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83 Rosa, substantivo, substancia emi Jaffe Na prosa de Joao Guimaraes Rosa, as palavras tém um valor espacial proprio da poesia eo sertao nao é simplesmente um lugar, mas uma época ‘Uma das mais importantes diferenas entre prosa e poesia — junto a ideia de que poesia retorna (porisso 0 verso) ea prosa continua —é0 fato de que, na primeira, as frases se unem mais por subordinagao e, na segunda, por coordenagao. Na prosa, a importancia de uma trama jé explica, pelo proprio nome, a imbricagdo de historias, hierarquias, caminhos e descaminhos, conflitos, tenses e distens6es. E isso é fato tanto na prosa cla sica como na contemporanea, mesmo que haja auséncia do fa- torcausa-consequéncia ou mesmo das formas tradicionais de abordagem do tempo, espaco, personagem e eriredo, Ora, €0 verbo que catalisa a ordenagio da frase, para que possam ocor- rer as conjungGes subordinativas - embora, apesar, contanto, Se, que, a ndo ser que, como etc. O verbo é0 miicleo das.aragées, “seu organizador temporal, pessoal e numeral. O verbo tempo; raliza 0 espaco, ou, dizendo com outras pal condutor das historias. ras, 0 verbo € 0 ———* _com seu objeto, quer suprimir, ao maximo possivel, a arbitrariedade do. signifi Jana poesia, que talvez se possa definir por uma espacializagao do temp. o verbo nio exerce o mesmo papel - quem ocupa esse Nagar S40°0s Sil Coisas surgindo como palavras, palavras surgindo como ‘coisas, mais auton’ menos dependentes de um micleo centrifuugo ou centripeto, Cada arti ‘nome, preposicio, num poema, tem valor também por si, independentemente: de sua subordinagao a uma hierarquia morfologica ou sintatica. Dessa fo ode-se exagerar e dizer que quase todas as classes de palavras, num poema, S80, ~espécies de substantivos, em funcao de sua autonomia semantica esintitica, Esse efeito, de maior subordinacao na prosa e maior coordenagao na poesia. faz com que, entre outras coisas, a prosa gere mais sensago temporal, e a poe sia, por sua vez, mais sensacao espacial. Na poesia, a linguagem quer coincidir cante —e por isso ressalta integra, quase como coisa. Prosa e poesia: dinamicae estitica; dependéncia e autonomia lexical; tempo no. /espaco e espaco no tempo, ‘trama na linguagem e linguagem em trama. ‘Como outros escritores cuja: os os sentidos, foge do apreem=_ sivel, Guimardes Rosa tensiona, desagrega e reconstroi a descricio feita acima. “Siz-se que © que Ae escreve ¢ prosa, Sera? Uma prosa que surge diante do leitor como se o espago-sert’io-mundo brotasse do chao das palavras. Nao se contam: historias, ou contam-se historias que sio como objetos que lem pegar ‘Tempo espacial oy espago temporal, em que o sertio nao é simplesmente uz lugar, mas uma época, e o tempo em que se passam as historias é determinade pela geografia fisica ¢ imaginaria. Lingua brasileira inventada, lingua como ex: periéncia de leitura e de mundo, como desautomatizadora da pr6pria lingua. Penso que uma parte consideravel do efeito poetico de sua prost esta no fata de o autor reiterar 0 que se poderia chamar de efeito de “desverbalizagaio” de suas oragdes, assim transformando o particular e o geral de suas historias em grandes ou pequ ibstantivos ¢/ou em séries mais coordenativas do que ‘subordinativas. Isso faz.com que as coisas acontegam, mais por parataxe, numa. relagdo sintatica de independéncia entre as oragdes, do que por hipotaxe, em que as oragdes mantém dependéncia umas das outras, criando a sensagao deestarmos diante de uma geografia dinmica, ou diante de coisas-palavras (/( gue,estranhamente,agem, Poesia que proseia. an Em “Substancia”, conto de Primeiras estorias que descreve a quebra da mandioca para transformé-la em polvilho (o que corresponde a substancia a mandioca), Maria Exita e Sionésio protagonizam uma historia de amor. Ele € proprietario de uma fazenda de polvilho, a Samburé, esua atitude para coma propriedade, o trabalho e a vida é tipica de um grande proprietario: preocupa- ~se com a azafama, com a qualidade do polvilho (0 mais alvo e melhor de toda a regido), coma inspecao constante dos trabalhadores, a ampliagdo dos ganhos € das terras, a modernizacao dos equipamentos; explora os trabalhadores; € praticamente nao cuida de vida pessoal alguma, Sua vida éa faina. ‘A velha Nhatiaga (espécie de Tirésias rosiano), num gesto generoso, traz Maria Exita para a fazenda. Filha e irmd de pessoas suspeitas (loucos, doentes, Jadrdes), Maria ¢ escalada para um dos piores servigos da Samburé: quebrar as grandes pedras de polvilho, & luz. do sol, quando tudo se faz branco ~ 0 que corresponde a esséncia/substincia das cores. Mas nada parece incomodé-la, e ela encara o polvilho ea luz com alegria. Ocorre que poucos ousam aproximar- -se dela, por medo de que seus parentes venham buscé-la, ameacando o pre- tendente, ou por temé-la louca, herdeira de doenga familiar. Depois de muito ‘observar Maria Exita, Sionésio, numa de suas expedigdes pela fazenda, a vé na quebra da mandioca, a luz do sol do meio-dia, e se surpreende com sua beleza egalhardia no trabalho duro, Comeca a pensar na moga, recusa a ideia, com os ‘mesmos receios de todos, vai as festas para conferir se ela ¢“mioca facil”, decide esqueeé-la, mas, num repente (como tudo o que acontece de fato nas historias de Rosa), pede sua mao, num dos dialogos. mais bonitos da literatura brasileira, {que vale ser reproduzido aqui, na integra: ““Vocé, Maria, quererd, a gente, nos dois, nunca precisar de se separar? Voce, comigo, vem e vai?” isse, e Viu. O pol- vilho, coisa sem fim. Ela tinha respondido: ‘Vou, demais’.” > A substancia, na filosofia eas ciéncias dp espirito, €“aquilo que subsiste por si”, “que se mantém permanente diante -dos acidentes e circunstancias”, “a rea~ “Jidade supremia que nao necessita de qualquer outra para exist”, “aessencia de algo” e, segundo Roman Jakobson, “a matéria do signo linguistico: a matéria ‘nora do significante e a matéria conceitual do significado”. Pode-se dizer que a -substincia €aquilo quesemantém, mesmo depois ques natéria se tanSTOnNe. 7 Em “Substancia®, o leitor é colocado e instado a colocar-se diante da propria ~ substancia, como pala ecomo objeto tomas inesslites substanefa da lingua, o substantivo;a SuBstancia da mandioca,o polvilho (em quea mandioca se transforma, mas sua esséncia se mantém pura e alva);a substancia da luz.e da cor: o branco; a substincia dos sentimentos: o amor, que transforma 0 carater de Sionésio;a substincia das ciéncias: a alquimia; a substancia do tempo e da vvida:a transformago, em que tudo muda, mas em que tudo se mantém. Jana segunda oracdo do conto, lé-se uma construgao constante na obra de ‘Guimarae jsolamento de um substantivo entre travessdes, pontos e virgu- las e parénteses, como para torné-lo autossuficiente: “Do ralo as gamelas, da masseira As bacias, uma polpa se repassa, para assentar, no fundo da agua elite, azulosa—o amido ~ puro, limpo, feito surpresa”. ° Essa téenica faz ressaltar o objeto de que se fala, como que alterando seu m= evo, e, a0 fazé-lo, sua percepgao pelo leitor torna-se mais material e autonom= 'Na propria frase, o uso de verbos é minimo, recorrendo-se aos substantivos = _adjetivos para exercerem o papel ativo, Dessa forma, o amido salta ‘como Come em si, ideal e até inesperada (“feito surpresa”), apesar de o trabalho ser Tom neiro e supostamente automitico. Pelo isolamento do substantivo, dépurade e depurador, também os adjetivos que o seguem (“puro, limpo”) ea locugse adjetiva (“feito surpresa”) tornam-se também como que magicamente iso por efeito de ntagio. “Puro” passa a ser a pureza; “limpo,alimpeza, €“ surpresa”-0 proprio espanto com 0 resultado do provesso. Logo depois, na primeira caracterizagio ‘de Maria Exita, assim que Sionésio nota a moca, aparece: “Ela, flor”. A supressio dos verbos de ligagdo é também reconrente na linguagem rosiana, bastando a aproximaco de dois substantivos.. mrediados apenas pela pontuagao, para associd-los, formando-s€ uma &specie de metafora antimetaforica, porque os dois termos, ‘sem o verbo, ganham pa- Gade ronereta, quase perdendo a carga representativa de “flor” em relagio Fo proniome“elz"O verbo de ligacao, aqui, funcionaria como um onganizador ~pierarquizante dasemelhanca que se cria entre “ela” e “flor”, dois substantivos tomados substancias.O termo “verbo de ligacao”é,aliés,curioso. Verbos como “ser”, “estar”, “haver”, “permanecer” ‘sdo ontologicamente essencials a uma lin- gua e ao pensamento humano, mas de um ponto ‘de vista gramatical exercem {ima fungao apenas conectiva, ja que sueito e predicativo, ou substantivese ad- jetivos, cumprem por si mesmosa funca0 denotativa e/ou conotativa, cabendo wp verbo simplesmente ligar ou temporalizar. Em hebraico, arabe € russo, Por ‘exemplo, nao se usam verbos de ligacdo no tempo. presente, Rosa faz nao mais ddo que dispensar o que, de alguma forma, ja € dispensavel ‘conectando assim ‘muito mais aquilo qué o verbo de ligacio, no lugat de ligar, separou. ‘Em seguida, para expressar quais eram, até entdo, as preocupagoes de Sio- nésin eo tipo de polviho de sua fazenda, o conto diz: “Para a azifama “de fa- ‘nha e polvilho. Célebres, de data, na regio e longe, os da Sambura” Nessas duas oracdes, a pontuago € que exerce o papel verba ,0 travessio € as vil ~ alas, sempre aos punhados. A pauisa; mesmo 0 tropeso, desbanalizam a lei- Tura © a compreensdo Texical e sintatica, processando. estranhamepfo e uma compreensio de aiguma forma retardada, ritmica e maisintuitiva, eos a¥e, ta segunda oraqa0,o substantivo principal polvilho”) também esté ausente (Cos da Sambura”), Mas éjustamente pelas acunas que ficamos sabendo virias informagdes: que ele é célebre, produzido ha ‘muito tempo e reconhecido na propria Sambura e também Longe dali. "Assim como 0 amido, logo acima, isolado pelos travesses, na sequéncia surge um exemplo de frase muito marcantena obra doautor. "Maria E ita”. Sera dificil encontrar algum texto seu em que essa construcéo — uma oracdo consti- tuida apenas de um substantivo ~ndo aparega, seja como nome, fenomeno da natureza, sentimento ou pensamento. A coisa em si, substantivada e sozinha, prescindindo de qualquer predicado ou verbo. Um bloco estitico, mas ativo, verendo do nome da coisa ot da pessoa uma entidade integra etranstemporal Seguindo adiante, uma sequéncia de oragoes vai, junto as frases verbais, dando continuidade aos acontecimentos, mantendo a alternancia entre dina- ‘nica e extatica e conferindo ao-conto 0 caréter poético e anti-hierérquico das uses aominais:*Menos por direita pena; antes, da compaixo da Nhatiaga”s 89 “Se a meio-galope, se a passo, mas sofrego descabido, olhando quase todos os lados”;e “Apenas, por prazo, em incertas casas, onde Ihe dessem, ao corpo, consolo: atendimento de repouso”. 'Apos diversas outras oragdes semelhantes, surge (¢ creio ser esse mesmo ‘0 verbo para designar 0 que ocorre, um surgimento) o fato que vai alterar a atitude conhecida de Sionésio, que passa de acumulador a amante: “Ea beleza. ‘Tio linda, clara, certa - de avivada carnagZo e airosa uma iazinha, moga feita ‘em cachoeira.” De que fala o narrador aqui? Dela, do polvilho? Dos dois, cer- tamente, O que se esta a ler? Prosa ou poesia? E por que isso nao é exatamente rosa? Em grande medida porque aqui nao ha verbos. Si todos termos coor- denados pela conjungio “e”, pelos pontos-finais, pelo travessao ¢ pelas vingu- las. E mesmo 08 adjetivos sao, de certa forma, substantivados em seu sentido preciso e autossuficiente. A beleza e o amor, no pensamento neoplatonista de Rosa, e considerando-se o veio alquimico desse conto, sdo substancias unas, ideais e transformadoras. Mais ainda, so correlacionadas. Faz. todo sentido que, aqui, a beleza venha marcada por uma oragao breve e nominal, apenas precedida por uma conjuncio e um artigo. £ ainda possivel dizar, sem medo de ‘exagero, que esse “e”, que anuncia outros espagos ¢ tempos precedentes, eque aparece tantas vezes em sua obra, também ganha uma fora substantiva, como nos fortes exemplos de nominalidade que se seguem, efeito substantivador ouainda efeito coordenativo da lingua de Guimaraes Rosa: Sa prepa, oe (el ‘Tantos, na faina, na Samburd, namoristas; sce do har ARTIS tel vue Mas, no embarago de inconstantes horas ~as esperangas velhas e desanimagdes novas ~ de entremomentos; ° tel ‘Aela—a tinica Maria nomundo; tl ‘Nenhumas outras mulheres, mais, no repousado; tl Deum susto vindo de fundo: ea divida; Ll Ela-elats O polvilho, coisa sem firm; Ll Sionésio e Maria Exita—a meios-olhos, perante o refulgir, o todo branco; tel S60 um-e-outra, um em: “peisamento, pensamor. tos, o viver em ponto sem parar, coragomente: Rosa vai processando uma alquimia substancial no som ¢ no sentido, torna- [os coagentes; suprimi -os, qué éxpressam tempo, pessoa enuimero;— ‘as palavras como frases completas; transformando verbos, partici- pios € pronomes em substantivos (o refulgir; no re jousadd; a ela); Fepetindo substantivose/ou pronomes (ela ela’); ut lizando a pontuagio para acentuar {O significado dos substantivos (travessdes, ponto e virgula); rimando, predi -eando,juntand6 palavras com hifens ou sem; e, além diss0 tudo, usando at Frases verbais com sentido mais substantivo do que propriamente temporal, Da srcaing forma cori Maria Exita transforma mandiioca em polvilho e a visio possessiva de Sionésio em liberdade amorosa, também 0 proprio conto, na sua forma narrativa, transforma o tempo em espago, a hierarquia organizadora do _ verbo em paridade ea previsibilidade em surgimento esponta 7 ~[gs0 faz com que as palavras ganhem em subi dade e aparecendo como objetos mais do que ‘como Componentes frasais. Os principais fatos, cenas e revelagoes, na obra do autor, ‘acontecem mesmo dessa forma ~ su-_ bitamente e“sem querer”. Enum rompante que ofitho de“A terceira margem do vio” desiste de ocupar o lugar do pai;que Nhinhinha morre em “A menina de la", 6 sem querer que o burro e 0s poucos sobreviventes se salvam em “O burrfiho pedrés”;é num segundo quea “hora do lobo” serevela em “A hora ea vez de Au- gusto Matraga”. Paradoxalmente,alinguagem prepara leitor paraoestadoideal de distragao, desabituado como fica com esse novo ritmo de leitura ¢ expresso. Sao lugares ~ 0 sertdo, que €omundo-eum tempo em queaatencio das pessoas Goutra, magica e mitica. Nem tudo segue a légica da causa e da consequéncia e, esse pensamento, Nhinhinha morre porque quis um caixdiozinho roxo e opera rmilagres ndo por interesse, mas porque quer ver oarco-iis. Numa subversio do “exo de resultados, em que o mais importante €0 modo como se pensa e ngo que se pensa faz todo sentido queo substantivo ganhe valor igual oumaiot de foi dito, o verbo, como organizador central das frases,age que o verbo. Como ji dentro ede acordo com um pensamento bindrio de sujeito e predicado, causas econsequéncias, eu e outro, natureza e cultura, frases que se subordinam umas 4s outras, Suprimi-lo, claro que parcialmente, faz.com que a narrativa escape, de certa forma, de uma trama verbal. Como na poesia._ eer E aqui, a partir do elemento de transformagio operado por Maria Bxita nas pedras e por Guimardes Rosa na linguagem, podemos recuar um pouco e Pensa ‘como “Substancia” se relaciona com uma das paixdes do autor:a alquimia, que se ocupa da substancia da matéria. Dessa forma, é possivel entender, de ume outra forma ainda, como a operacio substantivadora de sua obra é também uma espécie de forca alquimica da linguagem. ‘Abase da alquimnia€@ hogao ¢ a pratica da transmutacio dos metais. Por cio de procedimentos de purificagao, umedecimento, combustdo, cOrrosss, destilagio e outros, todos presentes na quimica moderna (que, partir do ‘muitos dizem ser herdeira da alquimia), os alquimistas buscavam encontrat on Pedra Filosofal, a imortalidade e transformar metais em ouro. Nao tinham in- ‘teresse utilitario, mas espiritual, também operando nesse processo uma outra smutagao do manipulador alquimico — de “cientista” em eleito, fico em sublime, de fisico em transcendental, de duplo em uno. Trans- formar, para a alquimia, ndo é um processo exclusivo dos metais, mas de tudo 0 que compe #-manipulagao: o metal, o operador, o entomno, de quem faze de quem recebe, dos planos materiat¢ espiritual, dos dados espacial e tempo-_ ral: Trata-seainda de uma tarefa que, embora animica, néo pertence a alguma eligiéo, mas possivelmente a todas ou qualquer uma. Entre alguns dos principios ativos da alquimia esto 0 mercirioe oenxofre, que correspondem aos elementos feminino e masculino: o primeiro, passi volatil; 0 segundo, ativo e fixo. A realizagio alquimica ocorre somente pela fusio de dois principios, igualmente relevantes, mas, sobretudo, opostos. Dos, pares bindrios ~ corpo e alma, matéria e substancia, céue terra, vida e morte, “noite e dia — f pleno total como 0 Pensamenito, pensar) ‘que agem juntos razio e sentimen Rita e Sionésio, “demais”. Agua, fogo, terra ear equivalem, na alquimia, a passagens entre os estados timido, seco, frio e quente: Quente e seco € o fogo; seca e fria é a terra; fria e timida, a ‘gua; timido e quente, o ar. Nada, nesses quadrantes, é isolad®. Ao contrario, trata-se semprede processos @ passagens, em que uma coisa leva necessaria- mente a outra, sempre em iminéncia de transformacio, Em “Substincia” a égua aparece logo no inicio: “Do ralo as gamelas, da mas- seira as bacias, uma polpa se repassa, para assentar, no fundo da agua e leite, azulosa ~ 0 amido ~ puro, limpo, feito surpresa”. Logo em seguida, o narra- dor diz que “a ele, Sionésio, faltavam folga e espirito para reparar em trans- formagées”. Acumulador, “era um espreguigar-se ao amanhecer para poupar tempo no despertar”, Sionésio nao tinha preparo para a alquimia. De inicio, ele era “a pessoa manipulante”, mas nio tardara para que seja’ Seataanipu lado, pronto para a propria transformacio. Ainda no primeiro pardgrafo, 0 conto fala de maio, 0 “més-mor ~ de orva- Iho”. 0 orvalho é tido como importante operador alquimico, e maio, como 0 tinico més em que os alquimistas podem colher orvalho do céu. Quanto a Ma- ria Exita, “a sorte Ihe sarapintara de preto portais e portas”. Sua mae desapa- recera de casa, tinha um irmao na cadeia e 0 outro foragido e seu pai estava em um lazareto. Por piedade, a Nhatiaga a levara para a Samburé, mas, por la, de- ram-lhe 0 servigo mais pesado de todos: a quebra das pedras de polvilho, pos- sivelmente aqui representandoa terra. Nesse ponto, interpretando-seo conto alquimicamente, lé-se a passagem do estado do nigredo (a matéria vil e corrup- tivel) para o albedo (a matéria pura e nobre). Do preto para o branco, do pas- sado suspeito para a pureza do polvilho, pasando pela faina e pelo sofrimento, com serenidade, para finalmente chegar a Beleza —absoluta, Portanto, também Maria Exita, a que transforma, passa ela mesma por uma transformacio. 92 ‘Tudo isso se da a partir do processo de rubedo (vermelho), ou pela luz do sol, ‘que representa o fogo, dianteda qual Maria Exita reage sem ofuscamento, enru- gamento da vista ou incomodo. O sol vermelho age sobre ela e sobre a pedra do polvilho, clareando-as ainda mais e tambéma Sionésio, Mas os olhos dela eram de“outra luminosidade”, como se sua luz proviesse de um lugar nao nomedvel. ‘Wessa altura, Sionésio passa a ama-la mais ou menos. esta em curS0 0 prO- ccesso de transformagao e individuacao na dire¢ao do amor, o mais sublime dos, sentimentos, que ainda exigira tempo para se completar. Sionésio passa a se- gui-la, desconfiado, frequentando festas, para observar se ela € “doidiva”. Mas, “Maria Exita era a para se separar limpa e sem jacas, por cima da vida”, igualzi- nha ao polvilho que quebrava, Bla, na verdade, “servia” o polvilho, “a massa daquele objeto”, ou, ainda, sua substincia, “aardente espécie singular”. Sionésio passa pela ins6nia, questiona a propria sanidade, quer por beiras em seus sonhos de amor, que ainda se confundem com posse. Entre diividas € incertezas, o que clareia seu pensamento é o polvilho: “Ainda que por ins- tante, achava ali um poder, contemplado, de grandeza, dilatado repouso, que desmanchava em branco os rebulicos do pensamento da gente, atormentahtes. Aalumiada surpresa. Alvava.” ‘Tudo se prepara, na hist6ria e na linguagem, para o surgimento espontaneo do grande amor, o tnico e verdadeiro, ¢ o pedido de, juntos, irem e virem e de “nunea precisar de se separar”. E, juntos, diante do alvor do dia, dentro da luz, 0 dois avangam, como “no dia de todos os passaros”, finalmente representan- do-se o tiltimo dos elementos, o ar, ¢ atingindo-se a matéria nobre: 0 ouro, a imortalidade (para sempre), 0 espitito puro, a fusdo dos opostos. Mas onde entratia o efeito de substantivagio nessa anilise do conto pea via alquimica? 4 Osalquimistas utilizavam uma linguagem hermeética, dficilmente acessivel, para se resguardar de censura, perseguigo religiosa e politica e desconfianga po- pular, mas também por principio de confidéncia, sigiloe protegao de suas prati. cas ~e também, é claro, pelo fato de a alquimia ser considerada uma operagio da ordem do simbélico ¢ do sublime. £ 0 chamado hermetismo, aqui de ¢a- riter totalmente intencional. Na alquimia, tudo quer dizer, no mini de uma coisa. As palavras representam a si'mesmas ea outras, formando uma rede de significados e significantes inter-relacionados a serem decifrados por iniciados e pelos muito interessados. Cada elemento quimico, cada elemental, cada procedimento e pessoa valem por sie por outros, em permanente estada._ de combinacao e pass ‘Afinal, nao @ assim a lingua criada por Guimaries Rosa, também hermeética, no sentido de iniciada, também multirrepresentativa e também em condigao de rede de combinagdes e multiplicidades? Nao so as palavras, em sua obra, validas no somente como pontes para a comunicacao, mas também por si mesmas, ou seja, no somente como meio, mas também como fim? Nela coincidem meio e fim, 95 ~~ significante e significado, simbolo e coisa simbolizada,numa tentativa de se atin~ girum momento ideal de encontro, prévio aalguma separagao perdida no tempo, quando o ser que nomeia teria se separado, pela palavra, da coisa nomeada, Nos termos dessa interpretacao essencialista, propria do autor, a palavra verdadeira e mais proxima do absoluto buscado seria o substantivo ~ substan- cia da lingua E-seiisso ocorre em toda obra rosiana, em “Substincia” é precisamente disso que se fala. £.como se 0 conto fosse, ele mesmo, com sua “est6ria” (que toma o lugar da histéria) esua linguagem, um procedimento alquimico, transformando 8 personagens, os sentimentos, mas também oleitor. Essa transformacio ocorre pelos acontecimentos lidos, mas também, e de surpresa, pela linguagem com que ele precisa se confrontar. Suas pauisas, seu ritmo, pontuagio, estranhamento e reconhecimento, prosa poética, inverossimilhanga verossimil, multiplicidade de significados, intertextualidade, simbolismo ¢, de acordo como queinteressaa este ensaio, desverbalizagio ou substantivacao. Trata-se de um estado da lingua, por assim dizer (como se fosse um estado da matéria), em que se subvertem a hierarquia, a logica eléssica e a funcionalidade da lingua comunicante,recorren- do-se aquiloquea lingua tem de mais puro e primeiro: 0 substantivo. ‘AS palavras no tem fumgao apenas atributiva, instrumental, mas funcionam também como “nome” - outra designagao, alids, para substantiyo, O nome, di- ferentemente das outras palavras, relaciona-se mais comas ideias de totalidade, nao finalidade, unidade e simbolismo, reduzindo o que ha de arbitrario nas pa- lavras ern geral. Pode-se dizer que um dos projetos de Rosa € 0 de diminuir até onde for posstvel a arbitrariedade dos signos, transformando-0s todos, ideal- mente, em nomes proprios e singulares. 7 ‘Na Monadologia, Leibniz diz. que “este vinculo ouesta acomodagao de todas as coisas criadag-a cada uma e de cada uma a todas as outras, faz com que cada substncia simples tenba relagdes que exprimem-todas as outras € seja, por conseguinte, um perpétuo espelho vivo do universo”, £ pelo vinealo, acomo- dagio e interconexio das partes e das partes com o todo, reciprocarhente, que a substancia surge como espelho permanente do cosmo, refletindo-o e sendo nele refletida. Pela substancia e pelos substantivos rosianos, tomamo-nos, cada um, Maria Exita e Sionésio, ea pedra bruta que enfrentamos todos os dias pode se trans- formar em polvilho alvo para que, cada um e todos, juntos, cheguemos a viver 0 “dia de todos os passaros”, ‘Noemi jaffe (1962) é escitora critica, autora de,entre outros, A verdadeira istra do alfabeto (2012), {rise as orqudeas (2015) e Nao esd mais aqui quem falou (2017), todos publicados pela Compania das Letras. Coordena a Escrevedeira Centro Culfural Literirio,em Sio Paulo.

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