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Barrocoludio. Transa chin? Haroldo de Campos Para Joseph Attié Hermeneuta de Herodiade L’aonde iss'estava dev'eurei devir-me Freud via Lacan circun-via Joyce Haroldo de Campos Se ha uma constante formal que pode caracterizar a produgao simbélica em nossa América, esta se encontrard no fundo cultista-conceitista do Barroco gongorino (e também quevediano) “transculturado” em nossas literaturas excéntricas por figuras marcantes de poetas como a mexicana Sor Juana Inés de la Cruz, o brasileiro Gregério de Matos, 0 peruano Caviedes, 0 colombiano Hernando Dominguez Camargo, para sé citar esses homes que remontam ao acervo mneménico do passado colonial (a exasperagdo do Barroco, hibridismo erotofagico © onidevorante, em nossas latitudes, fez Lezama Lima falar numa “arte da contraconquist Procedendo a um salto prospectivo voluntariamente extremo, e economizando toda uma série de mediagées, seria possivel retragar, na contemporaneidade latino-americana, como desenho ou configuragao neobarroca, os coleios dessa “sierpe de Don Luis de Géngora’: na prosa dedélico-paradisiaca do mesmo Lezama, nas recamadas volutas da escritura de Carpentier, na erotografia cenogréfica de Severo Sarduy, na vertiginosa politecnia calemburistica de Cabrera Infante, nas citcum-veredas metafisico-linguageiras do Grande Sortéo, de Guimaraes Rosa, na eidética metaférica de Clarice Lispector, no idioleto amoroso (“gliglico") e na combinatéria aberta deRayuela, de Julio Cortézar. No espago literario francés (até nao faz muito avesso ao reconhecimento do Barroco e refratario — veja-se a algidez do “Nouveau Roman” — a “revolugéo da palavra’ joyceana, como se Rabelais, 0 proto-Joyce da Renascenga, ndo tivesse sido um escritor de lingua francesa), Lacan reconjugou escrituralmenteGéngora e Mallarmé e, assim fazendo, por um viés que se impunha naturalmente, rememorou (co-memorou) também o criador da “Dive Bouteille”. Nessa reconvergéncia, a *meandertale” joyceana, com a sua proliferagao neolégica — “the pantaglionic affection’ — acaba servindo de territério laboravel a labirintica diagramagao espiritual do “syntaxier’ de Valvins e as serpentinas convolugées hiperbaticas do cordovés luciferino. Le style c'est lautre” ("homme 4 qui fon s‘adresse”), poder-se-ia dizer, num lance de bufoneria transcendental, abreviando em motto a frase de Buffon parafraseada por Lacan (donde minha variante parafénica: "Le stylo c'est Iane”...). © estranhamento, a outridade radical em matéria de linguagem, se chama poesia. Nao a toa uma psicandlise, como a repensada por Lacan na fonte lustral de Freud, prope uma postica, “qui incluirait la technique, laissée dans lombre, du mot d'esprit’. Engenho © arte(Camées, 0 Camées “manoirista’, que influenciou Géngora). Agudeza y arte de ingenio (Gracin). Essa psicanalise interessa, desde logo, aos poetas, No Brasil, ndo por acaso, uma das primeiras referéncias ao autor de “L’instance de la lettre dans linconscient ou la raison depuis Freud" — justamente aquela passagem em que Lacan refuta 0 dogma saussureano da linearidade da linguagem, para propor uma escuta polifonica e partitural da cadeia do discurso, modelada na poesia -, esta em meu ensaio de 1968, “Comunicacao na poesia de vanguarda® (A arte no horizonte do provavel, S, Paulo, 1969). Pois Jacques Lacan, escrevendo em 1956 (Situagao da psicandlise e formagéo do psicanalista), deixou expresso: [...] ndo ha forma por mais elaborada do estilo em que o inconsciente nao abunde, sem excetuar as eruditas, as conceitistas e as preciosas, que ele nao desdenha mais do que no o faz o autor destas linhas, 0 Géngora da psicandlise, pelo que dizem, para servi-los. (of. Escritos. Perspectiva, 1978. Na pioneira tradugao de Inés Oseki-Dépré, revista por Regina e Miriam Schnaiderman.) Mais tarde - cerca de 17 anos mais tarde -, no Livro 20 do seminario (texto estabelecido por J.-A. Miller, Paris, Seuil, 1975; verso brasileira de M. D. Magno, Zahar, 1982), numa reflexdo especificamente intitulada Do Barroco, tendo por motto: “Lé ou ¢a parle, ¢a jouit, et ca sait rien”, o émulo franeéfono freud-joyceano ("Es Freud mich to meet Mr. Joyce!...) de Don Luis de Géngora y Argote, confessa (professa), reiterando 0 seu pronunciamento anterior: “Como alguém percebeu recentemente, eu me alinho — quem me alinha? Sera que é ele ou serd que sou eu? Finura na alingua — eu me alinho mais do lado do barroco" Nesse pronunciamento, figura — faz figura — a seguinte definicao paradigmal do fenémeno artistico enfeixado no controvertido conceito de barroco (para alguns derivado do espanhol barrueco/berrueco, designativo de uma “pérola” de forma irregular; para outros, de um tipo de silogismo escoladstico tomado como protétipo de raciocinio abstruso): “O barroco é a regulagao da alma pela escopia corporal.” Escopia, scopie: abreviacdo de radioscopie no jargao familiar da medicina (Petit Robert); de skopés,skopia, skopé, skopéo: 1. “observar do alto ou de longe”; 2."visar a, ter em vista, ter por escopo"; thar, examinar, considerar, observat 4, "tefletir em, ponderar, examinar, julgar”; skopé é a designagao do “lugar de onde se observ , do “observatério”, e da propria “agdo de observar skopia é sindnimo de skopé, em ambos os sentidos do vocabulo, significando ainda, por extens&i culminant ‘ponto (BAILLY, A. Dictionnaire Grec/Frangais) Lacan vai adiante em suas barroconsideracées: "Seria preciso, alguma vez — nao sei se jamais terei tempo —, falar da musica, nas margens. Falo somente por ora do que se vé em todas as igrejas da Europa, tudo que esta pregado nas paredes, tudo que desaba, tudo que é delicia, tudo que delira. O que chamei ainda ha pouco de obscenidade — mas exaltada.” E culmina numa — ou melhor - se encaminha ao ponto culminante de uma — pergunta zenital (depois de delinear a “obscena’ do barroco), nao respondida e posta estrategicamente em suspenso no corpo de sua digressao: “Eu me pergunto: para alguém que vem dos cafundés da China, que efeito isso dever ter para ele, esse cascatear de representacées de martires? Eu diria que isso se reverte. Essas representagdes so, elas préprias, martires — vocés sabem que mértir quer dizer testemunha — de um sofrimento mais ou menos puro.” “Sob o signo dos pequenos acasos”: Li Shang-Yin Sim — retomo eu agora a quaestio interrupta — que diria um chim, um talvez mandarim num quig palanquim, perdido nos confins da China, sobre 0 barroco ibero-italo-tedesco, infiltrado, na origem, de veios arabico- andaluzes e proliferado, no depois, em exuberantes filiplumas hispano-luso-afro-amerindias? Sim, “em puridade de verdade" fulano-da-chin: oeste? para arrazoar com a Rosa de “Orientagao" - que diria do nosso aurilavrado barroco mestigo um "7 Isso ~ 0 excesso barroco ~ que diria dele, se dissesse, sim ou no, do seu leste para nosso Vamos supor que esse fulano houve, E se chamava (0 chim) Li Shang-yin, Viveu de 812 a 858 da era que convencionamos chamar “crista Introduzamos, a seguir, um sindlogo atual, James J. Y. Liu, autor de The Art of Chinese Poetry (1962), contempordneo do nosso neogongérico Doktor La (na 2." tonalidade, o ideograma respectivo significa “mau, Perverso, intratavel’ e ainda “lanhar’, “cortar’; na 5.*, 6 0 som que transiitera a palavra “latim”; na 3.*, designa um “lama”, sacerdote do budismo tibetano) Kan (na 4.* tonalidade, “olhar para, examinar, observar’; na primeira, “nicho para um idolo’, “sacrario"). Acontece que o Prof. J. Y. Liu compara - no sem um certo desdém supercilioso — 0 nosso Shang-yin com o “minor poet" (sic) Mallarmé: “Poetas menores podem seja explorar a experiéncia humana num grau maior do que a linguagem, como, por exemplo, Wordsworth ou Po Chii-|, seja fazer 0 contrario, como no caso de Li Shang-yin ou Mallarmé Para esse chim-ndlogo suspicaz, docente associado da Universidade de Chicago, que admite, nao obstante: “sem grandes pensamentos ou emogées profundas, pode-se ainda escrever boa poesia, inspirada pelo mero amor das palavras”, o extravagante e sofisticado Li Shang-yin merece ser classificado como um “poeta barroco chins do século nono". E 0 que se Ié no precioso (e recatadamente antipreciosista) volume dedicado por Liu ao nosso fulano-chim (The poetry of Li Shang-yin/Ninth-Century Baroque Chinese Poet, The University of Chicago Press, 1969), 0 Prof, Liu nao usa o termo arbitrariamente, Esta consciente dos riscos que corre ao extrapolé-lo, geogrdfica periodologicamente, de seu contexto europeu ou europeizado para o chinés. “Estou ciente dos humerosos significados dessa nogao e das controvérsias que a cercam (cf. Wellek, Concepts of Criticism). Mas penso que seré menos despistador aplicar 0 conceito de barroco a Li Shang-yin, do que usar outros termos de origem ocidental como romantismo ou esteticismo. Nao apenas em razéo dos tragos acima apontados (sutileza, obiiqiidade, ambigiiidade, conflto, tensao entre sensualidade © espiritualidade, busca do extraordinario © do bizarro, empenho em obter a intensificagao do efeito, tendéncia ao ornato e a elaboragéio), comumente considerados tipicos do barroco, mas também porque, cronologicamente, Barroco se refere a arte e a literatura européias do séc. XVII, a0 periodo entre a Renascenga e neociassicismo do séc. XVIII. Ora, esse periodo parece oferecer certa similitude com a idade na qual viveu Li Shang-yin. O séc. IX na China, como o séc. XVII na Europa, foi uma era de perplexidade intelectual [...]. No séc. IX, a sintese final entre confucionismo, taoismo budismo, conhecida como neoconfucianismo, ainda nao havia ocorrido, e os intelectuais, muito provavelmente, deveriam ter experimentado conflitos mentais irresolvidos. Tais confltos so perceptiveis na poesia de Li Shang- yin. Pode-se notar o embate entre, por um lado, 0 puritanismo confuciano e 0 ascetismo budista, e, por outro, 0 hedonismo sibarita associado com a verso popular da busca taoista por uma imortalidade fisica’. No plano da historia cultural, 0 paralelo também caberia. James Y. Liu divide em trs épocas a poesia T'ang: (a) fase formativa (ca. 618.710), marcada pela experimentagao e por uma relativa ingenuidade; (b) fase de maturidade plena (ca. 710.770), caracterizada por uma grande vitalidade pela perfeigao técnica; (c) fase de sofisticagéo (ca. 770.900), tipificada pela tendéncia ao exuberante ou ao grotesco. Essas épocas teriam similares no quattrocento, no cinquecento e nobarroco, se fosse considerada a periodologia italiana; a terceira fase, da “sofisticagdo", corresponderia, num paralelo com a literatura inglesa, & idade dos “poetas metafisicos" (Donne, Marvell, Crashaw). Apés 0 século IX, assinala finalmente Liu, sobreveio 0 “neoclassico” periodo Sung (960- 1279), cujas notas distintivas so, como de esperar, o “conservantismo”, a énfase “racionalista’ e o culto da “imitagao” dos poetas antigos, em detrimento da “expressao espontanes ObsessAo do bicho da seda Assim debuxado nosso contexto chim, vamos (ou voltemos), por um “cémodo vicio de recirculagao" (a Joyce), a0 ponto: ao poema. Pois precisamos de um “ponto culminante” (skopia) e de uma “testemunha” (martys) — esta de cabaia ¢ rabicho, preferentemente - para aqui perfazer 0 gozoso ofertério do texto A “trans-criagao”, como eu a concebo — operagao textual de hibridizagao e voragem (devoragao) da outridade — se presta, como nenhuma, a esse rito erotofagico. Pois disse o Rosa na sua prosa: “O chinés tem outro modo de ter car Jé em “Uma arquitextura do Barroco” (1971, In: A operago do texto, Perspectiva, 1976), reinventei em brasilianés 0 poema Wu T7 (Sem titulo), dado por “notoriamente obscuro” e estudado com minticia por J. Liu em seu cit. The Art of Chinese Poetry. E 0 poema do “amor dificil", do “amor contrariado”, singularizando-se por um verso extremamente belo, que tira partido de homofonias existentes na lingua chinesa entre os vocabulos “morte” e “fio de seda”. Resolvi-o paronomasticamente em: “Bichos-da-seda se obsedam até a morte com seu fio” Quando se Ié a pedestre e explicativa versdo que o Prof. Liu propée para essa linha soberba, a saber: “The spring silkworm will only end his thread when death befalls” (algo modificada, melhorada felizmente na antologia de 1969: “The spring silkworm’s thread will only end when death comes",inferior, ainda assim, a de Graham, 1965: “Spring's silkworms wind till death their heart's thread"), compreende-se porque esse “scholar” irritadigo subscreve a banalidade, sempre repetida pelos versejadores de domingo, de que a tradugéo de poesia deveria visar a um “4ureo meio-termo” entre a “literalidade” e a “transposicdo livre”, para assim evitar os “extremismos” da liberdade “excessiva’, que arrisca resullar num “novo poema”, desrespeitoso ao aurético original... Entende- se, também, porque Liu dedica a Pound (“o inventor da poesia chinesa para 0 nosso tempo”, Eliot dixil) apenas uma escassa referéncia (a costumeira indigitagéo dos “erros" do método pound-fenollosiano de abordagem da Poesia chinesa; ver, a propésito, minha introdugao a Ideograma — Légica/Poesia/Linguagem, Cultrix, 1977) Percebe-se, finalmente, por que Liu sente-se compelido a polemizar com A. C. Graham, um “scholar’ de outra cepa, aberto ao novo, capaz de reconhecer o aleance da revolug&o tradutéria levada a cabo por E. P. em Cathay, 1915; Graham, que nos deu, alé agora, as esteticamente mais eficazes tradugées em inglés de Li Shang-yin, cf. Poems of the late T'ang, Penguin, 1965. (Ver, sobre as incompreensivas objegdes de Liu a Graham, acusado de transposicées “cripticas’ e “ambiguas", a percuciente refutagao de Eric Sackheim, outro Poundiano, em The silent Zero, in search of Sound,Grossman Publishers, N. Y., 1968) O dom do poema ou se nao sim Texto ideogréfico e transiterago fénica segundo | Cheng, L'éeritere peétique chincise Paris: Sel, 19 U Shang-yia A Dama da Lua 0 para-vento de nuvem 2 ensombra o lume da lémpada se inclina lenta a Via-Lactea a estrela da manha declina Ch’angO agora arrependida do roubo do filtro celestial? entre o mar esmeralda e o céu azul © poema aqui e agora “reimaginado” recebeu, na coletanea de Graham, o titulo The Lady in the Moon. De minha parte, redenominei-o A dama da lua, Além da tradugo de Graham, a mais exitosa das que compulsei, vali-me da verso de James Liu (trata-se do poema n.° 28, intitulado “Ch’ang-0", no volume dedicado a Shang- yin). Auxiliou-me, ainda, a transposigao francesa de Frangois Cheng (L’écriture poétique chinoise, Seuil, 1977), realizada em colaboragéo com Eugene Simion. Na “antologia de poemas dos T'ang’, que complementa o livra de F. Cheng, figura 0 original chinés do poema, de cujo texto ideogréfico tirei todo o partido que pude, segundo 05 critérios por mim expostos nos estudos “A quadratura do circulo” (1969). In: A arte no horizonte do provavel. Perspectiva, 1972; “Trés verses do impossivel", Folhetim, n. 583, Folha de S.Paulo, 8 abr. 1988. Graham, a guisa de epigrafe, traz as seguintes citagSes: "Ch’ang-O roubou a erva da imortalidade e fugiu para a lua, Como a lua é alva, chamam-na a Beleza Branca”. E: “No terceiro més do outono, a Donzela Negra emerge para enviar rumo a terra a geada e a neve" (cf. Tu Fu, As devastagdes do outono, 4). Frangois Cheng comenta: “A deusa Ch’ang-O furtou o elixir da imortalidade, que Hsi Wangmu, a Rainha-Mae do Ocidente, havia destinado a seu marido Hou Yi, e se refugiou na lua; foi condenada a permanecer nela para sempre. Ha no texto uma possivel alusdo a uma ‘reclusa’ (dama palaciana ou monja taoista), com a qual 0 poeta teria mantido um amor interdito” James Y. Liu dé uma variante algo diversa da lenda: Ch’ang-O teria roubado o elixir da vida pertencente a seu marido, 0 rei Yi, escondendo-se na lua. Liu admite a interpretagao de que a mulher biograficamente evocada no poema, sob 0 véu “alusivo", fosse mesmo uma professa taofsta. Na tessitura entramada do texto, vé desenhar- se um duplo simbolo: por um lado, a monja, na solidéo do claustro, estaria lamentando ter proferido o voto de castidade, assim como Ch’ang-O, enclausurada na lua, estaria arrependida de ter repudiado o amor humano em troca da imortalidade; por outro, a evocago da deusa faz pensar na beleza da monja, solitéria a luz da lua. Quanto a associagao biogréfica, apesar de considerd-la plausivel, Liu adverte: Tu Fu (712-770) cantara, precedentemente, a solitude meditativa da deusa lunar (também chamada Heng-O), sem que ninguém houvesse vislumbrado na alusao um “caso” amoroso do poeta com uma “séror” taoista No verso 1 desta quadra heptassilabica (7 caracteres por linha), os dois primeiros ideogramas, yiin-mu, correspondem ao que se poderia traduzir por “madrepérola’, “nacar’, “mica; literalmente: “nuvem” + *mée", “mae da nuvem", como dizemos, via latim, “madrepérola’; “esséncia das nuvens", esclarece oMathew’s Chinese- English Dictionary, nos itens 27 e 44 do verbete dedicado ao ideograma n° 7750 -ytin? — “nuvens’ especificando que se trata de um circunléquio para dizer simplesmente “mica”. Liu assinala um trocadilho entre yiin-mu (‘mae da nuvem’, ou ~ proponho ~, *madrenuvem") e yiin-p'ing(“para-vento”, “quarda-vento”, “bastidor” feito de nuvem), Procurei resumir 0 jogo (na realidade, uma compressao fonossemantica) com a expressao "o péra-vento de nuvem" (a titima palavra reverbera em “lume"). No verso 1, “para-vento” esté expresso nos dois ideogramas seguintes: p'ing’ (n.° 5298 noMathew’s: "bombo", “tabua ornamental’, “protegao", “escudo"); feng ("vento"), Vém, entao, chu* (‘candeia’, “lume") ying ("sombra") e shen" (n.° 5719, “profundo"; donde a expresso dicionarizada no item 8 do verbete “penetrar profundamente em”). © verso 2 apresenta um ideograma composto: ch’ang-he: 0 carter n.° 213 Ch'ang.? “longo", um pictograma, abreviado em sua forma atual; representaria, originalmente, “madeixas de cabelo tao longas que deveriam ser atadas com auxilio da mao e de um prendedor em forquilha’, cf. Wieger, Chinese Characters; com a aposigao de he (ho,? n° 2111, “rio"), passa a significar “Rio Longo” ("Rio Celeste") ou a nossa “Via Lactea” (ver o item 38 do verbete 213). Seguem: Chien (tsien*), “gradualmente” e também “fluir” (n.° 878); Luo (Io), n.° 4122: “cair’, como folhas (lao), inclinar", “desabar";hsiao-hsing, um composto que significa “estrela da manha" (de hsiao®, 1.2 2594, @ hsing,' “estrela", n.° 2772); chen (n.° 332, “afundar"), Neste verso, desenham-se, justapostas na imagem do ogu notumo jé préximo @ hora do amanhecer, a Via Lactea (que lentamente declina) e a estrela da manhé (que se pée quando o dia alvora). Dos sete ideogramas (cada um correspondendo a uma silaba) que 0 compdem quatro (0 2°, 0 3°, 0 4.°, numa seqiiéncia, e depois 0 7.°) exibem, a esquerda, o radical n.° 85, “agua”, na sua forma pictografica abreviada: “filetes" escorrendo, “6ndulas numa superficie Iiquida (of. Wieger). Estes “harménicos” (Fenollosa) dao ao verso, no plano visual-grafematico, uma radiosa fluéncia. Ideoscopia dos fulgores inter-relacionados do tragado estelar na abéboda celeste. Don Luis de Géngora - da Fabula de Polifemo y Galatea —, que escreveu os versos luminescentes: Salamandria del Sol, vestido estrellas, latiendo el Can del cielo estaba, cuando...., teria reconhecido, com reveréncia, 0 seu precursor chinés do século IX, se dele tivesse tido a mais minima noticia... © 3. verso projeta a duplice imagem, antes referida nestes comentarios, da solitéria deusa lunar Ch’ang-O (os dois primeiros ideogramas da linha), e/ou “monja taoista", permanentemente afligida de remorsos, pelo roubo do celestial filtro da imortalidade, ou, no caso da “monja", pelo juramento de castidade, que a fazia, qual “séror da solidao’, experimenter, noite apés noite, em seu “pudor tremulante de estrela" — ver a Herodiade mallarmeana “trans-criada” por Augusto de Campos emLinguaviagem, Compagnia das Letras, 1987 - 0 “horror de ser virgem™ Finalmente, 0 4.° verso encerra toda a composi¢éo num engaste “ensafirado” (Dolce color d‘oriental zaffiro, Dante): pi-hai ch’ing-tian yeh-yeh hsin “esmeralda-mar azul-céu noite-noite coragao”, numa transposi¢do literal, ideograma a ideograma. Frangois Cheng anota: “Entre 0 céu e o mar brilha, todas as noites, esse coragdo amoroso que sofre. O verso, tal como se apresenta em chinés (NB: com o recurso da omisséo do verbo, mediante 0 qual “os elementos coexistem, ao mesmo tempo que se implicam"), tem uma forga presentificadora bem maior do que se ele fosse coadjuvado por uma indicagao verbal". Em colaboracao com E. Simion, Cheng prope a seguinte tradugao em francés: “Mer d’émeraude, bleu du ciel, nuits éclatant d’amour...". James Y. Liu sugere: “The green sea — the blue sky— her heart every night!" A. C. Graham: “Between the blue sky and the emerald sea, thinking, night after night?” verso que afivela, como a um broche, os ideogramas que rematam esta breve composigo, digna, como raras, de figurar no escolhido lapidario daqueles “gioielli unici"celebrados por Ungaretti no seu tributo a Mallarmé: [-.-Jentre o mar esmeralda e o céu azul noite-apés-noite um coragao absorto. Em minha solugao/resolugao (no sentido musical deste termo), MAR se projeta anagramaticamente em esMeRAlda, Esta palavra, por sua vez, recolhe a titima figura fonica de celestiAL, deixando-se sublinhar por um esquema aliterante em torno do /L/ (celestial, esmeralda, azUL) e das sibilantes que se sucedem nessas mesmas palavras e em Céu. Uma permutagéo da vogal tinica substitui o reiterado /a/ de -AL, pelo Jul velar de azUL. “Noite-apés-noite”, solidarizando seus elementos num mesmo sintagma gragas ao hifen, replica ao duplo ideograma yeh-yeh (n.° 7315, yeh.4 ‘noite’, “escuridéo"; na sua etimologia pictogréfica, este carater exibe, segundo Wieger, 0 signo da lua sobre 0 horizonte, anunciadora do repouso noturno). A paula velar inclui também 0 /o/ de Ch’ang-O, repercutindo em agOra rOUbo, para finalmente incidir duas vezes em nOlte e no par cOrago absOrto, com reforgos aliterantes em /r/ e na dental It A derradeira imagem do poema — sintese metonimica da deusa/monja lunar e de sua afligéo sem lenitivo ("se tudo 0 mais renova, isto é sem cura”, Sé de Miranda, maneirista luso), me foi sugerida pela prépria analise do ideograma terminal da linha, hsin’ (n.° 2735): quatro tragos de pincel, uma pintura abreviada de “coragao" Constitui 0 radical n.° 61: “coragao”, "mente", “motives”, “intengao", “afeigées’, “centro”. Quando Ihe sobrescrito © pictograma de “cabeca”, “cranio” (que também se 16 hsin, porém no 4.° tom) forma szil' ou ssi" (n.° 5580) € significa “pensar”, “refleti", “contemplar’, “considerar’ (em latim,considerare, de sidus, eris, numa acepgao primeira “observar os astros"). No contexto, hsin' tem uma conotacao meditativa, nostélgica, “penserosa”, que procede da interpretacao etimolégica de ssut’ o fluido vital do coragao ascende a cabeca reflexiva (Wieger) Este mesmo ideograma, ssu," integra-se por sua vez num outro mais completo, (i (4292) e ganha mais um matiz conotativo: “ansiedade", “estar ansioso’... Dos cafundés do sim E entdo, como expde 0 doutor Lacan, ao dispor para nés a ob(via)scena barrocolidica: a alma (a cabega, 0 intelecto) se regula pela skopia (observacao) do corpo (coragao). Na hierarquia poética tradicionalmente aceita, o abarrocado Li Shang-yin (yin 3, 0 3.° ideograma de seu nome, significa ‘enigma’ ...) costuma ser considerado como inferior a Tu Fu. Este tltimo, seguramente, & 0 cldssico mais eminente da dinastia T'ang. E no entanto — como pondera A. C. Graham — pertence a Shang-yin 0 condao de tocar mais fundo do que qualquer outro a sensibilidade moderna, pelo menos aquela ocidentalmente retemperada aos revérberos sutis da alquimia mallarmaica. Ao “artesanato furioso”, que os herdeiros dessa sensibilidade reclamam, responde @ maravilha a “imagética erética’ do cantor da desconsolada Ch’ang-O. Um filtro sedutor, pervasivo, capaz de insinuar-se em nossas “profundezas instintivas”, portador de uma “vitalidade independente”, que se projeta para além do chamalote de “alusdes" de que se recamam os versos do poeta, Assim, na rutiléncia estelar de suas representagdes em cascata, barroquiza-se o nosso Li, E caligraficamente responde com um “sim” & provocativa pergunta do Mestre La (K’an). Gozo Chim? Por que nao? Sim. Se nao. FIM Haroldo de Campos e Joseph Attié — Sao Paulo, 1985 Haroldo de Campos. Poeta, ensaista e tradutor de poesia. Ultimos livros: A educagéo dos cinco sentidos(Editora Brasiliense) e, com Octavio Paz, Transblanco (Editora Guanabara). Este ensalo de Haroldo de Campos foi publicado originalmente na revista Isso - Despensa Freudiana, n. 1, 1989, dirigida por Sérgio Laia e Wellington Domingues Tibircio, editada por eles e por José Maria Braga. A Isso se dedicava a conexao psicandlise-cultura e foi promovida pelo Simpésio do Campo Freudiano, em Belo Horizonte. Haroldo de Campos enviou gentilmente este ensaio para publicagdo nesse primeiro e Unico nimero da revista. A importancia de Barrocoliidio e 0 modo generoso com que ele foi destinado a (sso justifica sua reedicao em Derivas Analiticas, bem como a homenagem que fazemos ao saudoso poeta e tradutor que redigiu. Preservamos aqui a ortografia utllizada por H. de Campos em 1989, Imprimir,

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