte. Eu perdi o medo de vocé, meu neto. Estou livre” As palavras de Assad no me encorajam. Elas ndo slo 0 suficiente para que eu assuma a sua morte. Abaixo a cabega em sinal negativo a sua stplica. Ele me puxa pelo brago € com a mao aberta marca o men rosto, Seu olhar cesté carregado de raiva e desespero. O sangue percorre ve~ loz 0 meu corpo. Pego a adaga e sinto sua lamina fria em minhas mios. Vou para cima dele com um ddio desco- nhecido para mim até entio e nao o decepciono. Carnciros irrompem vindos de toda parte. E berram. O vilarejo, lé embaixo, se inunda, As éguas explodem nas montanhas. Alguns carneitos sio levados pelas ondas € se debatem num esforco pela sobrevivéncia. As ondas se embrutecem. Assaad também grita. Berra. Por alguns minutos chego a pensar que seremos engolidos também. Uina gota de agua trazida pelo vento toca os meus labios. E salgada. 146 Maicelo Malt “Esta consumado, Agora vocé também esté livre.” As- saad parece calmo, O seu corpo, ances de sua alma se libertar, oscila en- tre a imagem do homem que é ¢ 0 corpo de um carneiro. Assaad segura em minha mao esquerda. Sori mais uma vex e diz: “Veremos” O seu tiltimo sopro faz 0 seu corpo inceiro tremer. Fecho os seus olhos e me deito ao seu lado ¢sonho com o dia do meu nascimento, Pela primeira vez, desde que decidi acompanhar meu avé em suas memérias, cu me sinto leve, o meu sangue parece se afinar em minhas veias, uma forga preenche o meu corpo ¢ me faz saber que cu estou ali. Inteiro, Pleno. Nio sendo neto, nem carrasco. Apenas existindo, Desgo 2 montanha sem olhar para tris, do mesmo modo como fez Assad quando embarcou naquele navio, em Beirute, Nao sei exatamente para onde irei. Apenas caminho com confianga, sem medo dos meus passos. Os berros dos cameiros se perdem abafados pelas drvores. Sé ougo as ondas. Olho para as minhas mios ¢ ainda seguro a adaga. Compreendo, olhando para a sua lamina man- chada, que esse ainda nao é o fim. Hi algo, um gesto ne- cessirio a se fazer. Atravesso a adaga em meu peito. Um corte preciso € profuundo, atingindo 0 coragéo. E esqueco-me da dor. Esquego 0 meu nome, a minha forma. Esquego-me dos ‘meus pais, dos meus irméos. Nao hé nada, Nenhum se- Almensidae fatima dor Ctneivos 147 ¢gredo, nenhum medo, nenhuma histéria para ser conta- da, Apenas o siléncio eo vazio ao qual me uno ¢ me sinto completo. Nao ha luz, nem escuridao. A morte € outra coisa, diferente de tudo que conhecemos. Eu estou aqui. ‘Apenas o movimento das ondas me interessa agora. 148 Marcclo Malut Agradecimentos AGRabEGO a Daniela Pinotti, por ser companheira nessa jornada, por scu cuidado ¢ presenga luminosa em minha existéncia, Por ter acompanhado todo o processo de ¢s- crita desde os primeiros esbocos, Pelos comentirios, su- gestdes ¢ apontamentos. Por continuar acreditando, A Claudio Brites, pela leitura critica e clinica, pelas conver sas, conselhos e amizade. Pela forca de sempre. A Safa Ju- bran, pela leitura afetiva e poética, pelas sugestoes e apon- camentos nas grafias dos nomes de origem érabe ¢ pela amizade recente e inspiradora. A Peté Rissatti pela leitura generosa, pelas percepdes sensiveis eamizade. A Marcelo Nocelli e Renan Martens, meus queridos editores, pela parceria c por acreditarem neste romance. A Marco, Cé- sar e Cristiane, meus irmaos. Aos meus tios e primos que, de algum modo, escreveram junto comigo, Em especial, a ‘minha mae, Cleusa Alexandre Maluf, com quem tive lon- Amense fv doe Carsiros 149 gas conversas ao telefone, contando ¢ ouvindo historias sobre a familia, mas que se foi antes da publicagao deste livro, A meu tio Same, por ter me contado o episédio que dew origem a esta narrativa, Aos leitores todos. Amém. Deburmaneppiogronis 86, po (Giambi dll Ports ~ dominio piblico 150. Marcelo Malt Esta 0984 rot comPOSTA EM GARAMOND PREMIER £ IEFRESSA EM ‘PAPEL POLEN BOLD 906 FBLA GRAPHUM PARA EDIFORA REFORMATORIO, Ea ALGUM LUGAR ENERE 0 ZAHLE B Sax74 BAnwaRA DO OESTE, EM eed CO ORC nC ee Seka aces Te ROLY 2012) e do infan- conn Fae ee eee ee COROT nates

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