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ee LN Cr aacs IvAN DOMINGUES OFioe 6 irana tempo que passa e escorre sobre 8 eternidade que, insita em loco 0 fluir, permanece no émago do tempo. O tempo passa? Ou permanece? O Fio ea Tama levanta @ defende @ tose — uma tese forte —de que tempo & eternidade se constituem mutuamente. Ndo 6 86a eternidade, © eterno momento presente, que constitui o tempo, como ensinava Santo Agoatirho. Tambem vale 0 contrario: o tempo constitui a eternidade. Tempo e eternidade, num onmeiro momento, entram em oposigao se excluem, mas, logo depois, se entrelagar, se intergonetram e constituem @ tessitura de uma trama bem urdida. Tempo ¢ otornidade, juntos, indissociades, fazem a Historia em seu duplo sentido: Histéria como fluir ontolégico das coisas Historia como um modo especifico — Historiogratia — de conhecer as. coisas que fluem. Os Gregos j4 0 sabia, os Medievais 0 disseram; nds, ne Madernidade, duyidamos, hesitamos, mas continuames pressuponde tempo & etermidade ‘como elementos constitutivos do dia-a-dia qua, embora eterna, escorre e vai emibara. E eterno enquanto dura, Nao. e ura “contradigao? & sontracigao, fulguram, comp lafsens, no cunno histérico do tempo coro da inextiroavel tomporalidade que thes. © propria. As iddiae cle necessidade © 0 corar contingenty das coisas, ambos estao nernpie prasentes na tossitura de em que o fio do tempo se ennola sobre si mesmo e se consittul como etemidade. Unidade dos opostos? Dialética? Ivan Domingues no us a palavra, mas certamenle se insere na grance tradigao que nos vem de Herdclite e de Platév, do Cusarus @ de Hegel. Herdclito cizia que sé as criancas @ os sibies conseguiamn compreender como os polos opostes, alem de se exclu, também se constituiarn Mutuamente: a corda e © arco. Platao apresentava a filosotia em duas coutrinas. A doutsina exotdrica — para os principientes e para os de fora — yatava so dos opostos enquanto excludentes uns dos outros. A doutrina asotérica — pera 08 iniciados, para cs de dentro —, nunca escrita, Mostrava como @ por Que 08 apostes se conciliam, O Fio ea Trama trata disso; ¢ rico, sereno, caudaloso. has er sun Virani, Carlos Cime-Lima Sobre o autor Ivan Domingues é professor de filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. € autor do livro O Grau Zero do Conhecimento = 0 Problama da Fundamegtaoao des Ciéncia Humenas (Edigdes Loyola, 1991). Publicou varios artigos ligados & teoria do conhecimento e & epistemologia das ciécias humanas, sua area de especialidade. Capo: Marcslo Grord imeger Marcos Coelho Benjamin, Floda FlloSOFTA ; Ivan Domingues O FIO EA TRAMA Reflexées sobre o Tempo e a Histéria ) NX (x EDIT : U HAG ILUMIVURAS Copyright © 1996: Ivan Domingues Copyright © desta edigdo: Editora Huminuras Ltda. ¢ Editora UFMG Revisdo: ‘Ana Maria de Moraes Olga Maria Alves de Sousa César Correia Composi¢ao: TMuminuras ISBN da Editora lumninuras: 85-732 1-037-0 ISBN da Editora UFMG; 85-85266-10-4 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitor: Tomaz Aroldo da Mota Santos Vice-Reitor: Jacyntho José Lins Brando Consello Editorial: Ana Maria de Moraes, Angelo Barbosa M. Machado, Beatriz Alvarenga Alvates, Geraldo Norberto Chaves Sgarbi, Heitor Crpuzzo Filho, Joaquim Carlos Salgado, Monoel Otivie daCosta Rocha, Paulo Bernardo Vaz (Presidente), Wander Melo Miranda DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAGAO NA PUBLICAGAO BIBLIOTECA UNIVERSITARIA/ UFUG Domingues, Ivan peri Ofioe a trama : ‘efloxtes sobre ¢ tempo © abstérie / Ivan Domingues. — S40 Paulo Huminuras ; Belo Horzente : =dtora UEMG, 1996, 256 p. 1. Historia - Filosotia. 2, Temgo (Flosofia) 1! Tiuro, cpp: 118.4 ODU: 115.4 “UNIVERSIDADE FEDERAL EDITORA ILUMINURAS LTDA, DE MINAS GERAIS Rua Oscar Ficire, 1233 Av. Ant6nio Carlos, 6627 01426-001 - So Paulo - SP 31270-901 - Belo Horizonte - MG Tel.: (01 1)852-8284 Tel: (03 1)448- 143/448-1354 Fax: (0! 1}282-5317 Fax: (031)443-6803 Biblioteca Registra, impral )- Doaca\y’- Permuta {) Para Telma Apresentagéio .. |. A Experiéncia do Tempo e da Histdria .... II. A Elaboragao da Experiéncia do Tempo e da Histéria Ill. A Ordenagio dos Acontecimentos Histéricos na Sucessiio ‘Temporal: Necessidade, Contingéncia e Liberdade. IV. Causalidade, Tempo e Historia.... V, Yerdade, Tempo e Hist6ria ..... 0 221 VI. As Aporias do Tempo e da Historia.......... Reteréncias Bibliograficas... 247 APRESENTACAO \ Este livro € wm conjunto de reflexdes filoséficas sobre 9 problema to tempo e da histéria, Sua origem estd ligada, quanto ao problema do tempo, a um curso (que segui na Sorbonne, em 1988, proferido pelo Prof, Desanti, em que 0 ilustre mestre abordou diferentes aspectos do mesmo, situando-os ao longo da histéria da filosofia e das ciéncias — do Timeu de Platio e da Fisica de Aristoteles, passando pelas Enéadas de Plotine ¢ as Confissdes de Santo Agostinho, até os Principia de Newton ¢ o Ser e ‘lempo de Heidegger. Quanto ao problema da histéria, origina-se ele de certos temas que desenvolvi em livio anterior, O Grau Zero do Conhecimento, publicado pela Loyola em fins de 1991, especialmente « tema do tempo da histéria, entéo associado a estratégia histortcista eresirito ao século XIX, agora dissociado daquela estratégia discursiva © sem restrigdo de época ou periedo. O titulo designa, por metdfora, dois aspecios do tempo da histéria bastante difundidos pelos fildsofos, historiadores ¢ literatos. De unt lado, o fio evoca o tempo e poe em relevo a subsiducia intangtvel com cuja ajuda a historia é tecida ou construlda: o fio do tempo. De outro, atrama designa a historia e seu artifice (0 proprio tempo, qual um deus; as moiras; « fortuna; a providéncia divina; 0 homem). Ao ligar estes dois aspectos, poder-se-d pensar — é ial vai ser em grande parte o esforco deste livra— duas figuras da temporalidade ao gosto dos antigos ¢ moderns, Uma delas é a figura do tempo da hisibria como algo substancial e endégeno (¢ 0 préprio tempo quem tece a histéria e ata os homens e os acontecimentos com seus fios invistveis, assim como a aranha tece a teia com a matéria que ela segrega e nela enreda sua vitima). A outra é a figura do tempo da histéria como consirugdo ou artefato (a histéria como estrutura; a narrativa hisiérica como trania, com principio, meio e fim; o tempo da histéria como artefato literdrio etc.). Emhora a livro tenha sido concebido sob a forma de um conjunta de captusios independentes, procure ndo obstante conferir-ihes uma espinha dorsal — o problema de tempo e da histéria—, de modo que ocorpus dos captiulos e seus respectivos itens tratam de desenvolver wn ou outro IL aspecto do mesmo, uns voltados para a problema do tempo, outros mais para o problema da histéria, outros ainda para ambos em conjunto. No primeiro capitulo, onde trato da experiéncia do tempo e da histdria, procure mostrar que a diade tempo/eternidade é constitutiva da experiéncia da temporalidade, para 0 que trabalho o sentido dessa experiéncia origindria nas sociedades primitivas, na Grécia antiga, na idade média e na modernidade. iste, ao tomar tal diasle como operador hermenéutico, nde sem ter o devido cuidado de evitar o anacronismo, em se tratando de experiéncias histéricas, a exemplo das comunidades tribais primitivas, em que soa um tanto anacrénico falar de histéria numa época e numa organizagdo social em que a experiéncia do devir era recalcada e onde o mito servia de anitdoto contra a histéria. Risco esse que, a meu ver, é afastado, pela razdo muito simples de que, no caso, fala-se da histéria (histéria como modo de ser das coisas ou devir) ¢ ndo da historiografia (histdria como modo de conhecimento das coisas). No segundo capitulo, onde trato da eiaboragdo da experiéncia do tempo e da historia, primeiro pela filosofia depois pela historiografia, procuro mostrar o que se perde dessa experiéncia origindria no curso da elaboragdo tedrico-conceitual empreendida por ambas. levando- as, quanto d diade, seja a sacrificar 0 tempo ao eterno, como nas mais das vezes é 0 caso da filosofia, seja o eterno ao tempo, como muitas vezes € 0 caso da histéria, mas néo sem antes imobilizar o tempo e suspender o devir, como ndo poucas vezes € 0 caso em cerias variantes da historiografia. Para tratar deste ponto — de grande interesse, a meu ver —, armei uma espécie de trilema, com vistas a mostrar quanto o problema da temporalidade é refratdrio & elaboragéo tedrico- conceitual, e assim a melhor avaliar o que se perde dessa experiencia quando ela vem a ser elaborada. Assim, estabeleci: 1) quando a filosofia fala do tempo da historia fala, na realidade, de tempo endo da hisiéria; 2) quando a historiografia fala do tempo da historia, fala da historia € ndo do tempo; 3) quando a hermenéutica da histéria, como a de Ricoeur, que opera na extensdo da filosofia ¢ da kistoriografia, fala do tempo da historia fala ndo do tempo da histéria inas do tempo da historiografia (tempo da narrativa) — em todas elas perdendo-se justamente o tempo da histéria enquanto tal, constituido pela dtade tempo/eternidade, No terceiro capitulo, onde trato da ordenactio dos acontecimentos histéricos na sucessdo temporal, proponhe uma abordagem que, conquanto ndo possa estar de todo isenta da perda dessa experiéncia 12 Ha tenporalidade, seria mais bem sucedida ua insteuragio histéria: a abordagem pratico-transcendental. Para tanto, Wileular os temas da necessidade, da contingéncia e da # con o intuito de mostrar 1) que a necessidade que governa histévicas é uma necessidade de tipo “fraco”: 2) que, sendo eixidade de tipo fraco, ela esté associada aa acaso ou a ela; 3) que a contingéncia é o fundamento da liberdade, a € pensdivel no horizonte da necessidade, como na alegoria da dmmanuel Kant. Também aqui mais uma vez abro oe capitulo iti «porta: a aporia do tempo e do acontecimento (é 0 Wiento anterior ao tempo ou, ao contrario, 0 tempo é anterior feciniento?). Aporia que, no caso, é pensada na extensdo das vs, de que eram vitimas a filosofia e a historiografia, porém, em visia da instauragdo de uma perspectiva ou abordagem que Hine @ mesma (aperia). quarto capitulo, onde trate da questéo da causalidade histérica, é pensada na esteira do problema da ordenagéo dos elimentos na sucesso temporal, proponho e enfraquecimento isaliude, & luz do que se fez no capitulo precedente, em que se jéciu a figura da necessidade de tipo fraco. Isto, de modo a Hilir-Ihe wn uso mais condizenie com a naiureza das matérias Ficus, para as quais a uma necessidade de tipo fraco deve onder unaforma soft de causalidade, assaciada ao acaso, aberta einipo ¢ afeta ao homem, E isto, sem prejutzo de outras conexées Wtipite atribuiveis as matérias histéricas e caracterizadas por serem ito ulheias ao principio da causalidade, inclutda a causalidade pe fraco, também esta demasiadamente dependente de existéncia Wi (intes e wn depois na sucessdo temporal — como, por exemplo, pnexOes genéticas, estruturais e mesmo simplesmente emptricas. No quinto capttulo, onde trato da articulagdo entre a verdade, 0 10 ¢ a histéria, mostro que a verdade histérica é tributdria do whos dos tribunais gregos e da veritas da tradigdo juridica latina, suas exigéncias de autenticagdo, de iestemunhos € de garantias. tanto, examino sua instaurapGo segundo duas perspectivas: 1) a ipeciiva objetivista, em que a verdade é do objeto, 0 tempo é do elo ¢ a hisidria é do objeto; 2) a perpectiva subjetivista, em que a lade é do sujeito, o tempo é do sujeito ea histéria é do sujeito. Isto, fa concluir, vo fim do capitulo, de um lado, pela necessidade de pir o objeto ¢ o sujeito da sua pretensa qualidade de fundamento do ihecimento e de métron da verdade; de outro, pela sua substituicdo, 13 na esteira de Borges, pelo préprio tempo que, ae herdar tais qualidades (fundamento e métron), passa a ser o verdadeiro ariifice do discurso e o verdadeiro mestre da verdade hist6rica enquanto tal. De modo que, ao fim e ao cabo deste processo, em que o regime da verdade é profundamente alierado, a veritas, em se iratando da histéria e dicendo respeito ao homem, na sua dupla qualidade de sujeito e de objeto da investigacdo, se revela, enfim, como filha do tempo e obra do homem, cujo sentido é verificagéo tGo-somente, a depender sempre de uma atestacao, que por sua vez se dé no tempo e é conduzida pelo préprio homem (verificag&o = verificare = verus + facere). No sexto capitulo, onde trato das aporias do tempo e da histéria, proponho uma abordagem que, bem conduzida, ficaria imune as mesmas, tanto as reveladas no infcio do livro, quanto aquela que, implicita e virtualmente, parecia nos levar, & guisa de concluséo, 0 capitulo consagrado a verdade. De um lado, as aporias relativas a4 natureza do tempo (é ele um ser ou um ndo-ser?), ao conhecimento do tempo (como conhecer um passado que foi endo & mais, um presente que é e ndo sera mais, e um futuro que serd e ndo é ainda?) etc. De outro, a aporia da verdade, que, numa via de médo dupla, passendo pelo objeto e pelo sujeito, nos conduz ao historicismo, em que a histé entendida como testenunha da verdade do tempo (cf. Cicero: “historia vero testis temporum”'}, depende do prdprio tempo em que a verdade do tempo é testemunhada e revelada. A estas aporias, relativas ao tempo @ associadas 4 filosofia, somam-se outras, relativas a histdria e afetas a historiografia: c narrativa das coisas que ocorrem no tempo depende do préprio tempo em que ocorre a narrativa, a narrativa do tempo depende do tenipo proprio da narrativa etc. Ora, para fazer face a elas, propus simplesmente derivar o tempo histérico da agdo, nos quadros de uma ontologia da ago, peasada numa perspectiva pratico- transcendental, a qual se encarregaria nao apenas de articular os elementos a priori e a posteriori ou mesmo de ajustar o emptrico ao transcendental da experiéncia do tempo e da histéria, mas também de operar os efeitos de distor¢do toda vez que a acdo, em que se enraiza a experiéncia da temporalidade, se transpde e se traduz em linguagem (a narrativa histérica), levanda & cistia da diade tempoleternidade - distorgao em relacdo & percepcdo, em relagdo ao vivido, em relagito ao pensamento, em relagdo a ago. tk 14 ‘Terminando essa apresentacdo, eu ndo poderia deixar de agradecer at todos aqueles que de uma maneira ou de outra me ajudaram na conposigdo deste livro: ao CNP@, por ter financiado parte da pesquisa que nele resultou; aos meus alunos da pés-graduagdo, com os quais dterante unt semesire discuti temas ligados a ele, que muito contributram para o amadurecimento de sua problemdtica; a Newton Bignotio, a quem devo a idéia do livro, bem como um conjunto de sugestOes que Ihe foram incorporadas; a Paulo Margutti e a Hugo Mari, com os quais discuti pontos espectficos ligados a légica, bem come problemas de metalinguagem, permitindo-me a supressao das imperfeigdes; a Cirne Lima, que foi quem me desafiou a pensar a instauragéo do absoluto no tempo ea quem dedico o primeira capitulo, consagrado aa assunto; a itiana Dutra e a José Carlos Reis, por me terem generosamente franqueado parte da bibliografia a que tive acesso; a Hugo Pereira do Amaral, pela leitura atenta dos manuscritas e pelas preciosas indicagées quanto as modificagdes a serem efetuadas; a Emilio Pereira Rezende, pela leitura das passagens relativas a Heidegger; a Hénnio Morgan Birchal, pela competente revisdo do verndculo, do grego e do latim; a Telma, pela compreenstio relativamente ao tempo inconidvel que sua vedagdo nos roubou, pele apoio constante e estimulo permanenie, pelas sugestées, intimeras, que direta ou indiretamente incorporei ao livro. © Autor. 15 CAPITULO I A EXPERIENCIA DO TEMPO E DA HISTORIA 1, A Expetiéneia do Tempo Na Introdugdo as Ciénctas do Esptrito, afirma Dilthey que a intuigao do efémero é a primeira forma de que se reveste a experiéncia humana do tempo e que como um enigma acompanhou ela a trajet6ria da humanidade desde as épocas mais recuadas, No limiar desta intuigao ‘ Psic capitulo € uma retomada do artigo que publicamos na revista Sintese - Nova Fase, no iimero especial consagrado A Culzura e Filesofia, em fins de 1993, Nessa nova ver inoxluzimos pequenas modificagdes que alterara‘n um pouce o centetidoc a forma da antige. Alterou-se 0 contedido, porque Houve aincluszo de varios parégrafos na sua primeira parte, deilicados 4 experiéncia do tempo na modernidade, bern como a mudanea de redagiio de ‘outras tantas passagens, nas dvas partes, com vistasa melhor precisara andliseempreendida, A forma, porque se modificou sua arquiteténica, agora consistindo em. duas partes (e no mais emitrés, visto que a terceira parte, enttio prometida mas n&o executada, foi transformada ‘num segundo capitulo independente) e, enquanto tais, vollando-se para um livre que tata {o-s6 daguestio dotempo e da historia, ao invés de abordar uma problernatica mais ample, como a anunciada em nota naquela oeasido. Contudo, 1s como aqui, foi mantidaa intengio de abordar tal questao fazendo recair 0 acento sobre sens aspectos antropoldgico-existenciais, ‘ao ressalzar as concepgdes © as atizudes da homem ante o tempo ea histéria em diferentes épocase civilizagées. Para compensarms esta amplitude, optarmos 1) porum enfogue tesrico- nistemitico de tais aspectos e atitudes (a0 contririo de histérico-empirico), 2) por sestriagic 0 campo da problemdtica 4 literatura nfo-filoséfica e nio-cientifiea, ainda que no exclusivamente (ao atermo-nos a veitos elementos oriundos do mito, da religiio, do senso- comum ¢ das diferentes formas de expressio literéria) ¢ 3} por reduzir 0 Ambito da andlise ‘cmpreendida ao nivel descritive da experiéncia da temporalidade (antes de sua retomada 2 Ullerior etaboragio pela filosofiae pela historiogcafia). Para trabalharmaos os diferentes aspectos dessa experiéncia “primitiva”, adotamos como operador hermenéutico a dfade tempo! dade (intuigio do efSmero e desejo da eteridade), tonuda come categoriaexistencial ¢ io propriamente metafisica, com 0 intuito ndo s6 de elucidar o sentido da experiéncia do tempo e da histéria nas diferentes épocas evocadas, como também de esclarecer o solo omtolégico-existencial origindrio em que ela se enratza, a saber: 0 mundo davvidae daagio, Por fim, depois de mostrarmos 0 lago de co-pertenca do efémero ¢ doeterno em seu solo origindrio, naexperigneia “primitiva” do tempo e da hist6ria, procuraremes aquilataro quo acontece com tal ago, quando essa experiéncia € retomada ¢ elaborada pela filosofiae pela historiografia, Este problema send tratado e desenvolvido nos eapitulos que seguem, 17 origindria, encontrava-se segundo ele a prépria experiéncia da corruptibilidade da natureza, da fragilidade da existéncia, da precariedade das instituigdes sociais, cujo conjunto atestava, mais além da caducidade das coisas, a acc implacdvel do tempo, com o ciclo de nascimento, crescimento ¢ morte. O resultado foi que os homens desde cedo, ao experienciarem a agiio do tempo, foram levados a buscar explicagdes que dessem sentido a essa experiéncia, sem que, todavia, o enigma do tempo fosse decifrado ou ficasse de todo resolvido O que é digno de nota, porém, nessa experiéncia — e ao que parece Dilthey nao o percebeu, muito embora tivesse destacado em outras ocasides 0 papel da idéia de ponto fixo na elaboragiio das categorias de substincia e de dtomo, para se peasar o elemento permanente que subjaz ao fluxo cambiante das impressdes —, nao é tanto a intuig&o do ef€mero, mas antes a sua negagiio, a procura de um elemento permanente, a busca de um ponto fixo que permitisse aos homens a evasiio do tempo e os colocasse ao abrigo de sua acéo corrosiva. Quer dizer: ao invés de aprofundar aexperiéncia do efémeroe de valorizar o tempoem simesmo e por si mesmo, 0 que os homens desde as épacas mais remotas fizeram, ao experienciarem a presenca fugaz do efémero ¢ a aco corrosiva do tempo, foi dar um jeito de esvazié-las e mesmo de negé-las simplesmente, ainda que soubessem que niio poderiam subtrair-se delas e colocar-se de todo a seu abrigo. Ao contrario do gue imaginava Dilthey, esta busca de um elemento estivel no tem que ver com a natureza do pensamento que precisa de um ponto fixo para pensar o mével e de um elemento permanente para pensar o cambiante, mas, sim, com a natureza profunda do préprio homem, que suporta mal a idéia do efémero, tem uma dificuldade imensa para lidar com o novo, o fortuito e o imprevisto, e fez de tudo para afastar 0 tempo com seu cortejo de sofrimento, decadéncia e morte. Por isso, ao tratar a experiéncia do tempo e da hist6ria, é preciso desfazer-se das idéias, caras aos modernos, de que a experiéncia da temporalidade & uma coisa tranqiiila, limitando-se os homens a assistir 4 acdo de Cronos, impassiveis e resignados; de que o tempo é uma espécie de marco vazio, meio neutro, © lugar onde as coisas duram e acontecem indiferentes a ele; de que a histéria brota da ago dos homens sobre o tempo e do tempo sobre os homens, como se a relagao fosse transiliva, o sentido de sua marcha co-natural e ambos, tempo e histéria, homogéneos. A julgar por uma ampla literatura que nos chegou através da antropologia e da histéria, o que caracteriza a experiéncia do tempo vivida pelos homens arcaico, grego e judaico-crist4o € seu lado trdgico 18 (v deus gue engole seus prdprios filhos: o tempo da queda. danacio € ; 0 fato de ser o tempo uma poténcia que em sua ago \nplacdvel corréi as coisas e tudo marca com o selo do provisério e do elémero; o fato dea historia ser mais uma poténcia que sobrepaira acima ilos homens e os enyolve, do que o meio neutro em que eles agem indiferentes a ele; o fata de o sentido de sua marcha ser menos desejado ilo que temido, experienciando os homens um verdadeiro terror panico histéria e se servindo de todos os meios para subtrair-se dela, se dela 2 refugiar-se num mais além dela, na eternidade, instalada ho lempo ou fora do tempo, pouco importa, onde estariam a salvo de sui agdo corrosiva. De sorte que, tanto quanto a intuigic do ef€mero, 0 desejo da eternidade é constitutivo da experiéncia humana da temporalidade desde as épocas mais recuadas, testemunhando que tal verigncia se dé ao modo de uma dfade ¢ nao propriamente como algo al@ncia tinica ou coisa parecida, a saber a dupla inserigaic do homem e dos negécios humanos no registro do tempo, assentada na caducidade dis coisas, ¢ também no registro do eterno, motivada pela busca do perene e da esiabilidade, que leva A evasiio do tempo ea procura de um Plano no real que se poria ao abrigo de seu campo de agio. A nosso ver, €com a ajuda destes dois operadores hermenéuticos iu tuicdo do efémero e desejo da eternidade — que a filosofia poder ser hem sucedida em sua abordagem da experiéncia do tempo e da historia em seu nivel mais imediato e primitivo, Para tanto, na falta de material disponivel trabalhado pela prépria filosofia com vistas a tal diade, bem chmo ao aspecto antropolégico-existencial da experiéncia da temporalidade, nio nos restou outro caminho senio buscar socorro alhures, No caso, no campo da antropologia e da hist6ria da religiao, numa obra que soube como poucas pér em relevo a ambivaléncia da experiéncia humana do tempo e da histéria, destacando o lugar do émero, o papel da evasao do tempo € o sentido ca busca da eternidade, i saber: O Mito do Eterno Retorno, de Mircea Eliade. As outras obras ‘| que recorreremos, pertencentes desta feita A filosofia, ainda que de indole distinta e de aplicacdo mais restrita, so O Desejo da Eternidade, dc Ferdinand Alquié, e A Ordem do Tempo, de Krzysztof Pomian. Em sua obra notavel, vigorosae de grande forca especulativa, Eliade nos Mostra que os homens de todas as idades e latitudes tudo fizeram para pér-se 8 margem do tempo e, A tinica excegdo talvez dos modernos, sempre olharam a histéria com desconfianga, vendo nela nao © meio indiferente as coisas que o habitam ou a sede de poténcias favoraveis aos homens, mas uma poténcia demonfaca, uma casa de horrores, um Morte ete evad 19 / poder terrificante que s6 lhes traz infelicidade, com seu cortejo de guerras, doengas, sofrimentos e morte. Esta experiéncia de terror panico face a historia, segundo Eliade, pode ser atestada em todos os quadrantes do planeta, sob todos os céus, em todas as idades ¢ em todos os lugares — nas chamadas sociedades primitivas, nos grandes impérios do oriente, na antigiiidade classica, no ocidente cristéo, no mundo islamico, nas Américas etc. Ora, tamanha extensio nos sugere algo mais do que uma simples resisiéncia hist6ria, um mero sentimento negativo ante o poder nefasto do tempo, porém uma disposicao profunda da natureza humana que, qual uma carapaga, esté aparelhada nao propriamente para integrar e assimilar o tempo, mas para barrd-lo e subtrair-se dele, sob pena de nele desintegrar-se por completo. Pode-se dizer que essa disposigdo da natureza humana, cujos 6rgios é mecanismos funcionam como uma carapaga para se proteger do tempo e da historia, é andloga a fixag&o dos indivicuos em espécies no mundo da vida e a instalagdo de estruturas no mundo das coisas. Integram esses dispositivos o instinto, o habito, a meméria, o esquecimento, e também a consciéncia. Como atuam e€ o que efetuam estes € cutros dispositivos é 0 que vamos ver na seqiiéncia. Comecemos pelo instinto e pelo habito. Se é verdade, como diz Alquié, que — diferentemente do instinto, que é um puro automatismo sem relag&o com o passado e a mera repeti¢o do presente — o hAbito é 0 passado pesando sobre o presente ¢ fixado no presente, nado é menos yerdade que a fungio de ambos € parecida na luta da vida contra o tempo: negando a mudanga, elevando-se contra o devir e insurgindo-se contra © novo e o imprevisto, ambos terminam por instalar uma certa continuidade na ordem do tempo, uma certa fixidez no modo de ser dos homens e uma certa permanéncia no curso das coisas humanas, dando origem ao que os gregos chamavam de éthes, uma espécie de segunda natureza em que os homens se p6em ao abrigo da agéio do tempo e da atividade desintegradora da historia. J&éameméria deve ser vista nao, sem mais, como o 6rgdo do tempo e do passado, como quer H. Arendt,’ mas, sim, como diz Alqnié, a faculdade do eterno e do presente, que conserva 0 passado no presente ¢ o faz aderir a nds, a ponto de se confundir conosco. E mais; uma faculdade que s6 mais tarde, nfo sem opor resisténcia, vai reconciliar- se com a hist6ria, dissociar-se do presente e abrir-se ao passado, Jomo quer Arendt, ¢ também Arist6teles, em que cla se apdia, que foi, a0 que parece, 0 primeiro a fixar os Ingos entre a memériao tempo. Sobre este ponto, ver VERNANT. Mythe et pensée cher tes grecs, p. 136. 20 iando um passado morto estranho a nds e procurando animd-lo e Ihe vida por si e em si mesmo, como viu muito bem Le Goff. Quanto ao esquecimento, € preciso ver nele antes de mais nada 0 0 di memoria, a faculdade que permite apagar 0 tempo ou, ao menos, impossibilidade de apagé-lo de todo, esvazid-lo ou empalidecé-lo, Mitiido aos homens, como diz Eliade, suport4-lo como umadimensiio existéncia, mas sem interiorizd-lo e transforma-lo em consciéncia. Preciso também yer em sua agio nfio uma atividade puramente uma espécie de esponja que apaga a meméria e desfaz as ‘cay do tempo, mas uma atividade positiva que instala o eterno e se Fe ao ser, animada pela sede do éntico ¢ pelo desejo de permanecer, Hino 1O-1o mostra.a atitude do homem arcaico que, com o mesmo fmpeto i que se esforga por lembrar-se dos gestos inaugurais dos seres Fijuetipais e guardd-los na meméria, se esforga também por se esquecer BApagar a memoria de tudo aquilo que cai no tempo e trazoselo de sua Aclio corrosiva: 6 novo, o imprevisto, o efémero. H:ique se destacar ainda, e sobretudo, a consciéncia, em que é preciso Yer, como o nota Alquié, a faculdade do eterno por exceléncia, com seu poder notdvel de se desprender da cadeia temporal e de se furtar agdo do tempo, sendo-Ihe indiferente marchar de frente para tris ou de tras pur frente, desafiando toda cronologia, pondo-se no passado, instalando- 46 no futuro, refugiando-se no presente. Por fim, & preciso assinalar o papel da linguagem, extensfio da eonsciéncia e também da meméria, cujo poder de instalar acontinuidade do \empo foi apontado por Gadamer, bem como também se deve pérem felevo 0 papel de instituigdes como a familia, o Estado, a economia elc., qué naéo somente se furtam ao tempo, mas ainda se voltam e se organizam contra ele, assegurando outros tantos elementos de permanéncia e de coesfo, sem os quais a humanidade ficaria desprotegida e nele se desintegraria, Embora nfo soja dotado de um érgao a nfvel dos sentidos para marcar © tempo, deficiéncia que é suprida pela consciéncia; ainda que a consciéncia do tempo seja algo tardia, adquirida pela crianga, como tostrou Piaget, na segunda infancia, em torno dos sete anos — o homem. desde as épocas mais remotas estava aparelhado para pensar a individualidade e a caducidade das coisas. Por um lado, os érgios dos sentidos dio aos homens a capacidade de notar a individualidade. Por outro, a consciéncia dé-lhes o poder de marcar a caducidade das coisas — poder e capacidade que, em verdade, nao sio infinitos, haja'vista que os homens nao podem representar o tempo, menos ainda a ago do tempo, 21 a nao ser indiretamente, por meio das coisas e dos efeitos do mesmo. sobre elas. Ora, assinala Eliade, o que é notdvel na meméria coletiva dos povos, em que pesem a esses poderes, é que ela dificilmente retém os acontecimentos “individuais” e personagens histéricos “auténticos”. Isto porque ela funciona de uma outra maneira, mediante estruturas diferentes: categorias ao invés de acontecimentos, arquétipos ao invés de personagens histéricos. Este trago da meméria dos povos, de no aceitar o individual e nio conservar senfio o exemplar, reduzindo os acontecimentos as categorias e preferindo as individualidades os arquétipos, pode ser atestado nio apenas na mentalidade arcaica, mas também em nossos dias, em comunidades mais avancadas em civilizagdo e cultura.’ Sintoma disso, segundo Eliade, € 0 fato de que a lembranga de um aconteeimento hist6rico ou de um personagem auténtico n&o subsiste por mais de dois ou trés séculos na meméria dos povos. Depois simplesmente se converte em mito, sendo o personagem histérico assimilado ao seu modelo arquetipal (herdi) e 0 acontecimento integrado na categoria de agao mitica (faganha), a exemplo do principe de Gozon, a quem a lenda atribui ter morto um dragio e em quem vé uma espécie de Sao Jorge.* Por isso, a0 contrério do que se pensa, a meméria coletiva é profundamente a-histérica: além de nao conferir nenhuma importéncia As lembrangas pessoais, ela néo retém os acontecimentos e as individualidades histéricas sendo na medida em que os wansforma em arquétipos, isto 6, namedida em que ele anula todas suas particularidades histdricas e pessoais.’ Nas sociedades arcaicas tudo se passa como se existissem dois tempos: um tempo “fraco”, povoado de acontecimentos e entes banais, no qual os homens levam uma vida anddina e sem importancia (tempo profano); um tempo “forte”, povoado de acontecimentos extraordindrios e habitado por poténcias sobrenaturais, cujos atos os homens devem imitar e cujos perigos devem conjurar (tempo sagrado). Mas nao € bem assim, pois estes dois tempos, longe de se escandirem em duas ordens separadas, sio na realidade um s6 e mesmo tempo, simultaneamente sagrado e profano, e trés sdo as notas que o qualificam: realidade, continuidade ¢ reversibilidade. Em seu livra Comentdrio da Lenda do Mestre Mano!o, Mircea Eliade nos dé elementos para pensarmas essas trés notas do tempo 3 Cf ELIADE, Le mythe de l'éternel retour, p. 58-59, 62-63, + Tbidem. p. 53. 5 tbidem. p.61-62 22 mitico, tal como ele é experienciado pelo homem primitivo, 4 luz de certos mitos cosmogOnicos de fundagao do mundo, a partir dos quais nosso autor tenta explicar os lagos entre 0 mito, 0 rito eo tempo. A nivel do mito, frisa Eliade, nds vamos encontrar subjacente cle uma espécie de teoria segundo a qual nada no mundo € real e pode durar se nao é animado, se nao esté dotado de uma alma que 0 anima e lhe da vida desde dentro.‘ No plano do rito, embora Eliade niio 0 explicite, pode-se dizer que se pressupde que o suplemento de alma indispens4vel 4 durag%o do real é obtido por meio de um ato (sacriffcio), que repete por imitagdo o ato primordial mediante © qual os deuses criaram o mundo e deram vida as coisas. No que lange ao tempo, admite-se que o tempo concreto e profano pode ter scu curso suspense € os acontecimentos podem ser revertidos com a ajuda de um conjunto de atos apropriados (ritos) que, ao repetirem © gesto inaugural cumprido pelos deuses quando da criacdo do mundo, nos instalam num tempo primordial, num tempo segrado situado in illo tempore, ab origine, no qual occrreu a criagHo do mundo.’ A assinalar que € através da forga magica do rito que esse tempo primordial é reatualizado e fica assegurada a continuidade do mundo no tempo. Tao forte é essa necessidade, que os deuses tém suas forgas exauridas em seu esforgo de criar 0 mundo ¢ de nele terem de intervir a todo instante, ao fim de cada ciclo, no comeco de cada ano, sob pena de o mundo desaparecer, se suas forgas nao sao renovadas ou reanimadas. Sendo assim, habitado por poténcias sobrenaturais que agem sobre 0 curso das coisas e o mundo dos homens, o tempo € uma realidade concreta e sua agio afeta os homens e as coisas; nutrido por forgas animicas que dao vida as coisas e permitem a continuidade do mundo, 0 tempo € um continuum e seu sentido duragdo; por fim, podendo ter Scu curso suspenso e revertido, ligando o fim 2 origem e o resultado ao comego, 0 tempo, além de continuo, é reversivel, repeticao do ciclo e elerno retorno. Destas trés notas do tempo mitico, a mais singular e talvez a mais desconcertante para nds, modernos, é a idéia de reversibilidade e a figura da temporalidade que a acompanha: a do tempo circular, A obra de Eliade abunda em exemplos deste jaez entre os povos primitivos. N&o nos sendo possivel determo-nos neles, limitamo-nos a remeter o Ieitor a estas piginas notiveis e a pér em relevo o papel * BLIADE. Le mythe de l'éternel retour, p. 32. ‘Ibidem. p. 33. 23 N86 instante; reintegré-la na unidade primordial da qual ela saiu; as palavras, voltar ao ‘caos’ (no plano césmico), a ‘orgia’ (no social), as “trevas’ (para as sementes), a ‘Agua’ (batismo no plano no, ‘Atlantida’ no plano histérico).”"” Podemos facilmente compreender o sentido dessa experiéncia da srttlidade vivida pelo homem arcaico, bem como o motivo que governa fiquctipos da repetigéo em todos os planos: césmico, bioldgico, leo, De um lado, a anulagio da caducidade das coisas pela regeneragaio daquilo que 0 nosso autor chama de arquétipos da repetic¢fa, com cuja ajuda o homem arcaico elabora a experiéncia do tempo e confere sentido 4 historia. Segundo Eliade, 0 trago que mais chama a atengao dos estudiosos da experiéncia da temporalidade das sociedades tradicionais € a sua revolta contra o tempo concreto quotidiano, sua nostalgia de um retorno periddico ao tempo sagrado das origens, ao Grande Tempo. E mais, prossegue Eliade na sua andlise da regeneragiio do tempo, levada a cabo no capitulo II: “Em tiltima instancia, nés deciframos em todos tunle do seu ser. De cutra, a anulagao da inreversibilidade do tempo estes ritos ¢ em todas estas atitudes a vontade de desvalorizagio do Fetorno cfclico ao seu comego, a sua origem. Na realidade, a anulagdo tempo. Levados a seus limites extremos, todos os ritos e todos os Paducidade das coisas e da irreversibilidade do tempo vao juntas: é pela comportamentos que assinalamos acima se susteriam no seguinte jersilo do tempo que a caducidade dos seres é anulada e é pela anulacéo enunciado: ‘se nfo lhe concedemos nenhuma atengo, o tempo nio eaducidade das coisas que o tempo € revertido. Segundo Eliade, é existe; ademais, 14 onde o tempo se torna perceptfvel (pelo fate do lainente isso que nos mostram todas as concepgGes césmico-mitoldgicas ‘pecado’ do homem, isto é, quando o homem se afasta do arquétipo e es: “Tudo recomega em seu infcio a cada instante. O passado niio é cai na duragdo) ele pode ser anulado’. No fundo, se a olhamos em sua a prefiguragao do futuro. Nenhum acontecimento € irreversivel e verdadeira perspectiva, a vida do homem arcaico (reduzida & repetigao huma transformagéo é definitiva. Num certo sentido, pode-se mesmo de atos arquetipais, isto ¢, as categorias e ndo aos acontecimentos, 2 izer que no se produz nada de novo no mundo, pois tudo & apenas a incessante retomada dos mesmos atos primordiais etc.), embora ela se jpelizdo dos mesmos arquétipos primordiais; esta repeti¢ao, ao atualizar desenvolva no tempo, nao carrega seu fardo, nao registra sua ‘A inomento mitico em que o gesto arquetipal foi revelado, mantémo mundo irreversibilidade, em outras palavras no tem nada que ver com o que é fi mesmo instante auroral dos comecos. O tempo somente torna possivel precisamente caracteristico e decisive na consciéncia do tempo (quer 4 uparigdo e a existéncia das coisas, Ele nao tem nenhuma influéncia dizer, na “nossa” consciéncia, moderna — ID). Como o mistico, come decisiva sobre essa existéncia— jd que ele mesmo se regenera sem cessar.”"" © homem religioso em geral, o primitivo vive num contfnuo presente.” Mais & frente mostraremos o lago que une a experiéncia do tempo e Um bom exemplo disso nos d4, segundo Bliade, uma série de mitos ila hist6ria nas sociedades arcaicas. Por ora cabe concluir, com Eliade, lunares que vamos encontrar espalhados em przticamente todas as five nos mostra que essa desvalorizagiio do tempo 6 acompanhada do Sociedades arcaicas, nos quais reconhecemos a mesma tentativa de lesejo do homem primitivo de evadir-se da histéria. Pensados do ponto estabelecer um paralelo entre as fases da lua (apari¢do, crescimento, ile vista do modelo dos arquétipos, tais aspectos da experiéncia arcaica diminuigao, desaparicao, seguida de reaparigéo depois de tres noites de Jo tempo e da histéria nfio podiam ser diferentes: do lado do tempo, 0 trevad) © 26 Eases da, humanidade (aparicno, desaparigt, reapanicho), inquétipo leva a idéia de queds; do lado da histéria, @ idéia de Sesempenhanda) me pel derisivong labo ragao das aoncenoes cicheas afastamento — queda e afastamento do arquétipo. Daf a desvalorizacao dla temporalidade. “Na perspectiva lunar” — escreve nosso autor — “2 pice et ecclesia Wt. montede homem, assim Samoa morte darbumanidade, al necesteias, Contudo, esta desvalorizacio e esta anulaciio nao levam & perda do tanto quanto 0 sao 0s trés dias de trevas que precedem o ‘renascimento’ si.6.8 etiniinNGAG Go temps, magi inslalacto de v lidadeed da lua, A morte do homem e da humanidade sio indispensdveis a sua ee re a aaa ln HEROS Ie Rerrae Ce y i uma temporalidade superiores: a ordem da eternidade, instalada nao regeneragao. Uma forma, qualquer que seja ela, pelo fato mesmo de fi ae ora do tempo, mas no tempo, no tempo sagrado das origens (“in illo que ela existe como tal e de que ela dura, se enfraquece € se desgesta; * pee ee at 2 para retomar seu vigor, é preciso reabsorvé-la no amorfo, nem que seja (empore, ab origine” — dird Eliade). Platonismo avant Ia lettre, por " ELIADE. Le mythe de i'éternel retour, p. 107-108. * ELIADE. Le mythe de érernel retour, p. 9. 3 . " Ibidem. p. 198-199. "Thidem. p. 104-105, 24 3 trés dos arquétipos temos, portanto, niéo um gosto extravagante pela imitagdo indefinida de entes irreais (os arquétipos), mas algo bem mais profundo ¢ bem mais visceral: o desejo firme do homem areaico de manter 0 contacto com o ser, a sede insacidvel do real, o medo de se “perder” deixando-se invadir pela insignificncia da existéncia profana. Escreve Eliade: “Pouco importa se as {6rmulas e as imagens pelas quais 0 ‘primitivo’ exprime a realidade nos parecem infantis e mesmo ridiculas. Fo sentido profundo de seu comportamento que 6 revelador: este comportamento é regido pela crenga numa realidade absoluta que se opde ao mundo profano das ‘irrealidades’; em tiltima insténcia, este Ultimo nao constitui um ‘mundo’ em sentido préprio; ele é o ‘irreal’ por exceléacia, o nio-criado, 0 ndo-existente: 0 mada.”? A intuigdo do efémero e a evasio do tempo, por certo, também caracterizam a experiéncia grega da temporalidade, e essa ambivaléncia poderia nos fazer acreditar, com razfio, que 6a mesma a experiéncia da temporalidade e que é a mesma a atitude diante do tempo, no havendo, portanto, maiores diferengas entre o homem arcaico € rude © o homem grego e civilizado a este respeito. Esta é a convicgao de Eliade, que v8 disseminada em todo o mundo helénico, a excegdo de uma meia diizia de filésofos e bem-pensantes, a presenga desses mesmos arquétipos da repeticio, que leva & desvalorizacao do tempo e a recusa da historia: apresencada mesma figura da temporalidade, se nao circular, ao menos cfclica, que leva 4 suspensio do devir ¢ 4 anulacHo da irreversiblidade da histéria;" a presenca da mesma sede 6ntica do perene, do mesmo desejo de manter 0 contacto com © que existe desde todo o sempre e por todo o sempre, da mesma vontede de instalar um ser estavel, eterno e sem lacunas, que leva a evasdo do tempo ea saturar todas as formas do devir pela co-presenga sempiterna do ser." Em seu afa de reduzir e aplainar as diferengas, seduzido pela fertilidade de sua descoberta (arquétipos da repetigao), vitima de sua nostalgia dos tempos em que imperava inclume a crenga no sagrado e a forga constringente da eternidade, Eliade nZo hesita em ver na experiéncia grega do tempo a presenga do mesmo “regime ontolégico do arquétipo”, a ponto de dizer que “a teoria grega do eterno retorno & a variante tiltima do mito arcaico da repetigio de um gesto arquetipal, da mesma forma que a doutrina platOnica era a Ultima verso da " BLIADE. Le mythe de téternel retour, p. 111. "Sqbidem. 9.41. bide. p. 145. 'SThidem. p. 146. G80 do arquétipo, e a mais claborada.”'® hora a ressonancia da doutrina arcaica dos arquétipos em Platiio ‘fiosnu ser negada; ainda que o desejo de anular a caducidade das © a fentativa de evasio do tempo caracterizem tanto a atitude do aicaico quanto a co grego civilizado — nflo se pode dizer que a ‘énvia da temporalidade vivida pelo mundo helnico sejaa mesma, que, se o regime dos arquétipos ainda impera, a experiéncia do rilretanto acompanhada de novas e importantes modalizagoes. Eom efeito, em que pesem as dificuldades not6rias de se falar da Fléncia de algo que j4 passou, sobretudo de algo tio abstrato e foricinte como o € a experiéncia do tempo, cujas tentativas de HHMiLuig&o, por mais timidas que sejam, esbarram em dificuldades ¢ Hatigos de toda sorte, a comegar pela falta de documentaciio e de fps ubundantes € confidveis, pode-se ndo obstante dizer que, mais Wi) da continuidade apoatada por Eliade, hé um conjunto de dililicagdes na experigncia grega do tempo que no podem ser eligenciadas ea que Bliade nao parece atribuir a devida importancia. io reservamos ao segundo capitulo a claboragdo da experiéncia do po e da histéria pelos historiadores e fildsofos, incluidos os gregos, fos nos ater aqui ao que se poderia chamar de concepgdes nado- los6licas e nao-cientificas da temporalidade. Para tal, buscamos apoio i cminente helenista inglés, G. E. R. Lloyd, que no ensaio Le Temps duns la Pensée Grecque, publicado pela Payot em 1975, como parte de fife obra coletiva patrocinada pela Unesco, dirigida por Paul Ricoeur e iitulada Les Cultures et les Temps, nos oferece preciosos elementos fra pensarmos a experiéncia grega da temporalidade, permitindo-nos iitizar as afirmagdes de Eliade, ainda que sem contradizé-las por Pompleto. A comegar pela figuragfio do tempo, com a introdugdio de um conjunto ilo inovagdes ligadas ds nogdes ou idéias que Ihe dao estofo, bem como fom o acréscimo de um elenco de formas, esquemas e artefatos que Ihe fo cxpressGo, os quais terminam por incidir de uma maneira ou de ‘Huta sobre a concepgdo mesma do tempo, franqueando novos elementos do devir temporal e ratendo aspectos do mesmo cuja existéncia, em parte pelo menos, a mentalidade arcaica sequer suspeitava. InovagGes importantes, com efeito, conforme veremos na seqiiéncia, das quais se porle dizer, sem exagero, que, se nfio levam todas elas, em seu conjunto, A instalagdo de algo absolutamente novo, pois parte delas consistiu na " ELUADE, Le mythe de l'éterne! retour, p.146, 27 reelaboragéo da experiéncia arcaica, jd sedimentada na tradi¢ado, pel menos desautorizam-nos falar de continuidade pura e simples entre experiéncias grega e a arcaica, como quer Eliade. Eliade que, de resto, confunde 0 ciclo com 0 circulo e faz mengao ao eterno retorno como st estivesse diante de uma seqiiéncia de ciclos, e nado de um cfrculo imagem de um anel simbolizado pela serpente enroscada. Assim, por exemplo, a introdugao da nogio de idades, por Hesfodo, nos quadros de uma narrativa mftica racionalizada leva a transformagio, do efreulo, em que se encerrava 0 tempo arcaico, em uma seqiiéncia di ciclos com intervalos fechados que por assim dizer se lineariza em uma série de tempos distintos entre si, impedinco uma repetigio no sentido préprio da palavra, pois se é verdade que as idades se sucedem para formar um ciclo completo que recomega uma vez acabado, a repetigio pode se dar seja na mesma ordem, seja na ordem inversa.”” Assim, também, leva a linearizagiio do tempo a introdugio da nogio de irreversibilidade do envelhecimento, pela literatura grega desde Homero, na qual, segundo Lloyd, abundam passagens comoventes sobre © cardter transitério da juventude, a aproximagdo da morte inelutavel e a marcha inexordvel do tempo, isto bem antes do cristianismo e mais ou menos contemporaneo do judafsmo, porém sem qualquer ligagéo com a tradig&o judaica. Assim, enfim, a introducio da nogio de quantificacio do tempo, junto com outros povos, pela invengao do calendario, da clepsidra etc., que conduz & instalagao de uma métrica fundada na combinagiio dos esquemas lineares e circulares, mediante os quais se confere expressio as regularidades da natureza e do préprio tempo considerado in abstracto (os ciclos da natureza que se repetem, a existéncia das coisas na linha do tempo, o tempo que se abstrai, se adiciona e flui sem cessar para a frente etc.). '7Cf. ATTALL. Histoires dit temps, p. 28. Cf. também VERNANT. Mythe ef penseé chez es grees, p.23, onde oautor, aproximando Hesfodo de Platio, faz as seguintes observagdes arespeito das ragas (“idades”) no poeta em sua conexio com o problema da temporalidade e da decadSneia dos homens: “La succession des races dans le temps repreduit un ordre hi¢ravchique permanent de I’ univers. Quant’ la conception d’une décheance progressive et continue, que les commentateurs s’acordent & reconnaitre dans le mythe, elle n’est pas seulement incompatible avec I’épisode des héros (on admettra difficilement qu’ Hésiode ne s‘en soit pas apercu); elle ne cadre pas davantage avec la notion d'un temps qui n'est pas linGaire, chez Hésiode, mais cyclique. Les figes se suecdent pour former un cycle complet qui, achevé,recommence, soit dans le méme ordre, soit plut6t, comme dans le mythe platonique du Politique, dans ordre inverse, le temps cosmique se déroulant alternativemnent dans un sens puisdans l'avire.” 28 De modo que nada é mais erréneo do que a idéia de que os gregos s6 flicciam a figura do tempo circular, a exemplo dos povos arcaicos, ¢ cilerenga dos judeus e dos cristdos, que lidavam com a figura do feinpo linear. Além do circulo, lidavam com 0 ciclo ¢ a linha, e a Foexist€ncia um tanto conflitiva destas trés figuras da temporalidade fos «i uma primeira idéia do aprofundamento da experiéncia do tempo jperada pelos gregos, a qual se verticaliza, ganha profundidade e adquire densidade tal que a idéia de continuidade face as sociedades arcaicas Mo resiste a uma andlise mais detida dos poucos testemunhos que sheparam as nossas maos. Uma segunda idéia do aprofundamento da experiéncia da lemporalidade nos € dada pelas inovagGes introduzidas pelos gregos no ‘ipo semantico do tempo e, enquanto tais, afetas a linguagem. Se o homem arcaico se satisfaz com pontuar 0 tempo em um tempo fraco ¢ lim tempo forte — profano, um; sagrado, 0 outro —, os gregos, nao anlisfeitos, tratam de ampliar o léxico do tempo, com a introdugao de fermos que traduzem novos aspectos da experiéncia da temporalidade 6, assim, modalizam o tempo. O primeiro ¢ mais importante deles ¢, sem dtivida, chrénos," grafado vom chi, termo introduzido por Homero, como nos lembra Lloyd, para designar os intervalos de tempos em seus diferentes aspectos.’” Outro terme € 0 discutido Krénos, grafado com kapa, introduzido por Hesfodo na Teogonia en’ Os Trabalhos e os Dias, para designar “o «cus de pensamentos funestos”, “‘a divindade que devora seus préprios lilhos”, “‘o mais temfvel filho dos céus”, sobre o qual se instalou a polémica de se Krdnos é ou nao é o deus do tempo. No entanto, mesmo «ue se admita que Hesfodo n&o tenha feito de Krdnos o deus do tempo ilas to-s6 um “‘deus astucioso” e que, a exemplo de Homero, ele emprega para designar o tempo 0 termo chrénos, que nunca aparece propriamente como nome préprio (personagem) ou assumindo a fungio gramatical de sujeito, na tradicdo deu-se livre curso a divinizacao do tempo, levando assimilagdo de um e ée outro termo, quando, & nogio de intervalo ritmado por ciclos e cadenciado por rupturas na série de ciclos, sugerida pelo mito das racas, se acresce um fundo trdgico ao fluxo temporal (por 'S Bete pardgrafo sofreu pequena, mas significativa alteragio com respeito & red: apareceu originariamente na revista Sintese - Nova Fase, id citada, com yistas a corrigic imprecisbes histéricase eonceituais, notadamente em relagiio « Homero e a Hesfode, ‘Cf. LLOYD. Le temps dans Ia pensée geecque, p. 136. que 29 que nasci nesta época, na idade de ferro, em meio a tantos sofrimentos, © nao antes ou depois?, perguntava o poeta, desconsolade, n’Os Trabathos ¢ 0s Dias).” Outro termo relativo ao tempo, aparentemente sem qualquer relagio com Homero ¢ Hesfodo, € 0 Chrénos da teologia érfica,” introduzido depois, este, sim, um deus, que deu origem 4 nogao de um tempo que nfo envelhece, imortal, imperecfvel e eterno, simbolizado por uma serpente gue, qual um anel, se fecha em cfrculo ao se enroscar sobre si mesma, €, como tal, um tempo nao franqueado aos homens, que nascem, crescem ¢ morrem, sem conseguirem juntar ocomeco e 0 fim do tempo.” Foi com a ajuda destes termos de ressonfncia mitolégica que os gregos organizaram sua experiéncia da temporalidade em seus aspectos qualitativo e quantitativo, constituindo-se numa espécie de nucleo semantico primitive, em torao do qual vo gravitar as outras nogées. Niicleo um tanto contraditério e confuso, é verdade, pois termina por fundir duas tradig6es que pouco cu nada tém que ver entre si, Uma, a homérico-hesiddica, falando de um tempo que ¢ co-extensivo ao mundo e & de alguma forma filho dele; outra, aGrfica, de um tempo que preexiste ao mundo e esté na origem dele, como 0 pai na do filho. A estas tradigGes se junta uma outra, também de origem mitoldgica, ligada a Okéanos, 0 rio do tempo que escoa sem cessar e arrasta tudo atrés de si, em seu leito insacidvel de morte, figura que terminou por associar-se ao Chrénos * A respeito da Teugonia de Hesfodo e do problema da temporalidade, ver 0 estado de Jan Torrano, publicado como introdugio a ediedo brasileira da Ed. Iuminuras, Sao Paulo, 1992, especialmente as pa:tes VI, Ville VIIL A respeite da telagio (falta de) entre 0 Krénos de Hesiodo ¢ o problema do tempo, ver ROMILLY. Le temps dans la tragédie grecque, notadamente, 41, onde a autora faz cruditas observacées sobre a natureza a-temporal de Krdnos e sua “personificaciio” (deus do tempo), ocortida depois, malgrado Hesfodo. A respeito do problems do tempo em Hesfcdo e nos gregos, cf. VERNANT. Mytfte et persed chez les grecs, especialmente os cap. I(p. 22 et seq., 40, 42, 48-55, 78-79) ¢ II (todo), onde. o autor dedica atengiio especial adifezentes espectos do mesmo, desde o mito das mgas até os aspectos mitico-temporais cla meméria Sobre adivinizagio do tempo na teologia drfica, suaaproximagio coma tradigdio hesiédica 0 papel de Ferécides, ver JAEGER, La teologia de los primeros fildsofos griegos, p. 72- 73, onde 0 autor faz preciosas observacdes a respeite da assimilagio de Krénos a Chrdnos, quando o “deus astucioso” da poeta se converte em “deus do tempo”, por simples jogo etimolégico. Sobre 0 significado de Chirdnas na tradigdo drfica cem Ferécides, ver também VERNANT. Mythe et penseé chez es grecs, p. 127, ondeo autor mostra que, aexemplo do mesire de Fitagoras, Chrdnas desempenha nasteogorias drficas « mesmo papel de principio das coisas. Scbre 0 Chrdnos dos 6rficos ¢ de Ferécides, o Krinos de Hesiod 0 tempo-deus dos iranianos (Zervan), ver ROMILLY. Le temps dans fa tragédie grecque, p. 36-37, ondea autora, apoiando-se em Jaeger, afirma queo ‘empo-deusde Ferécides é, em verdade, menos expressiio de uma tradigéio viva doquea invengéo brilhante de um pensador original. # ATTALL Histoires du temps, p. 33-34. 30 OY. Le temps dans la penseé grecque, p. 136. Grfica, como lembra Vernant.” Tais tradigdes, ainda que ei sua indole, foram sintetizadas por Cicero numa maxima | cuijo fundo tr4gico marcou definitivamente 2 concepgfio antiga wfalidade, dos gregos aos romanos. Ei-la: o deus que engole (08 Hilhos — escreve Cicero — é “o proprio Tempo, o tempo el de anos, que consome todos que nele se escoam”.™ eates termos e figuras bastante conhecidos, Lloyd cita aidn, que acabou por designar, segundo ele, a duragdo da vida, a A gergéio, © que em Plato € outros pensadores posteriores 4 designar também a eternidade.* Por fim, duas palavras das por Homero, igualmente importantes: émar, utilizada para #0 dla, ¢ Adra, usada para designar seja as estagdes do ano, seja filo que convém a uma ago ot a umaatividade, como o momento F Lim relato ou oO tempo do casamento.”* Poder-se-ia acrescentar, # lermo kairds, de uso corrente nos sofistas, designando o instante giado, 0 momento mais oportuno para tomar uma decisio ¢ adear uma agio.” aa jnovagoes (as figuras da temporalidade e o campo semantico ipo), além de nos ajudarem a compreender o aprofundamento da Fifiicin da temporalidade, permitem-nos esclarecer também o «i evasio do tempo empreendida pelos gregos, sem que, ainda s@ possa falar da presenga de um mesmo arquétipo da repetigao, | quer Eliade, fique avtorizado algo como uma linha continua a 4) tiundo grego as sociedades arcaicas. A idéia de ef8mero, por fiple, é conhecida dos gregos, que tém inclusive palavras apropriadas Hlesignd-la, como ephemérios e epheméros (0 que dura um dia), i10-se tanto aos homens quanto as coisas. Lembra-nos Lloyd que de Chrénos esua aproximagio a Okéanos, ver VERNANT. Mythes et Jes grees, p. 127-128, onde aparece a seguinte observagio: “Il ne faut pas se suvla portée de cette divinisation de Clirénoset sur importance nouvelle pietée ips dans ce type de théogonie. Ce qui est sacralisé, c'est le temps quine viellit pas, le Hymortel et impérissable chanté dans les po&mes orphiques sous Je nom de Chriénos das, Semblable Aune autre figure mythique, le fleuve Okéanos, quienserre tout univers equrs infatigable, Chrénos.a aspect d'un serpent fecmé en cercle surlui-méme,d’un i et liant le monde, fait du cosmos (,..} uae sphére unique étemelle.” lo por ATTALL, Histoires du remps, p. 33. | bailigo de TORDESILLAS. L’instance temporelle dans!’ argumentation dela premigre He la weconde sophistique: la notion de kairds", p.31-61 31 Jes teria uma existéncia superior, lembra-nos Lloyd, que cita 0 amano de Aquiles, proclamando que é preferivel ser escravo na fi ser rei entre os mortos.* tra forma de evasio do tempo igualmente buscada é a evasiio na ena 0, vale dizer na obra de arte ¢ na acao moral e politica, § hse na idéia de que os homens passam e as obras ficam, e de que Homero compara a geragfo dos homens ao crescimento e queda das folhas e sustenta que a oposicao fundamental entre os homens e os deuses reside no fato de que aos homens estao reservadas a velhice e a morte odiosas, ao passo que aos deuses, n&o.* Por sua vez, Hesfodo diz que os homens da raga de ferro ja nascem velhos e cansados, em meio a toda sorte de doengas e males, condenados A fadiga do trabalho, e que suas penas s6 terfo fim no dia em que Zeus anigiiilar esta raga, no A Teputacao ou exceléncia da ag3o pode resistir ao tempo e durar tempo em que eles nascerem com as témporas brancas. Por fim, Séfocles, mente.” Este desejo de imortalidade, que é visto como a na pega Edipo em Colona, 130 6 menos eloqtiente ao pr na boca de seu gio da eternidade no tempo, além de ter dado origem a esta idéia desafortunado herdi duas frases que exprimem com raro vigor © poder: ic perfeigao da obra e do agente, a exemplo do ideal de destruidor do tempo, do qual s6 escapam os deuses. Diz Edipo: “Somente (a, que sé realiza aqui e agora na existéncia temporal do varaio os deuses estio livres da velhice e da morte; todas as coisas, afora eles, dna raiz do nascimento da crOnica e da historia enquanto esto envoltas pelo tempo soberano. A forga da terra se esgota, 0 vigor do 108 lilerdrios — a primeira com fins laudatérios; a tltima com corpo se esgota; a confianga enfraquece, a desconfianga floresce.. 22 Por 4 perenizar 2s ages e as obras dos homens naquilo que elas t&m sso, cnscios embora de que 0 tempo € 0 pai de todas as coisas, de que Hligno de ser lembrado e legado & posteridade, dependendo, pois, naio nada pode contra sua poténcia soberana que faze desfaz, semeando por § do indivfduo poderoso que a encomenda, mas do revonhecimento toda a parte os males bem como os remédios capazes de repard-los, lieo dit potis e dos seus concidad: como a morte e 0 esquecimento, os gregos ainda assim, com medo de} ‘Tul é, pois, o sentido da experiéncia do ef@mero e da evasio do seu poder destruidor, tudo fizeram para evadir-se do tempo e, tanto: PO par. o homem grego: da mesma forma que para.o homem arcaico, quanto 0s arcaicos, também se puseram em busca de um plano superior inero deve ser anulado e perenizado; porém, 0 ponto de evasio ea da realidade em que se pudessem por ao abrigo de suas penas e fadigas: Idade esto diante de nés, aqui ¢ agora, no presente atual, nao a ordem da eternidade. fs le nds, no passado, no comego ou inicio do tempo. A primeira forma de evasio que buscaram, e talvez a mais eficaz de A exemplo do homem arcaico e do heleno civilizado, a intuigio do todas elas, é de tipo religioso, fundada na crenga da transmigracao da © o desejo da eternidade séo os dois modalizadores que alma, alma que depois da morte renasce em outro homem, num animal, A am a experiéncia do homem medieval relativamente ao tempo, numa planta. Porém, esta doutrina, em que pese instalar a reversibilidade etn um Conjunto de inflexdes oriundas das tradigdes judaica e crista do tempo, esta longe de ser uma fonte de consolo — escreve Lloyd.”” conformaram a mentalidade dessa época desautoriza-nos falar de Por um lado, ao invés de ser a redengao do homem que enfim se livra Hilinuidade de experiéncia e de atitude. Tanto 6 verdade que mesmo dos males deste mundo e do fantasma da morte, 0 ciclo de renascimentos ‘nie uma figura se reitera, uma palavra se repete, um termo dé lugar ereencarnagées € visto como um ciclo de infortinios e afli¢des. A prova: " disso é que os gregos esperam, em recompensa de uma série de vidas Vii (ue se revela, um tempo novo que se instaura., Daf a necessidade santas, ndo tanto o prosseguimento do ciclo das reencarnagSes, mas 0 precaucdes para afastar o risco nao apenas de aplainar as diferengas fim dele, quando, a exemplo dos deuses, vao fruir nao somente da re do as épocas anteriores, como também de nivelé-las em relacao imortalidade, porém de uma imortalidade imével, segundo Lloyd.” Por diferentes fases de um vasto perfodo que se estende por mais de 1000 outro lado, nem sempre é certo que aquelas almas que descem em diregao arca povos 180 diversas. ‘Talvez o primeira risco a ser evitado seja o pecado de anacronismo, (jue Eliade é vitima. Nao contente de ver em agdo o mesmo regime 281, LOYD. Le temps dans la penseé grecque, p. 138. * Tpidem., p. 143. Idem. Idem, LLOYD. Le temps dans la penseé grecque, p. 138. thidem. p. 143. 32 3 dos arquétipos no mundo grego, estende-0 agora para o mundo medieval e cristo, no qual ele acomoda, nao sem esvazid-la, a reafirmagao, numa | escala jamais vista, da figura do tempo linear, desconhecendo que a introdugdo desta figura e a experiéncia da temporalidade que Ihe d4 estofo puseram fim exatamente ao regime dos arquétipos e colocaram no seu lugar o regime da historia: a histéria da salvacao. F, pois, com vistas a matizar e a retificar a interpretagdo de Eliade, que chamaremos a atengZio em seguida para trés pontos fortes dessa nova experiéncia e dessa nova atitude relativa ao tempo, Para tal, restringir-nos-emos por ora is chamadas concepgGes nio-filoséficas € nio-cientificas da temporalidade, visto que também aqui ficam : a reservadas ao segundo capftulo a elaboragao da experiéncia do tempo e Hiaito tais, a serem lembrados pelo crente quotidianamente, a se da hist6ria pelos historiadores e fildsofos, incluindo-se a dos medievais, fos relatos do Livro Santo: “1)Fundadores, porque (...) falam Na seqiidncia, aludiremos 1) s figuras do tempo na idade média; 2) ao HagAo los homens, da fundacdo da Naciio de Israel com 0 chamado campo semantico da temporalidade; 3) & evasiio do tempo ea instalagao alifio, dai revelagao da Tabua das Leis a Moisés, da Enearnagao da eternidade. il, dt [undacao da Lgreja etc, 2) Unicos, porque os acontecimentos Comecemos pelo primeiro ponte, as figuras do tempo na idade média. pelem e seu sentido radiva em sua diferenga e individualidade: Acredita-se, e Eliade esta disposto a concedé- lo, que o divisor de dguas i haver outra Encarnagdo, outras Tabuas da Lei, outra queda de que separa a concepgao do tempo da tradigdo judaico-cristé da concepgiio fe. 3) Irreversiveis, porque se eles fundam, eles comecam, da tradicao helenistico-romana e mesmo das sociedades arcaicas, nada fai) wina nova era: no tempo do xodo os judeus nao possufam mais € do que 0 fato de que a primeira lida com um tempo linear, Palio de terra, mas eram fiéis a Javeh; depois o povo se distanciou enquanto as uiltimas com um tempo ciclico ou até mesmo circular. Nada’ 6 @ As despragas se multiplicaram, até que o crime de Juda e seu mais certo, e também nada mais inexato. Isto porque, se é verdade que, § provocaram o desastre nacional.” Por outro lado, além daordem quanto & figura do tempo, na idade média a linha prevalece sobre 0 a eternidade, morada do Senhor e abrigo do homem circulo, nfio é menos verdade que nessa época, afora os eruditos, fildsofos do com Deus no fim dos tempos — na tradicZio. e doutores da Igreja, os quais — diga-se de passagem — nem sempre a redengéo ocorrendo no mundo, na espera sempre continuada sao claros € coerentes a este respeito, os homens lidavam com outras 4 prometica; na tradigao crist, dentro ¢ fora do mundo, pois figuras da temporalidade, como 0 ciclo e até mesmo 0 circulo, como de dla no tempo (Cristo) e consumada na eternidade (transcendéncia). resto 0 admite 0 préprio Eliade. eso, Se a figura da linha presia-se para marcar os acontecimentos Segundo nosso autor, dos primeiros séculos da era cristi até uma @ liveversfveis de que nos falam as Sagradas Bscrituras, dotando data bastante avangada da idade média segue vigendo a crenga, muito fii di salvagao de trés pontos fixos: a Criagéio, a Encarnagiio e 0 acaigada nas massas populares, na Tenovagaio periddica do mundo e do te, © mesmo nZo se pede dizer quanto A eternidade, que ndo tem tempo™. A coexisténcia destas figuras da temporalidade é posta em relevo By nem (im no tempo, ¢ anterior ao tempo, estd fora do tempo, também por Jacques Le Goff no seu vigoroso artigo sobre a “Hist6ria’”” fin wo tempo ¢ esté acima de todo e qualquer tempo, finito ou na Enciclopédia Einaudi, onde ele escreve que “um certo tipo de tempo . Tulvez a figura do cfrculo fosse mais apropriada, mas esvaziada circular, 0 tempo litirgico, Gssempenta nele (no cristianismo — ID) jas de duracdo e de infinitude, com cuja ajuda os gregos pensavam um papel de primeiro plano” e qlie sua supremacia é tal que levou oO c, instalada no tempo, nao fora do tempo ou mais além do cristianismo “a datar durante muito tempo apenas os meses e os dias, ficionar © ano, de maneira a integrar os acontecimentos no {unlo, ndo nos deixemos levar pelas ilusdes continufstas. Por 44, PONG soe ocorrer com todos os acontecimentos que se repetem valos regulares, o circule pode dar lugar ao ciclo e 0 ciclo a tle modo que os acontecimentos celebrados pelo calendario 1) Lambém podem ser lidos nume perspectiva linear, e é pelo linha, ¢ nao do cf-culo ou do ciclo, que melhor podemos avaliar Wifivado profundo da experiéncia crist& do tempo, visto que nos ile A freniecom acontecimentos fundacares, tinicos ¢ irreversfveis OFT, Membiia-histocia: histéria, p. 196, x i ythe de V'éternel retour, p. 152. SEUSS Tin a le tenon IMINGUES. 0 grau zero do conhecimento, p.281. 34 35

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