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EDGAR MORIN © Paradigma Perdido __anaturezahumana| 1. “Sapiens-demens’ ‘A era do cérebro grande comega com o homem de Neanderthal, jé sapiens, que dé depois lugar ao homem actual, nico e wltimo representante da familia dos hominideos ¢ do género homem sobre a terra, Quando aparece 0 sapiens, 0 flomem jé 6 socius, faber, loquens'. Portanto, a novidade que 0 sapiens traz a0 mundo n&o consiste, como se julgava, na Sociedade, na técnica, na ldgica, na cultura, Consiste, pelo fontrario, nequilo que até agora se considerava como epifenomenel, ou que imbecilmente se saudava como sinal de espiritualidade: a sepultura ea pintura. © que diz a sepultura Os timulos mais antigos que conhecemos sao neanderthaleses?. Eles indicam-nos uma coisa muito diferente de um simples enterramento para proteger os vivos da decomposicao (para isso, 0 cadaver poderia ter sido Gbandonado a alguma distancia, ou Tanyado a égual. © morto std numa posicao fetal (0 que sugere uma crenca no seu renascimento), por vezes até esta deitado sobre um leito de flores, como indicam os vestigios de pélen numa sepultura neanderthalesa descoberta no Traque (0 que sugere uma ‘cerimonia fiinebre); por vezes, 0s 0ssos esto pintados com ocr ‘a que sugere funeral ou consecutivo a consumo canibalesco, ov lui segundo funeral apds a decomposi¢ao do cadaver); os despojos estao protegidos com pedras e, mais tarde, o morto festa acompanhado de armas ¢ uiimentos (o que sugere crenga + em lati: falador. (M. do Td 1 ute Garmlo (40000 ends), Capela dos Santos (45 000-38.000 anos! Monte Cireeo (35000 ancs!. EDGAR MORIN na sobrevivencia do morto sob a forma de espectro corporal com as mesmas necessidades dos vivos") ‘A sepultura neanderthalesa testemunha néo sé uma irrupeao da morte na vida humana, mas também modificacdes antropoldgicas que permitiram e provocaram essa irrupcao. 1, Uma nova consciéncia Antes de tudo, revela-se, incontestavelmente, um progresso do conhecimento objectivo. A morte no s6 é reconhecida como facto, como a reconhecem os animais (que, além disso, j4 880 capazes de «fazer de mortos» para enganar o inimigo), nao s6 é ressentida como perda, desaparic&o, leso irreparavel (que pode ser ressentida pelo simio, pelo elefante, pelo cao, pela fave), mas também é concebida como transformago de um estado noutro estado. Para mais, a morte jé é provavelmente concebida, no certamente como uma le da natureza, mas como uma imposigdo quase inevitavel que pesa sobre todos os vivos. 1A hlpétese de existincis duma crenca no renascimento do morto ou nna sobrevivéncia sob a forma de espectro corporal (duplo) provém do facto fe serem estas a5 duas orencas fundamentals da humanidade em relacio ‘to lém, pole se encontram, quer misturadas quer isladas, em todas as socie ddes arcaleas que se conhecom, de constitulrem as bass de todas as crn {as ulteriores Morin, 1972) hipétese dat ceriméalas inebres 6 igualmente {ugerida pela sue universlidada, sob todas as formas, nas populagbesarcai 0 PARADIGMA PERDIDO: A NATUREZA HUMANA 2. 0 mito ea magia Ao mesmo transformacéo, conscidncia_realista_da ftaneamente produtos e co: pprodutores do destino humano, ‘Ao mesmo tempo que o tumulo nos assinala a presenga ¢ @ forca do mito, os funerals assinalam-nos @ presenca e a forca da magia. Com efeito, os funerais so ritos que contribuem para operar a passagem @ outra vida de um forma conveniente, isto 6, protegendo os vivos contra a irritagio do morto (de que ja talvez resulte 0 culto dos mortos| ¢ contra a decomposicao da morte (de que jé talvez resulte 0 luto que isola os préximos do defunto). Assim, hé todo um aparelho mitolégico-magico que emerge no sapiens e que se encontra mobilizado para enfrentar a morte 3. A brecha antropolégica Os ritos da morte Treabsorvem e exorcizam um traumatismo provocado pela ideia da redugao 20 nada, Os funerals, ¢ isto em todas as sociedades: sapientais que se conhecem, traduzem ao mesmo tempo uma crise e o ultrapassamento dessa crise, por um lado, @ dilaceragao e a angustia e, por outro lado, a esperanca e a consolacao, Portanto, tudo nos indica que 0 Homo sapiens atingido pela morte como por uma catdstrofe irremedidvel, que ‘vai trezer consigo uma ansiedade especifica, a angiistia ou horror da morte, que @ presenca da morte passa a ser um problema vivo, isto é, que trabalha a sua vida. destas duas consciéncias, mas sim a sua uniéo confusa numa 95 EDGAR MORIN dupla consciéncia; ainda que a combinagao entre essas duas consciéncias seja muito variavel, consoante os individuos e as sociedades [como a impregnacdo da vida pela morte), nenhuma delas anula verdadeiramente a outra, e tudo se passa como se 0 homem fosse um simulador sincero em relagio a si proprio, um histérico segundo a antiga definicao clinica, tranformando em sintomas objectives aquilo que provém da sua perturbacéo subjectiva. Assim, entre, Tniransponivel, que, posteriormente, todas as religiSes e filosofias véo procurar, de mil maneiras, transpor ou aprofundar. 0 homem ja dissocia efectivamente 0 seu destino do destino natural, embora esteja legitimamente persuadide de que a sua sobrevivéncia obedece as leis naturais do desdobramento e da metamorfose. Fxistem, portanto, no homem, interferéncias entre uma objectividade mais rice e uma subjectividade mais rica, e isso porque ambes elas correspondem a: 4. Um progresso da individualidade s, @ preciso que existam antensos lacos afectivos ¢ intersubjectivos para que estes se mantenham vives para além da morte; 6 preciso que exista desenvolvimento desse novo epicentra que é a consciéncia de si no mundo para exist consciéncia da brecha mortal, confluéncia entre afirmacio objectiva da morte e @ afirmacao subjectiva da amortalidade individual. Deste modo, a irrup¢ao da morte, no sapiens, ¢, ao mesmo tempo, a irrupco de uma verdade e de uma ilusao, a irrupcéo de uma elucidagdo e de um mito, a irrupgdo de uma ansiedade ede uma garantia, a irrupedo de um conhecimento objectivo e de uma nova subjectividade, e, sobretudo, a ligacdo ambigua entre ambos, E um desenvolvimento novo da individualidade e abertura duma brecha antropolgica. ‘A morte neanderthalesa, conhecida ha muito, mas 96 0 PARADIGMA PERDIDO: A NATUREZA HUMANA totalmente emperrada antropologicamente pela _vi unidimensional do homem racional, constitui uma formidavel revelacéo que lanca um clarao unico sobre a diferenga entre 0 sapiens e 08 seus predecessores, e uma luz permanente sobre a natureza do homem, na medida em que o extraordinério novelo de significagdes que deduzimos esté ligado ao derradeiro desenvolvimento do cérebro do hominfdeo e a constituigao real do cérebro de sapiens’. (© que diz a pintura Pode supor-se que, no homem de Neanderthal, 0 ocre vermelho nao é utilizado s6 para pintar as ossadas dos mortos, ‘mas também para efectuar pinturas sobre o corpo humano ¢ para desenher simbolos ou sinais sobre os mais diversos objectos. De qualquer maneira, é certo que, no perfodo magdaleniano, a pintura mural com ocre e com negro de manganés, assim como a gravure na rocha ou no osso, é uma arte muito desenvolvida ¢ que os simbolos, sinais e grafitos s80 utilizados correntemente. ‘Durante muito tempo, limitémo-nos a admirar, nesses fenémenos, 0 nascimento da arte, em vez de ler neles o segundo naseimento do homem, quer dizer, o nascimento do Homo sapiens. ‘Em primeiro lugar, 0 campo gréfico da humanidade pré- -histérica é muito vasto ¢ muito variado: nele coexistem o sinal convencional, 0 simbolo mais ou menos analégico, a figuragao extremamente precisa das formas vivas, ©, finalmente, a representagao de seres quiméricos ou irreais. Portanto, nao se trata de nos interrogarmos sobre uma arte, a pintura, mas de tentar fazer a grafologia do sapiens, * claro que tudo isto nto surpiu subita ¢ simultancamente no homem de Neanderthal. E muito porsvel que se tenha inciado um certo mimero de Ceracteritcas no Homo erectus. Estas puderam comecar a cristelizar, por ‘Gm lado, a partir de ui eanibalismo alimentar proprio do hominidoo carnl {oro que se incharia com sigaifcagBes afectivas ao consumir o parent ou 0 Inimigolapropriacdo das virudes do morta) por outro lado, partir da dupla Proocupecdo contraditinla de se desemberacar do cadaver (decomposicho) Ede guardar junta desi o morto efeigoado (conservagéo das assades) fins! fenta, «partir do regresso dos mortos nos sonhos 7 EDGAR MORIN 2. Por outro lado, a arte, quer dizer, destreza, habilidade, preciso, invengao no saber-fazer, que os predecessores do sapiens j4 tinham desenvolvido nas actividades praticas, designadamente na caca, aventura-se e desdobra-se num i campo novo, que € o das producdes préprias do espirito (imagens, simbolos, ideias), que designaremos aqui como ! nooldgicas, Qual € 0 sentido deste novo fenémeno? Aqui opdem-se geralmente duas interpretacées, uma que reconhece pura e l simplesmente o aparecimento de uma actividade artistica e de uma via estética, que encontram a finalidade em si préprias, e i @ outra que integra a nova arte das formas numa finalidade || ritual e magica, Na nossa opiniéo, padem muito bem combinar- “se as duas interpretacbes, tanto mais que i obras (Morin, 1956, 19721 3. Como nos revelou a sepultura, a magia irrompe no sapiens. Por outro lado, o estudo das sociedades arcaicas mostra-nos que a decoracéo, 0 adorno, a escultura, a pintura, podem ter valor de proteccao e de sorte e encontrar-se ligadas @ crencas mitolégicas e @ operacdes rituais. E por isso que se | supés que as pinturas rupestres de animais, legadas pela pré- historia, correspondiam a ritos magicos preparatérios da caga. } Para compreender essa magia, precisamos de retomar o |) tema do eduplo» que ja emergiu a propésito da morte. A I existéncia do duplo & atestada pela sombra mével que ‘acompanha cada um, pelo desdobramento da pessoa no sonho e i desdobramento : se : oe men 98 0 PARADIGMA PERDIDO: & NATUREZA HUMANA ‘aqui que podemos compreender a ligacdo entre a imagem, oimaginario, a magia, o rito. ‘A etologia jé nos revelou a oxisténcia de rituais animais, que so consequéncias de comportamento simbdlico, com vista a desencadear uma resposta da parte de um receptor exterior. 0 proprio do ritual magico, no Homo sapiens, é de se dirigir nao 86 directamente aos seres de que se espera uma resposta, mas também ds imagens ou simbolos, que se supde localizarem em si, duma certa maneira, o duplo do ser representado. Para compreender mais profundamente como uma imagem pode seeder &exisencia na qulidade do sduplo€ precioo ed site dunia enna’ res ylavra ye font peo porta pelo desenho, 7 (08 objectos do ambiente, adquiriram, com 0 Homo sapiens, uma segunda existéncia, & existéncia da sua presenca no espirito fora da pereepgio empirica, sob a forma de imagem mental, andloga a imagem que forma a percepcio, visto que ndo se trata sendo dessa imagem rolembrada. Daqui em diante, toda o significante, incluindo o sinal convencional, transportaré potencialmente a presenga do significado (imagem mental) ¢ este wiltimo poderd confundir-se com 0 «referentes, isto é, com o objecto empirico designado. Séo, evidentemente, 0 desenho e a pintura qrealistas» que levam a perfeicao a adequagdo entre o significante, como, por exemplo, um bisonte, a imagem mental do bisonte e 0 bisonte empirico. 0 mito do duplo opera a racionalizagdo que permite explicar ao mesmo ‘ a (0 homem ndo vai comerciar 99 EDGAR MORIN ‘unicamente por meio dos sinais, dos simbolos, das imagens; vai também comerciar com eles; aqueles passam a ser seres intermedidrios que se interpdem entre o ambiente ¢ 0 sujeito, participando num e no outro, alimentando-se de um e de outro: Ponstituem uma esfera nooldgica que, daf em diante, val Gnvolver a marcha da humanidade como uma nuvem escura. "Podemos, assim, comecar 2 compreender as condicées de emergéncia da magia no Homo sapiens. Faltava, primeiro, que @ Linguagem e a escrita pictogréficas mantivessem uma dupla texisténcia dos seres e das coisas. Mas essa condicio necesséria nao era suficiente, Faltava também um mito que confirmasse ¢ explicasse a realidade viva das imagens mentais ou materiais, © fesse mito do duplo talvez tenha sido cristalizado com a nova consciéncia da morte, Provavelmente, também faltava (mesmo que em seguida esta condigéo deixe de ser absolutamente fadispensével) que a imagem desenhada, gravada ou pintada pudesse constituir um substrato material para a operagio mégica, que se vai dirigir a0 eidolon' por gestos simbélicos, por acqdes mimadas, por palavras e cantos rituais. Desde essa fitura, est assegurada a comunicagdo entre a imagem-objecto @ a coisa objectiva, e a magia pode desenvolver-se utilizando as Girtudes eficazes do ritual. Assim, as pinturas de Lascaux e de ‘Altamira ndo foram «utilizadas» por operacies magicas. Elas sao um elemento constitutivo da magia. Como vamos ver, compreende-se melhor que to, 0 que o grafismo mural nos revela 6 2 ligacdo imaginéria com 0 mundo. mito ea magia, quer dizer, uma organizacdo ideologica ¢ pratica da ligacio imaginaria com o mundo. Nés descobrimos, Fortanto, que imagem, mito, rito, magia, s8o fenémenos + Em grego no original: significa simagem» e & 2 origom de sidolo. (do 7) 0 PARADIGMA PERDIDO: A NATUREZA HUMANA fundamentais, ligados ao aparecimento do homem imagindtio. ‘Dai por diante, mitologia e magia serdo complementares © associades a todas as coisas humanas, mesmo as mais biologices (morte, nascimento) ou as mais técnicas (a caga, 0 trabalho}; elas vao colonizar a morte e arrancé-la ao nada. 4. A magia, no entanto, néo esgota a significagio antropolégica daquilo que, sob um outro aspecto, é também a eflorescénoia de um novo universo estético. “Mas como abordar a estética? Ela ora nos surge como 0 Ultimo fruto da cultura, que desabrocha quando se liberta das finalidades magico-religioses, ora como uma qualidade universal ligada @ propria exuberancia da vida, ¢ que se desdobra nas floragdes vegetais, assim como nas carapagas, has Tamagens, nas plumagens, nos adornos das espécies animais mais variadas. ‘Também aqui nés vamos procurar ligar, em vez de opor, dois tipos de interpretagao. Tanto no dominio biol6gico como ‘no antropolégico, € quase impossivel isolar um fenémeno festético no estado «puray, Biologicamente, um tal fenémeno std sempre ligado a uma semiética, quer dizer que as formas, fas cores, 05 sons, constituem «mensagens», apelos sexuais, de jntimidagdo, de ameaga, etc. Antropologicamente, a estética tem sido quase sempre ligada a magia e a religido, e foi muites vezes utlizada para a seducdo, para o prestigio. E nos Gesenvolvimentos culturais mais evoluidos que desabrocha de forma relativamente auténoma, embora sempre de maneira incerta e fragil, a estética «pura», pelo prazer das formas, das cores, dos sons, da oscrita, a arte pela arte. ‘Pelo contrério, é nas suas caracteristicas radicais que & estética das formas vivas deixa de se deixar reduzir as fungdes feficazes, adaptativas, selectivas, e surge imanente do jogo neguentrépico da vida, que ¢ combinacéo, diferenciacdo, proliferacdo inventiva das formas. Assim se pode reunir o jogo Juxuoso da vida na sua orjgem e o jogo luxuoso da cultura no seu desabrochamento. ‘Mas o homem também contribui com uma caracteristice nova: nas espécies vegetais ou animais, o fenémeno estético festa inscrito geneticamente, € o individuo ¢ portador, néo produtor, de desenhos e de cores. No sapiens, trata-se de uma produgao individual, de inspiragao cerebral, executada por meio de uma técnica e de uma arte. Dai por diante, o cérebro humano apropria-se de um novo campo de competéncias @, 20 101 EDGAR MORIN mesino tempo, néo € s6 a imagem-percepgio, a imagem- ‘recordacao, que se vai espalhar e traduzir fora do cérebro nas obras figurativas, mas 6 uma também proliferagao criadora de imagens que se vai exprimir na invengao de formas novas e de seres fantésticos. Ao aparecimento do homem imaginério junta-se indissoluvelmente 0 aparecimento do homem ‘imaginante. sap oe ia ta reprodugio e esta invencao reverse n0 guadro da magia, da religido e, de uma maneira geral, das actividades sociais, mas vao satisfazer um prazer, uma emocdo, propriamente estéticas. Podemos supor que 0 Homo sapiens pré-hist6rico conhece € procura 0 gozo estético, A partir do momento em que toda a coisa tem uma dupla existéncie, uma objectiva ligada as operagées praticas, a outra subjectivae mental, o homem passa fa poder tanto dissociar como associar o aspecto utilitério pratico das coisas, por um lado, e, por outro lado, o sentimento ‘agradével que as formas delas podem suscitar. Mes isso s6 6 possivel porque a juvenilizacdo humana se traduziu, no adulto, pela manutengdo de uma sensibilidade infantil e Iudica, pelo alargamento e enriquecimento da sua afectividade, ‘Esse alargamento e esse enriquecimento afectivos vao igualmente traduzir-se em sensibilidade ao jogo das formas reais ou imagindrias, quer dizer, em sensibilidade estética ‘A sensibilidade as formas visuais ultrapassa largamente 0 dominiv propriamente artistico da pintura, do desenko, da escultura, e estende-se igualmente as formas naturais; a propria sensibilidade estética também ultrapassa largamente 0 Gominio das formas visuais e abre-se aos odores e aos perfumes, as formas sonoras (ritmos, miisica, canto) ¢ & expresso corporal (danca). J4 os chimpanzés, nos seus ecarnavais», tinham pré-descobrido o ritmo e a danca, ¢ & provavel que o canto, a musica e a danca encontrem no sapiens nao a sua origem, mas verdadeiramente o seu desabro- chamento e 0 seu completamento. Neste ponto, podemos tentar considerar, através da infinita diversidade das suas manifestagdes, 0 factor comum do Fenémeno estético. Quer seja contemplativa, activa, limitada & imagem, quer ultrapassando as imagens, quer dizendo exclusivamente respeito ao cérebro, ou pondo em ac¢ao todo 0 organismo (danga), a estética é uma relagdo que se estabelece 0 PARADIGMA PERDIDO: A NATUREZA HUMANA entre 0 sor humano e uma certa combinagio de formes Podemos aqui, por analogia, e talvez ndo s6 por enalogia, propor 0 termo ressonéncia, no sentido em que designa um Tenomeno pelo qual um sistema fisico em vibragao pode atingit Uma grande amplitude, quando a vibragéo excitadora se Gproxima de uma frequéncia natural desse sistema. A suisibilidade estética € bem uma aptiddo para entrar em Sewondneia, em tharmonias, em sincronismo, com sons, Qdores, formas, imagens, cores, que sd profundamente produzides néo’s6 pelo wniverso, mas também, daqui por Tfante, pelo Homo sapiens. Reencontramos aqui o grande {nisterio que liga uma ceracteristcafisica fundamental propria He qualquer sistema vivo (o cardcter oscilatério dos sistemas fneta-estavels) inclusivamente @ natureza ondulatéria da piysis, aquilo que ha de mais subiilmente «vibrat6rioy no PikShro do sapiens. & portanto essa sensibilidade, cujas Origens So fisicas @ neguentropicas, que a cultura vai pessar Simultaneemente a refinar c a atrofiar, a espalhar entre todos Sua Limitar aos seus privilegiados. Mas, pelo menos, podemos Goreeber que a estética se desenvolve subitamente para elém Ze sua raiz biolégica © passa a ser uma caracteristice fundamental da sonsibilidade e da arte do Homo sapiens. 5, Deste modo, tal como acontecia com a sepultura, uma primeira interrogagdo dos sinais e das imagens pré-historicos Povela-nos uma aglutinagéo de significagdes antropolégicas Verdadeiramente fundamentais, e a grafologia desses sinais transparta-nos bem para ld do proprio fenémeno gréfico, até & natureza original do Homo sapiens. ‘Como sucedeu com a supultura, vemos o acabamento © & culminagdo, a um nivel superior, das aptiddes desenvolvidas pela hominizagdo, ao mesmo tempo que vemos surgit 0s Elementos de um universo antropolégico novo, com @s emergéncias magicas, miticas, rituais, estéticas. ‘Estas multiplas caracteristicas, que de resto vao divergir € conhecer fortes diferenciacdes de acordo com as culturas e com 6s individuos, séo originariamente, estreitamente associadas © Combinadas. ‘Todas elas nos reconduzem a natureza imagindria ¢ imaginante do Homo sapiens e, a0 mesmo tempo, a relagéo ambigua e confusa que se constituiu entre o cérebro humano o ambiente. 103 EDGAR MORIN ‘A irrupgio do erro programas, genéticos nos comportamentos humanos e da progressdo das aptiddes heuristicas, estratégicas (competéncias), para resolver os problemas.de conhecimento e de decisdo, Passa, portanto, a ser preciso interpretar as mensagens ambiguas que chegam ao cérebro © reduzir a incerteza por meio de operacdes empirico-légicas. E preciso enfrentar a oposicaa entre as solucdes para um mesmo problema ou a opos jsem a mesma finalidade aberta pela existéncla da brecha antropoldgica da morte e pela irrupcdo do imaginario na vida diurna. # nessa zona de incerteza que se desenvolvem 0 mito e a magia, 6 nessa zona que circulam fantasias e espectros, que a palavra, o sinal, representagio, se impdem com a evidéncia da coisa, que o rito apela para a résposta de um recptor- interlocutor imaginario. E pelo facto de existir essa brecha (que, como veremos, também & abertura) que 0 reino do sapiens corresponde a um aumento macico do erro no seio do sistema vivo. O sapiens inventou a ilus8o; 0 escoamento do universo fantastico na vida acordada, as extraordindrias relagées que se tecem entre o imagindrioe a percepedo do real, tudo aquilo que, como veremos, constitui a origem das uverdades» ontolégicas do sapiens e, ao mesmo tempo, a origem de intimeros erros. Duma maneira mais larga, mais profunda, a incerteza das relagdes entre o ambiente e 0 espirito, entre o sujeito e o objecto, entre o real e o imaginario lincluindo a incerteza sobre a natureza de um e de outro), € a fonte permanente dos erros sapientais. O erro grassa na relacdo do sapiens com o ambiente, na sua relagio consigo préprio, com os outros, na relag&o de grupo a grupo e de sociedade a sociedade, 0 PARADIGMA PERDIDO: A NATUREZA HUMANA Nao se trata aqui de nos colocarmos sob um ponto de vista voltairiano, em que a incrivel proliferagéo das crencas, humanas no espaco e no tempo aparece como uma lamentavel acumulagdo de erros. No se trata de reduzir a erro o mito ou a religido cujas ratzes se situam aquém e além do erro e da verdade. Recusamo-nos a considerar como erro tudo aquilo que ndo depende do approbatur' do sébio racionalista-empirico moderno. Abstemo-nos de ontologizar a nogo de erro, que 86 tem sentido em relagées sistémicas-informacionais deter- minadas, ¢ de que voltaremos a falar. A nossa impoténcia em manter um conceito ontolégico e universal de verdade nao znos permite escapar ao cardcter incerto e errético da aventura sapiental. Mas pretendemos, por isso mesmo e pela nossa propria incerteza, descobrir a verdade do errare humanum est. 0 excesso (cubrisy) Como foi recentomente estabelecido, o sorriso, 0 riso e as lagrimas sfo-nos inatos (Bibl-Eibesfeldt, 1970, e em publicagdol. Tratase de ume caracteristica profunda, constitutiva da natureza humana, e sobre a qual as culturas vio elaborar as suas semiéticas diversas, sem nunca lhes anular as significagies antropoldgicas originais. Nao podemos dizer se o sorriso, o riso ou as lagrimas surgiram antes do sapiens, mas 0 que ¢ provavelmente proprio do sapiens é a intensidade ¢ a instabilidade que essumem a alegria e a tristeza. Kisos ¢ lagrimas sao estados violentos, convulsivos, espasmédicos, S40 rupturas, abalos, e, de resto, podem reunir- se © permutar-se: ri-se até as lagrimas e os solugos podem transformar-se em risos «dementesy. A crianga sapiens exprime aquilo que nenhuma crianca de outras espécies vivas jamais, exprimiu com tal intensidede: uma fraqueza, uma angustia espantosa nos seus berros, e um contentamento incrivel no feliz, agitar de todos os seus membros. Passa brutalmente do desespero berrador ao riso sereno. O sapiens adulto pode ser capaz de reprimir as suas ldgrimas, de conter o seu riso, mas conserva a intensidade do riso e das lagrimas, e ¢ preciso relacionar este aspecto com outras caracteristicas psicafectivas de cardcter eruptivo que foram estranhamente esquecidas na ' Em latim: eprovacto. (. do 1. EDGAR MORIN antropologia racionalista do Homo sapiens: a sua aptidao para 0 goz0, para a embriaguez, para 0 éxtase, por um lado, e, por ‘outro lado, para a raiva, para o furor, para 0 édio. Em primeiro lugar, e ainda que existam neste dominio enormes variagies individuais e possivelmente étnicas, 0 ‘orgasmo no sapiens € muito mais violento, convulsivo, do que nos primatas em geral; a mulher, ao contrério das fémeas antropéides, experimenta um ozo muito profundo @ espasmédico. © prazer que o sapiens procura, néo s6 no orgasmo mas, também em todos os dominios, nao se pode reduzir ao estado de satisfagao, quer dizer, de culminagéo de um desejo, de anulacdo de uma tensdo. Consiste também, para elém do simples prazer, nos estados de exaltago de todo o ser, que chegam a atingir o limite da catalepsia ou da epilepsia. Tanto nas sociedades arcaicas como nas sociedades hist6ricas, existe, por meio das ervas e/ ou dos licores, por meio da danga e/ou do ito, por meio do profano e/ou do sagrado, uma procura, uma expectativa, de estados de embriaguez, de paroxismo, de éxtase, que por vezes parecem reunir a desordem extrema no espasmo ou na convulsdo com a ordem suprema da plenitude de uma integracdo com 0 outro, com @ comunidade, com 0 universo. Estes estados parecem expurgar as ansiedades, tranformar as violéncias em brincadeiras e em alegrias, as alegrias em delirios e beatitudes. Estes estados extraordindrios, precérios, incertos, aleatérios, e, apesar disso, fundamentais, sao vividos pelo sapiens como os seus estados éptimos ou supremos. Nao se pretende elucidar aqui estes fenémenos, mas reconhecer @ sua importéncia, que foi desprezada pela, antropologia tradicional. Muito raros sao aqueles que, como Georges Bataille (1949) e Roger Caillois (1950), viram que a «consumagaor, a vertigem, o excesso, solicitavam um luger central na ciéncia do homem. Muito raros sio aqueles que reflectiram sobre 0 cardcter sismico do gozo humano. No entanto, no se poderia conceber uma antropologia fundamental que ndo englobasse a festa, a danca, 0 riso, as convulsdes, as ldgrimas, 0 goz0, a embriaguez, 0 éxtase. Quando se retinem todos estes aspectos, cada um dos quais, tem certamente uma origem hominfdea e até primética, mas que, no homem com cérebro grande, se ampliam, se intensificam, convergem, concorrem, vé-se bem que o que caracteriza 0 sapiens ndo 6 uma reducdo da afectividade em beneficio da inteligéncia, mas, pelo contrério, uma verdadeira (0 PARADIGMA PERDIDO: A NATUREZA HUMANA erupcao psicafectiva e, inclusivamente, o aparecimento da ubris, isto 6, do excesso, do desmedido. “Este excesso também se vai exercer na direcgio dos furores, da matanga, da destruigdo. A partir de Neanderthal, ‘multiplicam-se os vestigios no s6 de assassinatos, mas de ‘matancas ¢ de carnificinas. Pode supor-se que 0 crescimento demografico da espécie, ao multiplicar os contactos e, portanto, ‘as concorréncias ¢ rivalidades entre grupos, multiplicou as ocasies de conflitos, de combates. Por outro lado, a caga criou as armas que permitem a guerra e provocam a morte. Mas também é preciso ver nas primeiras camificines nean- derthalesas, e nas que se vao seguir e amplificar, o indice ‘a manifestacdo de um mau asseguramento do controlo da corresponde a um transbo da. afectividade, da violencia. Nos primatas, o onirismo ainda se ‘conserva circunscrito ao sono: no homem, prolifera sob a forma de fantasias, de imaginario, de imaginagéo. Nos primatas, 0 eros conserva'se circunscrito ao perfodo do estro e pouco ultrapassa o campo da sexualidade; no homem, invade todas as, estacdes, todas as partes do corpo, as fantasias, e irriga mesmo fas actividades intelectuais mais sublimes. A violéncia, circunscrita nos animais a defesa e a predacdo alimentar, desprende-se no homom, fora de qualquer necessidade. A afectividade, nos primatas e sobretudo nos chimpanzés, torna- ‘se transbordante; mas é no homem que ela assume um caréc- ‘ter eruptivo, instavel, intenso, desordenado. ‘A irrupgdo da desordem (© reino do sapiens corresponde a uma irrupgao maciga da desordem no mundo. O sonho nocturno do homem jé se diferencia do dos animais pelo seu cardcter desordenado. Jouvet (em publicagao) mostra-nos que 0s sonhos dos gatos so fextremamente estereotipados @ apenas reproduzem os grandes esquemas genéticos da espécie (80% de sonhos de predacdo de animais pequenos, 10% de sonhos de defesa contra inimigos ‘mais fortes, 10% de sonhos alimentares). 0 sonho humano, 107 EDGAR MORIN embora polarizado e orientado por obsestoes permanentes, prolifera de maneira enovelada e desordenada. ‘Além disso, todas as fontes de desregramento que ja se assinalaram (regressdo dos programas Ngenéticos, ambiguidade entre real e imaginério, proliferagées fantasticas, instabilidade psicefectiva, ubris) constituem, por si pr6prias, fontes permanentes de desordem. A ordem esté na cultura, na sociedade. E, certament desprogramagio genética esté ligada a programa sociocultural, ao sistema de normas e de interdigdes, as regras, de organizacdo da sociedade, que sustém a desordem e Ihe sabem dar folga, designadamente nos dias de festa. Mas, logo que entrarmos na era das sociedades instadveis, quer dizer, na ere histérica, veremos desencadear-se a ubris e a desordem, os antagonismos internos, as lutas pelo poder, 0s conflitos exteriores, as destruigées, os suplicios, os massacres, as, exterminagées, a ponto de o «rufdo e o furor constituirem um aspecto principal da histéria humana. ‘Assim, as desordens histéricas surgem simultaneamente como a expressio ¢ a resultante de uma desordem sapiental inicial. Contrariamente a crenga recebida, existe menos desordem na natureza do que na humanidade. A ordem natural 6 muito mais fortemente dominada pela homeostasia, pela regulacdo, pela programacdo. & a ordem humana que se desenvolve sob o signo da desordem. (Gapiens-demens» Desde essa altura surge a face do homem escondida pelo tranquilizador e emoliente conceito de sapiens. E um ser duma afectividade intensa e instével, que sorri, ri, chora, um ser ansioso e angustiado, um ser gozador, ébrio, extatico, violento, furioso, amante, um ser invadido pelo imagindrio, um ser que conhece a morte, mas que ndo pode acreditar nela, um ser que segrega 0 mito ¢ a magia, um ser possuido pelos espiritos ¢ pelos deuses, um ser que se alimenta de ilusdes e de quimeras, tum ser subjectivo cujas relacdes com o mundo objectivo sao sempre incertas, um ser sujeito ao erro e a vagabundagem, um ser ubrico que produz desordem. E, como nés chamamos loucura a conjungao da ilusdo, do excesso, da instabilidade, da incerteza entre real e imaginério, da confusdo entre subjectivo 0 PARADIGMA PERDIDO: A NATUREZA HUMANA ¢ objectivo, do erro, da desordem, somos obrigados @ ver 0 ‘Homo sapiens como Homo demens' ‘Como se explica que o tema evidente da loucura humane, assunto de meditagio dos fildsofos da Antiguidade, dos sébios o Oriente, dos poetas de todas as terras, dos moralistas classicos, de Montaigne, de Pascal, de Rousseau, se tena volatilizado, néo s6 na ideologia euférica do humanismo que justificava majestosamente a conquista do mundo pelo grande ‘sapiens, mas também no espirito dos antropdlogos? 0 racionalismo humenista, que triunfa e expira na etnologia de Lucien Lévy-Bruhl, pretendeu rejeitar o delirio do sapiens para ‘as suas origens, como debilidade infantil; em seguida, 0 neo- ‘etnologismo, admirando, pelo contrério, a maravilhosa sensatez do homem arcaico, desviou a loucura para o homem contemporaneo, concebido como um miserdvel desviado. ‘Quando, na verdade, um e outro possuem a sua sapiéncia ¢ a sua deméncia... ‘Qualquer animal dotado destas taras demenciais teria, sem duvide, sido implacavelmente eliminado pela seleccdo derwiniana. Para o biologismo e para o antropologismo, inconcebivel que um animal que consagra tantas forcas a gozar fe a embriagar-se, que perde tanto tempo a enterrar 05 seus mortos, a cumprir ritos, a dancar, a enfeitar, tfo mal ajustado na sua relagdo com o ambiente e consigo proprio, tenha conseguido ndo sé sobreviver, mas realizar, além disso, no luniverso hostil, no frio das glaciagSes, progressos técnicos, intelectuais ¢ sociais decisivos. 1. A extensdo demogréfica rapida e a colonizacdo do planeta pelo homo: 0 Homo erectus tinha-se espalhado pelo Velho Mundo nalgumas centenas de milhares de anos; 0 sapiens estende-se sobre toda a terra nalgumas dezenas de milhares de anos. 1 Em latim: demente. (N. do 7 109 EDGAR MORIN 2. A aceleracdo e 2 complexificagio técnicas ja sensiveis desde 0 magdaleniano; a titulo de indicagéo, citamos aqui uma extrapolagao de Leroi-Gourhan: «Se se tivesse continuado a estar em presenca de uma humanidade néo-sapiental, ter-se-ia podido prever o ponto de emergéncia da curva técnica do magdaleniano entre duzentos e quatrocentos mil anos depois da nossa era, e nao dez mil anos antes. (Leroi-Gourhan, 1964, p-198.) 3. O desenvolvimento de um pensamento empirico-logico, um desdobramento muito largo das aptiddes intelectuais para organizagio, para o conhecimento, para a invencéo, para a criagao, 4. A constituicdo de uma sociedade mais complexa do que a paleossociedade, apte a tornar-se uma unidade no seio de um conjunto social mais largo, e, mais tarde, a constituicdo de sociedades vastas, de Estados e de cidades. Por consequéncia, somos obrigados @ procurar qualquer ligac&o consubstancial entre © Homo faber e 0 homem mitolégico; entre 0 pensamento objectivo-técnico-légico- -empirico ¢ o pensamento subjectivo-fantastico-mitico-magico; entre o homem propositado, capaz do autacontrolo, da divide, da verificagao, da construgao, da organizaco, do acabamento ou fini¢ao (achievement), ©, por outro lado, o homem. despropositado, inconsciente ‘de si mesmo, descontrolado, inacabado, destruidor, imuminado por quimeras, temerério; entre, por fim, a expans4o conquistadora do\ sapiens, a sociedade cada vez mais complexa, e, por outro lado, a proliferacéo das desordens e dos delirios, ‘Ja nfo se podem imputar desordens e erros as insuficiéneias , as incompeténcias, da humanidade primitiva, que iriam progressivamente a ordem policiada e a verdade civilizada. Até agora, o proceso é muito mais o inverso. J4 ndo € possivel opor substancialmente, abstractamente, razéo e loucura. Pelo contrario, precisamos de sobrepor a cara séria, trabalhadora, aplicada, do Homo sapiens a cara simultaneamente diferente e id@ntica do Homo demens. 0 ‘homem é louco-sensato, A verdade humana comporta 0 erro. A ordem humana comporta a desordem. Por consequéncia, trata- ‘se de averiguar se os progressos da com plexidade, da invencio, da inteligéncia, da sociedade, se efectuaram apesar, com ou no 0 PARADIGMA PERDIDO: A NATUREZA HUMANA por causa da desordem, do erro, da fantasia. E nds responderemos que foi a0 mesmo tempo por causa, com @ apesar, visto que a resposta adequada s6 pode ser complexe e contraditéria, am

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