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aT ea ana (he (1970-1974) i FAPESP ates INTRODUGAO A anilise dos filmes aqui prevé relages entre o cinema br pofagia. PPrdemos associar a idéia da antropofagia como metafora ao nome de Oswald ‘de Andrade que, em meio ao movimento modernista da década de 1920, resgata, do imaginério do descobrimento do Brasil a figura de um habitant Feroz 0 fndio antropéfago. ‘Varia implicagbes podem ser pensadas a partir da escotha de Oswald pela imagem da antropofagia como metéfora de apropriagéo cultural. Podemos come- cara partir do significado desta terminologia. O diciondrio Aurélio (1995) define antropofagia como a atitude daquele homem que come carne humana. Se dividie- :mos a palavra “antropfag”, “antropo” vem do grego, homem, €, “fago” vem de phago”, significa “aquele que come”. O termo “canibal” 6 significaivo do ato de ‘um animal devorar outro da mesma espécie e também como advindo do termo “caribal” da lingua espanhoa, do Caribe, “com influéncia de ean, cio, em virlude dda antropofagia de tai selvagens”. O dicionaio etimolégico (Cunha, 2001) espe- «iffca mais essa origem informando que a alteragao dee” para‘n’ se deu em decor- réncia da primeira carta de Crstovio Colombo. Nesse sentido, a idéia de caniba- lismo se aplca a toda espécie animal ¢ esti implicitamente ligada aos primeiros hhabitantes descobertos por Colombo, que so vistos dé maneira pejorativa: “a ai tropofagia de tas selagens”. Jé 0 termo “antropofagia” esté relacionado a uma altitude especificamente hum: spresentada se insere dentro de um estudo que iro da década de 1970 e a metifora da antro- 7X panir do Manifesto Anropotago, 0 de outros etertos do préptio Osw Marlo de Andrado, varios autores, enre ois Benedto Nunes, referers ‘antropofagia como um procecimento indlpensavel para se pensar a erat 18 UM CINEMA BRASILEIRO ANTROPOFAGICO? Essa ttmstica, ora chamada de antropofagia, ora de canibalismo, estava.no, ar quando Oswald de Andrade, depois de te participado do Movimento Moder- nista de 1922, viaja novamente para Paris ao encontro de Tarsila, momento que Benedito Nunes analisa em seu conhecido ensaio “Oswald Canibal” (Nunes,1979). CCanibal € 0 nome da revista edo manifesto do movimento dadaista de Francis Picabia (1920) —a Revista Caniballe e 0 Manifesto Caniballe. Porém, a metéfora da devoragio para os dadaistas no estava ligada idéia de uma absorgso cenriquecedora como para 08 nossos antropéfagos; “devorar e digerir nfo tem 0 sentido de assimilar o outro, mas, de eliminé-lo, data necessidade de se praticar a ‘carnificina, exercicio tio anunciado por Tzara em seu Manifest Dada” (Netto, 2004:29). ‘A antropofagia também aparece relacionada as idéias freudianas sobre 0 ineonsciente: em seu texto Totem ¢ labu, de 1912, Freud associa o parricidio a0 canibalismo, & antropofagia ritual, ao endocanibalismo e aos sacificios humanos de eardter expiatério. Oswald menciona o texto de Freud no Manifesto Antrop6fa- gp em 1928: “Antropofagia. Absorgio do inimigo sacro. Para transformé-lo em totem ... contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud — a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituigdes e sem penitencigrias do ‘matriarendo de Pindorama” (Revista de Antropofagia, 1975).? De qualquer forma, canibalismo © antropofagia, fazem parte de um mesmo ‘universoadvindo da valorizacio do mundo primitivo que integrava a artes idéias do inconsciente.E se Oswald vai optar pelo termo “antropofagia” em vez do “eanibals- smo” dos dadaistas, ele se diferencia no 6 pela escolha da palavra antropofagia, que realmente reforgaolado mais cientfco erigoroso desta terminologia, mas pela maneira pla qual vai afirmar sua relacio com o primitivo. Para os movimentos da vanguarda francesa da década de 1920 ~ surealistas, cubist, futuritase dadaistas —oretorno a0 primitive representava a busea do outro, do estranho, do exstico, das ragas ingens © ‘africana, para Oswald e Mario de Andrade esse primitivo estava rlacionado a nossa propria origem (Nunes,1979:10-11) Recusando outras formas de canibalismo existentes ~ o canibalismo crimi- oso, 0 patol6gico, o relacionado & sobrevivéncia, ou aquele ligado & metafora da igestao, Oswald resgata a antropofagia ritual dos indios tupinambis, através do relato dos viajantes do século XVI. A metifora da devoragio-apropriagio pro- F Dewatd end rlendo ¢ reinterretando Frau, mas para Benediio Nunes ole “generaliza indeudamente a antropotagia fal edestz 9 wéla do partici fatidico sugeic por Freud {unos apud Neto, 20044), "Como dase Harido de Campos GUIOMAR RAMOS as ‘posta por Oswald no Manifesto Antropéfago de 1928 tem entao como perspectiva a ‘busca por uma nova identidade cultural para o pais ¢ como alvo especifico 0 confronto ‘entre o colonizador (cultura européia) eo colonizado (Brasil). Usando livremente 0 ‘que vem de fora - parodiando ¢ nao imitando ~ retira o que o estrangeiro tem de mais forte, msturando com elementos nacionais desprezade pla cultura dominant, como ‘@ samba, o carnaval popular, 0 negro, 0 indio. Nos final dos anos 1960 o advento da antropofagia oswaldiana é resgatado, ‘encontrando um quadro politico/cultural que apresenta semelhancas e diferengas com a década de 1920. As semelhancas: no Modernismo, as idéias do Manifesto Antropéfago e da Revista Antropofégica vém quebrar com uma dicotomia ingénua ‘cuistente entio, entre um nacional romantizado que nega tudo o que € estrangeiro, (presente através dos grupos Anta e Verde-amarelo); o final dos anos 60 também ‘encontra esse aspecto, pautado por uma cultura nacional que se apoiava na oposi- fo a influéncia estrangeira. A grande diferenga: 0 conceito de antropofagia de uma e de outra época tem uma perspectiva de cultura nacional bastante especifica de cada momento. O resgate da antropofagia em final dos anos 1960 encontra a frustragao advinda do golpe de 1964, 0 quadro de uma arte desgastada em sua relaciio com a cultura popular. Para Ismail Xavier, essa arte, representada em parte pelo Cinema Novo, ‘que ligava diretamente o desenvolvimento tecnolégico & possibilidade de uma melhoria social, se vé atropelada pelo aparecimento de uma cultura urbana que introduzia elementos complcadores ao exquema dominante até eno: “agora, 0 ‘campo de batalha é a midia eletrénica, o cinema ¢ todo um aparato industrial- mercantil efetivamente presente numa sociedade onde a modernizagao (...) explctou seus aspectoscontraditériose dion claro que o avango técnico no possui um teor libertério automético” (Xavier, 1989:20 ~ tese). O descrédito dessa politica engajada justifica uma revisio do imaginério antropéfago, no sen- tido de viabilizar a assimilagdo de um novo universo urbano, sem perder 0 com- prometimento com idéia de nagio, priovitirio para a geragio revluciondria prégolpe de 64, on ipuleg onion Celso Favaretto também destaca a diferenciagio entre a antropofagia dos anos 1920 ¢ a dos anos 1960, quando ha uma mudanga das “discusses sobre a ae coma brasileira” para o “debate sobre a indistria cultural, trans- ine ‘0 enfoque dos aspectos étnicos para os ticos econémicos” (Fay to, fends Se paras politicos Gavareto, er brasileiro do final dos anos 1960, pés-Cinema Novo, reflete uma ‘est ‘topicalista repleta de referéncias a li :m ant 0 aaa da década de 1920. Essa estética mene ete em filmes como: Macunatma, O bandido da luz vermetha,. juerreiro, Brasil «ano 2000, Monstro Caraba e outros. Sreccrmre cs 20 UM CINEMA BRASILEIRO ANTROPOFAGICO? Dentié‘os filmes citados por trabalharem com 0 imaginario da antropofagia, cabe destacar Macunaima adaptacao do livro homénimo de Mario de Andrade para o cinema por Joaquim Pedro, em 1967. Torna-se importante colocar aqui 0 por qué desta producto néo ter sido escolhida dentro do quadro de filmes a ser estudado ja que este filme tem uma construgio evidentemente antropofigica — a ccolagem de mitos indigenas ~ presente desde o romance de Mario de Andrade ¢ a itagio do ato antropofigico em si." ae O filme Mocinaima nio€ analiza aqui porque ao colocar a antropofagia de varias maneiras, no cita 0 contexto do Brasil colonial ~ fonte da metafora ‘eswaldiana. No filme de Joaquim Pedro temos o comer sexual, ‘pa cena do encon- tro de Macunaima-crianga com Sofard, quando esta tenta mordé-lo embaixo d’égua. A antropofagia literal, com a citagio do lendério Curupira que come sua propria perna. E, finalmente, a antropofagia citada dentro de um contexto moderno, da década de 1960, quando, em uma festa, na casa do ogro, temos uma piscina que se transforma no local de uma grande feijoada, onde os convidados sio proposital- mente atirados, ficam boiando ¢ depois sé servidos como comida. Podemos ainda falarem canibalismo quando o protagonista Macunaima, no plano final, desapare- ‘ce nas aguas do rio ao mergulhar em busca da figura mitolégica da Yara, deixando ‘as aguas vermelhas — um sinal visivel de que foi devorado. Nenhuma dessas mani- festagGes de canibalismo citadas pelo filme faz mengio & antropofagia do tipo ritual da tribo dos tupinambés, nem hi referéncia ao século XVI. Mas, apesar disso, fem todas essas cenas que apontam para uma alusio ou para a presenga ‘Gores dc ecu corpo canbalizado um cima coataniide alone dabiche que ‘exemplifica bastante a atitude carnavalesca proposta por Oswald. Nesse sentido, ‘sera interessante lembrar de Macanaima, para comparé-lo com a ambigiidade ‘com que as produgées aqui analisadas apresentam o imagindrio antropéfago, visto ‘que a produgio cinematogréfica de 1970/74, muda de tom. “Também ¢ importante pontuar que através deste filme vamos ter contato com © texto de seu diretor, Joaquim Pedro de Andrade, presente nos créditos iniciais, introduzindo a idéia de autofagia como resposta ao tipo de antropofagia proposto por Oswald, questio que seri mencionada mais adiante durante a anélise dos filmes. = Zomod eabaso1iwe Meanama or consierao um bom exemple de prin da noon ‘Sethi, apace Maro do anace jar,com aigum Sosgrd, av © mes saraiats ress hreplag Ge Oewld do Anas om 1820. tmarn un bocado ‘cit concsdos tots, paara Panamera poeve Macorana a tava to SXSecceu lo tnca (nto petrdovtar a ger start), que comple ainda care anvopoage me rolucasen ote, Puckrea(Ardade ap aoa 1083168) GUIOMAR RAMOS a ‘As produgbes analisadas neste limo ~ Triste Trico (1974), de Arthur Omat, ‘Como era gostoso 0 meu francés (1970), de Nekon Perera dos Santos, Pindorama (1971), de Amaldo Jabor e Orga ou o homem que dew cria (1970), de Joao Silvério “Trevisan ~ foram escolhidas em fungéo da presenga da antropofagia no contexto histérico que inspirou Oywald, a partir da pritica do canibalismo pelos indios da ‘6y0ea do descobrimento do Brasil O focooswaldiano, detemninado por uma vontade de redescobrir pais, dentro do parimetro de uma nacionalidade agressiva —"S6 me interessa 0 que nfo é meu. Lei do homem. Lei do antrop6fago” ~ foi fundamental para aescolha dos filmes ratados neste extudo, Um primeiro contato com o Manifesto Antropéfago jg exemplifica bem a relagéo de um determinado tipo de parédia uilzado pelo autor com os filmes que serdo apresentados por este livo. A parédia através da apropriagao e modifica- io explicitas do texto do outro (no caso 0 outro é Shakespeare e a conhecida frase da mais do que conhecida pega, Hamlet), “To be or not to be, that is the question”, tansformada em “Tupi or not tupi thats the question”, vai ser apon- tada no filme Triste n6pico. é a identifeagio com a valentia dos indios endo dos colonizadores, revista pelo Manifesto: “.. nio foram os eruzados (época das cruzadas religiosas na Europa) que vieram, foram os fugitivos de uma civilizagao (6s curopeus) que estamos comendo, porque somos vingativos como o Jabuti”, ‘std presente em Como era gostoso 0 meu francés. Vamos ter ainda citagées de poesias de Oswald em Orgia ou 0 homem que deu cria. Em Pindorama 0 desco- brimento do Brasil € tema do filme e a antropofa imagens de um ‘universo de decadéncia e desespero, quando, por exemplo, o enviado do rei de Portugal foge dos indios antropéfagose grita: “hoje € a dia do juzo final”. Triste tropico trax citagies explicitas & época do Descobrimento, onde a imagem da antropofagia aparece através de gravuras ¢ textos dos viajantes do século XVI deslocadas de seu contexto de origem, articulada a um sistema de colagem que ‘nos remete,imediatamente, a Oswald de Andrade e ao tropicalismo de final de 1960. Como era gostoso meu fans (1970), TisteTidpico (1974), Pindorama (1971) ¢ Orgia ou 0 homem que deu cra (1970) pertencem a uma mesma época: foram realizados apts 0 AIS, durante os anos mais duros da dtadura do governo Médici (1970-74), os anos de “chumbo” ~ auge da ditadura militar. Mareados pela crise do Cinema Novo e pelo questionamento da maneita com a qual esse cinema lidava com a questéo nacional, os filmes mencionados refletem um conted- do ¢ uma cattica pss-tropicalsta — dois deles podem ser considerados pertencen- tes ao Cinema Marginal - Pindorama ¢ Orgia. Dio continuidade aos temas da identidade nacional, do paralelo “civilizagio/barbarie” e do referencial do moder- nismo de 22 (o Oswald do “Manifesio Antropofigieo”, o Mario de Macunaiia). Ji foram mencionados dentro do contexto de obras cinematogrificas do final de 22 UM CINEMA BRASILEIRO ANTROPOFAGICO? 1960 (Macunatma, O bandido da luz vermelha), mas estario sendo apresentados agora dentro de outro exo. © ceontexto do cinema mundial dess final dos anos 1960, como nos anos 1920 em relagio as ates, em geral, também estava povoado pelo imagindrio da antropofagia. Filmes como Pocilga, de Pasolini, (1967), Weekend, de Jean-Lve Godard, (1968), Pink Flamingo, de John Walters, (1967). trabalhavam com ima gens do canibaismo. A presenga do canibalsmo af representa uma postura de transgressio, que esté mais relacionada a entica generalizada & classe burguesa, como no filme de John Walter, em que o asal em questi €canibalizado por uma vinganga pessoal € 0 ato € mostrado, ao vivo, por um repérter de TV, do que 20 vinculo com uma prablemtica poltico-nacional. A diferenca entre o significado da utilizacio do imagindri antrop6fago no cinema brasileiro eno cinema interna- tional pole sr verfcada plo rau de envolvimento demonsrado pelos les brasileiros com a problemética nacional, onde a retomada da antropofgia pressu- Se uma critica a0 Cinema Now. DO PROCESSO DE ABORDAGEM DOS FILMES ‘estudio dessas produgées sera exposto em cinco capitulos: quatro referen- tes aos filmes estudados ¢ o dltimo, uma sintese-conclusio, onde seré feita uma comparagéo entre as anélises apresentadas e também uma finalizacio deste livro. Aaanilise desses filmes reflete uma pesquisa da conceituagao utilizada como instrumental na leitura dos mesmos. Nesse sentido, a ordem de apresentagao das produgées reflete a maneira como cada uma trata a questio da antropofagia © os ‘outros conceitos inter-relacionados. O tipo de interagéo bastante préximo entre 0 analista (eu) ¢ 0 objeto (filme) permitiu que cada produgio tenha sido vista de maneira ajustada a sua propria estrutura. Nao hé uma grade metodolégica proposta a-priori. A relagio com os filmes se deu sem categorias fechadas ¢, sim, a partir da observagio do estilo ¢ das particularidades de cada produgao estudada. A anélise se concentrou na relagio ‘entre as expenéncias da montagem € as experiéncias da mise en scéne (como os atores séo colocados no espago ¢ a maneira deles atuarem). Mesmo em relagio a uma descrigao ini que pressupde uma decupagem {lmica, optamos por fazer com que cada produgio tivesse uma maneira prépria de abordagem. O contato com cada filme se deu de =e a ea ‘mobilizagao de nogées como antropofagia foi se construindo & medida que o ‘estudo dos filmes avangou. Sinal positive de tal escolha foi a possibilidade de introduzir novas referéncias nas interpretagées dos filmes A medida que isto se mostra necessrio. GUIOMAR RAMOS 23 ‘Como era gostosos6 foi visto em sua dimensio total a partirda anotagio das frases dos vajantes do século XVI, que aparecem escritas sobre a tela, interrompen- do a natrativa do inicio ao fim do filme. Ao comentara relagio entre o contedido cesses textos eas imagens que se seguiam, foi possve fazer uma primeira descr. (Oestudo deste primeiro filme rd apresentar o encadeamento histérico da imagem fonte da metafora da antropofagia oswaldiana, ja que remetediretamente no relato do viajante Hans Staden que viveu entre os indios antrop6fagos no século XVI. Para diferenciaro esto concreto de canibalismo de sua metéfora, foi estabelecido o termo antropofagia histrica para as cenas em que 0 ato canibal é representado ‘como uma performance literal da cerim@nia dos fndios tupinambés no séc. XVI e ntropofasia cultral para o outro tipo de atuagio, mais performético e provocativo, ‘na qual percebe-se a existéncia de uma apropriagio deslocada. Como bibliografia, fo determinante a letura de autores que descreveram ¢ opinaram sobre o ritual canibal - 68 viajantes do século XVI €0s estudiosos: Alfredo Metréux, Florestan Fernandes e Lévi-Strauss. Enm Triste trépico para se estabelecer um contato mais seguro com a estrutura do filme foi ncessévia a descrigéo minuciosa de toda vox over que percorre a narrative, a partir da, foi possivel uma abordagem plano a plano. Essa primeira descr ni foi incorporada @ anise, sendo apresentada como anexo. Com essa descrigfo minuciosa pode-se comprovar que o protagonista tinha uma trajetria ‘com comego meio ¢ fim, € muitos textos que pareciam ser fruto da imaginacio do diretor, através do contato com os autores jé utilzados para oestudo de Como era sostoso meu francés ~ Hans Staden, Jean de Léry, Alfred Metréux e do proprio Lévi-Strauss ~ revelaram-se como citagées deslocadas?. Além disso, com Triste trépico foi necessério fazer uma referéncia mais pontual & época do Movimento Modernista (1922), dos Manifesto Fau Brasil ¢ do Manifesto Antropéfago de (Oswald de Andrade e dolivro Macunatina de Mério de Andrade. Depois da anilise de Como era gostoso, 0 pressupost inicial de trabalhar ‘nesses filmes a antropofagia histrica ea cultural muda de aspecto. Na comparacio centre Como era gostaso o meu francés Triste tripico vai fica nitido que os dois tipos de antropofagia, a cullaral ea hisérca, adquirem dimensées distintas. A antrpoagiahistrica em Como era gostoso 0 meu francés aparece como elemento fundamental da narratva, i em Triste trépico surge apenas como citacio (através de * contimaro de que oss0s textos wizados pal fie aston, 6, portanto sia passives do ‘rem localizacos como reteréeiahistrca, e que porto, no so pura invengdo do aretor 36 fl possivel mediante oprooesso de doszicao andisa do ime, J que odretor no oarece ‘enhum "indi" 636 mosmas, chogando mocmo a escondar a origem das infotmaoes, ha ‘mstura com outrasreteréncias. Ness sentido, mesmo apds tase desoobero a procedea pelo {ual a ctacdo¢ usa pola mortagem, nao ¢ possival eee um eagotamento Uda conta de ‘os as cages vitzadas peo discurea fimo 24 UM CINEMA BRASILEIRO ANTROPOFAGICO? fotos ou frases escritas), em meio a outras referéncias que nio pertencem ao século XVI. A antropofasia cultural ests presente em Triste tndpico através parcedias ‘onstruidas sobre colagens ¢ materia interpolados, em Como era gosto 0 meu {francés esses procedimentos tm uma presenca mais sutil~pode ser detectado e em alguns momentos determinado pelo ipo de epresentacio sarcistcae provocativa que ‘ai ser dado ao material histrico apresentado™. Outra diferenciagSo se impéé, influenciando a maneira como os outros fi- mes ido ser abordados. Na busca por imagens literais de antropofagia em Triste Uwépico (i realizada em Como era gostoso, a fim de diferencias da figura metafori- <2) foi encontrada uma outa figura bastante recorreate, mais do que a antropofa- tin, que também pestence ao universo oswaldiano, o carnaval. A festa carnavales- ‘a €citada pelo Manifesto Antrop6fngo - "Nunca fomos catequizados fizemos foi carnaval.” ¢ também se faz presente em outros momentos do pensamento de (Oswald, mas ela é ponto crucial do estudo do pensador russo Mikhail Bakhtin, quedeu o nome de carnavalizagio ao mecanismo que permite estabelecer na litera- trauma inversio de valores. Em um mecanismo semelhante a0 0 que ocorrew com ‘o-conceito de antropofagia em Como era gostaso, pudemos detectar que o carnaval marca sua presenga no filme de Omar de mancira dupla: como imagem literal (o ‘carnaval em si), © como metafora (na forma de agenciamento de palayras ¢ ima- gens). em meio a brincadeira dos folies que as informagies aparecem alteradas de seu contexto original ‘Cite Hane Stade (1900), de Luis Alberto Perera, 6 um étno exemplo da abordagem da ‘antopofgle etree, mas do um porto de vata no-oswaiano, O texto do vieante francs 6 stbordado pelo Time sem as possibtdaces ve verso carnavalizares proposts por Oswald ‘Hans Staden cota astra que Nelson Pereira dos Santos se ecusou a apresenar am Como ‘ra gostovo © meu tancbe (1870): hstrla os nos antropdtagos tpinambis do ponto de ‘eta dos vencadore/buropous. Ambas produgtes rabalam a pari do reat o ari alemBo "lane Stacen. ave tendo si prisionevo de Indios atropdfagos no Bras do século XVI. por ove meses, conuegue escapaevltar para a Aleman, onde pubica sua isa. Ofime de {iis Aor Perera acomparha,ieramant, como eo pidpro deta, odo orelato do arto flenao do sou aprsonament ad sua aclosa oscapada..aproduglo de Nelson, apeaa Soguir bastante rlaio de Sladon opt po nso alguns dados de outro crensla,o frencbs “Jotnde Ler. A quostao do signticade dese adapa’ uma ara determinate para entendermos ‘ae dteengas entra um e outo fm. Ao seguir risa o vo de Hans Staden, Luis ABorio Perera rocuea a visto de Oswald de Andrade ue empl o significado do gesto do canbalismo Tupinambé onde um guerra come o ouvo para adquvforga, para as relagbes colonlzadou! ‘oonizado, Ofna de Hans Staden mostra caramant os inos como uns ngéeunaimelancolens, te se saislazom com um pau helo de ospecirias, esas, chamadas pots Inds de Como fra gostoso de ‘quingulbarias Essa questo, 0 estudo comparative de Como era gosto 0 ‘mod hanobe «Hane Sladen 10 wabalhada por mim 80 forma ampada no arbgo “Como era ‘ostovo 0 mou Hans Stader, publeado pela Revista Sinopse 8m 2000. Loria Nag rotoma Suns esos potos 20 anaisar esses dois fies no capi 8, © ev 0 outro anropétago™ fem Autopia no Crema Brasil, (2006) Guiomar RAMOS 8 Entio, a partir de Triste trpico, a metéfora da camnavalizacéo, além da antro- ppolagia, passa a ser pesquisada como instrumental de linguagem ¢ também ager recorrente. O cinema aqui 6 lugar prvilegiaclo para enxergarmos o mecani mo de criagSo desses autores ¢o trajeto da antropofagia literal para a metafGrica, bem. ‘como do camaval literal para o metaférco, CChega-se a um ponto comum em relagéo a esses dois autores, e Bath ans paviun oops doco codnlinioseasoelade as fone de sua metre ransormadora de linguagem. E ete compo eté presente A anélise de Pindorama vai iniciar-se, entéo, com a busca dentro da narra- tiva ilmica, por um corpo canibalizado e carnavalizado levando em conta Oswal «¢ Bakhtin. Com a descrigio de todos os tipos de espacos construidos pela oe pode-se visualizar 0 enfoque totalmente tatral escolhido pelo filme. Destacando a representagio utilizada pelos atores chegaremos em figuras expressivas do teatro internacional como Bertold Brecht e Antonin Artaud, Através do texto O teatro € «@ peste de Antonin Artaud, no qual o autor estabelece um paralelo entre a idéia de ‘um corpo empestado e a possbilidade de uma renovacio do teatro, foi estabelecido ‘um novo parimetro para o estudo dos filmes deste ensaio. Portanto, além de rela- ‘mou Bras (Andrade, 19908) care once epreerta mulasreferncas ao 6c. XV, mas sua soyroagonisia om meados 2 ee 0c dorentomonte do Neleon Pero dos Santos que, am Como era gosto 0 mau toess_ apresenta uma historia ue se passa na epoca e no contexo do descobrimento, sete eeuear 0 pono Go vita doe crsigos e colonizadores, Omar nos ramet aaui @ um erent de Maafons Anropéiage que dz "Nunca fomos catequizados.) zens Cristo naecer fis Bahia ou om Bolom do Part ‘TE Em ipo de colagem: GUIOMAR RAMOS 63 Ato nome da pesado esuta Manoel da Nobrega spesaah A concer do Gent ada oo )6V cit arent emt de casloneece ean ini com: A Desoto do Cnt ‘ . ar também apresenta Pedro Magalies Gandavo, cron . cronista port slo XVI mia oi oul vitae ee de coat ana 208 natives: “ot natives nf tnham em sua lingia'o Fo Leo “ podian eoenero que a Fa Lei eo R&A mniancn scene, cx un des lets em separa, com vores so in atin, sagen via dea frmagin. Na eqn eit como uma repo a eu tto Denes: ene vet do cro de uma mera posnd de pt bes eri) enauanto € ber por um ato (ri) clog seme wo espago do carnaval de rua um grupo de homens resis de mer vendo) inca ao som de bumbo constantee vozes debochadas” Pafa dttia meinia de De Arr a sari nessianismo indigena e no ert), a montagem se aproprianovamnente de ta, es wiliadas pelo hitrador Aledo Mena, sbe a bce do pease oy fuaranis a vor over se refere ao “(..) paraiso terrestre onde havia um rotivo de Berens ter sem mal ue os gure avian prc dee AE lave do paso tnhado plo vies topes no cota cm Nowa Terra, Também €citado o messanismo ds tupinambis: "Em 1549 on ‘wpa fogem de um akeameno eta na Babi ua por din eA iia da busea do paraiso perdido € vista aqui soba dia indigena: Dr. Arthur rocura 0 paraiso dos adios tapi, a vor over fala de uma “terra sem mal”, de Ia nde sce nex (europe) se rencontrariam com ead. sip es pein itr nramet cgi dase vis dais mares, dos grupos humanose suns instituigbes.” (inal do pererso de Dr: Artur como lider messtico&constuido echo dbrade Ee Cnhn, Ossetian oop de mas se integra a0 mesiaismo indgena. Mas, 0 tex de Eucide ¢ wilde pare dlscevera more re, oS do peruo de Dr. Authur Vesiquemoy nesta ragio os trechos que pertencem ao lio Os Setées:"(.) ao meio dia, Dr 7 Taivade too Sour anda cosonaue rept se rues Te vague apn de Ganda a ns osloradoes dos pores tapas acai’ (Suns, 0Soy © Sobre 0 messianimo ve bee Inoigana ver Mara lsaura Pereira de Queiroz ~ © messlaniamo no ‘as creneas, por parte dosindigenas (© texto'do live antes mesmo do 2 XVII @de pouca amarragto Ges SM scp 0 desta por parte do Nstorador, (quo esti om tien ft trade oto de Euckes da Cunha, p209 (1836), 64 UM CINEMA BRASILEIRO ANTROPOFAGICO? il ‘inagoes, bem a0 ‘Arthur inspecionava com a camera de filmar a vila em meio a aluci eas ‘gosto de Euclides da Cunha: cabecas envoltas em esparadrapos ene partidos em tipéias, pernas encanadas, disformes pela inchagdo, pei ror bale ou a faca, todos 08 vicios e todas as misérias”. “Megera assustadora, bons ‘rebarbativa, figura mais hedionda destes sertées, imagem Rewsiernanee i dade devoradora ", Para chegar descricéo impressionante do a ‘Antdnio Conselheiro, utilizada pelo filme para ilustrar a perseguigao ¢ morte. ‘Arthur e seus seguidores. Omar utiliza 0 texto de Eaciis ommalrnsier nai entremeado com referéncias a outro lider messidinico — Jesus Cristo. Voz over: “Em fevers, pleno carnal seu cadaver €reveado: jazi mum don ccs anes nt ‘a Matar. Removida a breve camada de terra, apareceu no :suddrio de a igerado ¢ bérbaro médico. Estava hediondo, a cabeca eae ee reece ae arrancados, a pele estava esfolada, as veias 1é las, 08 nervos est irados, 08 08808. ewan sangue derramado, Desenterraram-no cuidadosamente ea ‘grafaram-no depois,(...) resolveram porém cortar ¢ guardar omen eet ‘aquele crdnio para que a ciéncia dissesse a siltima palavra; ali no relevo nt circunvolugdes cerebrais, os cicntistas constalaram as linhas essenciais do crime e DESFECHO TRAGICO smos acompanhar através desta andlise como a ajetiria de Dr. Athur on ae i Eoopn aa par iter do Bax o messin dente aun mote tra ~@ vend inesaments por uma montage eos ¢ comple, ingest, Aled Memes, Onde And Eu da Cah, aera ut conten corey sem 0 menor etd, es time o porcurs do protagonist, obra de Lévi-Strauss, Tiss trpicos acme nome do fie, bem como o paralelo entre aviagem do antropslogo ao ‘iagem de Dr, Athut,acabam por néo ter a importncia previ an oldr da Cunha (a descgho do compo mano de Antonio Conse There) ¢ principalmente, com Oswald de Andrade qu odiscureo fimico assume rpromisso maior. A citagio & viagem de Orwald de Andrade contida no oeuo curopen de Dz. Arthur nomeia a figua inspiradoa da antropoagi, ecanismo de cragio assumido pelo filme. eee aioe ere Ome dete om so de montagem, no € ser observada em relacio ao lima geral que vai se instau- Se eee iments do fle, A tara do rtp etna or lim decuso pessimist, do tipo clinic, cheio de sintomas ediagnésticos das aoa te cara ou datos Pepa doena © luca: "Mali, tubercle © GUIOMAR RAMOS a loolismo grassavam em Santa Cruz" ¢, principalmente, em relagio ao final do ime, ue tem um desfecho trigico a morte de Dr. Arthur & construfda com a citagdo morte de Antonio Conselheiro. As metiforas médicas mais a descrgio de Euclides cla Cunha do compo morto de Antonio Conselheiro podem ser vistas como abusca do filme por um diagnéstico préprio de nagéo onde a figura de Dr. Arthur toma a sdimensio de um mastic. ‘Maneira similar de definir « nagao brasileira tem o historiador Paulo Prado ‘que em 1928, no livro Retrato do Brasil - ensaio sobre a tristeza brasileira, aponta Para a causa de nosso desenvolvimento “errado” e “triste”, tragos, quase fisios, como sintomas de uma doenca mesmo. Algo parece estragar a formasio da raga brasileira: “Dos excessos de vida sensual ficaram tacos indeléveis no earéter brasi- |cio (..) prodtzem no organismo perturbagies somaticase fisicas, acompanhadas cde uma profunda fadiga que facilmente toma aspectos patol6gicos, indo do noja a0 Sdio. como derivaivo dessa paixao, outro sentimento surgiana alma do conquis- tador © povoador, outro sentimento extenuante na sua esterilidade materialist, a fascinagio do our exclusiva como mania” (Prado, 1931:125/126). A terminolo- tia médica neste caso faz referéncia & todo um vocabulério que advém de uma mentalidade positivista que via « nagio povoada por racasbiologicamente inferio- ¥es— a raga negra, a mestca, a india, Ismail Xavier identifica a trajetéra religiosa de Dr. Athur com uma tradi- ‘io messidnica presente em outros filmes brasileirus do periodo. Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, 0 beato Sebastio também liderava um ‘sande mimero de fansticos em busca da salvacio. (Xavier, 1993b). Essa salva- ‘fo, na conhecida profecia citada por Glauber “o sertio vai virar mar”, significava ‘uma crenca na utopia revoluciondria, que ogolpe de 64 faz desmoronat. A questio ‘messiinica em Trise rdpico, como afirma o autor, no traz nenhuma promessa — "oso protagonista morre assassinado, sem deixar esperanca de salvacio, Neste paralelo entre o filme de Glauber e o de Omar cabe destacar que a Sigure-mentora do sonho messitnico de ambas produgées é completamente dife- rente. Dentro desta categoria trabalhada aqui pelo filme antigo (burguesia) versus carnaval (pov), vemos que older messinico em Triste pico nao € um homem cdo povo como em Deus ¢ a diabo. Nesse sentido, a caracterizacio de Dr. Arthur como lider messianico € uma referencia nio 6 figura de Ant6nio Conselheiro do 5 tio de Andrade © Oswald de Andrade, respectvamente com Macunaine @ 0 Mantsto Airopctago deram ume esposia a negatvisma de Patio Prado, Macunaimalnwere once caracteisicas da rapto, como a miscigenaraoigade 4 prog, apresertando sau prea amo uma mista de toes as raga formadoras de nossa nagin -o banca. oprete,o don ‘ua propaga como uma quadade. Oswald prope sinttarparodcamenta odes ox precatoa ogativs © posits visios come lormadores de nesta pale 66 UM CINEMA BRASILEIRO ANTROPOFAGICO? livro Os srtes, mas, também, a seu autor, Eucides da Cunha”, Além de sua posigio «como lider messinico, cle é médicoe pesquisador: “Dr. Arthur comegou a coletar ‘material biografco sabre os messias e profeta entre a popula eaboela ns limos tués séculos (.) se tomaria centro de fendmenos de fanatismo-e messianismo social” ‘Quem filme ating, entio, 6 protagonista, a figura do intelectual, que pode ser apontado como o proprio diretor,jé que a narrativa apresenta fotos de Arthur ‘Omar, além do nome do protagonista edo dretorserem os mesmos". A dimensio de sacrifciode Dr, Arthur estabelece uma ponte com o teatro da Crueldade de Artaud ‘que serd visto no préiximo capital, ‘A morte do protagonista se dé simultancamente com o final do embate entre as imagens de carnaval ¢o filme doméstico apresentado durante toda a narativa O carnaval e a carnavalizagio emudecem abruptamente através de um procedi- ‘mento radical da montagem que expée a vontade desse diretor em sua qualidade de autor: temos a imagem impressionante de um grupo de folides dangando com a sobreposigio da voz tenebrosa e inconfundivel de Adolph Hitler. ‘Com a morte de Dr. Arthus, (a figura do intelectual), a imagem-povo é apresentada de mancira completamente deslocada de seu cixo carnavaleseo. E:0 desfecho vai ser mais snisro, quando vemos no dtm plano do filme a fotografia, if utlizada na primeira seqiéncia, de uma senhora do povo (em contraponto com © desenho do rosto de duas senhoras em moldura ovalar) com uma expressio Jmpressionante de dor. E-essa imagem que fecha a trajetia do protagonista, como ade uma tragédia jf anunciada desde seu inicio. Talvez a chave para essa questio da predominincia do clima trigico e som- brio, que se contrapde & visio carnavalizada de Oswald, esteia no fato de que 0 aspecto carnavalizado est presente no procedimento de montagem, mas no pre- valece na emogio que o filme acaba por produzir. 3 DautorEvsides da Cunha salu co sua vida urbana, de ongenheloe ita se ambennou ‘no Sarto para, no $6 acompannat os acontecmentos da guerra de Canucos, mas tambem {ome niuto de entender e defrir quem era aque gene. +S "Parael também com o nal do protagonista de Como era gostoso que more canibaizado polos incios com os quais convvera adquira simp, wi

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