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28 “A BASE E A BASE”. E O CURRICULO O QUE E? Blizabeth Macedo (UERJ) Essa rfréncia (a BNCO} 60 ponto ao qual se quer chegar em cada etapa da Educa Baisiva, enquanto os cunriculastrazam 0 caminbo até li. (MSC, 2017, p.5) m texto de apresentagio da primeira versio da BNCC, 0 Ministro Renato Janine aludia, talvez, ao famoso pocma de Gertrude Stein ao proclamar que “a base é a base”. Na poesia de Stein, uma rosa é uma rosa... € isso diz, por um lado, que uma rosa é apenas uma rosa ¢ nada mais, Sem discussio, sem complicagiol Por outro, que as palavras nfo tém relagio direta com as coisas que pretendem representar, como também propunha Shakespeare em relagio 4 sua rosa, cujo cheiro nada devia a0 nome. Como palavra e coisa no correspondem, uma ver que usamos a palavra para nomear, o ato de repeti-la se torna imperative para a manutengio da relagio inventada. Por isso, segue-se reiterando que a base é a base. Ao apresentar 0 documento aprovado pelo CNE, o MEC mantem apenas a forma trocadilho do original e proclama que “educagio é a base”. O que esta frase nos diz. sobre a ideia de educagio com que o MEC trabalha? Que a base de que se esté falando — nacional curricular comum — é 0 mesmo que (ou contempla) a educacio que pretendemos dar as nossas ctiangas. Nao fosse este um dos sentidos possiveis, o trocadilho nao se aplicaria. leitura mais benevolente, diz-nos que a educagao é a base para outras conquistas, seja para 0 pafs, seja para cada um de nés. Ainda que se tenha constrafdo em toro deste segundo sentido uma certa aura positiva, hé, nele, a assuncio de que a educacio precisa, pragmaticamente, ser itil para algo que viri. Assim, ela é marquetizada, um bem a ser trocado no mercado futuro, Inicio este texto desta forma, porque meu objeto aqui é a atual distinglo, feita pelo MEC e explicita nas palavras do Ministro da Educagao que uso como epigrafe, entre a BNCC 29 08 curriculos, BNCC nao é curriculo!, temos ouvido por ai como resposta is muitas critica de que a base reduzia o curriculo a uma listagem de competéncias. Se é positive que o MEC. tenha incorporado, de forma explicita, essa distingio, nfo se deve permitir que ela escamoteie que a politica de estabelecer uma base nacional ¢ comum pata os curticulos produz um significado para cutticulo — que ter4 que ser repetido posto que nao coincide, nem poderia, com a coisa, F, quando se diz que a educagio é a base para o futuro, algo desse sentido ja & projetado. Leio © documento aprovado pelo CNE para buscar outros elementos que me permitam entender um pouco melhor o significado de curriculo que a BNCC produz ao pretender sustentar a disting4o que o Ministro anuncia. Ao longo das paginas iniciais da Base, suas palavras sio reiteradas na ideia de que os curriculos serio elaboradas ow construtdos [pelos municipios, pelas escolas ou pelos professores] tendo a Base como base, Em uma formulagio mais direta dessa relagio, di que “BNCC e cusriculos tém papéis complementares para assegurar as aprendizagens essenciais definidas para cada etapa da Edueagio Basica, uma vex que tais aprendizagens s6 se materializam mediante 0 conjunto de decisdes que caracterizam © cutriculo em ago” (MEC, 2017, p. 16). Surge, assim, um termo jé cléssico no campo do curriculo que pretende dar conta de que os cutriculos formais nao esgotam as possibilidades do que ocorre nas escolas. Curriculo em agio, portanto, é um conceito que sé faz sentido com o seu duplo, 0 curriculo escrito ou formal, neste caso, a BNCC. A BNCC seria, assim, curticulo, mas nio esgotaria as possibilidades de ser do curticulo, O conceito de curriculo em acio ou vivido aparece em diferentes autores no campo do curriculo, no geral, se referindo, ao que ocorre nas escolas. A ideia de complementaridade em relacio a0 curriculo prescrito também perpassa a maioria dos sentidos que ele vai assumindo na literatura, dando conta da impossibilidade do cusriculo formal fazer jus as cexperiéncias imprevisiveis que ocorrem no dia a dia da sala de aula. Gosto, especialmente, da defesa inicial de Greene (1977) de que o sentido de curriculo precisava englobar mais do que © saber socialmente prescrito a ser dominado, abrindo-se para experiéneias que permitissem 20 aluno compreender o seu proprio mundo da vida. Hi, na ideia de curticulo vivido de Greene, uma chamada para que a escola se abra 20 que nfo pode, nem muito menos deve, ser planejado, projetado e essa chamada anima um sentido de educacio como subjetivacio. Embora em tons fenomenolégicos, tal chamada — que, sem ser 0 mesmo, dialoga com Dewey — encontra ressondncias nao apenas em autores fenomenolégicos (Pinar, 2016) como eriticos (Apple, 1993). Marca a reconceptualizagio dos estudos curriculares americanos 30 ¢ esta presente, por outras vias, na NSE inglesa, ambas pilares constitutivos do campo no Brasil. Uso aqui essas referencias antigas para dar conta de ha quanto tempo essa discussio aiesté, O sentido de curriculo em agio mobilizado pela BNCC vem de outta tradicio, aquela que exatamente 4 sendo criticada por Greene e por grande parte do campo do curriculo nos iltimos quase 50 anos. Nela, o curriculo em ago é uma releitura do currfculo formal que ocorre por ocasiio de sua implementagio. Talvez se possa defender que a releitura, a0 focar no local, absiria 0 curriculo as experiéncias dos sujeitos. Uma experiéncia, no entanto, projetada em nivel municipal, escolar ou da sala de aula, nfo a experiéncia imprevisivel que a prépria ideia de um curriculo nacional necessario tora dificil conceber. Para a BNC, a complementaridade entre curticulo prescrito ¢ curriculo em acio é da ordem da aplicacio, a Base seta implementada como curriculo em agio. Stephen Ball (2009) nao é 0 tinico autor a denunciar os problemas de um modelo que, como este, aparta formulacio de implementagio curricular. A prépria recorréncia de estudos que apontam dificuldades de implementacao, quando as politicas formuladas nao entregam o que prometem, indica a faléncia do modelo, Na literatura nacional e internacional (Loveless, 2016; Ravitch, 2013; Reid, 2009; McCarty, 2009; entre outros), esta cada ver mais claro que intervencdes centralizadas via cutticulos formais falham sistematicamente. Nao é inexorivel que politicas paiblicas, para serem pablicas ¢ lidarem, por exemplo, com a educacio de todo © pais, tenham que produz resposta centralizadas; elas podem ser gestadas nos espacos-tempos em que as intervengdes acontecem, O exemplo da Finkindia (Sahlberg, 2015) é icdnico ao demonstrar que as politicas curriculares podem ser pensadas ra escola, se houver valorizagao dos professores ¢ financiamento adequado para a educacao. Por outro lado, os resultados da aplicagio do Common Core americano vém demonstrando que nio ha redugio nos niveis de desigualdade social e racial com politicas centralizadas, 20 contririo (Ravitch, 2013). Jé nos anos 1970, a Nova Sociologia da Educacio inglesa indicava que, mesmo quando nio havia cutriculos nacionais, testagens de larga escala legitimavam, determinados saberes ¢ ampliavam a seletividade da educagio, prejudicando grupos sociais ‘menos favorecidos (Young, 1971) Se ha tantos indicativos de que tais politicas nao dio os resultados esperados, o que justifica a insisténcia? Hé, claro, a incredulidade dos formuladores de que algo produzido com tanto tigor cientifico possa nao funcionar, Ha um discurso pedagégico prescritivo que, com boas intengdes, pretende ditar o que 0 Outro deve ser (Gabriel, 2017; Macedo, 2017) 31 HA uma sensagio de desespero e desamparo criada por uma propaganda de que, apesar do esforgo de muitos, a educagio no deslancha (Taubman, 2009). Mas h, também, nao sejamos ingénuos, interesses comerciais muito fortes, num pais em que a populagio em idade escolar é de aproximadamente 45 milhées de pessoas (IBGE, 2010). Em 2018, apenas em recursos do tesouro nacional, consta do orcamento 0 valor de 100 milhées de reais para a implementagio da Base. Ela cria um mercado homogéneo para livros diditicos, ambientes instrucionais informatizados, cursos para capacitacio de professores, operado por empresas nacionais, mas também por conglomerados internacionais. Exemplos que sustentam essa ilagio sio diversos: as consultorias na formulagao dos “curriculos em aco” nos municipios; (0s seminarios envolvendo instituigées estrangeiras com vistas 4 formacio de professores; os movimentos das diversas fundagdes no sentido de produgio de material e capacitagio. S6 para dar materialidade a tais exemplo, em marco agora (2018), ocorreu em Sao Paulo, evento de promocio da Mindl ab, empresa privada que vem atuando na formacio de professores ¢ em ambientes informiticos para o desenvolvimento, entre outros, de jogos educativos voltados ao desenvolvimento de habilidades socioemocionais, um dos “novos” conceitos presentes na BNCC. A propaganda da MindLab traz um conjunto de parcerias com Universidades estrangeiras, dentre as quais a Yale University, em que sio realizados estudos experimentais — modelo cuja validade é questionada na literatura educacional desde os anos 1970 — com a fungio de avaliar os jogos por ela produzidos. Na mesma época, no Rio de Janciro, ocorria um evento sobre a BNCC e a formacio de professores, nos quais estavam representados o MEC, o Teachers College/Columbia University e a Fundagio Lemman. A ‘inica instituigio de formagio de professores brasileira presente oficialmente eta o Instituto Singularidades, sediado em Sio Paulo parte do grupo Peninsula (Leia-se Abilio Diniz). Estamos abrindo mio do carter piiblico das politicas educacionais, nio apenas pela parcer com instituigées privadas, mas pela assimilagio de seus modos de gestio (Ball, 2012). Estamos jogando fora uma experiéncia de formagio de professores ¢ de pesquisa das Universidades brasileiras para “comprar” parcerias internacionais contestadas em seus cenitios nacionais e que pouco conhecem da nossa tradiglo. ‘io quero, no entanto, finalizar este texto sem enfocar a base em si, entendendo la funcionara como curriculo prescrito e como norteador da a que aliagio, segundo o INEP € 0 préptio documento. A versio aprovada conta, em relagio as demais, com a novidade de ser estruturada em torno de competéncias, como ocorria com os PCN. Nio hé diividas, como atesta a BNCC, de que os curriculos centralizados no mundo tém, em sua maioria, usado a linguagem da competéncia, ainda que seus sentidos variem de caso a caso. Trata-se 32 de um termo em disputa que vem sendo significado de formas distintas, remetendo a Chomsky, Piaget, a novas formas de produgao, entre outras. Se esses sentidos circulam aqui cali nos debates da BNCC, a nocio de competéncia como “mobilizacao de conhecimentos (.), habilidades (..), atitudes ¢ valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana” (ME Funciona, assim, como standard para avaliacio ¢ torna-se uma versio atualizada da velha 2017, p.8) é materializada, ao longo do documento, como meta a ser atingida. racionalidade sistémica que sustenta a claboragio curricular técnica, especialmente bem desenvolvida nos EUA. Taubman (2009) identifica os primérdios dessa tradigio mas demandas do treinamento militar americano do periodo da Guerra Fria, destacando que as, politicas recentes tém se apoiado em um conjunto de teorias de aprendizagem mais complexo que inchai campos tradicionais — psicologia, linguistica, ciéncias computacionais —, mas também a neurociéncia. Nao é a toa que as competéncias sio formuladas, na BNCC, como comportamentos mais globais, depois sio desdobrados em habilidades. Fistas sto descritas ‘em termos comportamentais como aquilo que se espera do aluno, nio uma base de onde se parte, mas uma descticio de onde chegar. Os velhos modelos de Bloom ¢ Mager (MEC, 2017, p.29) — expoentes da abordagem técnica dos anos 1950-1960 — estio de volta para possibilitar a escrita clara e inequivoca das habilidades, codificadas com letras e ntimeros cuja montagem é detalhadamente explicada. Como 0 documento informa que tais cédigos nao explicitam sequéncia ou importincia, o sentido de seu destaque seria, talvez, apenas fortalecer © imagindrio de controle necessirio & implementacio de um curriculo formal centralizado. Certamente, esti-se contado que a avaliacio desempenhe o seu papel de direcionar tal implementagio ¢ os cédigos setiam um lembrete, aos mais rebeldes, de que cla ocotrers. Longos ¢ complicados, eles gritam que a base é a base. Desde 0 inicio deste texto, os versos de Gonzaginha tém ecoado — com Gertrude Stein e Shakespeare — na minha cabega: e a vida, o que €2, diga ld meu irmio. Como nosso poeta, eu fico com a resposta das criancas. O curriculo, quando é vida, & bonito, é bonito é bonito. Sua “boniteza” se manifestard sempre nos espacos-tempos em que a educacio acontece e 0 espelho seguira respondendo “branca de neve” para a bruxa ma. Mas os efeitos de normatividades que tratam a vida como o distiitbio a controlar e a sujeita a eliminar, nio podem ser d esptezados por educadores tesponsiveis — porque elas atuam sobre nés € porque precisamos seguir com nossas bonitezas. REFERENCIAS: APPLE, Michael. (1993) Official Knowledge. New York: Routledge. 33 BALL, Stephen. (1994). Educational reform: a ontical and post-structural approach. Buckingham, (Open University Press. BALL, Stephen. (2012). Global education Inc: new policy networks and the neoliberal imaginary. New York, Routledge. GABRIEL curricular. Curriculo som fronteiras, v.17, 0. 3, p. 515-538, set./dez. armen (2017). Contetido-rastro: um lance no jogo da linguagem do campo GREENE, Maxine. (1977) Curriculum and consciousness. In Bellack, A, & Kliebard, H. (orgs). Curriculum and evaluation. Beketley. McCutchan Publishing Corporation, 237- 253. IBGE, (2010). Censo 2010. Disponivel em: hteps:/ /censo2010.ibge.gov.br/. Acessado em 14 de marco de 2018 LOVELESS, T. 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