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II — Scherazade ou do Poder da Palavra As 1001 Noites em geral nos chegaram através de antologias infantis. Conhecemos as histérias: “Sindbad, 0 Marujo”, “Aladim e a Lampada Maravilhosa”, “O Pescador e 0 Génio” etc. Mas tais antologias acabam por privar o leitor do plano geral da obra — a estructura de encaixe dos contos, embutidos uns dentro de outros — e, sobretudo, da poderosa figura da Scherazade, que vence a morte através da Literatura. Trata-se da maior apologia da Palavra, de que se tem conhecimento. E analisar 0 papel da contadeira de hist6rias significaré abordar 0 problema das relagdes da mulher com a Literatura, da mulher com a Palavra, da mulher com 0 simbolo e com o corpo. Scherazade é personagem da narrativa que inicia e termina as 1001 Noites, servindo-lhes de molduea; é a partir dela que se dard o pretexto para os demais contos. Trata-se da histéria de Schariar, Sultdo de todas as Indias, da Pérsia e do Turquestio, que descobre, por intermédio de seu irmio, Imperador da Grande Tartdria, que sua mulher o trafa. E ele toma conhecimento disso no mesmo momento em que o irmio lhe revela que também fora trafdo pela mulher. A conclusio é inevitavel: “Todas as mulheres sao naturalmente levadas pela infamia, e nio podem tesistir 4 sua inclinagio”. O Sultao, no estupor da mais funda desilusio afetiva, propde ao irmao que ambos abandonem seus estados e toda sua gléria, saiam pelo mundo para, em terras estranhas, melhor esconderem seu comum inforttinio. O irmio aceita, com a condigio de que 37 voltariam se enconerassem alguém mais infeliz do que ele ruin Seguem cai, distrsados, « hegam 3 eira-mas Pep ago surpreendidos por algo que parece um maremove, Sabem a uma drvore esconcem-se entre 0s galhos, e presenciam aervrena na gual um genio (um djin) tira do fundo do mar tina grande caixa de vidro, fechada a 4 chaves, onde estava srrerrada uma bela mulher, quase adolescente, que ele libera sr cata, Era a sua mulher, que ele roubara para si no dia de suas nipeias,e que mantinha presa. Declarando-se cansado, o io fla 8 mulher que gostaria de deitar a cabeca nos seus joclhos,eadormece. Os dois irmios acabam por ser descobertos To meio das ramagens de seu esconderijo pelos olhos persrutadores da jover. Ela retira dlicadamente a cabeca do sigante do colo, vem para debaixo da érvore e propoe aos dois jnmios que tenham relagio com ela. Atemorizados pela presenca do génio, eles inicialmente se recusam, mas ela os forsa cexatamente com o argumento de que, se nio dormissem com cla, ela acordaria 0 génio. Obrigados, eles satisfazem sua vontade, primeiro o mais velho, depois cacula. Ao fim, a jovem pede a cada um o seu anel. E diante de seus olhos estupefatos, abre uma pequena bolsa que continha outros 98 anéis. Conta que esses anéis foram dos homens que jé a tinham possuido. “Com os dois de agora, diz ela, completo uma centena”. “Uma centena de amantes, malgrado a vigilincia ciumenta ¢ a precaucio do génio, que me quer s6 para si’. Ele se esmerava em encerr4-la numa caixa no fundo do mar, mas ela no deixava de engané-lo...“Vede que, quando uma mulher tem um desejo, nao ha marido que possa impedir a sua execugio.” — dizendo isso, ela se senta e coloca de novo a cabega do genio, que continuava a dormir, trangiiilamente em seu colo. Os dois iemios voltam pelo caminho de onde tinham vindo, comentando que nada no mundo ultrapassava a malfcia das mulheres, € que, nese assunto, até aquele génio de poderes sobrenaturais era mais infeliz do que eles. Convencidos da perfidia feminina, decidem retornar cada um para o seu reino. © Sultio Shariar formula um plano, que the permitiria manter sua honra inviolavelmente preservada, sem que fosse obtigado a prescindir cde mulher: consistia em dormir a cada noite com uma virgem, € no dia seguinte, ao acordar, mandar mati-la, pelo seu grio-vizie. E escolheria uma nova para a noite seguinte, ¢ assim por diante. ‘A cada dia, uma jovem casada e morta. E 0 inicio dessa pritica trouxe & cidade a mais intensa das desolagbes. Ora, 0 gtio-vizir, que devia a0 Sultio a mais cega obediéncia e que, malgrado sua vontade, a cada noite apresentava ao Sultio uma nova virgem, e a cada manhi, malgrado sua repugnincia, era obrigado a maté-la, tinha duas filhas: Scherazade e Dinerzade. £ assim que, textualmente, € apresentada Scherazade, na versio de Galland: “. cinha uma coragem maior do que se seria de esperar do seu sexo, € um espitito de uma admirivel penetragio. Tinha muita leitura ¢ uma memétia tio prodigiosa, que nada Ihe escapava, de tudo que ela havia lido. Aplicara-se com todo sucesso a0 estudo da filosofia e da medicina, € ddas belas-artes; e fazia versos melhores que 0s mais célebres poetas de seu tempo. Além disso, era provida de wma ande beleza, ¢ uma muito sélida virtude coroava todas essas belas qualidades.” (G.l, 35) Dessa desctigio ressaltam primeiro as qualidades “intelectuais” que fazem de Scherazade uma mulher que se cutivava (Va, estudava, Fazia extremamente inteligente, poesia). Mas suas caracteristicas propriamente fisicas — que no ‘sio dadas em detalhe, e vém depois, ¢ 86 depois, das intelectuais, também nio sio descuradas: trata-se de uma bela mulher. an voltaram se encontrassem alguém mais infeliz do que ¢ Mein Seguem coi, distrsados, chegam oa Pep surpreendidos por algo que parece um maremoca suem a uma frvore esconcdem-se entre os galhos, e presenciams oestona na qual um genio (um djinn) tia do Fundo do mae tina grande caixa de vido, fechada a 4 chaves, onde estava memada uma bela mulher, quase adolescente, que ele libera qr siza, Era a sua mulher, que ele roubara para si no dia de seas npcas,e que mancinka presa. Declarando-se cansado, gévio fala 8 mulher que gostaria de deitar a cabesa nos seus joethoseadormece. Os dois irmios acabam por ser descabertos Wr meio das ramagens de seu esconderijo pelos olhos perscruradores da jover. Ela retira delicacamente a cabega do gigante do colo, vem para debaixo da drvore e propde aos dois irmios que tenham relacdo com ela. Atemorizados pela presenga do génio, eles inicialmente se recusam, mas ela os forca exatamente com o argumento de que, se nao dormissem com cla, ela acordatia 0 genio. Obrigados, eles satisfazem sua vontade, primeiro o mais velho, depois 0 cagula. Ao fim, ajovem pede a cada um o seu anel. E diante de seus olhos estupefatos, abre uma pequena bolsa que continha outros 98 anéis. Conta que esses anéis foram dos homens que j4 a tinham possuido. “Com os dois de agora, diz ela, completo uma centena”. “Uma centena de amantes, malgrado a vigilancia ciumenta ¢ a precaucio do génio, que me quer s6 para si”. Ele se esmerava emencerré-la numa caixa no fundo do mar, mas ela no deixava de engané-lo... “Vede que, quando uma mulher tem um desejo, rio ha marido que possa impedir a sua execugio.” ~ dizendo isso, ela se senta e coloca de novo a cabeca do genio, que continuava a dormir, tranqiiilamente em seu colo. Os dois irmios voltam pelo caminho de onde tinham vindo, comentando que nada no mundo ultrapassava a malfcia das mulheres, € que, nesse assunto, até aquele génio de poderes sobrenaturais era mais infeliz do que eles. Convencidos da perfidia feminina, decidem retornar cada um para o seu teino. © Sultéo Shariar formula um plano, que the permitiria manter sua honra inviolavelmente preservada, sem que Fosse obrigado a prescindir dde mulher: consistia em dormir a cada noite com uma virgem, € no dia seguinte, ao acordar, mandar mati-la, pelo seu grio-vizir. E escolheria uma nova para a noite seguinte, e assim por diante. ‘A cada dia, uma jovem casada e morta. E o infcio dessa pritica trouxe A cidade a mais intensa das desolacies. Ora, 0 grio-vizie, que devia ao Sultio a mais cega obediéncia e que, malgrado sua vontade, a cada noite apresentava a0 SultZo uma nova virgem, € a cada manhi, malgeado sua repugnincia, era obrigado a maté-la, tinha duas filhas: Scherazade ¢ Dinerzade. E assim que, textualmente, € apresentada Scherazade, na versio de Galland: “sinha uma coragem maior do que se seria de esperar do seu sexo, € um espitito de uma adminivel penetragio. Tinha muita leitura ¢ uma meméria tio prodigiosa, que nada Ihe escapava, de tudo que ela havia lido. Aplicara-se com todo sucesso a0 estudo da filosofia e da medicina, € ddas belas-artes;e fazia versos melhores que os mais célebres poctas de seu tempo. Além disso, era provida de uma grande beleza, € uma muito slid vireude coroava todas cessas belas qualidades.” (G.l, 35) Dessa descrigio ressaltam primeiro as qualidades intelectuais” que fazem de Scherazade uma mulher cextremamente inteligente, e que se cultivava (lia, estudava, Fazia sia). Mas suas caratersticas propriamentefisicas ~ que mio Exo dacas em detalhe, e vém depois, s6 depois, das intelectuais, também nio sfo descuradas: trata-se de uma bela mulher. ne pois bem: essa mulher altamente interessante que parece

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