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2 —eee O que os homens e as m n ulheres podem fazer com nimeros qu e fazem coisas CLARA Marra Neste capitulo vou dar continui jade a uma metarreflexao a respeito dos nimeros censitérios sobre religiao, realizado pelo Instituto Brasi- leiro de Geografia ¢ Estatistica (IBGE), algo que iniciei em 2004, no artigo “Censo de religiio: um instrumento descartavel ou reciclavel?” (MAFRA, 2004), Como o titulo indica, minha intengao nao era discutir a nova informagio gerada pelo Censo, mas o levantamento censitdrio como um instrumento de conhecimento. Como preliminar, naquele artigo eu valorizava a “longevidade” dos ntimeros sobre religiio nos censos brasileiros — a série que comeca em 1872 tem um breve intervalo entre 1920 e 1930, e segue continua até os dias de hoje. No contraste, devemos lembrar que a Franga, esta nagéo fcone da formagio do Estado republicano, parou de fazer o levanta- mento censitdrio das religides neste mesmo ano. Os Estados Unidos da América, onde as religides muito claramente ocupam 0 espago publico constituindo-o, o Estado deixou de realizar o levantamento censitario sobre a filiagdo religiosa em 1926, transferindo, desde entao, a tarefa para um pool de instituigdes religiosas. / ‘Além disso, eu também valorizava a metodologia desenvolvida pelo IBGE - enquanto varios institutos de estatistica dos outros paises tendem a apresentar uma grade fechada de alternativas religiosas para o responden- Digitalizada com CamScanner versidade compostos a partir de dados histéricos ¢ 4, igraci = 3E permite que 0 reconhecimento de fluxos migracionais -, 0 IBGE p ae ae Fespon, dente indique de forma livre 0 nome da religido ou culto que faz. pare, itdrio — ail lizad Isto, em um levantamento censitério ~ ainda que realizado apenas em olve um trabalho monumental, pois 0 niimerg 14 mais amplo ¢ surpreendente que 0 espera. te-em leques de di um plano amostral -, env de declaragdes sempre se : pe do. No Censo de 2000 coletamos mais de 15 mil nomes le rel igibes de mil nomes foram posteriormente classificados pertencimento. Estes 15 steri : em 144 categorias. Para 0 Censo de 2010 os técnicos do IBGE também indicaram uma lista quilométrica de declaragdes que foram classificadas em 66 categorias. Vale notar que esta metodologia — que Privilegia a expressao livre do respondente diante do estimulo da Pergunta ~ vai na contramao de uma tendéncia dos institutos de estatistica estatais dos paises do Norte, que tendem para a contengao da resposta dentro de um limite previamente estabelecido. Depois de explicitadas as qualidades dos mimeros da religiio no Censo, eu me voltava para o que considero seu maior problema: a vulne- rabilidade dos nuimeros de religido. Conversando com lideres religiosos “Qual a sua ¢ cientistas sociais, convenci-me que uma tnica questao: religido ou culto?”, era algo breve demais para garantir a consisténcia dos niimeros sobre religido no Brasil. Afinal, estamos falando de milhoes de respondentes que, diante do agente censitario, respondem algo sobre um pertencimento individual de escolha voluntaria. Portanto, nao é uma questao facil. Por isto, ao invés de uma tnica questo no questionario, varios especialistas sugeriram incluir outras'. Retrospectivamente, eu observo que foi muita ingenuidade de minha parte esperar que o IBGE atendesse tal demanda! Como é que os eventos se encadearam? Em primeiro lugar, no Censo de 2010 nao houve a inclusdo de uma segunda questao sobre religiao. A demanda dos lideres religiosos e pesquisadores de religido nao foi aten- 1. No artigo de 2004, a proposta era incluir apenas uma segunda questio sobre a prética religiosa, mas atualmente me parece mais consistente agregar outras duas: 1 ) Uma questo que viria como “averiguacio da informagio”: a apresentagao da mesma questdo sobre rligiio ou culto, mas agora oferecendo ao respondente uma grade fechada de alternativas. Assim, muitas divides eobve a con sisténcia da autodeclaragio da primeira questio seriam respondidas, 2) Uma terceira questao sobre frequéncia de participagio nas atividades da religido ou culto. Com isto a informagio censitiria cMiccnense tt 2 campo da prética, algo que subsidiaria as duas primeiras questdes de identidade Digitalizada com CamScanner dida © 0 ndmero continua a ser produzido ¢ divulgado com uma “alta taxa de vulnerabilidade” + Em segundo lugar, a parceria do IBGE com 0 ser, como indie de interlocugao com a sociedade civil, seguiu como trabalho menor © subordinado: no Censo de 2000 ¢ no Censo de 2010 as equipes do Iser trabalharam cxaustivamente sobre as informagées preliminares que o IBGE forne ia, sugerindo alternativas ¢ solugdes aos problemas apresentados, porém, em nenhum momento as equipes Iser {vera acesso preliminar aos dados do Censo. Nas duas ocasides, 0 IBGE teve uma postura ética discutivel: proibiu até o tltimo momento 0 acesso aos ntimeros do Censo atual para os parceiros do Iser, mas divul- kou com alguns dias de antecedéncia as informagées para alguns érgios da imprensa, Em terceiro lugar, em 2012 ocorreu um adiamento da divulgagio doy dados do censo de religiio, Na divulgagio do Censo de 2000, os primeiros resultados, contendo as caracteristicas gerais da populagio como educagao, migragio, nupcialidade, trabalho, familias, domicilios, também inclufam o item religido. Para 0 Censo de 2010, que teve como data oficial de aplicagio 31 de julho de 2010, os primeiros dados foram divulgados em novembro daquele ano. Em abril de 2011 saiu a publi- cagiio Censo Demogrdfico 2010 — Caracteristicas da populagao e dos domicilios: resultados preliminares (IBGE, 201 1a), que inclu‘a dados da composigio da populagao por sexo, idade, situagao de domicilio, cor ou 10, rendimento, dbitos e emigragao internacional, Na mes- ma época, foi divulgada uma edigao especial sobre 0 Censo Demogrdfico 2010 - Aglomerados subnormais: primeiros resultados (IBGE, 2011b). Apenas em 29 de junho de 2012 foram divulgados os primeiros ntimeros raga, educ sobre religi io do Censo de 2010, ou seja, um ano e dez meses depois da aplicagao do questionario. Entendo que esta postergagao da divulgagio dos dados censitirios de religiio nao é resultado de um simples proble- ma técnico ~ como os técnicos do IBGE informaram -, mas decorre de uma decisio de politica institucional. Ao longo dos iltimos anos, alguns pesquisadores sugeriram que os ntimeros censitarios, aqueles que descrevem a pluralidade religiosa do pais, estariam fazendo coisa demais. Pior, estes nimeros teriam ganha- do autonomia ¢ vida propria ¢ estariam favorecendo preferencialmente alguns atores sociais intolerantes. Diante deste diagnéstico, uma atitude sensata seria ocultar ou invisibilizar os nimeros de religiao no pais. 39 Digitalizada com CamScanner ciras de se criar um “niimerg. Ora, assim como existem varias man torné-lo irrelevante ou ‘stem outras varias maneiras de -celebridade”, ex invisivel. Pode-se, por exemplo, tornar os numeros co confiaveis que os préprios especialistas ¢ lideres u a rejeitd-los. Outra estratégia se relaciona com a cozinha da produgig do ntimero: a instituigdo que produz 0 numero pode deslocar apenas listas para trabalhar com um volume adas. A inadequagao entre volume de ivel fazendo com 10 precarios ¢ pou. religiosos passam um ntimero restrito de especia gigantesco de informagoes colet, : trabalho e recursos humanos torna a tarefa imprati forma inteligivel muito depois do seu timing, em estratégias — conscientes ou in- pretendo fazer neste que o mimero s6 ganhe Enfim, poderiamos seguir pensando conscientes — de ocultagdo dos ntimeros, mas 0 que “os nimeros ganharam autonomia ¢ vida capitulo € refutar a tese de que a vida democratica. Vou ar- prépria”, tornando-se uma armadilha para gumentar que nao precisamos temer os nimeros de religido apenas por- que passamos do “catolicismo como a religiao dos brasileiros” para um “pais de maioria e minorias religiosas”. Ao invés de temer e abandonar 6 projeto de produgio de mimeros de religiio no Brasil, vou defender que devemos investir esforgos para uma producio de ntimeros mais con- sistentes e sustentaveis. Com uma “reforma” bem-feita no modo como 0 IBGE coleta os dados de religido, valorizaremos a memoria ja acumula- da de 13 censos aplicados. Isto soma pelo menos 130 anos de meméria continuada sobre um aspecto fundamental da vida social da nagio - 0 que nao € pouca coisa! Totalidade versus maioria e minoria Sei que estou caminhando no terreno das hipoteses, mas suponho que o fato da divulgacdo dos ntimeros do censo de religido de 2010 ter ocorrido um ano e dez meses depois da aplicagao do questionario nao é um evento fortuito, mas uma decisao institucional de cunho po- litico, Tem a ver com a tese de que os ntimeros do Censo poderiam “falar demais”, favorecendo atores politicos indesejaveis. Esta hipotese poderia ter vida curta nao fosse a existéncia de atores sociais comparti- a mn ei nee re e ales: Considero que 2006), capturou, sistematizou : ex, lickout ZS. ilo gumento. Por economia de escrita. es in a a Beate fa 5 vés de buscar as varias versées Digitalizada com CamScanner piblicas a tes oe ; ‘ tese que afirma que “os ntimeros falam demais”, vou optar por seguir a argumentagio sistematica e coerente de Giumbelli, pois isto me Poupard tempo. A partir do rastreamento de sua escrita, chegarei mais rapidamente 0s pontos-chave do argumento que pretendo criticar. Em primeito lugar, Giumbelli reconhece que sua perspectiva é de- vedora de uma tradicio disciplinar especifica no interior das ciéncias humanas ~ a filosofia politica -, que pressupde que, por principio, a relagio entre identidades religiosas e o Estado moderno sempre serd pro- blemitica. Isto pela simples razio que o principio da laicidade ou do io do Estado moderno, exige a separacdo secularismo, que esta no coraga dlo Estado ¢ das religiées. Esta separagio - que nao é simples ~ se da- ria, por um lado, no plano “da crenca”, com um Estado que abre mao do controle das crengas Privadas dos individuos. E, por outro lado, na busca da neutralizagao e da autonomizagao dos aparelhos burocraticos em relagdo aos engajamentos religiosos dos cidadaos. Quer dizer, para efetivar a separacao, o Estado laico ou secular deve recusar os vinculos materiais ¢ simbélicos com as religides e suprimir a referencia religiosa no plano da lei. Por esta tradigao disciplinar, alicergada em tipos ideais, podemos compreender por que a realizagdo de levantamentos censitarios sobre filiagao religiosa é tarefa problematica. Se o tema da “crenca” é uma questo de forum privado, o Estado Moderno nao deveria se engajar na questao, inclusive ndo deveria demandar que o cidadao em sua individu- alidade a declarasse. Foi este o caminho escolhido pela Republica Fran- cesa que, como ja havia mencionado, suspendeu a aplicagao do censo de religiéo em 1872. Porém, na histéria da formacao de diferentes Estados nacionais, os coletivos religiosos sao atores relevantes nao apenas na vida privada dos cidadaos, mas na vida piblica, muitas vezes constituin- do-se como aliados fundamentais para a criacao e/ou manutencao do Estado laico ou secular. De qualquer forma, como nos lembra Bourdieu (BOURDIEU; CHAMBOREDON & PASSERON, 2008), os nimeros censitarios sao constituintes e constituidores de identidades sociais. Com ‘ou sem polémica, realizar um censo ja é um ato politico que serve alguns interesses ¢ fere outros. No artigo citado, Emerson vai além do reconhecimento do carter problematico de levantamento censitario. Em um passo 4 frente, 0 autor afirma que, particularmente no Brasil, os dados do censo de religiao Digitalizada com CamScanner estéo reforgando uma mudanga mais geral: o modo como nés bras), leiros imaginamos nossa pluralidade religiosa € nos relacionamos com, ela passa, nao sem tensdes, de um “Brasil sem minoria” para um Brasil constitufdo por maiorias e minorias”. © que seria um “Brasil sem minoria”? Para 0 autor, no leque interna. cional das nagées, o Brasil é um caso interessante porque em sua histéria “ha sinais de pluralidade religiosa em “recuos de variada extensio”, oy seja, “jamais 0 vocabulério derivado das nogées de maioria e minorig se tornou dominante ou mesmo recorrente para descrever essa plurali. dade” (GIUMBELLI, 2006: 235). Para adensar 0 argumento, 0 autor realiza um sobrevoo sobre a histéria das diferentes tradig6es religiosas que compéem a nagao brasileira. A Igreja Catélica, mesmo sendo a religido de adesio majoritatia da populacio, foi pensada, segundo Giumbelli, como “totalidade” e nao como maioria. Nas suas palavras, “Religido da colonizagao, religiao do Estado, religido da nagao, religiéo do povo: sucessivas encarnagoes da totalidade. Cada uma dessas imagens alimentou a ideia do ‘Brasil caté- lico’, de que temos ainda hoje tantas marcas e manifestagdes” (GIUM- BELLI, 2006: 236). Esta religido de totalidade conviveria com uma di- ferenciacio interna — nas prdticas sincréticas — e com uma diversidade externa — jogos complexos de complementaridade com alteridades que nao se submetem ao poder eclesial, mas que também nao estdo muito longe de sua influéncia. O prego que se paga por este “inclusivismo”, afirma o autor, é ocupar um lugar subordinado em uma configuracao hierdrquica que tem o catolicismo como referéncia. Assim estariam as religides espiritas e de culto afro que formam a nossa pluralidade, mas que, porém, ndo se comportam exatamente como minoria. Isto porque estas religides podem ter pouca expressio politica, mas tem uma enorme influéncia cultural. Um universo do “neo- esoterismo”, “misticismo”, “Nova Era” também, segundo o autor, nao se comportaria como “minoria”, pois “existem sem causar muitas con- trovérsias” (GIUMBELLI, 2006: 237). O tinico segmento social que se apresenta com voca¢do minoritéria, afirma Giumbelli, é 0 dos evangé- licos. Sao eles que acionam os principios modernos de conversao, de exclusivismo, de realce de fronteiras — elementos constitutivos do estilo minoritario moderno (GIUMBELLI, 2006: 238). Sao eles que, poderia- mos agregar, se sintonizam com a linguagem secular e fazem campanhas Digitalizada com CamScanner Hroselitistas tendo o Censo como referénci ia. No fim dos anos de 1990, a Assembteia de Deus publicava: “Nos anos de 2000 o Brasil sera uma Magdo evangela Qua ’ Y i SNL A - Campo dos estudos de religiio, o autor é breve, mas en- ali uma recusa em se oper Havinoria, EM sua sintese vontea tambens 7 . ‘Ar com o par conceitual maio- \ do estado da arte dos estudos, Giumbelli , inna au © pesquisadores brasileiros tenderiam a reconhecer uma tria- “sc earoltesmo, protestantismo ¢ religiées meditinicas (p. 239). Com este Fecotte, os pesquisadores tendem a no operar com o par conceitual de maioria © minoria, or : ean i Noto que, para construir seu argumento, Giumbelli aproxima 0 caso brasileiro do modelo de “E tado Consorciado” proposto por Michael Walzer (1999), Segundo este fildsofo politico, no “Estado Consorciado” tm regime de tolerincia miitua se estabelece entre duas ou trés comu- nidades (na pritica, salienta, lideres ¢ elite dessas comunidades), o que permite, enquanto houver confianga mtitua ¢ uma relativa seguranga, a continuidade de uma dominagao constitucionalmente limitada de uma s (WALZER, 1999: 32). Porém, Walzer concor- mente © regime consorciado se perpetua em democracias pois a tolerncia entre as partes, neste regime, sustenta-se na detesa de direitos coletives que se sobrepdem, muitas vezes, aos direitos individuais das partes sobre as outr: da que dificil moderna: Em sintonia com esta formulagao, Giumbelli afirma que “a plurali- dade no campo religioso brasileiro nao é traduzivel em minorias e maio- rias”, pois em realidade sua pluralidade se constitui como um “mosaico crivado de muitos centros de referéncia e de experiéncia, cujo arranjo obedece ao marco posto pelo catolicismo” (GIUMBELLI, 2006: 240). Mais adiante, Giumbelli afirma que nestes novos tempos, com a per- da de consisténcia do “Brasil catélico”, sem uma referéncia mais con- sensual do catolicismo como constituidor da “totalidade”, 05 niimeros m lidos como intensificadores dos processos de indivi- omovedores de uma politizagio excessiva do cam- censitirios seria dualizagéo e como pr i ssiva po religioso, ampliando 0 campo de atuagao dos atores sociais intoleran- tes, ou seja, daqueles que sab pelo par maioria-minoria. Como recurso retérico complement: ' 1) Uma pequena reportagem publicada em O Globo, de em navegar em um campo social articulado ‘ar, o autor cita ainda duas situa- ges exemplares. 43 Digitalizada com CamScanner 1 yesquisa realizada entre moradores das favelas. Giumbelli desta uma Pp a realiza Giumbsliide como a reportagem aponta © contraste entre moradores catolicos © evan, “omo a ie more ens no municipio ¢ na favela, Outras minorias n4o sao mencionadas, s Jo se refere ao planejamento do ensino religioso confes. sional no Estado, em respeito ao decreto 29,228. Em 200 foram abertos 500 postos de ensino, repartidos entre catélicos, evangélicos € diferente credos. A distribuigao teria seguido 0 resultado de um censo escolar apli- cado em 2001, que levantou a filiagao religiosa dos alunos da rede estadu. al, Neste caso, de maneira similar, forca dos nimeros ing sustentacao da politica de distribuigio dos postos de trabalho. Vindo ao encontro do autor, posso dizer que a transformagio de um “Brasil sem minorias” em diregio a um “Brasil sem maioria” tanto é sndicada como produzida pelos ntimeros censitérios. Porém, procurar bre a pluralidade religiosa conter a politizagao dos dados censitdrios sol postergando a sua divulgagao ou buscar disciplinar 0 modo como estes dados tém sido recebidos pelos diferentes coletivos sociais ¢ pelos cida- daos individuais tem a mesma eficécia que botar fogo em uma folha de papel para fumar 0 cachimbo ali desenhado. No artigo, 0 autor parece lamentar a perda de um “Brasil sem mino- rias”, pois esta é a marca da excepcionalidade brasileira. Muitas transfor- gélico: 2) O outro exempl o autor sublinha a mages ocorreram no campo religioso nas tiltimas décadas, ¢ 0 seu temor é que estas mudangas no se somem para confirmar a excepcionalidade historicamente consolidada. Sua esperanga de continuidade da excepcio- nalidade se assenta no fato de que so poucos os coletivos que ganham. com a ratificagao das mudangas ou que ganham com um novo modo de nomear e negociar as diferencas em um campo religioso brasileiro. De minha parte, apoiada em José Casanova, sugiro que a marca da excepcionalidade brasileira - se houver alguma - esta em outro lugar. José Casanova se define como um socidlogo comparativo. Sua obra dé referéncia é 0 livro Public Religions in the Modern World (1994), no qual ele defende que, distintamente do que foi idealizado pelos cientistas PX liticos, em nenhum caso Estados e nagdes modernas foram constituidos coo caer agin: Eaais dines cocoa as configuragGes sociais modernas wean 4s snail iti } se dedica a pesquisar a relacao entr fs dos bojo, José Casanerr ireies cog a ¢ Estados e tradigées religiosas & - extos nacionais, comparando-os. Um dos Lisado® - casos analisao® © Digitalizada com CamScanner no Public Religions & © Brasil, Sua cho com a interpretacdo de um Onde Giumbelli vé ariada extensiio” andlise permite que facamos um gan- “Brasil sem minorias”, de Giumbelli. y ais de pluralidade religiosa em “recuos de +“ i . (GIUMBELLI, 2006: 235), José Casanova reconhece Yodan Neer de el In ioail do, Fs ‘ovo, no Brasil Republicano, Para Casanova, a Igreja Catolica SO conquista uma efetiva posicio hegeménica, acolhedora de uma pluralidade social diversa e heterogénea — do Brasil urbano e rural, das classes médias e camadas populares, da intelectualidade catélica, protestante ¢ liderangas afro-brasileiras ~ quando da chegada do gover- no ditatorial nos anos de 1960. No periodo negro da historia nacional que se seguiu, de repressio e autoritarismo desenvolvimentista, a Igreja Catélica se fortaleceu como a instituigéo receptora da diferenga na opo- 0a um inimigo comum. Gragas & capacidade da Igreja Catélica de se opor como instituigao as forgas repressivas, e a capacidade de atuacio de alguns bispos exemplares, os movimentos sociais ganharam félego € as forgas politicas de oposigao se juntaram, forgando a passagem para a constituigao de um Estado de Direito e Democratico. Na visio de Casanova, a Igreja Catélica nunca teve na histéria nacio- nal, nem antes nem depois, a mesma forga hegemOnica. Posteriormente, a dinamica de pluralizagao das religiées se intensificou em sintonia com a intensificagio da vida democrética. Casanova considera que uma das primeiras manifestagdes de cidadania e vida democratica em um espago ptiblico como 0 brasileiro, onde a crenga é definidora do sujeito moral e politico, é a busca de novas opgées religiosas. Neste contexto, a religizo que se impde pela adesio formal, nao tem grande capacidade de reposi- gio social. Consideragées finais Em entrevista recente para a IstoE (13/03/2012), José Casanova des- creveu nos seguintes termos 0 campo religioso brasileiro: “O Brasil se converteu em um centro mundial de catolicismo global, de pentecosta- lismo global e de movimentos afro-americanos globais. o Brasil esta surgindo como uma poténcia econémica global, mas também como uma poténcia religiosa”. Para este autor, a excepcionalidade brasileira esta tin uma capacidade de valorizar 0s processos de individualizagio sem deixar de produzir um “Sagrado secular” consistente. Este “sagrado se- Digitalizada com CamScanner cular” & um conceito eunhado pelo autor para se referir 30 proces, de profanagio do religioso no interior da moderna secularizagio ¢ gy. nvolve certa sacralizagao da esfera politica secular (nacio sagrada, qt agrada) e, em especial, refere-se ao eyjy, dadania sagrada, constituigio ; © a do individuo ¢ a sacralizagao da humanidade via defesa dos direitos hy. manos (traducao livre - CASANOVA, 2011: 65). Estes valores estariam, a seu ver, sendo difundidos nas diferentes frentes de migragao oy de transito dos lideres religiosos ¢ missiondrios brasileiros nos diferentes io da excepcionalidade brasileira nao ci, continentes, Esta interpretagi cunscrita as fronteiras do territério nacional tende a ser confirmada pelg informagao de que atualmente o segundo maior exportador de mission4. rios no mundo, depois dos Estados Unidos, é 0 Brasil. As noticias que trago de pesquisas sobre missionarios brasileiros em Angola e Mocambique tendem a reforgar 0 ponto. Nesses paises, a Turd nao desenvolveu uma atuagao politico-partidaria. Deixando para tris um longo periodo de guerra por independéncia e entre diferentes fren. tes politicas, 0 recém-formado espaco puiblico democratic angolano ¢ mocambicano ainda é bastante fragil e restrito. Estrangeiros nao sao in- centivados a se aventurar na vida ptiblica regional. Isto nao torna a Turd uma forca social insignificante, Em sua tese, Linda van de Kamp (2011) descreve como a crescente popularidade desta igreja brasileira em Mo- cambique esta relacionada com uma capacidade inusitada de seus pasto- res oferecerem pontes entre o “tradicional” e 0 “moderno”, levando em conta as diferencas de género e de geracao dos fiéis. Através da igreja mulheres de diferentes geragdes negociam a condi¢ao de mie e esposa, com as de trabalhadora e de mulher com carreira. Para a autora, cristia- nismos europeizados tendem a ser mais monocrométicos e dogmaticos do que este que vem do Sul, Se compreendi adequadamente a interpretagio de Casanova, ae cepcionalidade brasileira nao estaria, a seu ver, em um modo particular de imaginacao da totalidade, como quer Giumbelli, mas na formacio de homens e mulheres com habilidade de interagao em uma pluralidade desordenada, em relacao a “um mosaico cri vado de muitos centros de referéncia ¢ de experiéncia” » Promovendo, em sua agao individual ot coletiva, a constituicao de “sagrados seculares”, Na verdade, pessoalmente, tenho dificuldade em me alinhar a diag: Nosticos tao genéricos sobre a “excepcionalidade brasileira”. No entant0: 46 Digitalizada com CamScanner se pressionada, prefiro apostar em um futuro aberto ¢ desconhecido de uma “comunidade global” em formagio, como sugere Casanova, que me juntar ao lamento anacrénico de uma imagem de totalidade perdida. Neste capitulo, em especial, lamento que os tomadores de decisie de uma instituigao do porte do IBGE tenham preferido se alinhar com uma opinido que me parece anacrénica, postergando a divulgagio dos dados sobre religiio e, assim, Precarizando ainda mais a interlocugéo social sobre a construcao dos niimeros de religido no pais. Sem medo de errar, brinco de futurologia e prevejo que a pressio dos pesquisadores ¢ dos lideres das diferentes tradigdes religiosas para a construgio mais de- mocratica e transparente dos ntimeros de reli sera ainda maior, do para 0 Censo de 2020 @ REFER BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J.-C. & PASSERON, J.-C. El oficio de socidlogo: presupuestos epistemolégicos. Buenos Aires. Siglo Veintiu- no, 2008, p. 423. CASANOVA, J. “The Secular, Secularizations, Secularisms”. In: CA- LHOUN, C.; JUERGENSMEYER, M. & VANANTWERPEN, J. Re- thinking Secularism, Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 311. DEKAMB, L. Violent Conversion — Brazilian Pentecostalism and the Ur- ban Pioneering of Women in Mozambique. Amsterdam: Free University, 2011, p. 301 [Tese de doutorado]. GIUMBELLI, E. “Minorias religiosas”. In: TELXEIRA, F. & MENEZES, R. (orgs.). As religides no Brasil: continuidades e rupturas. Petropolis: Vozes, 2006, p. 229-248. IBGE. Censo Demogréfico 2010 - Caracteristicas da populacio ¢ dos domicilios: resultados preliminares. Rio de Janeiro: IBGE, 201 1a. Censo Demogrdfico 2010 - Aglomerados subnormais: primeiros resultados. Rio de Janeiro: IBGE, 2011b. MAERA, C. “Censo de religido: um instrumento descartavel ou reciclé- vel?” Religido & Sociedade, 24 (2), 2004, p. 152-159. WALZER, M. Da tolerdncia. Sao Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 153. 47 Digitalizada com CamScanner

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