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[Apauro Novass, FRANCIS WoLFt, FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA, OsWALDO Giacoia JONIOR, CLAUDE TIMBER, JEAN-PIERRE Dupuy, VLADIMIR SAFATLE, ‘OLcARiA MATOS, FREDERIC GROS, NEWTON BIGNOTTO, RENATO LESSA, Euctne ENRIQUEZ, JoA0 CARLOS SaLtEs, JORGE Cott, Euakni0 Bucci, ascat. Disie, PAUL CLAVIER, ANTONIO CICERO, SERGIO PAULO ROUANET, Luv ALBERTO OLIVEIRA, FRANCISCO DE OLIVEIRA MUTACOES A experiéncia do pensamento Oncanizacho Adauto Novaes: edit ean tac neaanRRRRA ocetahnlo an frequentemente tivamente como o lugar de construgio de um Lago (de um amor, de aera uma amizade) nfo fasional, porém liicido, entre homens autGnomos, sempre s mais tensas, A generalizacio s6 é possivel se os sem deixar de lado os fracos, 0 confliro ou a agressividade, ppresentes nas relac cial Se os inv hhomenssublimadores rspeitarem a éice do debate, tal como evocida a. eles munca tearm por Habermas ito: possibilidade para seressinceros de falar 0 mais iad: "Falarj& autenticamente possvel num debate abertoe pilico, onde cade um, strugio “abstraa como numa égora greg, vomara a palavra ouviria atentamente os as coisas. Ema asgumentos dos outros, nde todo mundo dsporis das mesma infor da existéncia dos ‘mages teria wontade de trains de maneirapertinentee de encontrar erate”, que 2 soluges mais vantajsss para cada um dos protagonists. as Sublimaré, por com que prevalega [Actescento, para terminar, que 6s homens sublimadores deveriam res czer do érgio peitaro que chamei em 1997 de ic da finirude, que implica a aceiagio de seus proprios ob seus limites; a capacidade de se questionar a apt de ser ao mesmo tem >eizados pela cultura o um ser racional,imaginativo e passonal; a vontade de que prevaloga em ce aspecto (que é es sia pulsio de vida sobre a pulsio de morte; a coragem de enfrentar as feridas @ por uma pulsio de i rarciscas, de se redefn,deixando de ldo qualquer megalomani, de pas 1 i sxvigo da coletividade, sar pela resolugio do Tuto de todas as ilusdes paralisantes e de ser antes um do que ele virar Jack, homem da interroga¢Zo que da certeza; e, enfim, a vontade de simpatizar i um problema social com outrem e de consideré-o na sua ateridade plena e inteira, mesmo que ‘um niimero suficien- a somibra dele nos encubra um pouco. ssitos individuos sero 2 De fato so raros os homens que praticam diariamente a ética da con- ‘es ilegais e perigosas, verse e da finitude. ccantes de drogas) ‘Talvez nfo existam e nunca existirfo, como dizia Rousseau, falando da sacialmente) como q democracia, Todavia, no € porque um caminho € dificil que € proibido e ctividade do sujeito & 5 ruim andar nele. Como dizia Nietzsche, & preciso ir em fremte com suas = como um desejo de 1 convicgdes, apesar de tudo, O mundo s6 pode mudar se houver homens em toroso, pois ela alme- pé, prontos para enfrentar © abismo. Vamos tentar ser um deles. Se fracas ssxonada pela verdade, sarmos, teremos pelo menos vivido uma bela aventura. ©, artistico ou relacio- z sublimagio a obra (e dado anteriormente foi ‘possivel. Bota generali- Je social investido posi- Opratom te ogy 283 ‘latte aS a 0 paradoxo da imaginagdo: fonte do pensamento, enclausuramento da crenca Eugéne Enriquez Para tratar desta questo, vou convidé-los primeiro a um grande desvio e enunciar uma afirmacdo que provavelmente vai surpreendé-los, mas que tentarei demonstrat: o homem é louco, as sociedades so loucas. Por que posso afirmar que o homem élouco? Muito simplesmente porque, diferentemente dos animais, ele ndo é programado. Ele nfo tem instintos que the permitam saber, desde o inicio (ou quase), 0 que ele tem que fazer, quai os animais dos quais ele pode ser a presa, quais ele pode cagar e comer ou, se ele no for camivoro, quais as ervas ou plantas de que ele pode se nutri. Desde © inicio, animal se comporta como um animal solitirio, se assim ele tiver sido rogramado, como uum animal grupal com um macho dominante ou como um animal de rebanho, tl qual um carneiro. Ele no constrbi seu fururo (exceto raros casos), ele obedece a um destino fixado de antemio, Por isso, salvo 0s ani- ‘mais domésticos lteralmente contaminados pelo homem, ele nfo tem doencas psiquicas. Assim, um cachorro pode ter neuose, mas nunca foram observadas ‘neuroses em ledes, exccto quando se tornam animais enjaulados, © homem é totalmente diferente, embora faga parte do reino animal (© homem nao possui instintos, ele tem pulses, que devem ser canslizadas, 4s vezes recalcadas, mas que precisam sempre ser socializadas por meio do Proceso de educacio e formagio conduzido pelos pais, o qual continuers pelo resto da vida, gracas& existéncia de instituicSes sociais, como a escola, a lgreja, o exército, a empresa, a comunidade, as associagBes ¢ 0 Estado. Ao rnascer, o homem ¢ incapaz de viver se nia tiver pais ou outros educado- res para cuidar dele. Ele nfo sabe que existe e vive numa simbiose com 0 mundo externo, do qual nao é separado. Uma ménada psiquica se constitu progressivamente¢ vai expressar uma fantasia ¢ um desejo de onipoténcia, ligados a uma impoténcia real. Depois, ele vai diferenciar elementos, como © “bom seio” € 0 "seo rim’, desritos pelos psicanalistas, Durante muito tempo ainda — até o “estidio do espelho” evocado por Jacques Lacan e scbre o qual voltareia falar, ele no teré a nogio de “corpo timpo" e, de qualquer taneira, nfo consegue andar ou comer sozinho, E um ser totalmente de- pendente, de seus pas e do ambiente em que vive, le precisa aprender tudo € possui apenas alguns “esquemas motores” (como o sortso) que so inatos. ta dependéncia total) pela existéncia, desde o ini io, das pulses, que ele pode fcar doente psiquicamente. £ neste sentido «que podemos dizer que o homem é estruturalmente fouco, isto & que ele E por esta rardo ( precisa aprender a se tornar um individuo normal eapaz de viver na socie- dade. £, mesmo assim, ndo é garantido! Freud, por exemplo, nunca fala em incl pels existéncia em todo ser humano de conflitos entre as diferentes pulsées (ubsdes de autoconservacio dirigidas para 0 ego, pulsdes sexuais direcio nadas para outrem, ou, ands, pulsSo de vida e pulsio de morte), € depois, quando o aparelho psiquico for consttuido, entre as diferentes instancas da * personalidade (0 id, o ego, 0 superego, 0 ideal do ego) Aliés,sabemos agora que €impossvel estabelecer uma separagdoestrita (essencial) entre o normal eo patolégico. Freud em muito contribu para 0 desaparecimento dessa separaco. Porém, nio foi o nico a fuzé-lo. Mesrno «em biologia, um historiador das ciéncias como Georges Canguilhem che- _goua escrever que “a ameaca da doenca ¢ parte consttutiva da sade” que “o anormal vem essencialmente em primeiro”. ‘© homem precisa Iutar sua vide toda contra a possivel psicose, as ten tagdes paranoicas sero inico poderoso), perversas (usar outrem como um instrumento),histéticas (erotizar todas as relagSes sociais), os diferentes ti- pos de neuroses e as diferentes possbilidades de depressio (em crescimento constante na nossa sociedade contemporinea do individualismo, em que cada sujeito & fadado a se tornar 0 tinico responsivel por tudo 0 que lhe 108 normais, mas designa o normal como um “neutético” normal, acontece). E ds vezes ele no 0 consegue, ou apenas parcialmente, ou apenas por certo tempo. Pessoalmente, vina minha vida um niimero suficiente de dirigentes de empresas, de grandes tecnocratas seguros de si, de repente cair ‘em colapso, delirar ou se suicidar, para poder afirmar esta ideia, E tenho certeza de que voces também puderam constatar este fendmeno. Portanto, o homem ¢estrutralmente louco (no sentido que acabei de rambém vive num std em aberto desce 6 bem colocada por Aristteles: “Como viver mundo igualmente acom ‘alco da humanidade slr oP pins maa a ee er Bina Sel de suas investigaebs, cles aasaram Pvecade ne oe ns regions politicos e csi os, Distnguram concn cesocrs Dolio, «dura, o toraltaramo, a realern on tan Jevam 0s povos a viver juntos num determinade 2 “aime, nent sobre o valor relatvodesses derentes regimes mo dizia Churchill “excluindo todos os outros, é 9 ior dos regimes” Xe entanto, ao olhar de perto os funcionamentos democriticos, s6 pode. ‘0s fcar espantados comsua diversidade. A demo ‘nunca existiu e provavelmente nunca existié, A democraca também ter outro inimigo que aguarda cespreita: 0 tota- Htarismo. Com efeito, Opiate cinaagss cestio dispostas a recorrer a um homem providencial, a um grupo, a uma casta, para restabelecer a orem ¢ criar um novo Estado, desta vez, virtuoso para valer. Apesar ce suas diferencas, os regimes fascistas existiram na Alemanha, na ili, na Soviética, da China, as diversas sspanha, Os regimes totalitérios da Uni ica do Sul conheceram (Brasil, Argentina, Chile, 1odas ~ pelo menos no seu discurso dltadusas que ospafses da A Uruguai ete), quiseran order e edificar um nov tado virtuoso, no qual todo mundo estaria se con- dduzindo de maneira normal, ou seja, da maneira imposta pelo Estado. Assim, ndo apenas o homem que € louco, mas as sociedades também o ‘sfo, 0 que significa que elas devem combater todos 0s dias as doencas que as roem (a corrupedo, 0 roubo, 0 assassinato, o crime organizado, 0 tréfico de drogas etc.) (Os seres humanos como as sociedades sio submetidos & neotenia, ou seja, ao processo de “fetalizacio” descrito por L. Bolck, ao arrefecimento no proceso de crescimento, 20 prolongamento excepcional do periodo juvenil, «que faz com que o homem continue sendo, mesmo ria idade madura, uma eterna crianga € que as sociedades passem o tempo repetindo os comporta: mentos mais catastrficos, Felizmente, a loucura ea neotenia sio estrururalmente ligadas a capaci dades de adaptacio e, sobretudo, de criagdo reforgadas. Capacidade de cria éo ligada a um elemento fundamental, caracteristico da espécie humana: a imaginacio. Disseram muitas vezes que o que caracteriza a espécie humana é a lin- guage ou entio o trabalho produtivo (Marx). Acho que aquele que foi ‘mais longe nessa diregio foi Aristteles, que nos diz: “A alma munea pensa sem fantasia” (no sentido de imaginagSo) ¢ ainda: “Nao existe desejo sem imaginagZo” (da alma). Fora isso, o que caracteriza a espécie humana, ot seja, 0 pensamento criativo (ao pasto que os animais sao levados por seus instintos € no constroem nada) ¢ © desejo baseado na falta e que & insacia- ‘vel (ao passo que os animais no t@m desejos, apenas necessidades) podem exists apenas gracas ao que Aristoreles chama de imaginacao primordial, @ que o filésofo francés de origem grega, Cornelius Castoriadis, que aprofun- dou e renowou 0 pensamento aristotélico, chamou de imaginacio radical no seu grande livro A instituigdo imagindria da sociedade (1975). 'A imaginagdo humana ¢ totalmente desenfieada, ea se ibertou do jugo do funcionamento biolbgico e de suas finalidades. Bla cria praticamente ex niko Bla &a dimen: 1 AristSteles) ou de sua psique (para falar como os psica Embora nie praticamente do nada, ela precisa leva quatro fantasias originais, EEssas fantasias sZo jguais para todos os in fuos, sendo que cada um 2s processa de um modo peculiar, cada vez tinico, dentro e por meio de sua wltura propria, Seu carter universal € comprovado pelo fato de que si0 ‘encontradas a0 mesmo tempo nos mitos das diversas culturas e nos sonhos 40s individuos, sob. as formas, mas ficeis de reagrupar: A fantasia da sedugdo pelo adulto se li na diferenca das geragdes. Fla onjuga ternura, erotizaclo, agressividade, numa idade em que a nuance raga e qua se fala da mie “primeita sedutora 1¢ 08 cuidados que el Propicia a crianca sao “excitantes” A fantasia da cena primitiva responde & questdo da diferenca dos sexos € ‘sua obrigarbria reunio para conceber a geracio seguinte. A crianca ima s3ins um coito parental do qual ela ¢ de uma sb vez o diretor, o espectador, todos os patceiros 20 mesmo tempo, por identficagio e condensacio, como ‘num soho. E do qual ela também é 0 produto, isto é esta fantasia remete A ‘questo das origens, questio necessariamente dolorosa ¢ sem resposta certa ser que meus pais fzeram amor para me conceber ou somente por prazes? A fantasia da castragao coloca ordem na cena caética anterior. Ela mon. ‘2 um roteiro com pessoas distintas, sentimentos e © desenrolar de uma ago. Hé um sujed um desejo, o objeto deste desejo, uma pessoa que en carna a proibi¢Zo. Hé uma ameaga externa, seguida de contato visual com © Srpio excitivel e culpado em todos os sentidos da palavra; éngio que es ‘abelece a diferenca entre os sexos, no lugar onde ocorre a distingo entre ‘geragbes, naquela zona que é para todos inegavelmente a zona erégena (a rea do prazer) por exceléncia. A quatta fantasia designa a aspiragio a volta para o ventre materno Assim €a eterna volta, a idade de ouro, o paraiso perdido, a fusio beata com ‘todo (0 que o autor Romain Rolland chamou de “sentimento ocesnico") A imaginagio radical (que Descartes chamava de “louca da casa” e que ele queria sepuciar por completo) cra os axiomas, os pstulados, os esquemas fundamentais; la fornece as hipéteses, os modelos, as idetas, as imagens, Ela std na funda de todos os mitos e, para os que nfo acreditam em Deus, n2 psa daimminiy a7 de todas as religides. De fato, ela vai servi para que o individuo crie um mun: oem que ele se sentiré menos desprovido, onde ele conseguiri exorcizar seu medo fundamental. Pois o homem tem medo. Como diz 0 filsofo francés iedade no nais conhecido sob o pseudénimo de Alain, te filha da fome (que implica que pessoas com competéncias liferentes se unam para colaborar ¢ encontrar ou elaborar a comida necess ia & sua sobrevivéncia), mas sim do medo. Medo do cosmo incompreensivl, ‘medo dos outros que podem rejetilo ou até mato Para lntar contra estes dois medos conexos, a imaginasdo vai construir ritologias (ao existe sociedade sem mitos © sem ritos que permitam 2 protegio por totens ou divindades criadas) e religides que vio religar (& 0 primeizo sentido do termo) os individuos uns com os outros, criando assim Jagos de simpatia e de alianga para afatar os temores. Ela também vai ins ‘aurarinsituigdes sida, lesa serem respeitadase obrigases moras. Mas o homem nfo pode ser definido pelo medo, que o leva a tomar «em consideragio 0 principio de reaidade. Ele & também e mais fundame: lalmente um ser que quer seguir a cartilha do principio de prazer (prazes sexual, onipoténcia do pensamento). Como escreve Freud: “Com a instas racio do principio de realidade, uma espécie de atividade de pensamen: se desprendeu e permanece livre no sew confronto com a realidade e ficou suibmetida apenas 20 principio do peazer. Ea fantasia — jf presente no com 0 das brincadeiras infantis e mais tarde prolongada como devaneio dium que se dessmarra (Ancora) dos objetos reas”. O que Castoriadis coment da seguinte maneira: “Se esta atividade ‘permaneceu livre’ em relagio & rez lidade, isso significa que ela jé 0 era antes. Ejé que este “desprendimentc 6 aconteceu coma instauragio do principio de realidade, a consequeéncia & obviamente que 0 funeionamenco inicial da psiqué era mera fantasia sate fazendo o principio do prazer, ou se, a isnaginagio livre”. 8 0 que formulado corretamente pelo poeta surrealist francés Andeé Breton g do ele escreveu: “O homem, este sonhador definitivo”. (Que o ser humano sonhe, fantasie, mostreo trabalho permanente da pss «qué para construirimagens, para dar uma forma a algo que no inicio no as forma jé que 2 psiqué € constituida por pulsbes, sso tem uma consequéncs cssencial: a primazia do prazer da representagio sobre o prazer do Srgic. ‘Vamos explicar. O desejo sexual (baseado na pulsio sexual) nio dev confundido com a descarga sexual. O desejo sexual se expressa através ota Eine gar (€0 damen- ‘prazer e ficou diurno omenta 2 satis: jd fora quan- da psi tinha aéncia és de pr peramos que ¢ ntacio do ser amado ou simplesmente desejado; imaginamos 0 er que vamos ter com 6 outro, 0 praze radivel, surpreen. inversamente, temos medo de no “corresponder”, de nio ficarmos s tos ou de nfo si ‘© outro. Pensamos no momento en a gente vai viver aquilo com deleite ou com angistia. A satisfagio sexual é apenas um ‘momento deste processo de imaginagio e também de pensamento, ja que todo pensamento se amarra (e se sustenta) numa figura ou numa imagem Se nao houver o prazer da representacio, s6 resta o prazer do orgio, ' mera descarga sexual. Nao hi mais amor nem erotismo (pois o erotismo vive de im: ao ver botinhas de mulher). $6 resta a pornografia sens ds vezes surpreendentes; basta pensar no prazer de alguns do efémero, do olhar da Performance, que hoje seja o momento mais pomnogrifico desde o inicio. E sintomético da nossa epoca, da velo da humanidade. Todas as revistas que tratam de sexo s6 falam em: “Como ‘melhorar seu desempenho sexual”, “Como descarregar melho:", por mais tempo, mais rapidamente, com o méximo de parceiras. E, quando vocé ter ‘minou de descarregar, 6 resta 0 tédio ou a obrigacio de recomecar, que desemboci também na tristeza ou, talvez, também no assassinato, como 0 ‘mostram as obras de Sede. Esquecemos que sem o prazer da representacio somos apenas animais (ou até piores do que eles, vito que aparentemente eles tém representagdes ligadas Fazer com que o prazer da representaco prevaleca sobre o prazer do ér- ‘30 abre para o ser humano o prazer do pensamento, Mesmo o pensamento ‘mais abstrato vai ser filho da imaginagZo e nfo de uma razo despida de todo desejo ou, melhor ainda, de uma argumentacio estritamente logica, como 0 express magnificamente o poeta inglés William Blake: “O que é prova hoje antes disso foi pura imaginagio”. Alguns exemplos para sustentar o que afir- ‘mo: dois que me foram inspirados por Kekulé, o fundador da quimica orga: nica estrutural. O primeiro & brevissimo: uma noite, Kekulé tem um sonho fem que séo representadas seis serpentes em circulo, cada uma mordendo a ‘cauda da anterior, No dia seguinte, ele encontra o que procurava em vio havia ‘muito tempo: a férmula estereoquimica hexagonal da molécula do benzeno, (© segundo, um pouco mais longo, eu tomo emprestado do diitio de Kekulé, que conta 0 nascimento da estrutura atémica: “Numa bela noite de verso, serualidade. pan de gagso 29 o tiltimo énibus estava atravessando ruas desertas. Na plataforma onde me encontrava, eu estava num estado de devaneio, vendo étomos flutuando, Eu nunca conseguira representar a natureza deste movimento. Naquela noite tanto, vi que os men egos por el. dos giravam num turbilhio, parec nuitas vezes acoplados aos maiores ou (uns maiores arrastavam més ou quatro pequenos ¢ que to: um extraordinario bale. Vi os maiores se alinhando, um deles selecionando os menores na extremidade da ca acordei do men devaneio 20 ouvir 0 motorists grit “Chapman Road’ cu passei uma parte da noite 2 rascunhar modelos das imagens vistas no meu sonho. Foi assim que a teoria da estrutura atmica foi concebida Outro exemplo é relatado por Claude Bernard, que conta que ficara ‘marcado ~ um dia em que ele olhava diferentes tanques em que tinham colocado visceras variadas ~ pelo fato de moscas se aglutinarem no tanque onde havia figacos. Em vez de reclamar contra a sujeira do local, ele excla mou: "Ha agicar si dentro!”. Foi assim que ele descobriu a fungéo glicoge: rica do figado, tio importante para o tratamento do diabetes. Um coments ‘sta escreveu a respeito: “E um processo de associagio de ideias totalmente analogo a0 da poesia. A impulsio motora é a mesma, A primeira fonte da iéncia ndo ¢ o raciocinio, mas a verficago detalhada de um casal proposto pela imaginagSo”. Outro comentarista “A gente se dé conta da verdade, € cla 86 é emxergada quando for inventada por alguém com talento”, Essas historias mostram a importancia do jogo e da divagacdo na des- coberta e nos asseguram que a imaginacio nio est em contradigao com 0 ‘igor cientifco, pelo contritio: ao favorecer a disponibilidade para a surpre: saeco incongruente, ela fornece ao esforco racional novas hipdteses a testa, nnovas imagens a explorar, novas estruturas a estabelecer. [Nao esquegamos que Freud sé conseguiu entender a fungao do sonho, “ca ‘minho real da psicandlise”, ao prefeir “a sabedoria popular”, que sempre reco- snheceu a existéncia de sentido nos sonhos, ¢ no as tearias cientficas, que os li ‘mitavam a um “fendmeno orginico revelado apenas por certos sais psquicos”, AA imaginagio criativa recorre em grande parte a’um tipo de raciocinio hhabitualmente banido pelos cientistas académicos: o raciocinio por analo- .2ia, que, no entanto, serviu a James Watson ¢ Francis Crick na sua descober ‘a fundamental da estrutura em dupla hélice do DNA. Noto en passant que, ‘no seu livro, Watson é carregado de ironia para com a ciéncia e os cientistas ‘bem estabelecidos" adeia tinham no tanque ele excla so glicogé: a.comenta rotalmente « fonte da I proposto, verdade, ¢ Jo na des. ta surpre ssa testa, onho, “ca ‘pre reco: que os l ssiquicos”. or analo- lescober- sant que, sientistas O raciocs 'o por analogia é considerado pelo psicélogo W. J.J. Gordon, eviador de “sinética”, como essencial em qualquer atividade criativa, Par analog A analogie pessoal ‘Um quimico poders assim renovar seu problema sc ele se identificar 7 as moléculas em acZo. O técnico inventivo se imagina sendo uma molé ula dangante ele vompe com a atitude desprendida do perto para se jogar Pessoalmente na atividade dos clementos que ele estuda.” Do me lado, Procurei tanto me identificar com tecnocratas perversos para tentar enten der a perversio social que amigos me disseram depois de ter lide meus I wros: “Nao sabiamos que vocé era tdo perverso’ ¢ tive de responder: “Nao, como Freud diz: sou apenas um neurético normal’ A analogia direta la serve para estabelecer uma comparacdo, para colocar em paralclo fat0s,-conhecimentos e disciplinas diferentes. Por exemplo, podemos estu: dar a maneira como um molusco se abre e se fecha para construir um mo. elo de distribuidor que se fecha sozinho, A analogia simbélica Els recorre a “imagens objetivas e impessoais” para descrever 0 proble- ‘ma, Tratase de-uma resposta pottica pela qual se condense numa “imagem Satisfat6ria, mesmo que nao pertinente tecnicamente, uma visio imediata dos fatores do problema", Um fisico como Maxwell elaborava imagens mentais para todos os seus problemas (foi assim que ele elaborou sua famosa imagem do “deménio", capaz de separa individualmente moléculas de gis). A analogia fantéstica A liberdade dos sonhos, até entio reservada aos artistas, também existe nos clentistas. Gordon precisa: “As manifestagSes culturais da invengo na area das artes e sobrerudo das cigncias sio da mesma natureza ¢ se caracte- izam pelos mesmos processos fundamentais” a Estas diferentes formas de analogia fundamentam dinamicamente as iuas frases essenciais do processo inventivo: a) Tornar 0 insélito familiar, b) Tomar o familiar insélito Gordon chega dessa maneira a uma descriglo da atividade criativa mut > préxima daquela que fora evocada desde o inicio do século xx por Victor Segalen. Esse capitéo de navio foi também poeta (um grande poetas francés, pouco conhecido, do século passado), romancista, especialista da escultur chinesa e etndlogo. Ele dizia que todo homem, se quiser ser criativo, tem ser “exbtico”, isto €, alguém sensivel A variedade, & diversidade, 2 uma visio renovada, ao questionamento de todas as coisas, « uma concepga0 do mundo; um individuo a0 mesmo tempo sempre presente ¢ sempre mar ginal, um estrangeito afinal de contas, capaz de olhar o mundo como se estivesse vendo pela primeira vez. (© que acabamos de examinar nos mostra que o pensamento, para ser 0 que cle 6 para se desenvolver sem estorvo, precisa se familisizar com 0 que Valéry chamava “as coisas vagas”: na maioria das wezes, sio as coisas essen ciais, A que nio cercadas, nfo formalizadas, nfo padronizadas e que exigem © sopro da imaginacio. O pensamento precisa pegar atalhos, estar pronto para reconhecer 0 imprevisto; para desenvolver um gosto pelo imprevisivel, pelo surpreendente; para confiar na analogia, na metifora ~ pela capacidade do trabalho metaférico metamorfosear as coisas ~; para recorrer a associngbes de palavras, de ideias (como no trabalho psicanalitco ou na poesia). "Temos que acrescentar que, como evocava o fildsofo das ciéncias Gaston Bachelard, é preciso combinar a pesquisa mais rigorosa com a aspiracio po- ética mais aventureita. Observemos a este respeito que, se Bachelard escre ‘yeu obras como A formagdo do espirito cienifico ou O novo espirito cientifico, cle também teria escrito livros como A poética do espago, A dgua e 0s sonhos, Oare.os sonkes. G. Bacheland, que foi um dos mestres de L. Althusser e de M. Foucault, sabia que era necessério combinar imaginagio, sonho, devaneio, observagio © ‘experimentagdo para construir o que ele chamou de “conceitos transracionais” ou “transespecificos”, os quais permitem que o pesquisador nfo se tranque na sua discplina e tenha uma visio transdiscplinar, pois somente esta visio favo- rece verdadciramente a descoberta. G, Bachelard, que era professor concurs do de universidade e doutor em filosofia ¢ em fisica, foi o exemplo perfeito do * Individuo modesto (ele vinha de um meio muito pobre) que tina uma visio * eetaordindria das elas que existe entre a coisas mais diversas. Ele pode ‘sso exerer ura infladncia deca na reflex de ako vel na Panes, de Grésiaanig, nos diz nos seus limos rabalhos que suas peagues que i foram profane inovadoras para a compreenio da scedade grea i 36 obtiveram tis resultados porque ele consegui colocar em rlage ee mentos que preciam totalmente separadosi modos de penstnent, regres ~ : de dieio, indicagbes para anavegaio, textos teats ete : x gostaria de citar em Simo lagar um homem como Roger Callas, ue fo sociblog, etndlogo, poets, dretor de uma revista deciéncas hare as, especilista nas pedras mais raras, Ele construit os primeitoscleney, tos daquilo que chamou de “ciéncias dagonais”. Para ele, “a progresso do Conhecimento consiste por um lado em descartr as analogs supericais em descobritagos de parentesco profundos, menos vss talvez, porern ‘als importantes e significative [..] A verdadeira area consiste rm deren tinarcorrespondincias subtesrines, nvsives,inimaginives para oleigo, Essasrelagdesinéaitas umem os aspectosinesperados que softer os eels de uma mesma ei, as consequéncias de um mesmo principio ou as resposts 4 um mesmo desafo: odens de coisas pouco compativeis entre si” Depois do que acabei de dizer, vocés vio entender que verdadeiro Pensamento critivo, isigado pela imaginagio,s6 existe para mim se how. ver vontade de descobrirrelagbes no previstas, correspondéncias ent 24 coisas eos endmenos, conivéncias negligenciadas, commelagies sutie Precio acrescentar dus caracteistias pata terminar minha investige sto sobre a forga da imaginagdo primordial ou radical no processo do pense ‘mento, Para comes, esta imaginasio vai mobilizar a categoria do adiads 2) Adiado como introdutor da diferenca (contriio da repeticio) Mudan- <2 continua dis modalidades de apresentaso do deseo, deslocamento do desejo para objeto, invencio de imagens para moldar a realdade,

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