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Este ensaio decorreu da elaboragio de um texto introdutério & primeira parte de um projeto patrocinado pelo Ministério da Cultura (hoje extinto) para a redagdo de uma Hist6ria geral do negro no Brasil; projeto que seria coordenado por Clévis Moura, Décio Freitas e Joel Rufino dos Santos. Trate-se, pois, de uma leitura intro- dutéria, onde procura-se analisar a ‘maneira como 0 negro é descrito e/ou simbolizado na historiografia brasilei- ra, através da obra de alguns dos is importantes historiadores.,(brasi- Ieiros ¢ estrangetros) que, a0 longo de nossa histéria, dedicaram-se ao “estu- do” de nossa realidade. Fruto de um pensamento que assi- mila e reflete uma visio desfocada de nossa realidade étnica e social, essa historiografia, tendo como embasa- ‘mento tedrico um aparelho conceitual elitista, eurocéntrico e racista, jamais colocou 0 negro como agente histéri- co-social dindmico — seja como indi- viduo ou como grupo social —, pro- duzindo, assim, uma distorcida visio onde se configura um perfil branco para nossa dinmica social. Neste ensaio esto selecionados — para anélise de suas obras — alguns historiadores considerados “cléssicos” € que, por isso, tipificam em set con- Colecio Nossa Terra | CLOVIS MOURA ‘Titulos publicados A primeira renovacao pecebista. Reflexos do XX Congreso do’ PCUS no PCB (1956-1957) Raimundo Santos ) Breve historia do PCB José Antonio Segatio Comunistas em céu aberto 1922-1930 Michel Zaidan Filho Estado e burguesia no Brasil Antonio Carlos Mazzeo Coptliomo e revolugto burgess no Breil AS INJUSTICAS | Nélson Werneck Sodré | A esquerda e 0 movimento operdrio 1964-1984. DE CLIO Vol. 2. A crise do “milagre brasileiro” | Celso Frederico (Org.) | A classe operdria na revolugéo burguesa. A poli- O negro na historiografia brasileira | tica de aliangas do PCB: 1928-1935 Marcos Del Roio Cultura e sociedade no Brasil Carlos Nelson Coutinho 4 O fascismo cotidiano Nélson Werneck Sodré As injustigas de Clio. O negro na historiografia brasileira Cléyis Moura Préximo lancamento: © povo e o poder Manuel Correia de Andrade Oficina de Livros 1990 Belo Horizonte Clovis Moura Composigio: Linotipadora Giselli Capa: Marilda Campagnoli de Vilhena Ne de catdlogo: 0028 Direitos reservados: OFICINA DE LIVROS LTDA. Rus Tupinambés, 360, 12." andar, sala 1210 30.120 — Belo Horizonte, MG — Tel. (031) 222-1577 Rua da Quitenda, 113, 10° andar, conjs, 102/104 01012 — Sio Paulo, SP — Tel. (O11) 37-9872 SUMARIO Palayras introdutérias, 11 Consideragdes sobre a histéria como ciéneia, 15 Historiadores como intelectuais organicos do sistema escravista, 31 Frei Vicente do Salvador: 0 negro na penumbra, 41 Rocha Pita cu Palmares pelo avesso, 49 Southey: o negro visto com lunetas inglesas, 61 Abreu € Lima: 0 negro e a Tuta de classes, 85 Varnhagen: uma visio aristocrética da histéria sem passaporte pata © negro escravo, 95 Armitage: 0 negro “bérbaro ¢ sanguinério” ¢ 0 brasileiro indo- lente, 129 Handelmann: o negro como raga inferior e um projeto de atiani- ago do Brasil, 141 Buclides da Cunha: racismo cientificista e a condenagio do negro, 183 Oliveira Vianna: stianizacio como solugo pare o problema étnico e social, 197 Conclusées, 213 Para GRISELDA, pelo trabalho @ com fernura, 0! Apoto Senhor do Sol E dos mistérios Sede misericordioso E permit Que Clio, ‘A imsis bela dentre as musas Que the acompanham © eortsjo Em seu carro de fogo no firmamento. Desea ef a Terra E nos revele Os segredos Da crenga da qual & protetor: A HISTORIA, (Crago dirigida a Apolo, invocando a protegio de Clio, uma das nove musas, filha de Zeus ¢ Mnemosina a deusa da meméria; era a musa da Histéria e tutelava a conservacdo de todas as sagas ¢ faganhas, fazendo soar as trombetas da fama para que ninguém fieasse sem conhecer 0 fato herdico © © seu protagonista.) PALAVRAS INTRODUTORIAS Oui dizer que a histéria 6 a mostra das nossas agées © mix xima de principios: © 0 mundo [oi sempre, de certo modo, hebitado por homens que tém tido sempre as mesmas paixdes; ‘e que sempre existia quem serve e quer manda, e quem serve de bom grado, € quem se rebela ou se rende, Nicolay Machiavelli 0 texto que se vai ler é uma produgao introdutéria & primeira parte do projeto, patrocinado pelo Ministério da Cultura, intitulado Historia geral do negro no Brasil, projeto que seré coordenado por quem assina esta introdugao ¢ os historiadores Décio Freitas @ Joel Rufino dos Santos. Sendo uma leitura introdutéria, procura- mos analisar como o negro € descrito ou simbolizado na nossa historiografia e os diversos niveis de deformagao ou incompreenséio etnocéntrica, os preconceitos © os julgementos de valor negativos que estiio embutidos ¢ séo registrados nessa produgio historiogré- fica do passado, durante todo o tempo em que ela foi elaborada, Fruto de um pensamento gue assimila e reflete uma visio desfo- cada da realidade étnica e social do Brasil, essa historiagrafia, tendo como embasaniento tedrico um conjunto: de pensemento elitista, eurocéntrico e racista muitas vezes, jamais colocou © negro como agente histérco-social dindmico, quer como individuo, quer como grupo ou segmento, Essa imagem produzida em conseqiiéncia da necessidade de se instrumentar um pensamento capaz de dar um perfil branco & nossa dindmica social, configura um dos exemplos ais tipicos e significativos da incapacidade ideolégica desses pro- dulores de repensarem a nossa histéria a partir das classes, segmen- tos ott grupos oprimidos e etnicamente discriminados, e, por isto mesmo, interzssados em dinamizar a sociedade na diregao de novas formas de convivéncia social " Diante de tudo isto, foi elaborado o presente plano no qual se faré 0 resgate dessa grande heranca social e histérica oculta, que permanece, por isto mesmo, na penumbra. © negro, no particular, € grande desconhecido. Durante todo o percurso da nossa histéria, a sua contribuiggo tem sido negada direta ou veladamente e apenas destacadas as suas qual dades como escravo, produtor de uma riqueza de que nao parti- cipava, Os historiadores que se debrugaram sobre a nossa realidade jamais, ou muito raramente, viram o negro como forca dinémica na nossa formacéo politica, social, cultural ou psicoldgica. Todos os antigos preconceitos biblicos, cientificistas ou racistas foram unidos, compactados e aplicados na anélise do comportamento da populacio negra Tudo isto influiu como elemento de reflexio para que fosse estabelecido 0 projeto atual que iré resgatar essa contribuicéo des- cartada, A idéia surgiu como um marco inicial no ano em que transcortia 0 centenétio da abolicao, mas com o objetivo de esten der-se muito além, no se transformando, assim, em simples ativi dade comemorativa, mas indo em diregio a uma postura cientifica de revisio da nossa hist6ria e dos seus problemas interétnicos. No presente texto, que abordaré a posico da nossa historio grafia em relagio ao negro, usamos 0 critério de selecionar aqueles historiadores considerados cléssicos e que, por isto, tipificam no seu conjunto 0 desenvolvimento do pensamento historiogréfico na- cional e nos quais a maioria dos divulgadores da hist6ria do Brasil yo apoiar-se como fontes. Escolhemos como historiadores representativos Frei Vicente do Salvador, Rocha Pita, Southey, Armitage, Varnhagen, Handelmann ¢ Oliveira Vianna, Incluimos, também, Abreu Lima e Buclides da Cunha, o primeiro por ser um historiador atipico ¢ que repre- senta uma vatiante que nfo teve continuadores em nossa historio- grafia e Euclides da Cunha porque com Os sertdes foi montada toda uma literatura inspirada nele, com influéncia, maior ou menor, até aos nossos dias e, ao mesmo tempo, por ser um dos represen: tantes mais qualificados na nossa intelligentsia critica, mas, por outro lado, efnocéntrica, adepta de um biologismo sociolégico que leva a encarar de maneita deformada e negativa 0 negto € 0 mestico como componentes da dinémica social emergente. 12 O leitor poderd ver, durante a leitura do texto que se seguiré, como ha uma repeticéo de posigdes ideolégicas em relacéo & popu- lacdo negra e ndo-branca em geral nos autores pot nés analisados. Desde Frei Vicente do Salvador até Oliveira Vianna o impasse do julgamento éinico permanece e chega mesmo a se agravar no tiltimo autor. Como vemos, no houve uma diluigo do preconceito contra (© negro & medida que novas teorias julgadas mais préximas de uma posicio cientifica eram usadas, mas, pelo contrétio, também essas novas ‘eorias estavam impregnadas da ideologia colonialista, que passava por sobre a realidade para procurar confirmar estered- tipos sem base empfrica, completamente sem fundamento, Pelo contrério. Achamos, mesmo, que em certos autores do passado hé ‘menos preconceito contra 0 negro do que nos mais modernos que inauguram uma fase cheia de cientificismo e que tem infcio com a obra de Jofo Ribeiro, em 1900, ¢ termina com 0 autor de Popu- lagdes meridionais do Brasil Nessa producio preconceituosa evidentemente tivemo exegdes, no de historiadores, mas de pensadores sociais que foram pre- cursores de uma abordagem sociolégica neste particular, como Alberto Tortes e Manoel Bonfim. Sa0 porém contribuigées que no acompanham a tendéncia geral da nossa historiografia (considerada cléssica © que se destaca até 0 aparccimento de uma producio universitéria mais recente) a qual vé o negro passivo como escravo e biologicamente inferior como cidadao, Os historiadores atuais iniciam um processo de revisio do quadro tradicional, mas ainda € muito cedo para se avaliar até que ponto conseguir, em pouco tempo, uma reversdo desse comportamento. texte atual deverd ser compreendido como introdutério a uma obra que iré procurar restaurar @ verdade hist6rica sobre 0 negro no Brasil e a sua dindmica no contexto da atual sociedade brasileira 13 CONSIDERACOES SOBRE A HISTORIA COMO CIENCIA Antes de entrarmos numa viséo analitica de como 0 nogto € apresentado ¢/ou simbolizado na historiografia brasileira, devemos estabelecer algumas premissas tedricas sobre a ciéncia da hist6ria, sem 0 que o problema nao poder ser compreendido na sua tota- lidade nem avaliadas as formas de comportamento ideolégico dos seus autores em relago ao mesmo. No iremos, aqui, nem isto faria sentido, apresentar uma estéria da hist6ria, mas tentar demonstrar sua fungdo epistemo- 6gica no universo do conhecimento do homem, como ser histérico e que somente se humaniza na ¢ pela hist6ria. Isto porque o homem somente se humaniza como ser social, 0 que equivale a dizer, como ser histérico, pois o social somente pode ser compreendido na sua dindmica, diacronicamente. Daf porque podemos dizer que a hist6ria 6 a mais antiga e universal das ciéncias, pois & medida em que o homem pensa, ele pensa historicamente, ou através de um passado mitico ou através de um devir ut6pico, Quando Arist6: teles dizia que o homem € um animal politico estava dizendo, implicitamente, que ele era também um animal hist6rico, pois néo se concebe a politica fora do seu desenrolar no tempo, isto &, histo- ricamente. Por isto, jf houve quem afirmasse que a “histéria é a politica passada e a politica a histéria do presente” (Seely). Essa frase pode explicar muita coisa que ficaté incompreensivel se tomarmos fa histéria como simples disciplina académica, acima do proprio devir do seu objeto, material para uso contemplativo. Porque a hhist6ria nfo existe apenas para registrar, narrar ou explicar os fatos passades. Ela est inserida no quadro das ciéncias sociais, marca e delimita objetivos para o homem, generaliza os fatos, aponta as tendéncias do futuro, baseada no passado. Daf no poder ser compreendida corretamente se for tomada como simples narra- tiva sem conexdo com @ préxis e sem interligaggio com os grupos 15 sociais que formam a dinmica da histéria, pois ela € uma ferra menta de conhecimento integrada nessa dindmica Ciéncia que procura captar a ago dos homens (em sociedade) no tempo e no espaco, tem de generalizar os rasgos essenciais dessa aco, estabelecer coordenadas para a sua continuagdo no futuro, Se a aco dos homens no pasado € 0 seu objeto — e essa aco quer dizer desenvolvimento, transformagio —, nfo se pode negar que a ciéncia histérica, por isto mesmo, somente se afirma quando, além de analisar os fatos parados ¢ isolados, concatena-os em um perfodo de tempo (periodizagio), consegue descrever ¢ explicar a estrutura e 0 ritmo desse perfodo, e, a0 mesmo tempo, estabelece as categorias que o interpretam e situam hierarquizado nno processo de desenvolvimento global. Para tal, 0 historiador tem de aceitar, em primeiro lugar, que essa descrigao e stia conseqtiente interpretago devem ser dindmicas, nfo apenas por questSes meto dol6gicas, mas porque 0 préprio objeto a ser analisado — a prdxis humana — 6 dinmico na sua esséncia, embora, muitas vezes 0 historiador no 0 perceba no periodo de uma geracio, Esta posicéo epistemolégica fundamental frente ao fato hist6rico e & ciéncia que 0 explica deve ser o primeiro dever do historiador. A prépria metodologia somente seré vilida se o estudioso partir desta consta- tagdo inicial. Daf ter de aceitar fundamentalmente: a) — que a hist6ria € um processus; b) — que se realiza através de choques © contradicées que se verificam na realidade objetiva: ¢ ¢) — su: jeito & causalidade, Sem a compreensio preliminar desses prinefpios nfo é pos sivel fazerse histéria cientifica. Sem a aceitacio de uma continu dade dos fatos no tempo, entrelagados e subordinados, e, ao mesmo tempo, sem se aceitar que essas concatenagdes que Ihes so inerentes no so obras do acaso, mas decorrem de uma causaeio espect fica, o historiador pode fazer tudo, menos histéria Isto, que A primeira vista poderé parecer elementar, no é aceito, no entanto, pacificamente pelos historiadores tradicionais © académicos. Se, por exemplo, Bury declata que “a histéria € uma ciéncia, nem mais nem menos", outros afirmam exatamente © contrétio. Charles Beard afirma que “precisamos desfazer a iluséo de que poderia existir uma cigncia da historia", e Harold ‘Temperley pontifica britanicamente que “a idéia de que a histéria 16 € uma cifncia, jé pereceu”. Por estas raz6es John Lewis, anali sando essa corrente de historiadores diz que para ela “existe um ‘consenso geral de que as palavras ‘causas’ ¢ ‘causalidade” devem set evitadas ¢, em se tratando de complicado agregado de fatos, 2 atribuigo de causas é, na melhor das hipéteses, uma operacéo intelectual altamente duvidosa”. ! Sobre esta tendéncia um cléssico como Henty Berr assim se manifesta: Produziu-se nestes ltimos anos um movimento curioso, do qual Nietzche foi 0 anunciador ¢ que, de um modo geral tende oper a0 conceito de intuigdo, 0 sentimento, 0 dado imediato, fa vida, A idéia de verdade objetiva, conforme uma ordem ds coisas etitica, € uma pscudoidéia; a verdade & nossa fora e te prove por suas conseqtiéncias. Nao pretendemos mais ‘ngir © real polo pensamento claro, a légica’abstrata: a pe luyra de ordem viver ¢ realizar o verdadeito pela agio. Esta reagio contra o intelectualisme vai até fazer do homem, o que hé de mais mével no homem, de mais fugidio, © centeo das coisas. O “pragmatismo" ow o “humanismo” tem origens ‘muito diversas: psicol6gicas, cientfieas, estéticas, morais ¢ reli ggosas. Exprime disposigées mentsis, antes que constitua uma fllosofie, Amalgama idéias dispares e aparece inconsciente & aaélise. Triunfa, sobretudo nos paises anglo-saxdes, cujes ten- inclas misticas espelha. Na Franca encontrou auxiliares Gte testemunhas cutiosas ou benevolentes, em vez de fazer verde" deiros adeptos. Na Itdlia um grupo de jovens fildsofos desbor- antes de vide e de entusiasmo empurraram passageiramente © pragmatismo pare os limites extremos, numa singular mistura de fantasia, de raciocinio, de Hi pessoas que julgam a cerudigo uma superioridade, que & essencial para a felicidade humana conhecer 2 altura do Monte Ararat, que o maior elo fio que se possa fazer do nosso século esté na expresséo “car navalescamente tidicula” 0 progresso das cincies: muito saber, na verdade, no é sendo ineBmodo, £ necessério pér uma venda tos olhos nilo 86 para agit, para cret, mas para pensar. 2 Estas consideragées demonstram como a partir de determinado momento da evolugdo do pensamento histérico, correntes que cha- ohn Lewis, Ciéncia, fé © cepricisme (Sio Paulo: Ed. Brasiliense, s/d), p. 58, 2Hensi Beer, Sintese em histéria (Sto Paulo: Ed. Renascenca S.A., 1946), pp. 205-206. 17 maremos de irracionalistas procuram transformar o pensamento hist6rico em um conjunto de idéias desligado da realidade. Desta forma, 0 historiador deverd fazer uma opgio: ou hé de fato um processo histérico objetivo, sujeito a leis, ¢ desta maneira o estu- dioso pode inferir conclusdes para a aplicacio empfrica e sua coordenacdo a longo prazo, ou tem de aceitar a contingéncia (0 caso, as idéias motoras ou mesmo os impulsos irracionais de personalidades ou grupos) como os elementos que dio conteiido a0 processo hist6rico. Neste caso, a hist6ria se reolizaria através de explosées imprevistveis. Passaria a ser um conglomerado impre- vistvel de fatos atomizados, desligados uns dos outros, de vez que cada um esgotaria os seus efeitos e ressonfincias em sii mesmo nfo no seu encadeamento diacrénico, E a histéria desapareceria como ciéncia. Mas, essas controvérsias l6gicas e te6ricas ndo existem apenas no plano da erudicéo, fruto de friceGes de idéias desligadas do mundo ¢ da sua propria dindmica histérica. Blas, pelo contrétio, so frutos da propria realidade que a cigncia da histéria pretende estudar. Queremos dizer, em outtas palavras, que as diversas escolas e tendéncias nfo surgem por yoluntarismo ou arbitraria- mente, como cogumelos ou por geracio espontinea, mas fazem parte da realidade e também representam reflexos ¢ reducdes de fatos, problemas e fendmenos que cabe ao historiador interpretar, isto é: tém uma raiz social, A histéria, assim, no seu sentido mais abrangente, ¢ uma ciéncia que procura a autoconscigncia do ser hist6rico, mas produz, concomitantemente no seu bojo uma série de correntes que, ao invés de serem conceptualmente autonfirmagéo cientifica, tipificam elementos de alienago de uma parte da socie- dade que a histéria estuda. Assim, 0 historiador ou tem uma Weltanschauung dinamica e dinamizadora ou nfo poderd analisar a ago dos homens no pasado e especialmente no presente, @ no ser de forma alienada, © sistema de valores dos historiadores que assim pensam Teva-os a uma concepedo invertida do processo histérico. Daf as distorgdes académicas dos fatos histéricos a que nos reportaremos oportunamente. © problema que estamos expondo entronca-se em outro que € 0 mais importante e diffcil de ser elaborado logicamente e ser 18 respondido: haveré a possibilidade de um historiador afitmar e comprovar que 0 seu conjunto conceptual é aquele que expressa a autoconsciéncia hist6rico-social no seu proceso ativo ¢ dinamico de transfornago? Ou ndo ha possibilidade de que seja estabe- lecida esta conexfo e certeza e todos os esquemas que possam oferecer um conjunto logicamente harménico podem ser aceitos ‘como capazes de dar uma explicacdo satisfatdria da hist6ria? Em outras palavras: poderd o historiador descobrit 0 sentido objetivo, a esstncia dindmica da marcha dos acontecimentos passados ¢ suas implicagdes no presente ou caberd a ele apenas a fungio de racio- nalizar esses eventos ¢ processos que se desenvolveram no tempo sem nenhum sentido? Quando dizemos que houve uma pré-histéria estamos enunciando uma era que existiu objetivamente no tempo e que pode ser caracterizada por uma ficadores materiais ¢ sociais como quetia Gordon Childe,* ou 0 conceito de pré-histéria é apenas uma forma cOmoda de pensa- ‘mento que permite ao historiador racionalizar uma época sem levar em conta a sua concretude material, social ¢ mesmo biolégica? Ela poderia ser caracterizada ¢ conceituada de diversas maneiras € formas, tudo dependendo do pensamento pessoal do historiador © da sua subjetividade existencial? O exemplo da pré-hist6ria poderd ser estendido a outras fases. Quando Pirenne refere-se a uma hist6ria econémica e social da Idade Média, 0 que procuta expressar? A existéncia de um com- plexo de elementos reais (materiais) ¢ sociais (relacionamento entre os homens) que tornam possivel a0 historiador estabelecer subjeti- vamente uma visio ¢ categorizacio dos elementos objetivos que formavam e enformavam 0 seu contetido, ou ele nada mais faz do que racionalizar os fatos, escolhidos através de um proceso seletivo que favoreceu o estabelecimento arbitrério do seu sistema de valores hist6ricos? * Respondendo a esta dupla intertogagio que colocamos para 6 leitor, Pierre Chaunu responde afirmando: "Gordon Chikle, Que sucedié en (a historia (Buenos Aires: Bd, Lautaro, 1950) passim. 4Heenti Pitenne, Historia econémica y social de a Edad Media (México: Fondo de Cultura Econémica, 1955), passim. A grande aquisipio da histéria no devorrer dos sltimos oitenta anos, situa-se ao nivel de uma escolha cada vez mais consciente. Ao nivel, portanto, daquilo a que se chama = problemética. Nessas condig6es, destaca-se quase a priori trés regras que deserevem a evolugdo da nossa diseiplina ‘A primeira dessas regras comanda a periodizagto, Uma vez mais, © papel motor cabe 8 uma historia bastante, sendo hisiéria contemporines, pelo menos a histéria moderna, faguela pela qual a abundincia de documentagio comanda uma escolha. Ela cresoe com os multiplicadores do Escrito, ‘8 estatistion dos Estados, 0 nmero dos homens e @ massa global das informagoes que citcula entre um ndmero cada ‘yer mais clevado de homens alfabetizados. 8, portanto, no ue se refere i hist6ria modema que se apresenta com mais nitidez a questio de uma problemética histérica, ‘A segunda regra comanda 2 escolha da problemitica, A histéria é chamada a trabalhar cada ver mais em ligasso ‘com as novas cifncias do homem, explicatives do. presente, am ampliar © seu campo de observagé fempo curto, no qual so encerradas pel futras curtas séties elaboradas se ee vollarem para a histéra, Uma das fungées da hist6ria atwal consiste, por conseguinte, fem prolongar ‘no passado at séries de que podem dispor 86 cigneias humanas, Mas 3 histéria no pode representar seu papel no sentido mais nobre de cigncia auxiliar das outras cigneias do homem, essas ciéncias da agio, se nfo usar as probleméticas dessas ciéncias. E com o auxiio dessas proble- miticas que os historiadores prolongario as séries que multi plicarfo a efiedcia das cigncias humana. ‘A torcsira regra é 9 da idee-volta entre 0 presente e 0 passado, Intimamente ligada & elaboragio de cia do hhomem, ao mesmo tempo miltipla ¢ una, a historia recebe suas injungSes do presente, Suas problemfticas so extraidas através dos diferentes setores da cincia social, das sucessivas angiatias do nosso tempo. A relativizagio da propria histéria ‘que Ia Populinidre jé entrevira, ao que parece, hi quatro s€eulos, € 9 consequéncia em potencial do triunfo do histo © que Pierre Chaunu considera relativizagdo da histéria, no € 0 voluntarismo jrracionalista que antes analisamos, mas a sua participago como ciéncia auxiliar das demais ciéncias do homem, Pierre Chaunu, A historia como cineia social (Rio de Janeiro: Zehar Editores, 1976), pp. 68-63 20 trazendo a sua parcela de conhecimento objetivo para a compreen- so da problemética emergente das angistias do homem atual. Estas consideragées de Chaunu, especialmente ao afirmar que fa historia surge das sucessivas angtistias do nosso tempo, leva-nos a uma reflexfio sobre o problema to discutido que é a ligagéo entre cifncia ¢ ideologia. O problema das ideologias, 0 seu signi ficado da coincidéncia ou divergéncia entre ideologia e ciéncia, std sendo atualmente muito debatido e questionado por parte de historiadores e especialmente socidlogos neopositivistas. As defi niigdes sobre 0 que vem a ser uma ideologia tém muitas vezes um cardter ... “ideol6gico”. Nao queremos, por isto mesmo, dar mais uma detiniggo do que entendemos por ideologia. Preferimos um método mais compreensivista e que parte do pressuposto de que ninguém pode raciocinar sem leyar em conta — consciente ‘ou inconscientemente — a existéncia de um suporte ideol6gico pata a compreensio do mundo exterior, embora empiricamente. Isto porque uma ideologia ndo é apenas um conjunto erudito, conceitualmente elaborado, fechado, estabelecido acima dos fatos, mas a propria relagio indispensdvel entre 0 sujeito ¢ 0 mundo exterior; relagéo que produz, de uma forma ou de outra, uma série de idéias explicadoras da dinamica que a natureza ¢ a socie- dade, onde 0 sujeito cognitivo est engastado, proporciona. Desta forma, no hé pensamento sem um suporte ideolégico, O que existe 6 que muitas vezes a captaco imediata pelas sensagdes do mundo exterior produz um conjunto fragmentério, contraditério © confuso de idéias e de relagées nelas bescadas que, & primeira vista, parece surgir espontaneamente, de forma automatica e por simples reflexo imediato. Uma das dificuldades para se compreender certas formas de pensamento espontaneo como sendo decorrentes de uma ideologia € a sua falta de perspective histérica, o seu e-historicismo. O seu horizonte projetivo é quase inexistente. Por isto mesmo os fatos se insolam e nfo so vistos como um processus. Nao ligam o tempo aos acontecimentos e nfo podem ver, por isto, a continuidade desses fatos, a sua conexfo interna com o passado: daf nao pode- rem alcancar 0 autoconhecimento. 21 Mas a histéria “€ para o autoconhecimento humano. Julga-se geralmente que é importante para o homem, que ele se conheca a si prOprio, nfo querendo isto dizer que ele conhega as suas particularidades meramente pessoais, aquilo que o diferencia dos ‘outros homens, mas sim a sua natureza de homem, Conhecer-se a si mesmo significa saber, primeitamente, 0 que seré o homem; fem segundo lugar que espécie de homem se é; em terceiro lugar fo que ser o que se é”.# Daf inferimos que a histéria tem uma dimensio diacrénicas essa dimensio, por seu tumo, implica a constatagdo de um pro: c2ss0 € que esse processo do homem sido e aser é 0 objetivo da hist6ria, Mas, como pode o historiador — voltamos a insistir — saber se a anilise que procedeu dos elementos de que dispée implica 0 conhecimento desse processo? Ora, para que haja uma coincidéncia ou um nivel ponderdvel aproximativo entre 0 fato objetivo, histérico, e a interpretagao que Ihe dé o estudioso, neces- sita-se de um instrumental de anélise que consiga captar, na sua esséneia, através de categorias, esse processo objetivo. Um método autoconsciente de andlise histérica. © método deveré refletir, por tanto, na sua esséncia, os elementos que constituem o vinculo dos diversos fatos e processos hiistéricos no seu desenvolvimento con- traditério e 0 pensamento do historiador. Sera, porém, isto possivel? Dizem alguns que a histéria lida mais com valores do que com 0 préptio desenvolvimento hist6rico objetivo; e 0 homem, por set o elemento ctiador desses valores, estabelece uma hieratquis, uma escala de valores na histéria de acordo com a sistemética valorativa estabelecida por ele, engas- tado em uma sociedade especifica ¢ fazendo parte de um grupo ¢ de determinada classe social. Desta forma, 0 fato histérico passa a ter valor & medida que o homem, o ser cognitivo, dé aos aconte- ccimentos uum valor que Ihe € conferido, Mas, achamos que os elementos valorativos da histéria prendem-se a outro esquema de raciocinio. E verdade que 0 homem confere valores aos objetos, fatos € fenémenos. Isto, porém, néo quer dizer que esses objetos, fatos ER. G, Collingwood, A idéia de histéria (Lisboa: Ed. Presenga, s/4), p. 22. 22 ¢ fendmenos s6 passaram a ter conteddo, esstncia, apés té-la rece- bido de fora para dentro, injetada pelo historiador que the con- feriu determinado valor. Nao. O inverso é que verdadeiro. Os objetivos, fatos ¢ fenémenos possuem propriedades que Ihes sic jnerentes, atsibutos que thes sto especfficos quer na érea das citncias naturais quer na hist6ria. Ao descobrir essas propriedades «esses atributos inerentes 20s objetos, fatos fendmenos no nivel hist6rico, € que © ser raciocinante confere um valor correspon: dente aos seus atributos e & sua esséncia, Isto significa, antes de mais nada, uma relagdo entre essas propriedades e as necessidades de quem as descobriu. Na histéria a mesma coisa se verifica. Quando, antes do conhecimento desses atributos © qualidades, o homem confere valor a um fato, objeto c, inevitavelmente cai na alienacdo, afastando-se, assim, da possibilidade de conhecé-los. © mundo material, a natureza em toda a sua mGltipla complexidade ¢ 0 objeto do conhecimento do homem. Ele préprio, elemento da natureza é, ao mesmo tempo, objeto do cenhecimento € sujeito conhecedor Os valores, portanto, sio conceitos que se interpdem entre ‘0 mundo objetivo e © grau de conhecimento que um grupo social ou classe passui de si mesmo. Daf eles nao serem fixos porque © comhecimexto, a0 penetrar cada vez mais na esséncia de cada fendmeno espectfico, modifica-o. Em outras palavras: os valores sao tepresentagées de um determinado grau a que chegou 0 pro- cesso de conhecimento. A prética, ao influir sobre o mundo exterior e a0 exigir a conceituagéo abstrata desse processo dialético emer gente, atua sobre os valores existentes ¢ ao mesmo tempo os trans- forma, A praxis €, portanto, o elemento que testa os valores € a0 ‘mesmo temgo modifica-os, reaproximando-os cada vez mais da sua esséncia. Acontece, porém, que a préxis social € contradit6ria, Deter- minados grupos sociais, classes ou estamentos atuam com um objetivo determinado; outros procuram objetivos diferentes e muitas vvezes contflitantes. Desta forma, a histéria reflete, nas suas cate- gorias € no seu embasamento légico, esse processo antindmico. Nas sociedades divididas em castas, estamentos ou classes os valores 2 sio, por isto mesmo, divergentes ou antagdnicos. Este antagonismo contraditério através do qual a histéria se realiza. Nesse processo de desenvolvimento contraditério ha camadas e classes interessadas em aprofundar 0 conhecimento da realidade porque a sua prética assim 0 exige. So exatamente aqueles grupos que esto diretamente ligados ao processo de produgio. Exigem uma dinamica hist6rica permanente pois nesse processo eles avan- ‘gam quer no sentido técnico e cientifico, quer no sentido social, € esse avango tem de ser categorizado pela ciéncia hist6rica. Cho- cam-se, entdo, no espaco social, com aquelas camadas ¢ estratos que estio no cume da pirémide, e, por isto, desejam uma estag- nnago do proceso histérico © ctiam uma imagem estética do ‘mesmo, procurando eternizat 0 seu perfil, A medida que este proceso se aguca, 0 agrupamentos engajados no proceso da pro- dugZo avancai no caminho do conhecimento ¢ os outros caem progtessivamente na alienaedo, por se chocarem com a dinémica histérica e social em curso, Certas correntes da'hist6ria querem, por isto mesmo, ver nos valores apenas uma racionaliza¢ao que o homem faz de um mundo caético e sem sentido, Desta forma surge uma axiologia invertida que estabelece, como conseqiiéncia, uma metafisica que poderd levat, paradoxalmente, 20 irracionalismo absoluto. Isto porque se nfo hé um substrato material, ou melhor, objetivo, se nio ha nenhuma relacdo causal entre a esséncia dos fendmenos ¢ os fatos, © mundo material objetivo e 0 pensamento humano que o reflete, se esse nexo foi rompido ou nao existe, entfo todas as concep- ges do mundo sao igualmente verdadeitas e validas porque nada representam. Se néo hé uma base objetiva, isto 6, uma natureza exterior e uma préxis humana que somente se humaniza & medida que nela penetra pelo trabalho, entio tudo € vilido, todos os valores se squivalem,afo epifendmeno, desigados de qualquer validez cient Benedetto Croce ao tentar anslisar 0 problema da subjeti dade em histéria equivocou-se quanto ao seu conceito, Para ele “onde quer que, voltemos, deparamos, na hist6ria, com este ele- mento subjetivo. E em verdade, é de admirar 0 pasmo que muitos 24 seniem diante dele, Esse elemento subjetivo & suco do nosso cére- bro; 0 que no significa exatamente — ponderava um velho filésofo napolitano — suco de beterraba, ora bolas! Acreditam muitos que, uma vez introduzido o elemento subjetivo na histéria 1 causa deste torna-se desesperada, 4 a busca dos documentos oferece miltiplas dificuldades; se [hes acrescentarmos as que advém do pensamenio. do homem, é melhor nao falar em exatidao ¢ em verdade histérica”. ? © que Benedetto Croce nfo discerniu convenientemente foi a impossibilidade de se fazer histéria sem subjetivizagio da sua verdade objetiva. Todos 0s conccitos, as categorias com que a ciéneia histética labora, so subjetivas: por isto que elaboradas pelo cérebro humano, Mas, 0 que precisa ser destacado & que elas s6 tém eficiéncia prética quando nao sio arbitrariamente esta- belecidas, mas representam 0 nexo aproximativo mais elevado entre © conhecimento histérico em determinada época ¢ a realidade. Ninguém pod: fazer histéria ou qualquer outra cifncia social, sem usar desse instrumento analitico que € ctiado pelo cétebro do estudioso. Seria infantil negé-lo. Isto, porém, nao invalida a objeti- vidade cientifica da hist6ria. Pelo contrério, Em determinadas cir- cunstfincias o historiador tem de usar a imaginacéo, porém dentro de um enquadramento idéntico aquele preconizado por C. W. Mills para a sociologia ou a imaginagio hist6rica indicada por Collin- good para a prépria histéria.® O que n@o se pode aceitar 6 a desvinculagio entre a realidade e 0 pensamento. Para que isto nao acontega, o historiador deverd ter a sua 6tica voltada para a ago humana. Se ele se colocar neste Angulo de anélise dificilmente extrapolaré para conclusées subjetivistas ou irracionalistas a que se refere Henri Berr. Entdo, a medida que 2 hist6ria é conkecimento € também aproximago ou coincidéncia com os processes dinfmicos do mundo exterior ¢ suas leis; da mesma forma que a alienagdo é distenciamento, compreensao volun- em Dié TBenedetto Crece, “Subjetividade © objetividade da historiografi vio dle Sto Paulo, 22-4-1956. 8, Wrigth-Mill, Sociological Imagination (New York: Oxford University Press, 1959). 25 tatista, € actéscimo erudito sem penetragio na esséncia do fato histérico, Para que a histéria seja conhecimento, conforme jé assinalamos, 0 objeto dessa ciéncia deverd ser tomado como um Proceso que se desenvolve no tempo, contraditoriamente, ¢ sujeito a causalidade. * Isto no implica afirmar que 0 historiador deixe de possuir tuma ideologia, um ponto de vista consciente. Pelo contrério. Se assim fosse, ele se limitaria a reproduzir documentos, no nivel ‘meramente historiogréfico. E, como sabemos,"o documento é apenas ponto d& partida, matéria-prima para a subseqiiente interpretagéo do fato, Assim, para nés, a histéria subjetiva é apenas aquela que, ao invés de usar no seu critério de andlise 0 método I6gico, dialé- tico e matetialista, isto é, aquele método que estabelece uma relacio entre 0 historiador € o conhecimento da esséncia dos fend: menos hist6ricos, usa o método analdgico para explicé-los. Para sermos melhor compreendido iremos exemplificar © que entendemos por isto Sobre este movimento aproximativo entre a hisGria e a vealidade objetiva, (mundo exterior), consultar: Bernhard J. Stern, Historical Sociology (New York: The Citadel Press, 1959); C. Wright-Mills, Sociological Imagination, cits R. G. Collingwood, A iddia de histérie, cit: V. Gordon Childe, Sociedade y conocimionto (Buenos Aires: Ed. Galatea, s/d) © Evolueio Social (Rio de Janciro: Zahar Editores, 1961); Paul Q. Hirst, Evolugdo so- cial e categorias sovioldgicas (Rio de Janeiro: Zaher Editores, 1977); Pierre Chauny, A histéria como eigneia social, cits Friedrich Engels, Ludwig Feuerbach y ef Jin de la filosofia classiea alemana (Moscou: Ediciones em Lenguas Extrangeisas, 1946); Eric J. Hbsbawn, The age of Revolution Europe 1789-1848 (Londres: Weindenfeld and Nicolson, 1962); J. Mond zhidn, Etapas de la historia, Teoria marsista de las formaciones socioeco- ndmicas (Moscou, Editorial Progresso, 1980); LeBncio Basbaum, O pro- cesso evolutive da hristdria (Sio Paulo: Ed, Adaglit, 1963); José’ Honévio Rodrigues, Teoria da histéria do Brasil (Introdueto metodolégiea) (Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1975), 2 vols.: Guenther Rigobert et ali Estado y clases en la Antiguidad escravista (Bueno Aires: Ed. Platina 1960); E. A. Kosminski, "A filosofin da histéria de Ar Estudos Sociais, n.’ 13, junho de 1962; V, Seminov, ficas das classes ¢ de luia de classes na sociologia burguesn contemport 12a", em Estudos Sociais, n" 11, dezembro, 1961. Althusser, embora nem sempre um autor claro e eoerente, esereve neste tentide, com neerto, que 26 No inici da sociedade 0 homem raciocinava de uma forma que estava subordinada ao grau de desenvolvimento de cada comu- nidade na qual ele estava engastado como produtor. A natureza que o envolvia ¢ da qual dependia quase que inteiramente, influen- ciava de modo decisivo o seu método de raciocinio. Ele pensava analogicamente. Quando via o sol surgir pela manhi e ouvia canto de um péssaro matinal pensava que o nascimento do sol estava subordinado ao canto daquela ave. © pensamento anal sgico explicava, assim, de forma magica para o chamado homem primitivo, os acontecimentos que se verificavam na sociedade. Com 1a maior divisio social do trabalho, a complexidade mais acentuada da economia e o dinamismo interno maior das forgas produtivas, a invengfio de novas técnicas de dominagio do meio ambiente, formas de regadio, habitacdo contra as intempéries e outras, fatos que levavam o homem a transformar gradualmente a natureza, a0 invés de viver apenas na sua dependéncia, como acontecia na fase recoletora, os primeitos elementos do pensamento légico surgi- tam e fizeram com que as duas formas de pensamento — 0 I6gico € 0 anal6gice — se desenvolvessem cada yez de forma mais inde- ‘devese observar, dé modo geral, até a época recente, os historiadores escamatcaram a necessidade de te achar uma resposta teérica para esse probleme do 2bjeto. Se tomarmos, por exemplo, as consideragbes de Mare Bloch sobre « ‘eiéncia da hist6ria’, verificaremos que todo o seu esforco irigese apenas & constatagio de uma metodologia. A tentativa de deli- nie 0 objeto dos trabalhos dos histotriadores revelase de {ato aporética, 4 portir do momento em que se demonstrou que esse objeto nio pode scr" '0 passady’, nem, finalmente, nenhuma determinagio pura e simples Go tempo: 'A prépria idéia de que © pastado, enguanto passado, possa ser objeto da cignein ¢ absurda’ (Apologie pour histoire, p. 21). Apés testa conclusio negative, perfeitsmente convincente (embora as conclu: ses nem sempre sejam tiradas pelos fildsofos), as tentativas como essa de Bloch limitam-se 2 uma definigéo incompleta, que lanca o problema do objeto no indsterminado de uma totalidade: ‘@ homem, ov melhor, os homens’, e eirscteriza 0 conhecimento unicamente como certo conjunto de métodos. Nao eabe aqui analisar 0 empirismo que decorre finalmente dessa definigZo incompleta, mas deve-se observar que o problema excamo- teado de forna te6rica é necessariamente resolvido de modo pritico a cada instante’. Louie Althusser ef alii, Ler O capital (Rio de. Jancio: Zaher Editores, 1980), 2° volume, p. 207. 21 pendente, diferenciada e mesmo antagénica, A medida que o homem, no proceso de dominar a natureza através do trabalho, necessi- tava perpetuar ou melhorar e desenvolver uma técnica ou dinamizar ‘0 processo de interagdo humana, recorria espontaneamente, mesmo empiticamente, a uma forma ldgica de raciocinio. Quando queria explicar um fato sem conhecer a sua causa, cafa nos trilhos do pensamento mdgico. Na histéria a fuga & causalidade leva inapela- yelmente a0 analdgico, ao subjetivismo historico. Para nés, portanto, o sujetivismo em histéria nfo € 0 histo- jador langar mao do pensamento (mesmo porque isto seria impos- sivel) ou usar a imaginacdo em certos casos, mas € usar 0 método analégico de raciocinio para explicar os fatos e processos histé- ricos globais. ‘Modernamente tem-se falado insistentemente em crise da hi t6ria, Crise teériea, nos seus métodos de anélise, crise nas suas coordenadas gerais. Isto Ievou um historiador como Theodor Mommsen a afirmar que vivemos no presente mas nao o compreen- demos. Esta falta de compreensdo do que esté acontecendo levou alguns historiadores a posigdes irracionalistas, como € 0 caso de Spengler que na sua Decadéncia do Ocidente pintou néo a deca- déncia do mundo ocidental e das svas culturas, mas toda a crise estrutural da sociedade capitalista, que ele nao entendeu. Esse inracionalismo, que jé tinha suas rafzes em pensadores que 0 ante- cederam, ou filésofos como Nietzche, consolidou-se apés o final da Primeira Guerra Mundial, ampliou-se antes da Segunda — che- gendo a embasar, ideologicamente o fascismo eo nazismo — ¢ atualmente tem guarida em diversas éreas de pensadores, muitos dos quais, logo apés o final do segundo conflito mundial, endos- saram o existencialismo como concepedo do mundo. Néo foi, por- tanto, uma crise que se originou internamente, através de um simples desenvolvimento ldgico interno da hist6ria como ciéncia (crise de crescimento), mas uma crise reflexa da estrutura do sev proprio objeto de conhecimento, nas instituigdes sociais euja repre- sentatividade passou a ser contestada, Benedetto Croce, quando se referiu ao subjetivismo em hist6- ria teve oportunidade de apontar as dificuldades que a simples coleta de documento jé apresenta para o historiador. Na época 28 contemporénea, as dificuldades no particular ctesceram muito mais. Por exemplo, na Gri-Bretanha — segundo E. Palme Dutt — existe um regulamento oficial que proibe até passados cinquenta anos, 0 acesso a documentos do Estado. Desta forma, fontes impor- tantissimas sobre as duas grandes guetras estiveram até hé pouco tempo guardadas ou continuam inacessiveis aos histotiadores. Em ‘outros paises hé regulamentos idénticos ou parecidos. Isto leva 0 historiedor a desconhecer a sua época e possibilita a que afirme- tivas como as de Theodor Mommsen possam ser explicadas ou compreendidas. Daf surgem, também, as explicagSes escatolégicas ea chamada crise da histéria. O historiador tem de se voltar cada vez mais para o passado, para as épocas liberadas, deixando 0 homem comum completa ou parcialmente desinformado sobre os grandes assuntos e os problemas cruciais do mundo atual. Mesmo nessas dreas liberadas, 0 historiador encontra uma série de barreiras institucionais ou indiretas quando procura estudar a histéria dos nossos dias. Ficamos, por isto, confinados & hist6ria dos museus. Mas, como efirma José Honério Rodrigues “a hist6ria nfo é dos mortos, mas dos vivos, como uma realidade presente, obrigat6ria para a consciéncia, Por isso ela nfo é estranha a vida. Mas, infe- lizmente, a hist6ria pela histéria, indiferente aos impulsos ¢ esti- mulos da vida, acumulagdo morta de materiais, quando nao colecao factual de nomes e datas, tem dominado o esctito histérico e 0 conduziu a uma crise. Esta crise se originou da excessiva espe- cializag&o nos aspectos particulates ¢ singulares, do domfnio da rminticia, da falta de conseqiigncias para a compreensio do presente, da desatenga> aos interesses ¢ as necessidades atuais”. Esta crise da histéria 6, também, uma crise histérica. Por isto mesmo seré compreendida se fizermos um balango analitico critico dos wltimos cingtenta anos e compreendermos que fatos como 0 dilaceramento surgimento de novos Estados ¢ institui- 96es, status nacionais, a presenca de revolugdes © guertas, movi- mentos de Ebertagio nacional ¢ repress neocolonialista, 0 des- anche (sempre direcionado em sentido contrério aos interesses da W José Honério Rodrigues, Histdria w historiedores do Brasil (Séo Paulo: Ed, Fulgor, 1965), p. 15. 29 maioria) da tecnologia influftam enormemente nas categorias da historia e a cncaminharam, muitas vezes, para esta posiggo de fuga apontada to bem por José Honério Rodrigues. Posigao que no € fruto apenas de uma crise te6rica, mas nasce no préprio Amago de uma era eritica que tinha de fazer grande parte dos historiadores desempenharem o papel de seus intelectuais orga nicos. 30 HISTORIADORES COMO INTELECTUAIS ORGANICOS DO SISTEMA ESCRAVISTA Da mesma forma como, na era atual, intimeras correntes hist ricas surgem para racionalizar as contradigées e dilaceramentos do istema capitalista, durante a escravidao, no Brasil, a sua histo- jografia era cooptada para justificar o modo de producao escra- vista, a sua necessidade econémica e a impossibilidade de se apresentar ostro modo de producio capaz de substitui-lo. Se nfo partirmos da posigfo tedrica de que essa historiografia existia como suporte ideclégico desse sistema, com o apoio institucional das suas estrutu:as de poder, nfo poderemos compreender como os seus autores trataram 0 negro e 0 escravo (uma coisa estava imbt cada na outra) nas suas obras ¢ nas stas posigdes politicas. Escreve, neste sentido Geraldo M. Coelho que “a sociedade que se definiu em torno de agricultura brasileira rural e escravista, representou ‘a consolidacéo do poder da classe dominante dos proprietérios rrurais que, jf em 1822, promovera ¢ sustentara a independéncia do pais e a forma pela qual se organizara o império, Assim, a orga- nizago nacional se processava em conformidade com os interesses dessa classe, representada, a nfvel politico, pelos partidos atuantes. Liberais © conservadores, durante o II Reinado, existiam como frag6es formalmente distintas da mesma classe dominante do pats, conforme se observa na hist6ria parlamentar brasileira. © mesmo ocorria em relagao A organizacdo juridica, religiosa e cultural, visto as relagdes de dominancia entre a estrutura e superestrutura da sociedade brasileira”, ' E dbvio que essa sociedade de estrutura escravista tinha de produzir elementos que a explicassem ¢ a justificassem historica- ‘mente, A histéria, neste contexto escravista, esctita por historié- grafos ou intelectuais ideol6gica ou economicamente subordinados Geraldo M, Coelho, Hisiéria e ideologia: 0 IHOB e @ repdblica (Belém: Universidade Federal do Pard, 1981), p. 5 31 0s seus interesses e valores, tinha de refletit os interesses domi nantes, isto €, 0s valores que representavam os interesses dos senhores de escravos. Isto equivale a dizer que refletiam os yalo- res racistas desses senhores ¢ justificadores da escravidio. Dai nasceu, em decorréneia da prépria estrutura dessa sociedade escra- vista, uma intelligentsia a ela subordinada, e os seus historiadotes foram cooptados pela estrutura de poder'da época como 0s seus racionalizadores no nivel da historiografia. Esses autores, por outro lado, de um modo ou de outro, estavam ligados institucionalmente a0 governo imperial, o que vale dizer ao regime escravista. Dot ‘gos José Goncalves de Magalhdes era visconde de Araguaia; Ma- uel de Araujo Porto Alegre, era o barfio de Santo Angelo; Fran- cisco Adolfo Varnhagen, o pontifice da historiografia da época, era visconde de Porto Seguro, além de Antonio Goncalves Tei- xeira de Souza, Jodo Manuel Pereira da Silva, Joaquim Norberto de Souza Silva e muitos outros que conseguiram subvengdes, fon- tes para pesquisas no exterior € outras formas de protegio do poder monérquico, Nao apenas individualmente mas através de instituigdes culturais, Geraldo M. Coelho escreve, pot isto, com acerto que “em termos do Brasil do século XIX, dentte’as institui- ges que realizavam a producéo ¢ a reprodugio da ideologia da classe dominante, ocupam papel especifico as associagdes cultt- rais, todas, aparentemente, representando apenas 0 gosto por um determinado tipo de cultura consumida mais imediatamente pela elite intelectual do império, mas operando realmente no campo da ideologia”.* Dentre essas instituigdes criadas para a reprodugéo de ideo- logia escravista do império, o Instituto Histérico © Geogréfico Brasileiro foi aquela que desempenhou um papel dos mais ativos © dinimicos, Elaborou um tipo de hist6ria “oficial” dentro de padrdes conservadores-escravistas e foi, através da assisténcia do proprio imperador, a matriz da produgao historiogréfica do Brasil escravista, Neste particular, ainda é Geraldo M. Coelho quem escreve, com razio: 2 Ibid, p. 5. 32 Acedito poder sitar, dento desta perspectva 0 Inttto His: teico © Geogréfice Brasileiro (IHGB). A instulgfo e 0 papel fue ecupou na socedade brasileira no sfculo XIX, asim eomo Spo de hstéria que elaborou, operou no sentido de produ Sire veprodusir uma fagio da ideslgla da classe dominante Bracime apart do sone de olan, «hota In no a -clssedominante gaia una forma mals ampla do com n Erplicava sua posigio no sistema do clases. Astin, os intlec: fie que fe organzavam em foro do THGB, atuando a nivel de superesttuura, produrram umn modelo de histriografia — sista oficial que consagrave 0 sistema de. dominasio xbtente no Brasil, fondo com que essa produséo inteletual Sxereese uma agio de_retomo sobre a estruira. [...] © THOR, na condigio de aparelho ideolGgloo do Eslado, desen vovveria uma atividade intelectual — a produgfo da bistéria ingrada na ieologia da claste dominante dos propriciros fuels do Brasil do. séoulo XIX. A. visio do mundo. dessa Glass dominante se farin represenar através da forma. pela Gil sea abordado 0, proceseo histéico‘brasiliro, se rig Atndo, assim, 0 diaeutso histérieo como representaco materi liza da ideoogi. B prossegue ainda esse autor na mesma linha de raciocinio, ‘com a qual concordamos: De fato, a produgo histérica desse periodo foi toda ela ela- borada em fungio de justificar a ordem escravista e inferiorizar 8 Tbid., pp. 1-11 33 © negro. Era uma intelectualidade orginica desse tipo de orde- nnago social, dele se nutrindo © por ele sustentada através de canais institucionais. Sendo vejamos: Varnhagen foi adido de pri- meira classe da nossa diplomacia em Lisboa, nomeado a 18 de maio de 1842, por sugestio de Vasconcelos de Drummond ¢ influéneia do Instituto Histérico e Geogréfico Brasileiro, tendo depois viajado pela Europa através de comissdes e outros recursos do governo Imperial; Gongalves Dias foi incumbido pelo mesmo governo imperial, em 1851, de copiar documentos em estados bra- sileiros ¢ enviado, em 1854, como encarregado de estudar a edu- cago primaria ¢ secundaria na Europa onde pesai arquivos; Jofo Francisco Lisboa, em 1856, assumiu a’ responsa- bilidade de pesquisar os arquivos de diversos paises; Joaquim Cae. tano da Silva é encarregado da legaco brasileira em Haia, onde faz pesquisas em arquivos holandeses: Ramiz Galvio € comissio- nado pelo governo imperial para estudar a organizagdo das biblic- tecas européias; José Higino é enviado a Holanda para pesquisar nos seus arquivos. Sem nos referitmos a outros como Oliveira Lima e Norival de Freitas, todos financiados pelo governo imperial de diversas manciras, inclusive através de verbas do proprio impe- rador, D. Pedro II, repassadas a0 Instituto Histérico ¢ Geogré- fico Brasileiro. Nao estamos aquf abordando a época colonial quando a pro- dugio histérica era mais de cronistas do que de histoviégrafos. © livro de Antonil, hoje cléssico, publicado em 1711, simples- mente porque retratava com realismo a situago do negro e do escrayo no Brasil foi apreendido, embora outras razées fossem apresentadas para justificar a medida, O livro de Frei Vicente do Salvador ficou inédito até 1881, quando foi descoberto por acaso, AAs outras obras dessa época ou se comprazem em descrever as riquezas da natureza exuberante © exética, ou se concentram, quando falam na nossa populacio, na figura do indio. Isto sem falarmos nos nomes Frei Gaspar de Madre de Deus, Pedro Taques de Almeida Paes Leme, Frei Antonio de Santa Maria Jaboato, entre outros. Como escreve Almir de Andrade, nessa época: 34 Byidentemente no concordamos com essa visio de Almir de Andrade, para o perfodo imperial, expressa na sua importante € infelizmente inconclusa Formagao da sociologia brasileira, o qual procura ver uma espécie de proto-nacionalismo nos textos desses esctitores. No entanto, como nao nos cabe analisar, neste capitulo, 1 cronistas coloniais, nao iremos nos deter numa anélise dos mes- mos. Mas a produgio historiogréfica brasileira, especialmente a dos séculos XVIII e XIX, caracteriza-se pela omissio ou subes- timagdo completa ou quase completa em relagiio ao negro, a0 eseravo, Quanto & producdo do inicio do século XX hé uma revi- so por parte desses historiadores em relagio ao negro. Hé uma biologizaedo da hist6ria, através de teorias que se diziam cienti- ficas, ctiadas para justificarem a aventura colonialista ¢ todas elas, na hierarquizagao das racas, colocavam 0 negro no siltimo patamar da escala racial: 0 negro era inferior, 0 fator de atraso do nosso desenvolvimento social e do retardamento no nosso processo ci Tizatétio. ‘Apés a proclamagio da reptiblica e o fim do mecenato of do imperadcr, através dos Institutos Histéricos, inicia-se a fase cientificista da nossa hist6ria que malsinava o negro como compo- rnenté demogréfico do pais por ser inferior biologicamente. Pode- mos ver, talvez como primeira producao cientificista a Histéria do Brasil, de Joio Ribeiro, cuja primeira edigdo ¢ de 1900. Queremos ‘TAlmir de Andrade, Formagio da sociologia brasileira. Os primeiros estu- dos sociais no Brasil, séculos XVI, XVII e XVIIT (Rio de Janeiro: Ed. José Olimpio, 1941), pp. 25.24 encertar este capitulo tentando demonstrar que toda a nossa pro- dugio historiogréfica, quer na colénia, império e repiblica, foi ferramenta ideolégica dos senhores de escravos, no inicio, , depois, instrumento racionalizador da estrutura que se formou apés a abo- ligo, quando 0 negro egresso das senzalas foi ocupar as grandes franjas marginalizadas que existem até hoje, sendo usado o pre- conceito de cor, subjacente, para justificar 0 imobilismo social em que a populagio negra e nfo-branca de um modo geral se encontra. No sentido de uma avaliagiio da historiografia do Brasil em relagio ao negro e ao escravo, poderemos citar algumas obras rele- vantes. A primeita é O Espelho e a imagem, de Lufs Carlos Lopes, ea segunda A escraviddo na Paraiba — Historiografia e histéria, de José Octavio, No entanto, a primeira nfo faz uma andlise diacré- nica sistemética dos nossos historiadores, mas, através de cortes teligentemente selecionados, consegue dar-nos uma visio sinté- fica do processo, A segunda obra, regionaliza o universo de andé- lise a0 atual estado da Paraiba, dando-nos, porém, aberturas para uma compreensiio mais geral desse processo de subordinagao da nossa produglo hist6rica & estrutura do sistema escravista. No pri- tmeiro livro, Lufs Carlos Lopes aborda nao apenas 0s autores de t6rias do Brasil, no seu sentido convencional e sistemético, mas pensadores politicos como Azeredo Coutinho, Frederico Leopoldo Cesar Burlamaqui, além de obras como as de Abreu e Lima, Sou- they, Armitage, Varnhagen e muitos outros. Analisando 0 con- junto dessa produso, quer de pensadores politicos, quer de crf- ticos como Silvio Romero, afirma que: “O etnocentrismo evolui do espirito cruzadistico a0 contra-reformismo jesuitico em todas as suas ambiguidades até a0 positivismo racista construido vigo- rosamente na segunda metade do século XIX. O Brasil, nfo s6 importou, como amoldou, as variagSes do etnocentrismo & sua pré- pria retalidade mestica. As ‘leituras’ desta ideologia nfo foram cépias © nem idéias fora do lugar [...]. Mas sim, uma exptessio da nossa cultura, indmeras vezes alienada das maiotias, 8 Luis Carlos Lopes, O espelho # a imagem — O escravo na historiografio ‘brasileira (1808-1820) (Rio de Janeiro: Bd, Achiemé, 1988), pp. 111-112, 36 Por outro lado, queremos acrescentar que essas idéias nunca estiveram fora do luger porque mostravam, de diversas formas © em diversos graus, durante a escravidio, a representagdo de in lectuais orginicos do sistema escravista ¢, posteriormente, dos vversos blocos de poder oligérquico que o substituiu. A fase positi- vista, que, Tigada ao evolucionismo vulgar biologiza a histéria, j6 ‘uma remanipulagdo posterior capaz de mostrar 0 negro como inca- paz biologicamente de evoluir socialmente até a civilizagéo ima- nente. Substituiu aquela primeira fase que sempre colocou 0 negro como “bérbaro” ¢ que somente seria civilizado pela cristianizagio via escravidio. outro livro que presta uma contribuigdo & compreensio do assunto 6 0 do historiador José Octavio. O préprio subtitulo do livro Preconceitos ¢ racismo numa produgéo cultural bem demons- tra a visio realista e radical que imprimiu ao seu texto. Usando de historiadores que escreveram sobre o Brasil, como Frei Vicente do Salvador e outros, aproveitase, também, da bibliografia local para mostrar que tanto a produgio historiogréfica que generalizava sobre a evolugio do Brasil, quanto a regional, com excegbes rar simas, viam 0 escravo como simples méquina de trabalho e o negro como membro de uma raga inferior. No particular, © seu livro, embora abordando um universo regional, reproduz, em substincia, o que foi a historiografia brasi- Jeira em relago 80 negro e 20 escravo. * Muitos autores procuram atualmente ver nesta posigio ideo! gica da historiografia brasileira simples causas externas, quer em relago A componente dos jesuitas — contra-reforma —, quer em relago A reagdo cientificisia do inicio do século XX, No entanto, quem assim pensa, vé apenas 0 aproveitamento formal de idéias de fora, sem pressentir que o fundamental ¢ o estrutural, isto é, essas idéias, somente tém funcio explicativa e social quer como resposta a uma sociedade escravista, do primeiro perfodo, quer de tuma sociedade montada em blocos de poder oligérquico, como a José Octivie, A escravidio na Paraiba — Historiografia @ histéria. Pre- couceitos e ricismo numa produgdo cultural (Joie Pessoa: A Unido — Su. perintendénce de Imprensa Editors, 1988), passim. 37 nossa atualmente. $6 assim, 0 contetdo, a evolugéo e a persis- téncia dessa ideologia racista no conjunto do pensamento brasi- leito poderdo ser explicados. Outro autor que abordou o problema do racismo na histo- riografia brasileita foi Martiniano J. Silva, embora no seu livro? procure ser mais abrangente, tentando situar o racismo no conjunto da cultura brasileira. Neste sentido, analisa a ideologia de diversos autores representatives da literatura, como Greg6rio de Matos, José de Alencar, Trajano Galvao, Ruy Barbosa, Machado de Assis e varios outros, Queremos destacar, inicialmente, 0 que 0 autor chama de mistificacéo historiogrdjica. Escreve neste sentido que: “O ver- dadeiro processo hist6rico brasileiro foi obnubilado, mascarado. O slogan definindo ¢ admitindo o Brasil como ‘pats sem meméria’ é intomético, Denota uma sangao paiblica contra os ardis da hist6 ia. Contra os seus assiduos burladores ¢ mistificadores da hist6ria. Contra os seus planejadores, que tém conseguido inviabilizar 0 seu verdadeiro curso, assim escondendo as justas razdes e os indeléveis motivos das Iutas empreendidas pelo povo negro e os demais seg- mentos sociais oprimidos.” * © mesmo autor, a0 explicar este nivel de alienagdo historio- grifica, escreve que: “Ha uma velhissima idéia negativa a respeito dos povos negros. Muito mais antiga do que muitos pensam. O etnocentrismo, ou seja a tendéncia de cada povo de identificar outros povos a partir de uma referéncia ao seu sistema de valores, é to velho quanto a prépria humanidade e sempre teve matrizes raciais, No entanto, 0 etnocentrismo toma-se perigoso quando transformado em uma arma ideolégica a servico do imperialismo. Essa transformacdo ideoldgica, embora aceita como um produto do século XIX, teve uma longa elaboragio, com raizes na Antigti dade Classica.” ° A partir deste universo, Martiniano J. Silva analisa a pro- dugio que nos interessa particularmente neste capitulo, ebordando Ba, Martiniano J. Silva, Racismo @ brasileira: ratzes hist6vieas (Goiénia: © Popular, 1985) Ibid, p. 41 2 Ibid. p. 29 38 0 caso de Vieira, para ele um precursor da filosofia do embran- quecimento no Brasil, Escreve neste sentido: ‘Antes de tudo, Vieira via o negro como um povo iafiel, herege, f por assim dizer, uma espécie de inimigo, pois inimigos eram todos 0s que nao estivessem de acordo com os padries in postos pelo colonialismo, do qual a Tgreja era uma parte, nao rao, inclusive, com poder de decisfo. Tnfigis eram, por exent plo os judeus, os indios, os ciganos e, evidentemente, os ne- 10s, Entio, o negro, mesmo na condigso horrivel de escravo, para alcangar alguma identificagao com o que seria humano ¢ io, estava obrigado so batismo que Ihe daria algum pres- tigio. lids, como revelamos, quem no aderisse aos rituals cutélicos era inexoravelmente inimigo. E a conversto do negro ‘9 cristiniasmo ers, por sinal, determinada pela sua prépria stuaglo de eseravo. O escravo nio apenas podia ser catélico, ee tinha que sto, Por curioso que parega, até para continuar sua miscrabilissima condicéo de escravo estava obrigado ao ato do batismo. No particular, o autor cita este trecho de Vieira, de sermao pre- gado na Bahia em 1633: “Escravos, estais sujeitos ¢ obedientes em tudo aos vossos senhores, nao s6 20s bons e modestos, senfio - porque nesse estado em que Deus vvos ps € a vossa vocagio semelhante & de seu Filho, o qual pade- ceu por nés, deixando-vos o exemplo que haveis de imitar.” Isto vera exemplificar como nio tém razio os seguidores de uma corrente historiogréfica que encontra na literatura jesuftica sentido humenista proveniente de contra-reforma. Os livros de Anto- nil e Bencei, pelo contrétio, surgiram para racionalizar no sentido ‘weberiano a esctavidio ¢ nfo para condené-la. No presente trabalho iremos referir-nos, porém, apenas aos principais historiadores que escreveram nossa histéria no seu sentido diact6nico e globalizador. Dai comegarmos por aquele que primeiro escreveu uma “Histéria do Brasil”: Frei Vicente do Sal- vador. FREI VICENTE DO SALVADOR: O NEGRO NA PENUMBRA Frei Vivente do Salvador, a0 contrétio dos narradores que © precederan, escreveu uma Histéria do Brasil que, segundo Capistrano de Abreu, seu comentarista mais abalizado, foi termi- nada em 1627, embora somente fosse descoberta, por acaso, em 1881. Varnhagen sabia da sua existéncia em Portugal, mas, segundo alguns comentaristas, teria escondido a sua descoberta para apro- veitat-se de muito material ali contido. Vicente Rodrigues de Palha era o nome da familia de Frei Vicente do Salvador. Nasceu nos arredores da Bafa de Todos os Santos por volta de 1564. Tomou habito de franciscano em 1600. Se tomatmos como ponto de par- tida a data provavel do seu nascimento e aquela que Capistrano aponta como a do término da obra, 0 autor deveria ter 63 anos a0 conelutls. ‘A Histéria do Brasil, de Frei Vicente do Salvador dividese em cinco livros, ou capitulos. O primeito trata do descobrimento, passa a descrever a terra, pedras preciosas, riquezas minerais, frvores agrestes © medicinais, fauna maritima ¢ terrestre no estilo convencional da época. Fala depois dos indios, sua origem, suas Iinguas, casemento, costumes em geral, sistema de parentesco, me- dicina, ritos funeratios, guerras e tratamentos de prisioneiros. Como no podia deixar de ser o autor desmancha-se em louvores © exal- tagio a terra do Brasil (© livro segundo trata dos sucessos histérieos do Brasil a0 tempo do descobrimento: seu povoamento, primeiras doagSes, capi tanias hereditérias etc. O livro terveiro trata da histéria politica e administrativa do Brasil a partir de Thomé de Souza até a vinda do governador Manuel Teles Barreto. O quarto principia af e termina com a chegada do governador Gaspar de Souza. O quinto, finalmente, vai de Gaspar de Souza até o governo de Diogo Luis de Oliveira, abrangendo jé a primeira invasio holandesa e a des- crigho das batalhas que se travaram, 41 Demonstrando franca simpatia pela obra de Frei Vicente do Salvador, Almir de Andrade, apoiado em Capistrano de Abreu, escreve: (© trago caracteristico de Frel Vicente € realmente aguele amor esinteressado do pais que jé apontamos no autor de Didloges das grandezas do Brasil, A terra do Brasil, suas gentes, suas riquezas — tudo ele contemplava com cariaho, no rar com exaltagéo, Dificilmente se sentiré o “sacerdote”, nas paginas da sua histéria, O que se sente ali é uma alma boa, exiremamente iscreta © moderada nos seus jufgos sobre os homent e 28 coisas, preferindo silenciar ou encobrir certos fatos menos favo- riyeis’ ao pafs ou 2s pessoas, sempre que a oportunidade tho aconselhava, Essas omissOes propositadas cavam, as vezes, la cunas sensiveis na sua obra, ! ‘Como esse autor pioneiro via a populagdo negra e escrava na sua obra? £ 0 que tentaremos ver através do seu texto. O que se nota no texto do nosso primeiro historiador é que o indio se destaca muito mais do que 0 negro, que comparece apenas como pano de fundo esmaecido. Tanto que o autor designa os nomes de varios chefes indfgenas, descreve os seus feitos, dé-lhes indivi- dualidade hisiérica, 0 mesmo nfo acontecendo com 0 negro, So- mente uma vez refere-se nominalmente a um negro, Bastifo, durante ocupagio de Salvador pelos holandeses. Nas referéncias aos negros, Frei Vicente do Salvador, além de subestimé-los, no demonstra simpatia pelos mesmos, afirmando a necessidade de se tomarem providéncias “principalmente contra os negros de Guiné, escravos dos portugueses que cada dia se Jhes rebelam ¢ andam salteando pelos caminhos e se néo fazem pior € com medo dos ditos indios, que com um capitio portugués os ‘buscam e os trazem presos a seus senhores”.? Para evitar tais desordens, Diogo Botelho ao chegar & Baia contrata o chefe potiguara Zorobabé. TAlmir de Andrade, Formagdo da sociologla brasileira, Os primeiros este dos sociais no Brasil, Vol. I, cit, pp. 150-151 2Frei Vicente do Salvador, Histéria do Brasil (4.* edigfio, Sio Paulo: Ed, Melhoramentos, 1965), p. 545. 42 [A sua chegada estavam jé de partida 0 Zorobabé, com os seus pptiguares para a Paratba donde haviam vindo & guerra dos ‘bimorés, como dissemos no capitulo trinta ¢ trés deste livro e, Jnformado 0 governador que um mocambo ou magote de ne ‘gros da Guiné fugidos que estavam nos palmares no Rio Htepicuru, quatro léguas do rio Real para cé, mandowlhes que forsem de caminko dar neles, © os epanhassem 3s mos, como fizeram, que nfo foi pequeno bem tirar dali aquela ladroeira e solheita que iam em grande erescimento. Mas poucos torns- ram a seus donot porgue os gentios mataram muitos © Zoro- bbabé levou alguns que foi vendendo pelo caminho para com- pat bandeira de campo, também, cavalo e vestidas com que fentrasse triunfante na sua terra.® Ainda scbre Zorobabé, continua o autor narrando-the a traje- t6ria e informando que, per mandado do gover, vo macambe dor nes feds Fate alguns © prendeu outros de que levou os. que gus © Gr foi vender aoe brancos, com 0 qUe comprou bandeira de tempo, tambo, cavalo © vsxidoe para etre tvunfante em Stems, da qual vievam esperar no caminho alguns potgun fer quorents lopuas, outs 8 vinte © ez, abriadoao e lie pandothe a enxada, 6 0 Brago de eine, que era gonlio tobajrs se deixou cem os sous ne sav aldso, & pore 0 Zorobabé dterminou pustr por ela, he mandou dizer que sais a esperdlo na Exrada pois of mais'0 haviam feito 180 long; 20 que respon Gu o vel, ainda que ji centendio, que fora de guerra nuncs Tera eoperar a9 caminho. sno dames e, pols ele nfo. re dma, nem vinke dave guerra, fo se Tovantaria da reds. ¢ orobabé fo também visitado de multos homens brancos da Paraba gom bons paroles d= vinko © obtros presente, ou por seus Intereses Je indlos por seus sorvigos © emprela dis"ou por lemor que tinham da sia reblllo por 0 verem to pulante.# # Ibid., pp. 316377 4 Ibid, p. 350. Ibid, p. 351. © Zorababé que Frei Vicente do Salvador destaca na sua obra’ foi um indio potiguar destruidor de quilombos. Segundo Afonso ‘Arinos de Melo Franco, “por ordem do Governador Diogo Botelho des- lwaiu um guilombo de nogtos fugides, existente na Parafbs. Matow muitos pretos © poucos reslituiu aos seus senhores, porque os demais escravizou e endeu, tendo com © produto desses vendas, comprado cavalos, bandeira, 43 Os negtos, conforme ja dissemos, so descritos sempre no plural ¢ indistintamente. Quanto aos seus costumes, Frei Vicente do Salvador, referindo-se & pesca da baleia, entio em grande uso, escreve: “E nisto nao se ocupa a gente do azeite, que sio de ordi- nério sessenta homens entre brancos e negros, sendo crindos e negros dos senhotes de engenhos ¢ de lavradores, e este € 0 manti- mento que dao aos negros, os quais the sio afeicoados que a nenhum outro peixe, e dizem que os purga ¢ faz sarar de boubas e de outras enfermidades, e frialdades, e os senhores, quando eles vém feridos das brigas que fazem em suas bebedices, com este azeite quente os curam e saram melhor que balsamo”. © Gostarfamos de assinalar aqui, como o autor, ao destacar um habito alimentar dos negros, introduz um julgamento de valor subrepticio ao falar nas suas brigas ¢ bebedices. Outras informa- es suplementares sdo dadas por Frei Vicente: afirma que, quando JerBnimo de Alquerque, na conquista do Maranhfo, fez recruta- mento entre os homens brancos “nenhum homem destes mandou seu filho sem ao menos mandar com ele um criado branco e dois negros” 7, afirmando, também, que quando Luis Aranha foi comu- nicar ao rei uma vitéria contra os holandeses levou “por teste- Tambor ¢ vestido de seda, Atravessava as aldolas de indioe com grande estardalhaco, precedido de’batedores, e exigia que os principais dae tribos Ihe rendessem especiais homenagens [...] Dava audigncia sentado em co deira coberta com panos de cores vivas, era belicoso e atdente, tinha mui- tas mulheres (fato que impedia a visita dos padres 8 sua casa, o que muito 0 desgastava) e, nos banquetes com que se rogalava, oferecia finos acepipes aos convivas. Os padres 0 aconselhavam, mas Soré-bebé no tomava Juizo com os conselhos dos padres © tanio se excedeu nos seus luxas ¢ des. ‘mandos, inclusive no da embriaguts, que os reingis, receosos de que a sua presenya provocasse agitacio e tebeldia no meio das tribos, 0 man- daram para Lisboa, em Tins de 1605 ou principio de 1608, como suspeito dd insurreigao, Tentaram os seus carcereiros, por vatias vezes, matélo com pegona mas Soré-bebé eva atilado ¢ prudente, e, quando the punham Yeneno na égua, bebia a prépria urina como antidoto. Como receassem que fugisse de Lisboa, em algum navio, para 0 Brasil, foi enviado para Evora, ‘onde morreu”. (Conf. Afonso Arinos de Melo Franca, O indio brasileiro a revolugto jrancesa (2. edigio, Ric de Janeiro: Ed. José Olimpio, 1976), pp. 55555), Ibid, p. 349, T Ibid, p. 408, 4 | | | munhas quatro dos holandeses que havia tomado e um indio principal que o havia guiado e também alguns escravos, para de caminho vender das Indias”. * (© autor particulariza muito mais 0 comportamento do negro durante a octpagdo holandesa em Salvador (1624), quando faz questio de analisar os negros que ficaram a0 lado do invasor € aqueles que ficaram ao lado dos portugueses. J4 escrevemos em outro local: Conforme pondera com acerto Luis da Camara Cascudo, refe- Findose a0 comportamento do negro escravo durante @ ocupa- fo holandess, “a escolha legitima para o escravo seria o direito de escapar a ambos e fugir para os quilombos. Ali encontraria fora organizads, poder, coergio, mas com as cores entend®- dat por sus mentalidade". Tal porém no acontevev. O com portamento des escravos nfo fol uniforme e nfo podia séo. (...J Teds foram as formas upicas de comporiamento do ‘eserave durante o perfodo da ocupayio holandesa, A primeira eas foi dos eatives que — aproveitandose da situagio criada com as lutas entre lusos e batavos — fugiram para as matas fae eslabeleceram em quilombos, dos quals © mais importante f famoso foi Palmares. A segunda foi a dos que, ou por impo- siglo dos prprios senhores Ou por livre vontade, se incorpore- am As tropas restauredoras que combatiam o inyasor. Final mente, a terceira foi a dos escravos que ficaram a0 lado dos hholandeses, contra os brasileiros e portugueses. ® Sobre o comportamento do negro esctavo durante a ocupagio de Salvador, assim se refere Frei Vicente: Nem s6 andavam os holandeses insolentes por estes eaminhos, mas muito mais of negras que se meteram com eles, entre os fuzis houve um eferayo de um serralheiro que prendew o seu senhor em a roga de Pero Garcia onde se havia acolhido e, depois de © esbofetear, dizendolhe que jé nfo era seu se nor, seno seu escravo, no contente com isto Ihe cortou cabesa, ajudado de outros negros e de quatro holandeses © a lerou 20 coronel, o qual Ihe deu duas patacas e © mandou cenforear, que quem fizera aquilo a seu senhor também o faria ale, se pudesse. 8 bid, p. 432. Clovis Moura, Rebelides da senzala (4. edi Aberto, 1988), p. 185. Porto Alegre: Ed. Mercado 45 Melhor 0 fez outro negro que nos servis na horta, cha- © qual também se meteu com ot holandeses, porgue, Ihe quiteram tomar um facio que levava na © 0 ameagaram que o enforcariam, se saiu da cidade ‘com outros dois ou tx8 negros, of qusis encontraram a fonte nove, que € logo & saida, seis holandeses que the comegaram ‘a buscar as algibeiras, mas como o Bastilo Jevava ainda 0 seu facio, temendose que se Iho vissem o quereriam outra vez enforcer, o escondeu em 0 peito de um, € matandoo langou a correr pelo caminho que vai pelo rio Vermelho, onde encon- trou uns crisdos de Antonio Cardoso de Barros, 0s quais in- formados do caso fingiram também que fugiam com o negro fe se foram todee embrenhsr adiante, donde depois que of hholandeses passaram Ihe safram nas costas e os foram levando até um lamario e atoleiro onde mataram quatro e cativaram tum, E seré bom saberse pela gloria dos valentes que o era tanto um dos mortos, homem ja velho, que metido no atoleiro quase até a cinta ali aguardeva as flechas to destramente com ‘ espada que todas at desviava e cortava no ar, 0 que visto por Bastiso se meteu também no lodo e le dew com umn pau ros bragos stormentandolhos de mado que no pode mais ma- nejar a espada, 10 Os negros, segundo 0 autor, participaram de diversos feitos contra os holandeses; refere-se a invasio de uma igreja pelos Batavos, os quais “fazendo dos seus caleSes alforges e enchendo-os de prata da igreja e de outra que ali acharam, os puseram aos ombros ¢ se foram muito contentes; porém, quatro negros dos padres que no tinham tanta paciéncia, os foram aguardar no caminho com seus arcos ¢ flechas e matando o latino, fizeram fugir 0s outros ¢ largar a prata que levavam”. Frei Vicente do Salvador, op. cit, p. 442. 11 [bid p. 441, Johan Gregor Aldenburgk, um dos membros da armeda hholandesa que ocupou Salvador em 1624, descreve com muito mais dete- Ihes a participagéo dos negros no episédio, quer a favor de um lado, quer do outro. Quando eles cafam prisioneiros eram torturados por por tugueses ou holandeses da mesina forma, Aldenburgk conta que “mandou © inimigo [portugueses] & cidade de Séo Salvador certo velho, dos nos 505 negros, ao qual haviam aprisionado, decepado ambas as mios ¢ (salva reverentia) distendido as partes pudendas até os joelhos, pensando com tio lastimivel espeticulo, infundir terror & nossa gente; 0 referido negro, porém, eragat a perfcia de um cirurgiéo portugués, ficou comple- tamente restabelecido, c, como néo tivesse mios, foi designado para tra- 46 Frei Vicente do Salvador, como vemos, abordou o papel do negro, obviamente do negro escravo, como se fosse uma grande ‘massa amorfa e sem nome. Sobre a sua posicio ¢ importante destacar a opiniao do histo- riador José Octévio, ao afirmar que, rho que tange aos primeiros cronistes, que fundamentaram tals cenclusées, a omissio negroescrava comprova-se na festejada Historia do Brasil (62 ed., 1975) de Frei Vicente do Salvador. ‘Testemunha ocular da conquista da Parafba, Capitania onde residiu por algum tempo, 0 frade Serifico € tido como o pri- ‘meio historiador do Brasil, em razio das caracteristicas de seg relato onde a sage da conquista e colonizagio dos pri msiros tempos jd aparece articulada em termos de método, lin ‘guagem e cronalogi "Nem por isso, os negros the mereceram melhor sorte, visto camo as observagdes sobre a presenga daqueles numa_expe- ddigio partida de Itamaracé em 1591, utilizagso dos indios camo policia dos escravos que principiavam a rebelarse, abor- ddagem de navios negreiros provenientes de Angola, posse de essraves pelos padres, comporlamento dos escravos africanos em face dos holandeses, utilizagao de baleias como alimento para a escravaria © utilizagio desta na fabricagio de agticar cultivo do tabaco, fazem-se muito vages, no equivalendo no conjunto a sequer cinco paginas para um total de mais de guatrocentas. Habitualmente preciso, Frei Vicente estendese sobre as peripéeias da conquista da’ Paraiba, em 1585, no que tange & construsio do forte do Varadouro, escolha do sitio para a cidade de Nossa Senhora das Neves © implantago do Engenho ‘Tibiry. Como not demais eronistes, todavie, © negro af no balhar no guindasie” (p.. 190). *{...] Alguns dias depois, tiveram ordem de se reunir na praga do mercado velho, todos os negros da cidade inteira, assim mogos como velhos, homens € mulheres; devido nfo s6 2 escassez de viveres com ainda a haver deles negros em demasia na cidade, foram escolhidos cinguenta dos mesmos e embarcados num navio, guar necido de cento e cingienta homens, o qual devie dirigitse A terra de Camamu, a fim de trocar os ditos negros com os portugueses, por bois, ‘galinhas, porcos e frutas; mas nfo aceltaram a troce os portugueses, pelo ‘que descemos com forga A terra trouxemos bois para bordo, desembar. ccamos os negros na itha, levantando ferros e nos fizemos de vela para voltar & Bahia.” (p. 193). (Conf. Johann Gregor Aldenburpk, Relagto da conquista e perda da cidade de Salvador polos holandeses em 1624-1625, Brasiliensia Cocumenta, 1961). 47 aparece, © que motivou evtica do historiader parsibano José Leal em artigo de titulo bastante significativa — "O que nio dizem piidicos cronistas”. 12 Alig, no caso de Frei Vicente do Salvador, Almir de Andrade na sua Formagdo da sociologia brasileira, jé se referia, conforme vimos, a “omissGes propositadas” do padre, Uma delas, talvez a mais grave, foi a omissio do negro escravo como agente histérico coletivo, Apesar disto, Capistrano de Abreu, valorizando na obra © seu sentido de nacionalidade, escreveu que “Frei Vicente do Salvador ultimou a Hist6ria do Brasil em 1627; s6 um século mais tarde saiu Sebastido da Rocha Pita com uma Histéria... da América portuguesa”. José Octavio, A escraviddo na Paraiba — Historiografia e histéria. Pre- conceitos ¢ racism numa produgdo cultural, cit, p. 21 48 ROCHA PITA OU PALMARES PELO AVESSO Sebastiéo da Roche Pita nasceu em 1660, na Bahia, ¢ falecew em 1738, Formou-se em Direito Candnico pela Universidade de Coimbra, Seahor de engenho em Cachoeita (Bahia) viajou para Portugal a fim de obter material para a sua obra Histéria da Amé- rica portuguesa, de que nos ocuparemos agora, em relagéo a forma ‘como retrata nela o escravo e 0 negro. Para Almir de Andrade “o material exposto no trabalho de Rocha Pita € mais ou menos © mesmo jé recolhido por Frei Vicente do Salvador, acrescido, porém, de documentos manuseados em Portugal ¢ com mais um século agitadissimo de histéria, abrangendo os novos descobri- mentos geogrAficos feitos pelas entradas aos rios e series, os traba- Thos multiplicados das misses jesuiticas, as mudangas étnicas dorivadas de cruzamento de colonos, indios e negros, as guerras intestinas como a dos Palmares, a primeira e a segunda inyasio holandesa et2”.* Silvio Romero, que dele se ocupou na sua Histéria da litera- ‘ura brasileira, tragarlhe o perfil de historiedor ligado & sua situa- Gio de senhor de engenho, o que vale dizer, senhor de escravos. Diz ele que “quanto posso julgar do caréter do senhor de engenho da Cachoeira pelo seu livro e por sua biografia, parece-me ter sido ele um velho amorével, o mais antigo representante de certa classe de formados, que se tornaram fazendeiros, espécie de gente inofen- siva, que se retira para a roca, onde guardando claras reminis- céncias daquilo que estudara nas academias, olha sempre com certa superioridade para os agregados e com certo acanhamento para os homens puramente de letras”.* Almir de Andrade, op. cit, p. 167 2 Silvio Romeio, Histéria da literatura brasileira, (52 edigio, Rio de Janeiro: Ed, José Olimpio, 1953), 5." vol. pp. 440-441 49 Talvez essa posigao social de privilegiado faga-o um apolo- sista da nossa natureza, flora, fauna, os nossos primeiros habi- tantes, como se tudo o deslumbrasse, fato que o levava, sempre, a fazer comparagdes mitolégicas ou com acontecimentos do mundo clissico. E quanto ao negro e a0 escravo? Rocha Pita descreve, no inicio da sua obra, depois de varias digressSes pomposes sobre 0s nossos primitivos habitantes, o fun- cionamento de um engenho de cana. E 0 faz com toda minudéncia, no fosse ele proprietério de um, Mas em certo trecho escreve: Os seus lavradores necessariamente tém currais de gado, pata Ihe fecundatem as terras desta cultura com o mesmo, que hao mister as hortas para produzirem as plantas: ha destes Agri- caultores alguns que tém tantos sitios desta lavoura, tais {dbri cas de eseraves e oficinas [o grifo & nosso] que recolhem cada ano trés mil € quinhentas ou quatro mil arrobas, quando os acidentes do tempo, ou falta de cuidado, e beneficio Ihe nfo diminuem © seu costumado rendimento. 2 © que desejamos destacar neste trecho € que Rocha Pita inelui_o escravo naquilo que os economistas chamam de capital fixo, Em outras palavras ele ¢ inclufdo entre os objetos que com- poem 0 engenho, Coisifica 0 escravo, Este trecho, aparentemente apenas descritivo, tem um signifi- eado sociolégico muito mais relevante do que parece & primeira vista, B que 0 autor nivela o escravo aos demais utensilios e 0 faz como se fosse (como de fato era) uma refertncia aos objetos que compéem o engenho. Por outro lado, ao registrar a fundagéo de vilas e cidades, sempre faz referéncias elogiosas as linhagens ¢ familias que as fundaram, do seu “ilustrissimo sangue” etc. Depois desse panegitico & nobreza, referese ao comércio do Brasil com a Africa e afirma que “embarcagdes menores navegavam para a costa da Bti6pia, a buscar escravos para os setvigos dos engenhos, minas e lavoura, carregando génetos da terra (menos 0 ouro que hoje se profbe) algum agiicar ¢ mais de cingiienta mil rolos de tabaco, da segunda e terceira qualidade”. * 8 Sebastiio da Rocha Pita, Historia da América portuguesa (Salvador: Be. Progresso, 1950), p. 34. 4 Ibid, p. 98. 50 Como se sabe, esse fumo era para ser trocado por escravos em diversos portos africanos, fato que Rocha Pita omite. © autor continua descrevendo a sua galeria de governadores, as glorias de Portugal e a fidelidade dos brasileiros & religigo ¢ 4 mie patria, até se deter mais demoradamente na ocupacdo holan- desa de Salvador em 1624. Ao contrério de Frei Vicente do Sal- vador que, de qualquer forma, registrou, embora insuficientemente, a presenga do negro, Rocha Pita guarda siléncio total néo se referindo & sua participagio quer de um lado quer do outro. E como se 0 negro € 0 escravo no existissem e nio tivessem parti cipado social e militarmente do acontecimento, autor s6 vai referir-se significativamente ao negro na segun- da invasio holandesa, sendo, inclusive, o primeiro cronista da Repiiblica de Palmares. Durante a ocupacio refere-se ao apelo que Joao Fernandes Vieira fez a D. Antonio Felipe Camarao “Gover- nador dos Gentios” © 0 mesmo aviso fez a Hentique Dias, que governava os crioulos de Minas ¢ so achava com o seu tereo aquartelado no sertio, convidandoos para esta ago, a qual abragara, com o seu cexperimentado valor, respondendosthe cada um, que partia 2 buseslo. Com estas disposigdes se animou Joo Fernandes Vieira, para se por em campanha mais brevemente do que ima- ghava, 0 que executou primeiro com um pequeno trogo de exército a0 qual se foram logo tantas pessoas que se vit! com suficientes forgas para empreender alguma agio generosa; clegendo alojamenios, se achava em um sitio que chamam do Covas onde teve aviso da vinda de D. Antonio Felipe Camaro ede Henrique Dias, posto que no chegaram tlo prontos, como ce os esperava, porque as distincins, os embaragos dos oa. minhos, ¢ marchas thes impediram © acharem-se na batalha do Monte das Tabocas. 5 A diferenga de tratamento aqui j4 € transparente. Enquanto iratava 0 escravo como coisa, aqueles negros que se comportaram como defensores, inclusive no plano militar, do colonialismo, s40 identificados e mesmo elogiados. Hé como que uma metodologia seletiva da perte do autor que estabelece um gradiente entre aqueles negros que ele, como senhor de escravos, via como simples instra- F1bid. pp. 195196, 51 mento de trabalho ¢ aqueles que se incorporavam, como forga militar, &s tropas que defenderiam os interesses da Metrépole. Frei Vicente do Salvador refere-se nominalmente apenas a um escravo, assim mesmo porque trabalhava na horta do seu convento; Rocha Pita também coloca os escravos como peniimbra hist6rica, deste- cando apenas os que se engajaram aqueles que desejavam expulsar os holandeses e manter as bases do sistema escravista Mesmo assim, nfo se refere mais a Henrique Dias ¢ aos seus feitos militares inegéveis, atribuindo a vit6ria exclusivamente 20 exército dos senhores de escravos e portugueses. Quanto a Camaro, noticiathe a morte ¢ faz-lhe 0 elogio enaltecendo-o pelas suas altas virtudes de submissio religiosa & Igreja Catélica, afirmando que Toi tdo religiosamente observante da nossa Santa Fé Catdlica Romana que néo empreendeu agio sem recorrer primeira a Dous, © 8 Virgem Santissima cujas Sagradas Imagens trouxe sempre consigo. Seguis as nostus armas desde que os Holan- doses entraram em Pernambuco, nio afrouxaram a sua lealda de na maior evidéneia dos nossos perigos. Trouxe 0 maior sé: quito dos Gentios (de que era principal) & obediéneia e amor dos portugueses; com cles se achou nos mais perigosos con Tits, obrando tais agées que fizeram o seu nome ouvido com respeite entre os nossos, © com assombro entre os inimigos. Os reis © honrardo com merces generosas, ¢ ele as abonou com procedimentos qualificados. No seu posto sucedeu seu primo D. Diogo Pinheiro Camaréo, herdeiro do sev apelido e do seu volor.© Nesses momentos de submissio e/ou alianga com os cooni- zadores, 0 autor exalta e elogia, No entanto, apés a morte de Camaréo, Henrique Dias dirigia-se diretamente 20 rei reclamando da forma como era tratado, Rocha Pita, ao referirse & praga de bexiga ocorrida na Bahia em 1666, mostra mais uma vez o seu pensamento de senhor de engenho, ao analisar as conseqiiéncias da calamidade. Os “danos” como ele chama essas conseqiiéncias, foram os prejuizos que os senhores tiveram com a espantosa mortalidade dos escravos. Escreve ele sobre o assunto: 1bid., p. 208. 52 Polos recéncavos foram tnto mais penetrantes os estragos, quanto maior era a falta dos remédios ¢ dos médicos, mor rendo os enfermos antes que, da cidade, onde recorriam, Ihes fossem as receilas e as medicinas; ¢ constatando a maior parte agueles habitantes de escravos para at fabricas dos engenhos, fazendas © lavouras, houve alguns senhores destas. proprieda: des, que perdendo todos os que tinham, ficaram pobres, e nio puéram em sua vide tornet a beneficiar as suns possessbes, fieindo em muita necessidade algumes familias nobres, que possufam grandes cabedais. Soguiuse depois uma geral fore, fue alguns anos padeceu o Brasil por faltarem os cultores das plantas, e sementeiras, e dos outros géneros precisos pare mentar’a vida, sendo to considerdvel e goral esta rina, que ainda hoje se experimentam of prejutzas © coneeqtiéneias doles, 7 Por este trecho podemos ver a ideologia de Rocha Pita a0 analisar 0 surto de bexiga na Bahia. Para ele, o Jamentivel néo foi a morte dos negros, mas a perda pelos senhores do seu instru- mento de trabalho. A falta do escravo € 0 fato considerado e Jamen- tado porque levou & pobreza muitas familias nobres, que néo conseguiram restaurar as suas riquezas, enquanto que a morte de milhares de negros somente é registrada na medida em que corres- pondeu a uma perda de mo-de-obra, Isto é, somente como miquina de trabalho. Esta avaliago do negro apenas como méquina de tragdo, autor volta a revelar, ao fazer uma comparacdo entre a rentabi dade no processo de trabalho do indio do afticano. Joao Amaro, numa razia contra os indios matou muitos, “sendo imensos os que prendew”. Foram remetidos esses indios como cativos & cidade da Bahia para serem vendidos “por tdo inferior prego, que os de melhor feigo ndo passavam de vinte cruzados, os mais por muito menos”. E continua: ‘A naior quantidade se enviou para 0 recéneayo a vender para © ‘ervigo de canas, Engenhos ¢ outras fébricas das nossas le- vouras. Porém como os Gentios do Brasil ndo tm por costume © trabalho cotidiano, como os da costa da Africa, e s6 lavram quindo tém necessidade, yagando em quanto tém que comer, sentiam de forma a nova vida, © trabalhar por obrigasio, © 7 Ibid, p. 228 nfo yoluntariamente como usavam na sus liberdade, que na perda dela, ¢ na repugnincia e pens do cativeiro, morrendo infinitos, vinham a sair caros pelo mais limitado preso. ® @ mesma filosofia de quando avalia a consegiiéncia das bexigas: o negro somente é avatiado como maquina de trabalho e fonte de lucros para as classes senhoriais. Quando compara os indios e os africanos nada mais vé neles que mercadotias de maior ou menor qualidade, como se anelisasse a raga de um animal de trago para as suas fazendas. ser humano desaparece ¢ a anélise comparativa tem por elementos a avalingao dessas mercadorias como investimento e fonte de lucros. Idéntico raciocinio encontramos quando ele relata a epidemia de “bichas” (febre amarela?), que em 1686 assolou Pernambuco ¢ Bahia, Depois de mostrar os efeitos devastadores do mal, que somente atingia “os mais robustos” ¢ ter registrado a morte de pessoas ilustres, clérigos, autoridades e pessoas de Salvador e Olin- da, informa que ela “nao jere o mal a negros, mulatos, indios, mes- clades”: Foi matéria digna de reflexio que deste contigio nfo enferme- ram negros, mulatos, indios nem mesclados, assim na Bahia ‘como em Pernambuco; parece que para aqueles viventes com postes humanos nfo ttouxore forgas, ou juridigSes © mal; po- deria haver neles qualidade secreta, se no foi dectelo supe riot. Por esta causa no faltaram aos enformos ¢ aos sos quer ‘os servisee e solictasse © necessirio; porém faltavam os man- Timentos, porque et que os conduziam antes queriam perder of interesses de ot trozer ts Cidades que arriscar a vida nelas, conde estava to Furoso © contégio. ® Embora nfo acreditemos muito nessa propalada imunidade dos negros ¢ mulatos ao contégio da febre amarela, pois outras fontes nos revelam exatamente 0 contrério, queremos destacar a ideologia do autor, senhor de eseravos, que chega a acenar com ‘um possivel milagre que atuou como elementos protetor dos senho- res de engenho do Recéneavo preservando os seus escravos. A STbid., p. 246. "Mbid., pp. 271-272. 34 filosofia da histéria de Rocha Pita fundamenta-se na imutabilidade da ordem escravista e do beneplicito divino & continuidade da sua estrutura, Por outro lado, para os senhores de escravos do Rec6ncavo baiano, era mais vantajoso perder negécios na yenda de mereadorias as cidades contaminadas do que, com esse contato, trazer a febre para as suas fazendas ¢ engenhos, contaminando os escravos. Finalmente, passa a narrar aquilo que ele chama a Guerra dos Palmares. Queremos destacar, inicialmente, que Rocha Pita no se deteve no assunto por simpatia aos negtos rebeldes, mas em fungio ce serem uma forga social e militar contra os holan- deses, pois, segundo ele, quando f provincia de Pernambuco estava tiranizada © possuida dos Tolandeses congregeram e uniram quase quarenta negros do Gentio de Guing, de vérios engenhos da Vila de Porto do Calvo, dispondo fugirem aos senhores de quem eram escravos, ‘iio por titania que deles experimentassem, mas por apetecerem viver isentos de qualquer dominio, Com segredo (entre esta Nagi, e tanto o niimero de pessoas poucas vezes visto) dispu- seram a fuga e 8 exccutaram, levando consigo algumas escra- vas, espotes © concubinas, também cimplices do delito da ‘ausénela, muitas armas diferentes, umas que adquiriram, outras que roubaram a eeus donos na ocasio em que fugiram, Foram rompendo o vastissime sertio daquela vide, que acharam deso- cupado do Gentio, © 86 assistido dos brutos com a qual se jilgaram ditosos, estimando mais a liberdade entre as feras, {que a sujeigdo entre os homens. ‘A esse grupo inicial de negros vieram juntar-se também delin- qiientes, Para ele ros primeitos anos este fogo, que se ia sustentando em pe- cuenas brases, para depois crescer a grande incéndio, no ‘ausou dano pdblico, mas s6 particular da perda dos escra tos, que seus donot info poderdo descobrir, por no saberem a parte em que se alojavam daqueles espessos e cilatados ratos, onde ainda estéo of fugitivos s6 atendiam a sustentar-se de cagas e frutas silyestres do terreno inculto, e nfo sabiam dele mais que a levar a furto de algumas fazendas menos apar- tadas as plantas de mandioca e de outras sementeiras para darem principio is suas lavouras, tomando-s com forga, se uchavam resfsténeia © sem ela geno encontravam oposisio: porém era jé notério este receptdcule por todas aquelas partes 55 de onde o iam buscar muitos outros negros e alguns mulatos ccimplices em delitos domésticos e pablicos, fugindo a0 cas- tigo dos Senhores e da Justiga e os recebiam os nogros dos Palmares, pondoos no seu dominio. Com os ataques a pequenos fazendeiros que os ajudavam “tro- cando o cabedal pela honra” esses negros evadidos comegaram 4 crescer, estruturar-se, “penetrando mais os sertées”, o que Ihes proporcionou a formaeao de uma “reptiblica ristica”. Elegiam um principe “com o nome de Zumbi (que no seu idioma vale o mesmo que diabo) [sic] um dos seus vardes mais justos e alentados”. crescimento de Palmares, a sua organizagio interna, o seu poderio militar e o seu ctescimento demografico, expulso o' batavo, tornou-se um perigo para o sistema escravista dos colonizadores portugueses e dos senhores de esctavos nativos. Inicia-se entio a Guerra dos Palmares por Caetano de Melo e Castro, em conse- giiéneia do “quase irremediavel dano que aqueles moradores expe- rimentavam dos negtos dos Palmares, (cuja extingGo era empresa j@ reputada por tio diffeil que muitos dos seus antecessores no posto a ni intentaram) ele a empreendeu com valor, e a conseguiu com fortuna”. Os palmarinos passam a ser “aqueles inimigos” e 2 sua des- truigéo necesséria pelos “males que causaram aos seus habitadores sendo ainda maiores na execugo que no temor continuo, em que jam de serem inopinada e repentinamente acometidos com fre- qiientes assaltos e perdas de vidas, recrutamento de escravos para a8 suas fileiras e dano a0 patriménio dos seus senhores. As auto- ridades coloniais portuguesas tomam ciéncia, entdo, até que ponto 0s palmarinos se orgenizaram e desenvolveram durante a ocupacéo holandesa. Diz Rocha Pita baseado em informagGes de fugitivos de Palmares. Referiram que “encareciam o grande nimero de gente que tinham produzido, os valores guerteiros, com que se achavam, a destreza com que julgavam todo género de armas, a fortissima muralha da sua circunvalago, a abundancia dos mantimentos que colhiam; coisas, que mostravam poderem aqueles inimigos resistir 10 Ibid, p. 296. 56 ‘um largo assédio, e frustrar © impulso das nossas armas, ¢ tudo conduzia a perder a esperanca de os expurgar”. 7 Em face desta realidade, ¢ contratado o bandeirante Domingos Jorge Velho para exterminar Palmares. Depois de tomar partido contra os palmarinos, narra as diversas etapas da invasdo de Pal- mates pelo “nosso exéreito”, terminando com a exaltag&o final do governador Ceetano de Melo afitmando que “este fim to ttil como slorioso teve a guerra que fizemos aos negros dos Palmares deven- do-se nfo s6 0 impulso da empresa, mas os meios da execucio a0 valor e zelo com que Caetano de Melo de Castro governou a Pro- vincia de Pernambuco de cujo emprego por este, ¢ outros servigos obrados na Etidpia, sendo General dos rios de Senam saiu com. tantos créditos e aplausos que the granjearam o superior lugar de Vice-tei da India; cargo, que exerceu com grandes acertos, deixan- do em todos as referidas partes uma ilustre meméria”. Foi também Rocha Pita 0 autor do suicfdio de Zumbi, erro repetido sem maior exame pelos noss0s historiadores tradicionais, e que ainda € repetido por alguns até hoje. Diz ele que os soldados co- Ioniais “entraram juntos, encontrando alguma resisténcia dos negros, inferior & que presumiram; porque o seu Principe Zumbi com os mais esforcados guerreiros ¢ leais stiditos, querendo obviar a fica- rem cativos da nossa gente ¢ desprezando a morrerem a0 nosso ferro, subjram a uma grande eminéncia e voluntariamente se despe- mharam ¢ com aquele género de morte mostraram néo amar a vida na escravidio € néo querer perdé-la aos nossos golpes”. #9 Depois de desctever a destruigdo de Palmares, Rocha Pita continua a ver o negro na qualidade de esctavo e a partit dos inte- resses dos senhores de engenho. Quando da descoberta do ouro na regio de Minas, lamenta 0 éxodo da populagdo para 1é ¢ acentua tem relagdo aos interesses regionais dos senhores locais: Mas no € este s6 0 dano que padece o Brasil; outro maior mel the ameaca a siltima rufna, porque comprando as pessoas ue vio para as Minas do Sul, © outras. que delas vem a este fim, por excessivos precos escravos do gentio de Guiné, que se Ibid, p. 297 "2 Ibid, p. 302 13 Tbidems, 57 conduzem da Costa da Africa e carecendo de muitos as fabri fas des canas, © dos engenhos, se foi diminuindo a cultura do tgicar de forma que alguns sonhores destas propriedades, no tendo negros com que 2s beneficiar, nem posses para 0s com: prar pelo grande valor em que estio, as deixario precisamente, as conservam alguns poderosos, que se acham com maiores ceabedais. 14 Certamente os senhores devem ter feito queixas nesse sentido, tanto assim que o rei D. Pedro toma medidas protecionistas em favor dos mesmos, impedindo o éxodo de negros para Minas. Rocha Pita registra o fato dizendo que “informado desse prejuizo 0 Senhor Rei D. Pedro foi servido mandar proibir 0 trénsito dos escravos da Bahia para as Minas, com tao apertadas ordens que sobre outras leis penais, mandou que todos os que se tomassem maquela expe- digo, se confiscassem para a sua Real Fazenda e para os delatores. Executou esta Resolugiio Real o Governador e Capitio Geral D. Rodrigo da Costa, com a pontualidade e zelo com que se empre- gava na obedigncia do monarca, a quem servia, e do Estado, que governeva”. Nesta conjuntura de deslocamento demogréfico que despovoa de escravos negros a regifio do seu interesse e faz aumentar 0 seu reco, Rocha Pita néo somente aplaude as medidas reais, como descreve no seu realismo a “crise” que isto produziu a partir dos interesses da classe senihorial. Relata que D, Rodrigo da Costa “enviou varios Cabos e soldados sos lugares por donde se faz a jornada para as Minas do Sul, os quais timaram muitos comboios de negtos e outros géneros que importaram grossas somas & Fazenda Real posto que os mais escapavam, nfo sendo a diligéncia dos homens menos poderosa para reparar, ou evitar os danos piblicos, que a sua inddstria em solicitar os interesses particulares; porque meditando em todos os meios das suas conveniéncias, frustram as diligéncias dos seus superiores, sem receio da perda, nem temor do castigo”. # Rocha Pita completa 0 quadro com as provi envio de escravos por mar. Jéncias contra 0 bid, p. 323, 1 Ibid, pp, 325324 58 ara os que 0s levvam por mar, indo da Bahia para as Minas pelo Rio de Janeiro, tinha feito D. Rodrigo da Costa grande rovengao mahdando por espias nas embarapSes que se are- Easven port aquela praga, para ae vilas de Sanios © SO Vien ¢ pata a do Espirito Seto, ordenando que fossm vse thias na hora ein que param, © posto que vivis vezst ae tolheram muitos escravos, de tl forma souberom malograr esta Sfiposita cs intereseados, que enviandoos primeio. para a {ited Iapavca, ou para outs prdximas 2 enscada da Babi 2 oite ants do darom b vola at embareaBes, em igeiros ba fone lanchas se mandavar exper a0 sai da barra, baldean Sere nagusle lar os eecrever, Poweo. tempo dirou esta dlipsigzo porque provaeceu 2 fortuna das Minas & sorte dos cgoahos, com a Teclidade consguida par se levarem os eer tee por iat, ou por terra, e com esen permlssto creseeram Binds mas 06 pregos deles com fanoassombro, como ambiclo deg memos, que os tasem a Conta da Aiea porque pelo. Cesrave, que em outro ompo se Ines dava elngben, hoje pe Sem zens i Ete ence 3 pode sh reno re vande.providenci, real atengio © patemal amor com que © Stsco algusto monatca o setenistimo Senhor Rel D. Joo V procura bem comum de todos os seus vassals, sondo se "lb onda nar pote ers, Com tt ena Shing, a ulidade competente m0. pongo, ¢ teabelho da sea endif, os sultores do agsear (0. qual por esta cause, © titos ecidentes do tempo se acha hoje em tanto abaimento) possum fer vantajgos lcror, de que Tesltem sua Real Fa Fenda sions rendimentos 6 Este trecho de Rocha Pita € interessante para andlise porque dificilmente 0 negro escravo é tratado como mercadoria, no seu processo de comercializacio, de forma to transparente. Era, como vimos, um intelectual orginico do sistema escra- vista e um idedlogo da classe senhorial. Em relagéo ao negro, por isto mesmo, retrata-o como objeto do processo social, sem interio- ridade, sem individualidade e sem capacidade de sair da condici« de “barbaro” e civilizar-se. Ibid. p. 5328 SOUTHEY: 0 NEGRO VISTO COM LUNETAS INGLESAS Contam que James Frazer, 0 antropélogo inglés que tanta influéneia exerceu nessa ciéneia com intimeras obras da qual se destaca The Golden Bough, um repositério impressionante dos hébitos e padres dos povos chamados primitivos, ao set certa vez interpelado, em Londres, se ele conhecia os povos que descrevia respondeu: “Deus me livre!” Nao sabemos se é fato ou anedota o que expusemos, mas, de qualquer maneira, tem um certo paralelismo com outro inglés, 6 poeta Robert Southey, que escreveu uma Histéria do Brasil da qual nos ocuparemos. Esse poeta laureado, formado em Oxford, certamente via o Brasil, que nunca visitou, como uma érea com- posta na sua majoria de negros, mulatos, indios, curibocas ¢ pardos fem geral; analisou-o & distancia, como regio exética e ignota, € se alguém Ihe fizesse a pergunta feita a Frazer certamente teria respondido da mesma forma. Southey nasceu em 1774 e morteu em 1843, na fase, portanto, da expansio colonialista inglesa, dos choques com outras potén- cias coloniais e da revolugo industrial. A obra foi publicada entre 1810 ¢ 1819 e, ao ser traduzida para o portugués, transformou-se em fonte obrigat6ria de consulta dos historiadores brasileiros. De fato, no podemos negar a riqueza de fontes em que se apoiou © 1 seguranga como as analisa, No entanto, 0 negro para ele também entra como personagem anénimo, salvo quando das invas6es holan- desas, a exemplo de Rocha Pita. Durante todo o perfodo enfocado nna obra, que vai do descobrimento & chegada da corte portuguesa a0 Brasil, em 1808, Southey s6 aborda o negro, ou como pano de Fundo passivo, ou.como causador de desordens. No rol dessas desor- dens perturbadoras da paz escravista podemos incluit Palmares. No 61 segundo volume da obra! refere-se a uma dessas tentativas de desordens, baseado no Valeroso Lusideno de frei Manuel Calado. Narra Southey que durante o saque que se sucede & ocupacdo de Olinda pelos holandeses, Wardenburch salvou a cidade dde ser queimada pelos eseravos, que desta forma queriam exprimir a alegria que sentiam, recuperada @ natural liberdade, Ensinados pela experiéncia que bem lhes resultaria dos ser gos dessa gente, om parte porque a ferocidade africana a leva- ria a eruéis represilias © em parte porque muitos dentre ela representariam papel dobre, para o que no thes faltariam nem ‘ocasifo, nem arte, nem cotagem. Tanto peso se achou nestas razies que deixados ficar mui poucos apenas destes negros fugidos, se expulsaram todos os outros, que fossem ter com seus antigos senhores e obrar como inimigos declarados, se assim Thes conviesse. 2 Continuando a descrigdo dos saques de Olinda e Recife, Southey, em relacZo 20 comportamento dos negros escravos assim se refere: ‘Tanto nas casas do Recife como nas de Olinda encontraram (0 conquistadores farturs de vinho, entregindose acs seus bes: tisis apetites com excesso tal, que os préprics escravos, que olhando-os como invenciveis em tomo deles se haviam apinha- do na esperanga de ablerem a liberdade, agora, vendo.s jazer por terra insensivels, os desalijavam de’ seus despojos. Houve alguns que, corrende a dar com o general portuguts Ihe disse ram, que se quisessem seabar com os Holandeses, bastave-he pieélos com odres de vinho. Ofereceu-se um camponés para cir sobre eles com alguns dos seus eamaradas, mas temeroso dda tigio deixou Albuquerque [referese a Matias de Albu ‘querque) perder 0 ensejo. Hé, portanto, uma equivaléncia de julgamento negativo dos escrayos negros como agente historico quer dos holandeses quer dos portugueses. Os dois colonialismos tinham, em relago a0 negro escravo, a mesma posigio: a “ferocidade africana” impedia-os de serem incluidos como componentes dos segmentos dinémicos da 4 Estamos usando como fonte a edigdo traduzida por Luis Joaquim de Oli- veira e Castro e anotada pelo cénego J. C. Fernandes Pinheiro, 6 volumes @ edigio, Salvador: Livraria Progresso Editora, 1949). 2 Robert Southey, Histdria do Brasil, cit, vol. Il, p. 122 8 Mbid, p. 125, 62 sociedade. Aqui, mais uma vez, vemos a coisificagdao do ser humano funcionando como um valor permanente onde a escravidio existiu. Como vimos acima, segundo afitma o autor, Wardenburch teria salvo Olinda da firia dos negtos. A cidade foi preservada com esse gesto do comandante holandés da “ferocidade africana” que a desejava incendiar. No entanto, quando os portugueses aban- donam a cidade, os holandeses a incendeiam. Segundo Southey, quando Matias de Albuquerque foi consultado se queria resgatar 2 cidade teria respondido: “Queimai-a se a nfo podeis guardar, que nés saberemos edificar outra melhor”. Segundo Southey: “Tira- ram pois os holandeses o sino ¢ os materiais das casas que podiam servirlhes pare suas edificagbes e obras no Recife, ¢ depois entre- gando o lugar as chamas toda esta florescente cidade foi presa do fogo, exceto um tinico pardieiro do bairto, que ficou ileso enquanto ardiem igrejas e conventos.” + Queremos destacar, aqui, este detalhe: quando eram os negros que desejavam incendiar a cidade para festejar os seus justos ansefos de liberdade, Wardenburch ¢ 0 “heréi salvador” da “firia aftica- na”, mas quardo os holandeses a incendeiam é um simples ato natural de guerra, Este julgamento ambivalente de valor, entre os atos dos negros escravos e dos brancos ¢ os seus diversos grupos ¢ estamentos, perpassa toda a historiogtafia do periodo escravista e dele Southey néo esté isento. Veja-se, por exemplo o julgamento que € feito a0 comportamento de Calabar ¢ dos senhores de enge- nhos pernambucano, Southey escreve sobre a ida de Bagnuolo & Paraiba para inspecionar o forte de Santo Antonio: Matias de Albuquerque © acompanhow. Enquanto ambos ass estavam ocupados, saiu do Recife uma esquadra contra 0 Rio Grande, lugar para atacar o qual tinham vindo da Holanda ordens ‘eiteradas; 0 destacamento era forte, e mals formidé- vel o tornava achar-se Calabar @ bordo. Pedro Mendez. de Gou- vela comandava a importante praca do Rio Grande; tinha trez= pegas © oitenta e cinco homens, com que bem podia defender’ tio sequra fortaleza e mandow pedir socorro & Pax raika, como 2 estagio mais préxima. Sélido como era o forte, tinka'a grande desvantagem de ficarthe a eavaleiro um outeiro de ateia, que nem todos os esforcos dos Portugueses puderam tirar dali, pois mal 0 arrazavam, ajuntava 0 vento outro no 4 Tbid, p. 139, mesmo lugar, 0 que talver fosse devido ao préprio forte, © Calabar sabendo disto, para ali conduziu os sitiantes. [...] Com esses homens fez Calabar @ sua barganha ¢ eles renderam ‘8 praga, Tris caravelas eiram nas mics do conquistador, No préprio dia do rendimento, celebraram os holandeses um off cio de gragas na capela do forte, admirados de terem tio de. pressa © to facilmente tomado uma praga que os portugueses tinham por inexpugnavel pela sua potigdo e solider. 5 Por ages como esta, Calabar é considerado pela historia oficial como simbolo da traigo, somente porque nio ficou a0 lado dos portugueses, Frei Calado, a principal fonte de Southey sobre Cala- bat, era possuidor de escravos. * No entanto, a concordata dos senhores de engenho de Pernam- ‘buco com os ocupantes holandeses, com eles cooperando’ e mesmo fazendo empréstimos & Companhia das Indies Ocidentais para comprar escravos (cujo comércio foi também monopolizado pelos batavos) é omitida ¢ isto nunca foi considerado traicao. Destaca-se apenas a fase restauradora quando esses senhores, para se livrarem das suas dividas para com os holandeses, resolvem aderit a0 movi: mento de reconquista Com a chegada de Mauricio de Nassau essa harmonizagio de interesses é descrita por Southey da seguinte forma: Procurou-se induzir os Portugueses a voltarem as suas terra, cestabelecendo-se debaixo do dominio holandés; cada colone fra olhado por Nassau como amigo, pois que contribufa para aumentar a produgdo de que careciam os conquistadores © era interessado na defesa dos seus campos; cada fugiivo, pelo con. trério, The era um inimigo © da mais formidvel espécie, pois que a necessidade obrigava a saquear © 0 conhecimento do pafs Tho permitia fazer com yantagem. Foram estes os termos ‘oferecidos aos portugueses: inteira e plena liberdade de cons. cigncia; conservario des suas igrejas 2 custa do Estado; io hhaviam porém de receber visitador da Bahfa, nem se. admit ram novos frades enquanto houvesse bastante para celebragio 5 Tbid., p. 133 4 Tbid, p. 191. Sobre frei Colado, escreve José AntOnio Gongalves de Melle: “Bm 1635 vamos encontrélo jf senhor de 25 escravos a0 que parece, com roga de mantimentos que ficava a pequena distincia da povoaglo de Porto Calvo." (Frei Manuel Calado do Salvador. Religioso da Ordem de Sto Paulo, pregador aposidtico por Sua Sartidade, cronista da restaura (lo (Reaife: Editora Universidade de Recife, 1954), p. 29) 64 de ceriménias da religifo, Ficariam sujeitos a leis holandesas, pagando os mesmos impostos que os outros stditos do Estado £0 Conselho Supremo mercaria dois dias para dispensar-thes jusiga, Tornariam a entrar no gozo dos seus bens, © quais: ‘quer eseravos que lhes fugisiem depois de prestado pelo senhor © uramento de fidelidade, Thes seriam restituidos: observa-se orm que entregar os que antecipadamente haviam fugido para os holandeses c os tinham servido, seria vil © abominé- vel, nem se devia pensar em tal.? historiador apenas apresenta as condigdes de munificéneia oferecidas pelo conde de Nassau aos senhores de engenhos ¢ de escravos. Com Calabar o seu comportamento é diferente: ainda apoiado em Frei Calado, ao registrar a sua prisio, refere-se aos “crimes atrozes” que ele alii cometera. Por esses crimes, que 0 préprio comentador da obra diz desconhecer em nota de rodapé, * foi “enforcado, e a sua cabega e quartos expostos na palissada da fortaleza”. Terminou assim a vida do traidor que era considerado © “flagelo de Pernambuco alcancando-o o castigo apenas conclufda a obra”. ® Havia-se criedo, segundo o autor e as fontes nas quais se apoiou, um clima de maldicio, de purgagdo diabélica sobre Calabar que teria de executar uma série de atos condendveis para depois pagé-los com a prdpria vida. No entanto, em relagio a Henrique Dias — que tinha @ mesma posic&o ambigua de Calabar, pois lutava ao lado do colo- nizador portugués — a posicfio de Southey é bem diferente, Na evacuagio de Pernambuco ordénada por Matias d’Albu- querque segundo Southey “atrés das tropas ¢ dos moradores, na sua retaguarda, portanto, vinha o leal Camaro com oitenta dos seus, Digno é de notar-se que os dois homens que até agora mais se haviam distinguido da banda dos Portugueses etam este cacique Carij6 e Henrique Dias, um negro crioulo e originariamente escra- yo, que a testa dos de sua cor, em todas as ocasiGes se assina- lava”. Estabelecidos os batavos em engenhos pernambucanos, sfio esses negros, especialmente os comandados por Hentique Dias, que enfrentaram a luta. “Senhores das plantagdes de Pernambuco 7 Robert Southey, Histéria do Brasil, cit., vol. I, p. 206. 8 bid, p. 182. Ibid, p. 18. 0 1bid, p. 180. 65 comegaram a sentir os mesmos males que tinham causado a seus antigos donos. Partidas de Portugueses com seus indios e negtos talavam os campos em todos os sentidos; rompiam dos bosques, punham fogo nos canaviais, queimavam os celeiros, salteavam as moradas do inimigo, e retiravam-se to répidos como haviam avancado, por sargas e brejos, aonde os holandeses no se aventu- ravam a segui-los. Souto, Camaréo e Henrique Dias, 0 negro, foram os que mais se assinalaram nestas correrias assoladoras™. " [..] “A testa dos negros ostentou Henrique Dias a costumeira bravura. Uma bala o feriu no punho esquerdo ¢, julgando-a enve- nenada, mandou amputar a mao, dizendo que uma The bastava para servir 0 seu Deus € 0 seu rei; para se vingar cada dedo Ihe teria lugar de mio, e antes queria morrer duma vez do que consumir muito tempo na cura” ‘Queremos destacar aqui, em primeiro luger, a forma desigual, mesmo quando exalta feitos individuais, entre os militares portu: gueses e Henrique Dias. Este dltimo & sempre 0 negro, enquanto as tropas de ocupago colonial portuguesas que lutavam contra os holandeses jamais sio chamadas por outro termo seno Portu- ‘guesas, As yezes as chama de tropas luso-brasileiras, mas, sempre explicitando a sua condicio de militares de Portugal a setvigo na colénia, Fato que, alids, 0 proprio Henrique Dias teconhece, ac ter decepada a mio, ¢ a0 afirmar que o fazia para defender “o seu Deus ¢ 0 seu Rei”, como registra Southey, néo havendo, portanto, nenhuma conotagéo de pensamento nativista na sua atuaco 20 Jado dos fusos. Aliés, a confianca depositada nele pelos coloni- zadores é incondicional. Quando o Rei de Portugal, ditigindo-se a0 seu ministro na Holanda, afirma declinar de qualquer pattici- pago no plano dos insurgentes contra os batavos, ao ser divulgada essa noticia pelos holandeses é Henrique Dias 0 escolhido para dizer que 0 documento era apécrifo, embora todos soubessem da sua autenticidade, Sobre 0 episédio, escreve Oswaldo de Camargo que “Henrique Dias, ao que parece foi o primeiro negro que esereveu um texto no Brasil”, # Ibid, p. 198, 1 Osvaldo Camargo, Infervengio na IT Bienal Nestlé de Literatura, mimeo, 66 Sem se referir a0 outro documento também dirigido aos holan- deses, em aome dele e de Camarao, dando a composigio étnica 0 ethos militar dos seus comandados, Southey transcreve o texto de Henrique Dias as autoridades batavas: ‘So to manifestos e claros as embustes e enredos de voseas mereés que até as pedras e os paus conhecem seus engenhos, aleivosias e traigées, nfo falo de mim que com a perda da ‘minha idede © derramamento de meu sangue me fiz doutor no conhecimento desta verdade. Quando vossas mercés man- darem 2 Bahia, pedir ao Governador Antonio Telles da Silva socorro de infantaria para; para quitar esses moradores de Pernambuco, que s° haviam rebelado nfo estava eu nem o Governador dos fndios Dom Antonio Felipe na Bahia, que Gramos idos haviam muitos dias a certas empresas de impor Hncia no sertio ¢ Id tivemos aviso dos moradores desta terra, fem como por que se livrarem das crueldades, traigbes, roubos ¢ tiranias, que vossas merc8s com ele usando, se haviam rebe- Jado ¢ estavam com as armas nas mis, deliberados ou a ficar livres de tio tirano jugo, © deitar a vossas mercés da terra ou perderem as vidas na demanda, Ouvida sua razio © conhe- ccendo quanto razio tinham de se levantarem nos pusemos a eaminho © os viemos ajudar; e entretanto nesta capitania sou- Demos de certo, que havendo vossas mereés mandado vir a infantaria da Bahia, para aquietarem a terra, tanto que. viram desembarcados em terra os nossos soldados, hes mandaram ‘quelmar os navios em que vitam desembarcados, ¢ determina Fam matados a todos enganosamente, néo tendo embarcagio para se tomnarem, ¢ por esta razfo se deliberaram os dois Mes- tres de Cempo de ee defenderem de vossas motets; © eu, © 0 Goyernador Camaro de os defender em tudo 0 que pudésse- mos, € demos nossa viegem por bem empregada, Meus senho: res holandeses, meu camarada Camaro no esta aqui, porém ‘eu respondo por ambos. Vossas mercés sabiam que Pernam- buco é a sue patria © minha e que jé nfo podemos sofrer tanta auséneia dela: aqui havemos de perder as vidas ou have: mos de desdeitar a Vossas Mereés fora dela, © ainda que 0 Governador Geral © sua Majestade nos mandem retirar para 1 Bahia, primeiro que o fagamos Ihe havemos de responder, © dar as razées para no desistir desta guerra. O caso é que fe vossas mercés se gurem render © entregar o Anrecife Ihe faremos todos os honrados partidos que forem possiveis; © se enfadarem de estar encurralados nesse Arrecife, e quizerem sair a esparecer, e de uma saida ef fora, livremente o podem 67 fazer ¢ aqui os receberemas com muito alegria, e Ihe daremos 1 cheirar as flores; que produzem brolo os nossos moesque- tes, Deliberou-se com tempo, e desejam a terra, ou deixemse af estar metides, comendo e bebendo o que tiverem em seus almazéns, ou mandem buscar muito provimento a Holanda, Porque © que a terra produzir achemolo mister para nés, © se vossas mercés mandarem vir armada de Holanda, também 1n6s temos Rei © pai que suposto que os da Companhia men- dem armada de novo também Sua Majestade nos mandaré a sua porque assim o pede a razio e a justiga, que acuda os seus vassalos nas tribulagdes. Deixem vossas mercis de fazer tanto gasto sem proveito, porque bem podem perder as espe- rangas de o tirarem jamais de Pernambuco. E quando nossor pecados, (0 que Deus no permita) nos obrigarem a nos reti- atmos, stibam de certo que havemos de deixar terra tio como a palma da mio, ¢ to abrazada que em dois anos no dé fruto, e se vossas mercés a tornarem a plantar (o que ‘nfo sabem nem podem) nds viremos em seus tempos a lhe queimar em uma noite, © que houveram plantado em um ano, Isto nfo sio fabulas, nem palavras deitadas a0 vento porque assim hi de ser. Guarde Deus a vossas mereds, © o8 converte das suas folsas seitas © heresias — O Governador Henrique Dias, 3 "8 Documento transcrito por Robert Southey. O outro documento s que nos referimos, atribuido a Henrique Dias como resposia & proposta de ren digo dos holandeses ¢ transcrito por frei Rafael de Jesus no Castrioto lusitano, € o seguinte: “Esta variedade e multidio de papéis que o= meus foldados acham pelos caminhos © que VV.SS. mandam deitat neles, 550 folhas de que sempre conhecemos a flor. No hes tem ensinado a expe inci que © negro nem recebe outta cor, nem perde a que tem? Pera que fastam a sua tinta, pintando sou desejo nesias cartas, se as cartas se dio a conhecer pela tinta? © que VV.SS. imaginam suborno nestes cartazes de pordio & para cada um dos meus negros cartel de desafio, Matarseo facilmente com ‘quem thes falar do dominio holandés, ‘Com toda sua rudeza, no deixario de reparar em que a gente que de todo perdeu 0 caminho da graga ofereca tanias gragas © perdoes: matéria de que todos fazem riso. Ja VV.SS. poderio ter alcangado de suas inclinagSet que nem per doam a flamengos, nem de flamengos querem perdio; e deste propésite ninguém os hé de tirar, porque basta serem negros para serem emperra: dos: olhem que sio negros, © que nem todos sio boss pecas. 68 A carta, conforme podemos ver, nfo revel nenhum senti- mento de nacionalidade ou nativista, mas limita-se a uma visdo localista dos acontecimentos, tendo Pernambuco como epicentro © 0 Rei de Portugal como forga protetora Southey refere-se ao tratamento que foi dado aqueles negtos que emigraram para a Bahia, juntamente com outros habitantes da Capitania de Pernambuco, informando que “Antonio Teles exasperado pelo comportamento dos soldados, punia de morte alguns, degredou outros para Angola e fez voltar para Pernam- buco os que apenas haviam sido seduzidos pelos mais criminosos. Nilo se cansem com esta invengio de enganos, porque thes hi de sair f sorte fayorivel, se de entre eles Ihes sai em’ preto; que estes meus ‘morenos nfo tém’por boa sorie a que fazem no sangue holandés; ¢ este- jam certos que nenhum de nés perdeu a cor com seus ameacos, porque 0s consideramos de Holanda, e menos com suas promessas, porque as de Holanda nio tm avesso nem direito De quatro negdes se compSe este regimento: minas, ardas, angolas © crioulos; elles 30° tdo maleriados que nio temem nem devem: os minas so bravos, que aonde no podem chegar com braco chegam com o nome: (0 ardat #83 fogosos, que tido querem cortar de um golpe; os angolas tio robustas que nenhum trabalho os cansa; considerem agora se romperdo a toda Holanda homens que por tudo rompem. © poder da gente, armas © munigées que VV.SS. repetem para thes ccausar temor, serviu de os alvorogar. 'A crueza dos tapuias nfo podia fazer impressio em soldados, que or natureza sio nus © crus. Se VVSS. consullaram comigo esta indéstria de que sam, excusar. Ihes a diligincia, com os advertir de que esta gente nfo é a que se leva por arte; ¢ assim Ihes aconselho que se valham da forea; convidem-nos ‘com uma pendéncia que, pelo intctcsse de se verem vestidos e calgados, se meterio nela a todo 0 isco; mas também Thes asseguro que, sem os matar a todos, nunca de hao de ser livres de contririos, Henrique Dias, governador dos negros” Sobre este documento, Edison Carneiro nos aconselha cautela quanto ’ sua veracidade, apoiado em depoimento do historiador Mario Melo, que a ele esereveu, dizendo: “E preciso entretanto um pouco de euidado com Frei Rafae'. Esse frade, de acordo com o costume da época, metia na boca de suas personagens discursos que nunca proferiram, ¢ na mio, lrechos qu: nunca escreveram porque o estilo é 0 do proprio frade. (Edison Carneiro, Antologia do negro brasileiro (Porto Alegre: Ed. Globo, 1950), p. 89) 69 Foram também presos todos os negros que chegavam de Pernam- buco, ¢ detidos até poderem ser entregues aos seus senhores”. !* ‘Quando os holandeses se encontravam sitiados em Recife e a fome teve inicio cies ¢ gatos. que se dsiam (erem sido mumerosissimos a0 co- tncger 0 cero, estavam agora consumidos; os sats tnhamse dado to porfiada eaga que ies extingua raga no Rest; fF cavalot também tinhim sido. comidos todo, e 0s Negros, procuravam os ose podres dos que haviam sido. enerrados, Foondoos com miseréyel avez. Os escraves esté visto que sofriam mais ainda que seus senhores; at facts © 0s corpos cram como do eaqueletor vivos, as pets inchades e mules mmoriam de inanigHo, enguanto, do ado de fort, sustentande © ‘tio, obupevam Hinrigue Dias e os stus negros 0. posto mais préximo, fazendo a guerra. com 0 espirito vingativo.¢ ineansivel dos sovagens. Vademndo por égua © ldo até a cin- tora, econdlamae ebite or mangues tio perto das muralhas, sue no podiam mexerse sem serom percbidos; nfo. davar ‘vartel,e levou tempo primiro que or meres de campo 0 feu préprio comandante pudesse abolir © costume force que sles haviam estabelecido de andar com es cabeses dos Hole deses de casa em cata, extorquindo dinheiro em papa do expe Uieulo, como os fradee mendicantes tiszem un santo uma cnixinha de viro.'8 Nestes trechos de Southey fica muito claro que ele mostrava a participagdo do negro dentro dos padres da selvageria que Ihe cra inetente, Desde a propensio 0 canibalismo a uma posi de selvagens vingativos e que se apraziam em mostrar as cabecas do: batavos depois de degolados para extorquirem dinheiro. Sempre que 0 negro é apresentado por Southey como agente hist6rico dind- mico cle faz questéo de mostrar a diferenca de padres de com- portamento entre esses selvagens e as duas forcas antagGnicas civilizadas: portugueses e holandeses. Essa visio de canibalismo, selvageria, barbérie e ferocidade esté subjacente no texto de Southey. Antes da batalha de Guara- rapes um negro conseguiu fugir do campo holandés e avisar aos ‘mestres de campo da movimentagdo de forcas do inimigo. O aviso Robert Southey, op. cit, vol. I, p. 136, 18 [bid., p, 143, 70 desse negro foi de fundamental importincia para a vitéria dos portugueses, pois, em conseqiiéncia disto, “armou-se uma partida para, armad> um tiroteio, atrailos melhor, e os holandeses 20 entrarem no desfiladeiro, acharem o exército pernambucano pronto a recebé-los num terreno onde a superioridade numérica nada thes valia”. Southey, como sempre, nfo registra o nome desse perso- hagem, numa batalha que, para ele, “foi esta vit6ria que decidiu a sorte do Brasil”. 1 ‘Apés a batalha, referese as baixas portuguesas: “enterraram ‘0s vencedores os seus mortos onde jaziam com as honras ¢ cei ‘ménias que o tempo ¢ 0 lugar permitiram: oitenta e quatro portu- gueses tinham cafdo, e sairam feridos mais de quatrocentos”. A perda dos negros e indios ndo se relata. "7 Como sempre, 0 negro @ 0 indio sfo os protagonistas anGnimos nessa guerra entre dois colonialismos que os exploravam e escravizavam. Se, do. lado dos portugueses, isto se verifica, no campo batavo 0 mesmo acontecia, tanto que na proposta de rendigéo apresentada aos portugueses equipararam os negtos escravos aos bois, afirman- do-se, segundo Southey, “que como indenizacéo das despesas de guerra Ihes ficasse o rei de Portugal pagando anualmente 100.000 florins por vinte anos; e que por outros dez se entregassem, também anualmente no Brasil 8 Companhia mil bois de jugo, mil vacas, quatrocentos cavalos, mil ovelhas e mil caixas de agticar de vinte arrobas cade uma. Também deviam ser restitufdos, por um orga- mento eqititativo, todos os escravos que os insurgentes tenham tevado consigo, ¢ tudo quanto estes tenham destrufdo havia de ser igualmente reposto, podendo os holandeses durante um ano depois da publicagao do tratado reclamar e aprender o que fora seu onde quer 0 achassem”. 1 No entanto, segundo 0 relato de Southey, os portugueses brasileiros aproveitavam-se de negros escrayos © mesmo rebeldes para os seus objetivos politicos e militares, Tanto que, na primeira fase da luta contra os batavos, Jodo Fernandes que se encontrava fem situago militar desesperadora, ao saber que os holandeses 18 (bid, p. 168 1 Ibid... 178. 13 Pbiden. n iriam atacélo em Camaragibe “tetirou-se para um mocambo, ou esconderijo de negtos nas matas, onde Cardoso foi reunirse a ele”; mas pela histéria de Southey esse mocambo, o seu chefe © a importéncia que essa solucdo de fuga representou para os portu- gueses ¢ sous aliados brasileiros nfo so destacados. O negro ou € selvagem, ou fica na pentimbra histérica. # Essa ideologia do historiador, para nds, € uma reproducéo da dos colonizadores; isto é, nem os portugueses nem os holandeses queriam, no término da luta, transformar o negro escravo em homem livre. Do ponto de vista brasileiro, Fernandes Vieira, senhor de escravos, ao ter noticias de que Henrique Dias e Cama- ro estavam marchando pata apoiar os portugueses, déu de prémio dois escravos aqueles que Ihe trouxeram a noticia, mostrando, mais ‘uma vez, como considerava 0 negro escravo simples coisa. Antes da batalha das Tabocas, Joio Fernandes prometeu liber- dade aos seus escravos que irlam participar como soldados da refrega, dependendo do comportamento dos mesmos. Condicionava, portanto, a alforria, a0 herofsmo ou disposicio de morrer dos negros. * Southey narra da seguinte forma o episédio: Jofo Fernandes {...] enviow 20 combate © sua guarda, com: posta pela maior parte de escravos seus, aos quais prometet 2 Tiberdade s2 se comportassem bom naquele dia, Precipite ‘vamnse eles pela encosta absixo tocando suas cornetas, ¢ 30 tando os bertos de que seus selvagens conterrlineos usavam na guerra ; e como A sua vista os insurgentes cerregessem os hholandeses com Animo novo, levaram-nos outra vez adiante de si através das cana, reconquistando © perdido terreno. ® Com (05 despojos do inimigo yestiram “os nogros © os indies” e ‘ime: diatamente cumprindo » sua promesea, ali mesmo emancipou cingiiente dos seus escravos, promovendo-es 4 classe de sol- dados livres, ¢ dividindows ‘em duas companhias de vinte © quatro pragas cada uma debaixo dos capi mas escolhessem. 23 que elas mes 9 Ibid, p. 8. 20 bid, p85, 2S Tbid,, p. 98. 2 [bide "9 [bid., p. 96. 2 Palmares é, por tudo isto, subestimado por Southey. Enquanto Rocha Pita destaca a sua importdncia em fungao da sindrome do ‘medo que 0 a:acou pot set contemporaneo do acontecimento, sen- tindo, como senhor de engenho, o que significaria a vitdria dos palmarinos para a economia e a vida social da regio, Southey analisa Palmates sem nenhum envolvimento, com uma frieza britd- nica, Evidentemente ele, & distincia, néo podia avaliar a impor- tancia que foi a repiiblica de Palmares. Os negtos — selvagens € barbaros, com instintos canibais —, néo poderiam criar uma organi- zagio daquele porte. A sua anélise, no entanto, do ponto de vista de tética politica, ndo difere muito da de Rocha Pita, em quem, aliés, ele se apoiou como fonte quase exclusiva: enquanto se batiam com os holandeses os palmarinos eram considerados um elemento que atrapalhava a aco do inimigo, No entanto, depois da expulsdo dos holandeses, constituem um perigo, Southey descreve Palmares de seguinte forma: L.2-] a0 mesmo tempo tinham os Portugueses outro ini ineSmodo. Obra de trinta Iéguas pelo sertZo dentro ficavam ex: tonsas florestas de palmeiras chamadas Os Palmares; era ali o rofigio dos negros que se evadiam & escravidio, © que pro- vavelmente escolheram 0 sitio pela semelhanga que oferecia con 0 cenério do seu préprio pais. Das mirfades destes des grorados, que tinham sido importados no Brasil, muitos ali aviam achado asilo na sucessio dos tempos; eles tinham se multiplicado; constantes desorees Ihes engrossavam o niimero que nesta época se orgava em trinta mil Viviam em aldeias que chamavam mocansbos, e & maior des quais se davam seis mil habitantes. Compunhase de trés ruas, cada um de quarto de Iégua de comprimento, sendo os ranchos contiguos com seus quintais nos fundos. A Selva supria de frutas ¢ caga este povo, gue contudo previdente ¢ industrioso cultiveva 2 torra, de mado que a todo © tompo abundava o sustento. Duas vezes por ano se colhia © milho, sendo ambas as colheitas celebra- das por festas que duravam uma semana. Conservava ainda fast gente alguns resquicios de cristianismo, religiio que The haviam infundido prineipios tio corruptos que nem estes ho- ‘mens ignorantes como eram, poderiam tomélos dissemelhantes do sau diving protétipo. 3 Robert Southey op. cits, Vol. 11, p. 24 rE ‘Hem como da religibo também da justiga guardavam dlgum resaibo. Todas as tardes se fazia em cada aldeia uma chamada para ver se alguém faltava; findo isto principiava a danga, que durava até meia noite, Ocasionava esta pritica uma sin: gular inversio de habitos ordinévios na vida natural, pois ten- dose deitado to tarde, levantavamse os negros Bs nove ov dez horas da manhd. Mas a regio que eles habitavam tinho dduas desvantagens; era sujeita a falla de dgua na estagdo seca, nfo ficava longe do sertio. 25 Em seguida Southey, mais uma vez, sublinha a selvageria dos negros palmatinos, como fazia generalizadamente com a populacéo africana ou afto-brasileira, dizendo: “Em verdade atualmente pouco petigo podia prover-Jhes desta vizinhanga dos estabelecimentos portugueses; facilitava a fuga dos irmaos e oferecia pasto a essa incessante guerta de pilhagem em que parecem consistir as maiores delicias do homem nos degraus semibdrbaros de seu progresso” (gtifo nosso). 2" E Southey continua a descrigo de Palmares afirmando que por vezes 08 atacavam os colonos, armando-hes ciladas, quan- do iam & busca de gua, © assolavamIhes os campos; mas eles pela sua parte também’ levavam a destruigéo aos estabelec- Ientos mais préximos, causando maior dano que recebiam. O distrito deles era um labirinto em que ninguém mais se enten- dia, mas os fugitives, que de continuo os preocupavam, ser viamlhes de guia, dandothes informagdes sobre © lado tonde melhor divigitiam as suas correrias, A gucrra que faziam tra sem piedade, exceto para com os de sua cor, 0 respeito dos quais era prética estabelecida receber em pé de perfeita igualdade os desertores, © reter escravos os que eram feitos prisioneiros. Atanazados por estes inimigos e pelos desapieds- fdos Janduis, mal podiam os Portugueses fazer frente a0s ho: Tandeses, que triunfavam agora por toda a parte. °7 Em relagio & religifo palmarina ¢ As restrig6es que ele faz ‘20 fato de se encontrarem vestigios do catolicismo e dos seus “principios corruptos” nfo nos devemos esquecer que ele eta um adepto da igreja anglicana, daf 0 protesto do seu anotador que 2 Ibid, pp. 159160. 2 Ibid, p. 160 2 Tbidem. 4 era sacerdote catélico. Finalmente, devemos tecer consider respeito do tratamento que di aos negtos da Reptiblica de Pal- mares, reafirmando, mais uma vez, 0 seu julgamento sobre os negros como homens nos degraus semibérbaros do progresso. Com isto, tenta explicar aquilo que ele considerava comportamento de selvagem na guerra de pilhagem que estabeleceram contra 0 colo- nizador portugués e/ou holandés. O que era uma resposta, em termos de protesto social & condigo de escravos desses negros, para ele era uma manifestagdo de semibérbarie e selvageria. Depois desta primeira descrigfo s6 volta a falar em Palmares no governo de Caetano de Melo © Castro, quando os portugueses tinham agora _adquirido forgas e ousadia para no correr de mais de sessenta anos os negros dos Palmares, que fugindo & escravidio, ali se haviam estabelecido no principio da guerra hholendesa, Néo se yendo atacados pelos portugueses, tinham cles mesmos tomado a ofensiva, infestando os disttitos de Porto Calvo, Alagoss e 8, Francisco do Penedo, ¢ at6 lugares mais préximos ainda da sede do governo, Engrossavanelhes foniinuamente o mimero de excravas que buscavam a liber. assim reerutada carecia de proporcio res, @ como of primeiros romanos nfo tinham esses negros outtos meios de obttlas senfo & forga, 29 Southey faz, no entanto, adverténcia quanto as fontes histé- ricas disponiveis, escrevendo que todas elas sao de origem dos seus exterminadores. Mas o autor continua afirmando: “Onde quer que caiam levavam negras e mulatas, tendo por suas mulheres ¢ filhas os portugueses de pagar resgaste em armas, dinheiro ou no que exigia o inimigo. *° E a repetigao, com outras palavras, daquela afirmagéo de Rocha Pita de que os lusos, muitas vezes “trocavam 0 cabedal pela honra” Ao descrever a organizagio politica de Palmares repete no fundamental Rocha Pita, afirmando que tinham o “seu chefe eletivo que escolhido tanto pela indole justiceira como pelo seu 88 Robert Southey, op. cit, Vol. V, p. 22 29 Ibidem B valor, ocupava por toda a vida 0 cargo” e também um conselho composto de “quantos sendo dotados de experiéncia, gozavam de boa nomeada, e de todos lealmente obedecido, jamais para empol- gar o poder houve conspiragdes ¢ Jutas”. * Nesta parte Southey incorre na mesma omissio dos demais lores de Palmares, pois aquilo que ele se refere como sendo “mais de sessenta anos” da hist6ria palmatina é desconhe- cido, comegando com Zumbi, cuja etimologia do nome procura esclarecer afirmando que “Rocha Pita diz que a palavra significa diabo na Iingua deles. Pareceu-me isto tio improvével que para ayeriguar o fato consultei um livro de instrugo religiosa escrito nas linguas portuguesa ¢ angolista, e ai encontrei que Neambi é a palavra que significa divindade ¢ Cariapembra 0 diabo. Nio se emprega no sentido de Senhor que podetia explicar neste caso a sua aplicagio sem significagdo religiosa, mas de Divindade".* Southey, como a maioria dos cronistas de Palmares, preocupou-se com 0 significado religioso da palavra, sem pesquisar, no entanto, © seu significado politico. Segundo ele o mal se agravava. Os escravos que s¢ evadiam, descreviam aos seus senhores as proporgées de Palmares de forma assustadora. “Descreviam aquele ajuntamento como to formidével pelo seu niimero, comum pela coragem, organizagao ¢ forga da sua cidade, de modo que por muitos anos consideraram os gover- nadores por demais aventuroso atacé-lo, e contando-se para pro mulgar leis que impossivel era fazer cumprir, foram deixando aos seus sucessores 0 mal e a responsabilidade,” ** © governador, assumindo a responsabilidade no sentido de conjurar 0 mal, recorreu ao governador-geral pedindo auxilio de Domingos Jorge Velho, mestre de campo de paulistas acantonados em Pianeé, sertéo da Bahia. Segundo Southey, “recebeu este oficial ordem de marchar para Porto Calvo efetuando ali uma jungio com as tropas de Olinda e do Recife e ordenanga da terra. Abalou-se cle com mil homens, sendo a maior parte necessariamente indios, resolvido a Mi Ibid, p. 23, 8 Tbidom: 8 Mbider, 76 passar de caminho pelos Palmates, supondo-se assés forte para sem mais preparativos dar conta da empresa. Da natureza das guerras em que até agora andara Ihe havia esta presungao sem que olhasse a diferenga entre o caréter do fndio e do negro”. Southey prende-se a uma tipologia de caracteres, sem perceber que os indios, neste caso, estavam Iutando por uma causa que no era sua, destribalizados, semicristianizados ¢ semi-escravizados, enquanto os nezros de Palmares estavam orgenizados socialmente para defenderem a sua liberdade e, por isto, o potencial de resis- téncia militar era muito superior aos primeiros. ‘Ainda baseado em Rocha Pita, escreve que “s6 0 aspecto da cidade, que tal nome merecia, bastaria para convencé-lo do seu erro, Dupla estacada do mais rijo pau que produzem as florestas do Brasil, fechava um circufto de quatro a cinco milhas uma populagéo de mais de vinte mil pessoas [no segundo volume Southey avalia a sua populagio em trinta mil pessoas). Muitos Baluartes fortificavam as obras de defesa: trés tnicas portas haviam, postas a iguais distincias, cada uma com a sua plataforma, guardada constantemente por um dos melhores oficiais", Para ele, Domingos Jorge Velho assentou a sua tropa como “quem olha uma raga inferior”. Tanto os palmarinos como as tropas do bandeirante ficaram se estudando, durante dois dias, para yer quem atacaria com vantagem. “No terceiro dia andava fa gente dele entretida em saquear um bananal, quando os negros fizeram uma sortida em grande forga. Reuniu Domingos Jorge Velho como pide a sua tropa e batewse com a sua costumada intrepidez, seguindo-se to renhido combate que de uma e de outra parte houve mais de oitocentos mortos ¢ feridos. Nesta ago — continua Southey — aprendeu cada bando a respeitar o seu anta- gonista, e Jorge dew-se por feliz com poder retirarse em boa ordem sobre Porto Calvo". Esta retirada de Domingos Jorge Velho, que jamais sentira a forca do inimigo obrigé-lo a recuar estrategicamente para se reordenar militarmente, determinou uma rearticulago da mobi 7 zagio para a destruigio de Palmares em nivel de uma expedicao militar como nunca fora organizada até entéo. Diz ele que agui se rouniu wma forga de sel mil homens as ordens de Bermardo Vieira de Melo, 2 qvem por fer derotado © ex rinado um desiacameno’ grande dests negtos se dera o co ‘mando, Olinda, Renfe a8 vila dagiela banda tnham leva: tao tre mil homens, incisive dos repimentoe de linha, of Iemndose mtn dor mat se moradors i nin exe edo, como alunos Ab Alngoes, S, Francisco do Peneto, 5. Milel © Alagoas do Norte fomeceram mil e quinhentos Porto Calvo ¢ a divsa paisa presncheram’o ndmero, Alera estavamenietano o8 neprossvsados do petigo que vs amee cara el rita prema native abound fxs Op sous moeambos e desirinds fora do elelto quanto podia servir de alimento ao inim concentraram na ‘dade. toda a sua fora, quo se dz tet subi a dez mil eombatenes. 3¢ E prossegue descrevendo a guerra dos Palmares: {...] assim 0 oxérto portuguts, fol sem demora acampar Ainnio dar forticages, postandoss Bemardo Viera detronte Gx porta do meio, © pasta delronte da que ficeva divite do general, c 2 eaquerda 0 sargentomér Sebasfo Diss, que comandava 9 diviio dst Alagons. Provides de eecias inte Fam as tropa esalr 9 preg, mes foram rechayades com come Siderdvel pera, fendo se empregedo na dfesa seis, dua ¢ fewver, armas de fog, © feehos. Ein poucos dias exauriram as ste munigSes of nogror, com 0 se trio de conirabando tio se podiam ‘arse provide do qusntdede bestante para temelhante creo. Por outo lado tinhamn vindo sem arthur os portogests, que debale tenavam forar as ports © ron per pla estecodarnssen silts perderam muita gene ste gue enviaram mensageies ao, govetnador, pedindo reforo © Cake, som of quaisimposivel seria entrar « brag Depois de contar diversas particulatidades militares da guerra © os reforgos que os bandeirantes e portugueses receberam de Penedo e a alegtia que isto despertou nas tropas que sitiavam Palmares, vem 0 desfecho, Os sitiantes, 36 bid, p. 25, aT Ibidem, 18 com 0 socorro que pelo mesmo tompo receberam, tentaraim de hove romper a machado a estacada, pouca resisténcia Ihes fpuseram. Vendo forgadas as trés portas, retirow-se Zumbi com Tesolutos dos seus sequazss para a coroa da rochs, © Gali, preferindo a morte & escravidio, arremessaramse 20 pre- tipido [...] Homens dignos de melhor sorte pela sua coragem pela causa que combatiam, Estava o governador a ponto de Sair do Recife com um reforgo de dois mil homens e seis pogas de ertlharia, quando The chegou a notfcia da conquista, pare. tenco esta de tal importineia que das janelas do pago do governo se atirou dinheiro, e em sgio de gragas saiu uma pro- tissio pelas runs da cidade, Nas suas conseqiiéncias para os Vencidos essemelhouse esta guerra as da antigiidade, sendo redvzidos & escravidfo todos os sobreviventes. Separouse para ‘2 coroa um quinto e o resto repartiuse como presa pelos sol- dades, sendo transportados para as partes remotas do Brasil ‘ou pera Portugal todos os que pareceram capazes de fugit ou de vindicar a sua liberdade, Ficaram em Pernambuco as mu Theres © as etiangas cruelmente separadas de seus pais umas, dos matidos a8 outras. A necessidade de extirpar fronteiras semelhantes inimigos € clara e indisputével, mas nascera do nefendo sistema da escravidio, © por certo poderseia com ‘mais humanidade ter usado de vitéria. 38 Como podemos ver, Southey no acrescenta quase nada a Rocha Pita, inclusive repetindo a lenda do suicfdio de Zumbi que documentes posteriores desmentiram cabalmente. Outra parti- cularidade no texto é @ pouca relevancia que ele dé a Domingos Jorge Velho e & sua tropa mercenéria. Termina a narrativa sobre © destino dos prisioneiros com uma impressio humanista contra 1 esctavidio, no propondo, no entanto, nenhum projeto de orde- ago social capaz de substitut-la Isto porque, mesmo a distiincia, ele tinha posiggo idéntica & de Rocha Pitz, considerando 0 esctavo negro como mercadoria. Quando da epidemia da bexige, na Bahia, ele afirma que “muitos engenhos do Recéncavo perderam todos os seus negros, ficando abastados proprietitios reduzidos de chofre a irremedidvel pobreza. ‘Tio grande foi a mortalidade que faltavam bragos para a lavoura: seguiram-se muitos anos de fome, ¢ Rocha Pita, cerca de meio 58 bid, p. 26. 79 sésulo depois, deslarara que os efeitos dest flagelo se sentiam ainda”, Como se pode ver o flagelo nfo foi a morte do negro, mas a perda do escravo, conforme jé vimos em Rocha Pita, e o empo- brecimento conseqiiente dos senhores do Recéncavo. Tanto em Rocha Pita como em Southey o que vemos nao é a valorizacio do homem negro, mas a contabilizagao dos prejuizas que a morte do escravo proporcionava ao seu senhor. Southey refere-se a composiedo demogréfica da Bahis cor, da seguinte maneira: pela 39 Robert Southey, op. cif, Vol. IV. p. 169. 80 cultivar, comprave escravos para viver do trabalho deles, © feigindo de cada um certa soma por semana, nJo curava mais eles, deixando-os que como pudessem provessem i propria subsisténcia e arranjassom o seu jornal. Se nfo ganhava 0 pre- iio, como necessariamente por vezes havia de acontecer, ow fe perdiam 20 jogo o que haviam ganho (porque neles’ era peixio 0 jogo), recorriam estes desgragados aos roubo © a0 fasassinato; © embora os magistrades punissem com grande se veridade estes crimes ({alvez os Gnicos que tinham algum cas- tiga), eram tio freqiientes que sem perigo se nfo percorriam as russ depois da noite fechada, Assevera-se que senhoras de allo coturno ornavam e enfeltavam as suas escravas para me- Thor prostitutlas, recolhendo © torpe ganho que deste oficio the plovinh. As priticas obsorvadas nas diferentes ilhes produto- fas de agGear tornam erivel esla e qualquer abominagio re Southey, por incrivel que patega, antecipou-se na interpreta- ¢fo de dois aspectos da escravidio que alguns historiadores e soci6 logos recentes tentam refutar ou interpretar de maneira idealista, © primeito é 0 significado do escravo de ganho e 0 outro é 0 da prosti- tuigdo institecionalizada via direito consuetudinétio nas relagbes dos senhores e senhoras com suas escravas, obrigando-as a0 comét- cio sexual. Atualmente, uma corrente histotiogréfica, obviemente influenciada pela ultima etapa da obra de Genovese, nos Estados Unidos, procura ver no escravo de ganko um homem metade escravo metade livre, como se isto fosse sociologicamente possivel. ‘A mesma coisa quanto a prostituigio. Partindo de uma posig&o normativa e preconceituosa quanto A prostituigio, esses historia- dores querem ver na classe escrava a existéncia de uma familia nuclear orgaaizada de acordo com os padr6es dos senhores, ou seja, uma familia legalizada pelo casamento catélico, tnico perm lo na época, Essas duas idealizagdes do regime escravista estio imbticadas numa revisio idealista que deseja projetar no passado escravista os padrées supostamente ideais atualmente, tanto da posico do negro de ganho quanto da existéncia da prostituicao imposta pelos senhores e senhoras s stias escravas, Para provarem {sto interpretam microestatisticas, especialmente da area de Minas Gerais, tentendo, através dessa metodologia refinada, ¢ enganosa, 8 bid, p. 28 81 esconder 0 Tenémeno do imobilismo social que as classes domi- nantes, quer durante o escravismo, quet atualmente, impuseram a0 negro brasileito. Southey, na esteira de um raciocinio liberal, antecipa-se tam- bbém a tese da democratizago via miscigenacio. Diz neste sentido que “com o seu limitado territério e escassa populagio nfo podia Portugal seguir a injusta e ciumenta polttica dos espanhdis depr mindo os crioulos para té-los mais sujeitos [. ..] Tao respeitado, tao elegivel pata todos os cargos eta o mameluco, como o homem de sangue inteiro, como o natural da mae patria, Nenhuma lei degra- dava 0 mulato ou o negro livre, nem to pouco a opinigo piblica © fazia e assim se ia operando silenciosamente essa amalgemacio de castas ¢ dores, que quaisquer que sejam as convulsées por que tiver de pasar o Brasil, o livrard da mais cruel das guerras civis”. ** Neste particular, como vemos, embora mais realista e nao indicando a famosa predisposicao do portugués para manter rele- ‘gGes sexuais com ragas “exéticas”, mas, pelo contrétio, expondo as particularidades de Portugal (tervit6rio limitado ¢ escassa popu- Iago), Southey traca a proto-histéria da democracia racial no Brasil de tal forma que o seu pensamento coincide no particular com o de Gilberto Freyre exposto na década de 30 no Brasil Procura retratar, também, os mecanismos que influfram na substituigio da escravidio indigena pela africana, via companbias de monopélio, escrevendo que as companhias do Maranhio ¢ Pernambuco foram especula- (es desgracadas, para os que nela se envolveram, mas 0 objeto principal. do ministro conseguiu-se, dandose com a splica do enorme capital que os administradores empregaram, mals com vistas no préprio luero do que no proveito dos acionistas, grande e repentino impulso & agricultura e a0 comércio. Sen- tise isto especialmente no Maranhio onde exatamente por falta de capital poucos negros tinham até entdo havido. Impor- taramse agora muitos, sendo uma das conseqiiéneias imediatas guardaremsse as leis a favor dos indios por serem os negros raga mais robusta, mais dada a0 trabalho, mais ativa ¢ intel gente. Assim se trocou uma escravidio por outra, transferin dose da América para a Aftica o sistema de roubar gente, com 8 1bid, p. 26. 82 ¢ acréscimo dos horrores da passagem de poriio: algum bem Fouve contudo na mudanga, tanto imediato quanto em pers reetiva, O principio estabelecido em favor dos indios ilo fodia ser menos aplieével a respeito dos negros, precedente fara que 05 bons corapées poderiam spelar 20 seu tempo. A jntrodugio de tantos bragos robustos produziu visivel melho- ramento, e embora of moradores do Par e Maraniyto fenham sido of ltimos a reunirse da imputacio de crueldade para ‘com seus eseravos, aumentou-se de tempos a tempos consid! telmente © nimero de homens livres, acorogoando a religiio f emancipagio, favorecida também pelas leis do pais. «2 © fundamental no pensamento de Southey é que a substi tuiggo da escravidio {ndigena, muito mais barata, pela africana, tinha como pano de fundo os interesses das grandes companhias de navegagis que monopolizavam o comércio maritimo. Sem este suporte que inaugurava o tréfico trifmgular como mecanismo regu- gulador dessa substituigao, os indios poderiam continuar sendo escravizados como nas colénias espanholas. Evidentemente que © autor nfo desvendou esta operacio na sta esséncia, mes nos det: elementos para compreender por que os negtos africanos, a partir de determinada época, passam a ser “os pés € as maos” dos senhores de engenhos, da classe senhorial, enfim. Concluindo, queremos dizer que Southey viu os escravos negros como simples mercadoria e postou-se sempre ao lado dos seus possuidores, lamentando a sua perda quando, pot um fato incontrolivel (febre amarela, bexiga, ctc.), cles morriam, desfal- cando 0 plaatel do seu proprietirio, embora usasse algumas vezes de uma linguagem aparentemente humanista, especialmente quando demonstrava a participacdo da Igreja Catélica na justificagio do sistema escravista ¢ na inferiorizagéo do homem negro. Vol. Vi. p. 82 ABREU E LIMA: 0 NEGRO E A LUTA DE CLASSES Bm 1855 José Indcio de Abreu e Lima publicow uma bra in titulada Bosquejo histsrico, politico e literdrio do Brasil, pela tipo- grafia Niter6i de Rego e Companhia, Militar e politico, era filho do famoso Padre Roma, fuzilado em Salvador, ¢ a cuja execucdo fora obrigado a assistir, Nasceu no Recife em 6 de abril de 1794, in- gressando ns carreira militar por influéncia do pai, saindo, em 1816, com o posto de capitéo de Artilharia. Faleceu em 1868. José Honério Rodrigues afirma ser Abreu e Lima “o menos grave, o mais irreverente dos historiadores brasileiros. Talvez se possa até dizer, sem esquecer as suas grandes qualidades de espi rito, de inteligéncia, de ago e experincia, que apesar de sua obra hist6rica, no chegou a ser um historiador” * Isto, po:ém, ndo impede que o mesmo historiador afirme que Bosquejo histérico, politico ¢ literdrio € um livro de extremo interesse para o historiador do século XIX, tal a originalidade e justeza das cbservacdes ¢ a seguranga da critica. Estuda a escravi dio, a difereaciagio de classes, a importincia dessas nas Jutas poli- ticas, a preponderincia de uma sobre a outra, traga o estado moral da nossa vida, critica os futuros ufanistas, ao dizer que 0 maior dos nossos males, germe da nossa apatia, vem das parvonices dos que vivem Iouvando “a terra privilegiada, o clima delicioso, a natu- reza fecunda em cujo seio se vé obrando, a cada passo, o dedo do criador. Abreu e Lima esboca realmente neste livro o quadro geral da situagio brasileira por volta do tereeiro decénio do séeulo XIX, nossos males sociais, politicos ¢ culturais”, ® "José Honéria Rodtigues, Histéria ¢ historiadores do Brasil (St0 Paulo: Ed. Fulgor, 1965), p. 62, 2Ibid,, p. 64. José Honério Rodrigues destaca, por outro lado, 0 pionei rismo de Abreu ¢ Lima quando escreveu O socialismo, entre 1852 © 1854. Afirma que “com s epigrafe de O socialismo a frase de G, Molinari (1819-1912): ‘L’Eeonomiste, Ni SaintSimonian, ni fourvieriste, ni cabetiste, 85, Em outra obra, José Hondrio Rodrigues analisa a ditadura do Instituto Histérico em relagdo & orientagdo da historiografia bra- sileira, procurando estabelecer uma periodizagéo de acordo com aqueles valores tradicionais, via valores imperiais. Diz ele que “na verdade, porém, quem primeiro coneretizou a idéia ventilada no Instituto Histérico foi o General José Inécio de Abreu e Lima, no seu Compéndio da histéria do Brasil. Numa carta ditigida 20 Ins- tituto Histérico, apresentando seu livro & douta associagao, Abreu Lima escrevia: ‘Uma coisa resulta do meu compéndio ¢ é quanto basta para darthe algum valor. Tudo quanto existia escrito acerca do ‘ni proudhonien, Eh! qu’éstes-vous done? Le Socialist. Je suis socialiste™ [...] Abreu e'Lima explica que o ‘socialismo no é uma ciéneia, nem uma doutrina, nem uma religiio, nem uma seits, nem um sistema, nem lum principio, nem uma idéiay ¢ mais do que tudo isto, porque € um designio da providéncia', Consiste ‘na endéneia do género humano para tornarse uma sé ¢ imensa familia’. Condena as doutvinas de Fourier, Saint Simon © Owen, pois sio ‘aberragdes do espirito humano, excre- céncias, que vio desaperecendo pelo atrito na rotagdo do genero humano sobre si mesmo, Entretanto concorrem todos para a regeneragdo universal, pela regra de que Deus escreve certo por linhas tortas’. No capitulo sobre "O que quer dizer socilista’ explica Abreu e Lima ‘que stualmente se denomina socialista todo aquele que apresenta uma inovagio na ordem social existente, ow atace qualquer das idéias recebidas acerca desta mes rma ordem social’, Accita 2 desigualdade social, protesta contra chamarse propriedade de roubo, diz que os comunistas estio possuidos antes de 6dio que de filantropia, Todos eles tém por fim a reabilitagio da carne por meio dos goz0s e prazeres materiais, todos desconhecem 0 dogma cristio do livre arbitrio, todos tomam por base a antitese da sociedade atual, isto é ou a espoliagio da propriedade ou a extingfo da familia, fe, finalmente, todos tendem para o regresso da civilizagéo_atual. Nés estivamos um século atrés da Europa e a grandeza norteamericana, que enti jd comegava a esbogarse, era devida no s6 a sua origem anglo- saxéniea como protestant [Na verdade, Abreu e Lima desejava diseutir um tema que comesava apaixonar os europeus. Sé neste sentido ele & pioneito, porque sua explicagio sobre a esséncin do socialismo e seu ingénuo © palavroso com- bate as correntes moderadas de Saint Simon, Fourrier © Owen, numa Gpoca em que Proudhon jé avancara em relagio aquslas ¢ Marx jd de- rnunciara Proudhon e proclamara e Manifesto comunista, evidencia que cle nfo conhecia realmente o socialismo, nem ler at obras dos socialists, moderados ou avangados” (p. 64). 86 rasil era sem método nem plano algum histérico, Em um ‘montio de fatos atirados a0 acaso, sent diseriminagdo de Grocas e periodos. E tanto 6 assim, que o Instituto hd pouco s¢ ocupot desse objeto, tratando, antes de tudo, de triangular © terreno sobre que devia um hébil corégrafo tragar a corla da ‘possa histéria". Dizia entdo que nfo havendo o Instituto de- ‘idido definitivamente essa importante questio, tomara a reso- lage de fa28-lo no seu compéndio, adotando cite épocas ou capitulos em que dividie a histérla patria até» corosgio de D. Pedro Il Acrescentava: “Bis as cores com que distribui as épocas: 1) — Descobrimento. As primeiras exploragbes. Estado fisico do pais; 2) Colonizagio; 3) Transi¢ao para o dominio estrangeiro; 4) Volta a0 dominio pétrio, Guerra dos holandeses; 5) Estado da coldni Melhoramentos. Administragao interna; 6) Estabelecimento da Corte no Brasil. Administragao del rei; 7) Independéncia. Admi nistragio do Primeiro Império, 2) Menoridade. Administragio da Regéncia. A maioridade”. * Como fica implicito, essa periodizagao ainda nio via a escra- ldo negra como um problema histérico que deveria refletirse nessa divisio historiogrdfica. No entanto, na época em que ele esereveu 0 s2u Bosquejo, ou 0 seu Compéndio, isso néo seria pos- sivel; mas, por outro lado, teve oportunidade de analisar a situa- glo do escravo negro dentro de uma perspectiva de choque de interesses com a classe senhorial. Referiuse a esse problema que era negado, escamoteadlo ou mesmo combatido da seguinte ma- E caso em um pals onde os cidadios resistem a todos os tmeios legais de destruir o flagelo da escravidio, onde es leis 0 inefleazes para minorar o mal que nos aflige, onde tudo conspita a perpetvar a misétia de nossa posigio social, que se ineuleam principios de uma liberdade sem freios, de uma fide: tanga popular de uma perfeita democracia? [.--] Que somos todos adversos e rivais uns dos outros ne proporgda de nossas respectivas classes, niio necessitamos de Ergumentos para provélo, basta que cada um dos que lerem tste papel seja qual for @ sua condiglo, meta @ mio na sun ‘José Honério Rodrigues, Teoria da histéria do Brasil (Introdugdo metodo. Iggica), 2 vols, (Sio Paulo: Cia, Editora Nacional, 1957), 1” voly p. 135. 87 onscigncia ¢ consult os sentimentos do seu priprio coragio, ‘A nossa rivalidade para com os adotivos nasce da condigio {que ndo é peculiar a nés outros unicamente; ela esté na gene ralidade dos povos que foram colonos, com respeito aos que foram metrépoles: uns porque néo permitem superiores. os foutros no se sentem iguais. A mesma razio se di com ros peito aos mestigados; nés no admitimos a igualdade por efeito de habitos arvaigados, talvez por nossa educagio: eles no tole- tam superioridade, porque sto homens como nés, nascidos no mesmo solo, e filhos dos nossos préprios pais; embora a lei 0s nivele e assemelhe, 0 habito € as preocupagées inutilizam seus efeitos. Os nogros sinda se acham em maior disténcia pela sua condiglo, e pela de que ainda se ressoniem da escra: YVidio, que suporteram cles mesmos, os seus progenitores, mas esta injusta opinio nfo basta para amortecer no coracio de tum negro a dignidade de seu ser, considerado como individuo da espécie humana. Sio injusias, na verdade, todas estas preo ccupagses, slo itritantes todas essas rivalidades; porém elas exis: fem € contra fatos nso pode haver argumento. # importante assinalar como no trecho acima Abreu e Lima antevia, embora de forma imprecisa, a ligagdo da luta de classes hho Brasil & luta racial, mostrando como no sistema de estratifi- cago da época, 0 negro e 0 mestico eram discriminados nao apenas pela sua situago social, mas, igualmente, pela cor da sua pele. Levando-se em consideragao a época em que a obra foi pu- blicada, em pleno fastigio da economia escravista e dos seus inte- lectuais orginicos, como Varnhagen, ele representa uma anteci ago, Com todos os defeitos que so apresentados nos seus livros, Abreu ¢ Lima, talvez pela sua préxis politica ¢ militar em outros paises, destaca-se como um antecipador em relago aos demais historiadores oficiosos do seu tempo. Muito dos “defeitos” des- cobertos na sua obra foram assinalados pelos historiadores sulicos do imperador e idedlogos do sistema escravista, No entanto, apesar dessa visio intuitiva do processo de luta de classes, Abreu e Lima era também condicionado pelos valores do seu tempo, daf nfo ter encontrado aquela saida para 0 problema apontada por Marx € Engels em 1848, na Europa industrializada, e onde essa luta era ‘muito mais transparente 4 Apud, Bdison Carneiro, op. cit. p. 144 88 fato de Abreu Lima intuir a Iuta de classes como um cle: mento da dinémica social nfo quer dizer que ele foi um precursor da concepedo materialista da histéria. Seria ingénuo pensar assim. Muito antes de Marx os chamados historiadores da época da Res- tauragio entre 1820-1840, restauracio do realismo na Franca depois da queda de Napolefo, como Quizot, Thierry © Mignet, jd manipu- lavam o conceito de Iutas de classes para explicar a passagem do feudalismo paca o capitalismo, sem que isto implicasse, da parte dos mesmos, posigées revoluciondrias no campo politico. Muito pelo contririo. O fato de Abreu ¢ Lima ter mostrado as contradigdes de classe da sociedade escravista brasileira ndo entra em choque com a sua posigo de monarquista, Ao reivatar a sociedade brasileira na base da contradi¢ao senhor versus escravo, colocando as diver: sas combinagées étnicas no como um fator de harmonia, como queria Southey conforme j4 vimos, mas como fator de choque, estava se antecipando, nao ha diividas, aos historiadores tradicio- nais do seu tempo. Mas isto no o coloca como um precursor latino: americano de Marx de acordo com o que tetia dito Gilberto Freyre sobre 0 assunto, segundo expde 0 historiador Luis Carlos Lopes no livro O espelho e a imagem. Mas 0 autor ao fazer tal afirmativa remete-nos nfo ao texto de Freyre, mas ao de V, Chacon. Gilberto Freyre limita-se a dizer, complementando argumentos do Prof. Paulo Hugon (para o qual nfo era 0 conceito de lutas de classes original de Marx) que & eportuno recordarmas aqui o nome de um precursor bras leiro da referida idéin de ‘Iuta de classes’. J. 1. Abreu © Lima fem seu Bosquejo histérico @ politico (Rio, 1835) — livro injus- tamente esquecida — escreveu aquele pernambucano. compa ‘nheiro de Bolivar nas lutas pola independéncia da Colombia f Venezuela, que o Brasil do seu tempo tinha sua populagio dividida em duas partes: "[...] pessous livres & pessoas esert 5 Luis Carlos Lopes, O espelho e a imagem, ct Conf, Vamireh Chacon, Histéria das idéias socialistas no Brasil (Rio de Janeiro: Ed, Civilizagio Brasileira, 1965), p. 56, onde se le: “Gilberto Freyre prociamoo precursor do proprio’ Marx”. No entanto, nfo [oi isto que Gilbeto Freyre quis afirmar ao dizer que ele fot um precursor da lula de classes, 0 que & bem diferente, Entre ser precursor da lula de classes e ser precursor de Marx vai uma grande distancia 89 vas, subdivididas em quatro © todas tio opostas e inimigas tumas das outras como as duas segdes entre si” [...] Que somos todos inimigos e rivais nas proporgées das nossas res: pectivas classes, nfo necessitamos de argumenios para pro- © texto de Freyre, se analisado em seu conjunto, mostra, apenas, continuando 0 pensamento de Hugon, que Abreu e Lima também usou o conceito de luta de classes no seu livro, coisa que outros jé haviam feito, sem que isto os qualificassem como pre- cursores do marxismo, Em um texto pouco conhecido (carta a Way- demeyer de 5 de margo de 1852) Marx afirma: No que me diz respeito, nenhum erédito me cabe pela des- coberta da existéncia de classes na sociedade moderna ou da uta entre elas, Muito antes de mim, historiadores burgueses hhaviam deserito © desenvolvimento histérico da luta de classes © economistas burgueses a anaiomia econmica das classes. que fiz de novo foi provar; 1) que a existéncia de classes somente tem lugar em determinadas fases hist6ricas do de- senvolvimento da produgio; 2) que a luta de classes necesse riamente conduz a ditadura do proletariado; 3) que esta mesma ditadura no constitui senfo a transiglo no sentido da aboli e todas as classes e da sociedade sem classes. 8 Ao constatar, com justeza, que Abreu ¢ Lima havia trabalhado com 0 conceito de luta de classes em seu Bosqueiro, Luis Catlos Lopes escreve que “para defender o Império, Abreu ¢ Lima cons- truiu uma interpretagao da sociedade brasileira. Ele considerou a oposigdo senhor versus escravo como a esséncia da nossa forma- gio. Por isto Gilberto Freyre afirmou que ele seria um precursor latino-americano de Merx, por ter usado a categoria ‘luta de classes’ tem seus estudos. Sem sombra de divida, o contempordneo corifeu de nossas citneias sociais cometeu um exagero. José Honétio Ro- drigues, mais modestamente, afirmou que 0 autor teria chamado a atengio para a ‘luta de classes’ no Brasil. Os dois casos parecem- nos exageros critico-ufanistas”.* 7 Gilberto Freyre, Sociologia, 2 vols. (Rio de Janeiro: Ed. José Olimpio, 1945), 2" volume, p. 71 8 Karl Marx, Selected Correspondence, carta a Weydemeyer. p. 63 8 Luts Carlos Lopes. op. cit p. 41 90 Concluindo, desejamos afirmar que 0 fato de um historiador manipular — como € 0 caso de Abreu e Lima — 0 conceito de uta de classes néo 0 coloca como um precursor do marxismo. Ao se afirmar que Gilberto Freyre e José Honério Rodrigues, a0 cons- tatarem esse fato, cairam em “exageros critico-ufanistas” € repetir preconceituosamente uma tendéncia nova da historiografia brasil ra, que qualifica como ufanistas todos aqueles trabalhos que pro- curam restaurar a verdade do nosso pensamento histérico e social. Fruto de uma certa visio universitéria que procura uniformizar as diversas vertentes interpretativas da nossa sociedade ¢ da nossa evolugdo histérica, esse pensamento tem conseguido desviar a aten- G40 de historiadores de incontestaveis méritos para as suas posi- ges neutralizadoras da dindmica interna da produgao historiogi fica nacional a VARNHAGEN: UMA VISAO ARISTOCRATICA DA HISTORIA SEM PASSAPORTE PARA O NEGRO E O ESCRAVO Francisco Adolfo Varnhagen foi o autor que executou, inques- tionavelmente, a maior obra historiogréfica individual de todo o periodo colonial do Brasil, nessa rea de conhecimento. Ela foi projetada como um trabalho monumentalista e detalhista ao mesmo tempo, valorizando, em primeiro plano, a atuagdo dos administra- dores, donatirios, capitiies-mores, bispos, capitiies-generais, gover- nadores, clérigos ¢ altos burocratas; no segundo plano situa e des- ereve 0s fndios, pequenos colonos, negros e esctavos, compondo fa galeria dos demais segmentos ou grupos subalternizados © as suas respectivas posigdes na sociedade. Para empreender tal projeto, preparou-se através de pesquisas em fontes € cocumentos inéditos, no Brasil e no exterior, foi um atento analista das mindicias desses documentos e escrupuloso na verificago da sua autenticidade. Um dos seus criticos escreve que “a aparigo, em 1854, da Historia do Brasil, de Varnhagen, que se preparara a essa obra fundamental por uma longa série de tra- balhos ¢ de pesquisas, bastot para classificar 0 autor do primeiro plano e justificar o titulo com que 0 consagrou a posteridade, — ‘o pai de nossa historia’, * Para isto, como jé dissemos, especializou-se antecipadamente e durante toda a vida dedicou-se a esclarecer fatos, através de uma documentacao rica e muitas vezes inédita; procurou desfazer davi- das factuais dos que 0 antecederam e deixou como legado um precioso repositério de informagSes de inquestionavel valor sobre © nosso passado, "Fernando de Azevedo, A cultura brasileira (4° edigdo, Brasilia: Ed, Uni- versidade de Brasilia, 1963), p. 347 95 Por outro lado, a visio que ele tinha desses fatos histéticos © especialmente, do seu processo dinimico e as forgas que 0 impulsionaram, baseava-se numa concepgfo te6rica clitista, atisto- crética, destacando como causas do nosso devir a ago dos grandes homens, das personalidades eminentes e dos grupos de poder das elites, Toda a sua obra reflete 0 desejo de demonstra que as personalidades que mantinham 0 poder eram os agentes sociais ¢ ist6ricos que conduziam (este € 0 termo exato) 0 processo de insformagio, 0 “progresso” da nossa sociedade. Esta visio levou-o a ver a plebe, indios, os negros escravos, foros, caboclos, pobres em geral, e, por extensio, dentro de uma visio da composi¢éo étnica dessas populacdes, os negros, indios, mulatos, curibocas, mamelticos e outros segmentos e grupos nao. brancos como uma borta desequilibradora, instrumentos pat que se interpunham a0 equilfbrio do conjunto, e, por isto, eram fatores de atraso, desequilibrio, desordem, contradicéo entrave a0 seu dinamismo social. Toda a estrutura tedriea da sua obra fundamenta-se nesta visio e podemos dizer que, por essas razées, claborou um trabalho no qual esses atores anénimos ficaram na penumbra quando entram em cena, ou sio estigmatizados, criti cados ou mesmo condenados. & uma histéria que vé a dindmica social do Brasil como fruto da classe senhorial e das suas estru- turas de poder: administeativas, pol sas € militares. Para Silvio Romero ele € até © presente 0 segunde em mérito das nossos historiado- Fes. E esse merecimento the vem da erudigio séria, do estudo direto los documentos nos arquivos, nas bibliotecas, nos car ‘6rios; e mais de nio se ter limitado fazer pequenas mono. grafias © sim de ter levado ombros 2 emprosas drduas, & his \oria geral do pais e & histéria de duos faces de sua vide. das luias com os holandeses © a da independéneis, A atividade do escritor em Varnhagem foi verdadeire ‘mente notivel; fez mais de cem publicagdes, entre livros, [o- Thetos, opGsculos e folhas avulsas, nas diferentes cidades onde habitou, ou se demorou algum tempo, Rio de Janeira, Lisbos. Madr, Caracas, Lima, Santiago do Chile, Havana, Estocolmo. Paris (...J.2 Silvio Romer neiro: Ed. fo Historia da literatura brasileira (5.° edigéo, Rio de Ia- Olimpia), vol. 5, p. 1676. 4 Continuardo a anélise da sua obra, ainda Silvio Romero escreve que “estes métitos, cumpre ter bem em vista, em honra do nosso historiador, sfo: a erudiggo de primeira mao, 0 exame dos do- cumentos ¢ dos textos, 0 cutidado de tudo examinar por si, afastando fas opinides feitas muitas vezes sem base”. * Todo esse cabedal empirico de conhecimento estava subor- dinado, porém, a uma visto atistocrética ¢ elitista, Capistrano de Abreu — por sinal um dos seus admiradores — aponta essa limi- tagfo na sua obra, escrevendo que de expirito plésico e simpitco — cis 0 maior defeito ‘conde de Porto Seguro. A histria do Brasil nfo se the sfigurova um todo soldiso’ e.coerent. Os prédomos da fos emancpagio plea, os ehsslor do afrmaglo hacional ve, porvezespevtorian’ at ‘ibras_ populares, enconttm- fo eevero e ale prevenido, Para ele, a Canjuragio Minera € tm cabegada e un conluio; 2 Conjaragio Bata de Joso de Deis, un calaclisme de que rend gracas 4 Providéneia por fou er lvndoy o eveloso,peroabcana do 17, ave ande_calamidads, um exime em que 26 tomsram parie ho- tnete do Iniligéncia estrella, ou de card pouto”elevado. Sen D. Pedro 1 independtncia seria legal, ‘legitine, subver tia, aigna da fore ou do ful. Juiz de Tiradentes © Gonzaga, tis nfo teria hesiado em assinge a mesml slenga que 0 de. Semmbargador Diniz c seus colegas. 4 afl do © mesme Capistrano aponta as suas limitagGes te6ricas afir- mando que penn que ignores ou desdonhasse 0 corpo de doutins tvfdoras que nee limes anos se contr em einen so8 ome ee soeiaogi. Sem eae echo luminor, cle no pods Yet mde por gi ebrn 6 vie soi, em se aa es que liga of momentos sssesves da vida de umn pove Sie pouiam sera em seu espinto de modo 2 exlrecer ts alferentes feigoer © fntores rexiprocamente. Ele poder sea Yar dovumenton,demonsiacihes a avenida, solver nig Ins, ssvondar misters, nade dix que Taver 9 res ses tors no Torono dos fats" compreendet pore, st fats em * Ibidem ‘Capistrano de Abreu, Ensaios ¢ estucos (1 série) (Rio de Janeiro: Ed. Civiizagio Brasileira, 1975), p. 88. 95 suas origens, em su ligagio com fates mais amplos ¢ radi eais de que dimanam; generalizar as ages e formular-thes Teoria; representivias como consegiiéncias e demonstragées de dduas ou tFés leis basilares, nfo conseguiu, nem consegulo-a, # Nasceu Francisco Adolfo de Varnhagen em Sio Joao do Ipa- nema (atual cidade de Sorocaba, Séo Paulo), em 17 de feverciro de 1816. Seu pai foi o tenenteoronel Frederico Luiz Guilherme Varnhagen, oficial alemio, que veio contratado para o Brasil com a incumbéncia de dirigir uma fabrica de ferro de Ipanema, Apés a independéncia, retirou-se para Portugal com a familia, tendo © futuro historiador ali permanecido até fins de 1840. Depois de ter cursado 0 Colégio Militar e chegado 0 posto de 2° tenente de artitharia, regressou ao Brasil no final daquele ano, onde pro- curou imediatamente fazerse reconhecer cidadio brasileiro, o que conseguiu pelo decteto de 24 de julho de 1841. Abragou aqui a carreira diplomética, tendo, nessa qualidade, percorrido diversos paises como Espanha, Paraguai, Venezuela, Equador, Peru, Chile © Austria. Faleceu em Viena no dia 29 de junho de 1878 A Histéria geral do Brasil divide-se em cinco volumes (5. edigo integral), que sio subdivididos em LIV secdes (capitulos) que tratam do perfodo que vai do nosso descobrimento até a independéncia, O estilo ¢ claro, mas um pouco prolixo, O autor acrescenta ao texto vérias notas de rodapé, todas as vezes que julga haver necessidade de esclarecer o leitor sobre algum pormenor, ou transcrever e remeté-lo as fontes priméias. Em raziio do monumentalismo do projeto, que correspondia a uma homenagem, um monumento as estruturas de poder domi- nantes na época, Varnhagen foi o pontifice da historiografia do Brasil colénia, até a independéncia. Foi, por tudo isto, amigo do imperador D. Pedro II, beneficiado com misses no exterior © agraciado com o titulo de visconde de Porto Seguro, Do fngulo particular em que nos colocamos, devemos analisar como esse autor to elogiado pelos seus contemporfiness ¢ pelo mundo politico da época, via a figura do negro ou como o simbo- lizava e qual o papel social que apontava no eseravo. # bid, p. 90. 96 Neste particular Varnhagen nao foge & regra dos historiadores que o precederam, como Frei Vicente do Salvador, Rocha Pita, Armitage e outros. Pelo contrério, Na sua visio conservadora, a escravidio negra era uma instituicéo normal e moral, chegando a condenar a hipocrisia de Bartolomeu de Las Casas em favor dos indios, chamando-o de “negreiro”. Mas, ele néo se limita a isto. Desenvolve tcda uma filosofia justificatéria da instituigfo, con- forme veremos oportunamente. O seu pensamento era o mesmo do Instituto Hist6rico e Geogréfico do Brasil na sua época ¢ repro- duzia aquela ideologia de intelectuais orginicos reflexa da escra- vidio. © plano de Varnhagen era ambicioso: escrever uma histéria abrangente, a partir da descrigao geogréfica do Brasil, para depois entrar na do homem ¢ a sua aventura, Daf iniciar com a descrigio geral da terra brasileira em toda a sua extensfo, riquezas do subsolo, florestas e vegetagdo em geral, clima; finalmente toda a coreografia do Brasil. Detém-se em detalhes, fala do firmamento brasileiro “em toda a sua expléndida magnificéncia”; atémse & descrigio da nossa vegetacdo afirmando que “poucas érvores perdem as folhas; algumas delas carregam de flores, quando ainda os seus ramos vergam com 0 peso dos frutos da safra anterior”. No litoral 16m as “plantas bastante analogia com as da costa da Africa fron- teira” e as “matas exuberantes, virgens, oferecem guatida aos tigres @ aos animais trepadores” fazendo com que o homem, com 0 “aux lio do machado, mal pode vencer os obstéculos que de continuo encontra na energia selvagem da vegetacio”. Depois cesta primeira aproximagao com a terra, Varnhagen passa a descrever os seus habitantes. Estima em menos de um milhio 0 total da populagéo indi- gena. Os indios percorriam “nessa época este vasto tertitério host lizando-se uns aos outros”, Em seguida fixase na descrigio da cultura indigena: Iingua, casas, armas, sistema de propriedade, parentesco, religio e demais tragos culturais. 97 Como nfo podia deixar de ser, a rel © preocupa ¢ sobre ela fala longamente. Escreve que “propendemos antes a crer que acreditavam, como outros povos na infancia, na existéncia de um espitito maligno, a quem chamavam Tupdin, e cujo influxo julgavam os raios uma verdadeita manifestacdo. Era como tum Tifeu, de quem, em certas contrariedades, pensam tomar vin- ganca, disparando flechas contra o firmamento, ‘Além disto, acreditavam, por tradigiio, na existéncia de um certo barbado semideus Sumé que thes ensinara o uso da man- dioca, etc. e que havia sido mau pago, ¢ desaparecera, Seria 0 mesmo Cemi dos de Cuba e Tzemes do Haiti, onde o veneravam em forma de idolos. A identidade desta crenca se manifesta na existéncia, entre os cataibas, dos pajés, sob o nome de piachés ¢ beiés; — no sul dos Estados Unidos dos pawas Se, porém, os Tupis nfo adoravam a nenhum deus, nio deixavam de lemer supersticiosamente a inféncia de "mais foutros entes malignos, 2 que davam o¢ nomes de unhomed, jeropiri, curupira, caipora © outros, De noite nio se avent ‘vam a andar s6¢, a8 escuras, uviom como agouro 0 piar da coruja, © tinkamlhe como os antigos, ecrlo reccio © alé ves: peilo, ¢ nunca a matavam. Também se considerava de mau fagouto que o marido ou companheira da mulher pejada mo- tasse alimria prenhe. Assim bem se guardava de eagar 0 que se julgava causa da gravidex de uma mulher; © morreria de fome antes do que se resolveria a violar o¢ mistériox da gers ‘G80; pelo mesmo motive respeitava entio os ovos dos pissa- Fos (Soares, 2, 161). De mau agouro era igualmente o Tato de ‘embicar 0 hirbaro de certo modo, e em determinadas ocasides, uma ania ou num ourigo ou quanduau. A mulher pejada rio podia fabricar of leas e azeites; também Ihe ora proibido ajudar a acepilhar as canoas; — proibigdes contra que natu. ralmente nunca se lembrariam de reclamar. © A descricio que faz do fisico dos indios, baseado fundamen: talmente em Caminha e outros cronistas da época da descoberta, 6 favordvel. Transcreve o trecho de Caminha que se ocupa da sua deseri ‘Francisco Adolfo Varnhagen, Histéria geral do Brusil — Antes dar st: separacdo ¢ independéncia de Portugal (3. edigio integral, Sio Paulo: Ba. Melhoramentos), vol. 1, p. 45. 98, A feigio deles serem pardos, maneira de bans tastes ¢ bons narizes, bem sem nen rma cobertura, nem estimam nenhuma coi Them mos hha suas vergonhas, e estio acerca disso vom tanta inostneia como tém em mostrar 0 rosto: tra de baixo Furado, © metido por ele senhos ossos d'asso brancos de compridio de ums mio travessa, e de grossura de um Tuxo d'slgodio, © agudo na ponta, como furador. Metemnos pala parie de dentro do beigo, e 0 que The fica entre 0 b © 08 dentes ¢ feito como rogue W'enxadez; © em tal maneira ncaixado que thes nio di paixio, nem the torva a fala, rem comer, nem beber. Os eabelos slo to corredios e anda. vam tosqueados de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura, e raspados até por cima das orelhas. E um deles tuazia por baixo da sulapa, de fonte a fonte, para detrés, uma mmaneira de cubeleira de penas Wave amarelas, que seria de eompridio de um canta, mui basia © mui cerrada, que the cnbria 0 toutico e as orethas; a qual andava pegada nos ea balos pena com uma confeigio branda como cera, € mio ea tid Andavam ali muitos doles ov quase a maior parte, que todos traziam aqueles bicos de osso nos beigos, e alguns que asdavam sem cles traziam os belgos furados... E alguns eles traziam wrés daqueles bicos a saber. um ma melade 1 dois nos cabos, E andavam a} outros quaricindos de cores: ‘a saber, doles meade da sua prépria cor, © metade de Gncura negra, maneira azulada, © outros quartejados de eseagues. Ali ‘andavam enire eles tres ou quatro mogas e bem gentis, com belos mui pretos, compridos pelas espaduas [...11 avermethados, Ue Como vemos, a primeira deserigio que Varnhagen faz dos {ndios, transcrevendo trecho da carta de Caminha é simpética ¢ mesmo favordvel aos seus atributos fisicos, Mesmo no perfodo do escambo, que antecedew a conquista das terras pelos colonizadores lusos, a visio & favordvel. Com o inicio da exploragio sistemética do trabalho indfgena, surgem as pi ‘meiras recorrendacdes para que cles fossem bem tratados ¢ no fossem Jevados para a Europa como vinha ocorrendo. Até af havia Fbid., pp. 6970. Para uma leituea da carta de Caminha, ver: A carta de Pera Vaz de Cominisa, com um estudo de Jaime Cortesdo (Rio de Janeiro: Ed, Livros ce Portugal, 1943). Nessa edigio, além do facsimile do do- teumento, hé uma transcrigso do mesmo © uma adaptagio do seu texto & Tinpuagen stual 99 uma convivéncia relativamente pacifica com os indigenas. O.pau- brasil era derrubado e enviado para # metrépole sem maiores pro- blemas. ® Com a estruturacdo dos primeiros micleos povoadores inicia-se também a ocupagdo das terras indigenas pois a partir dat vemos “as colonias € as suas competentes autoridades; vemos o reconhe- cimento das leis; vemos as préticas, assim do que respeita as consciéncias, pelas ceriménias dos sactificios religiosos, como a0 estado social pela celebragio dos matriménios; vemos garantide a seguranca individual ¢ @ propriedade, ¢ sem valhavouto as tro- pelias e as injirias, Para nada faltar, como bem essencial da vida ‘segura e conversivel’, diz-nos Pero Lopes que jé viviam os colonos fem ‘comunicagao das artes’. ° Antes disto, cram registrados casamentos de colonos com indios da terra”, mas logo esse tipo de interagio € substituido Por outro conflitante e os indigenas comegam @ atacat os invasores que eram “assassinados pelos indios” Na capitania de Espfrito Santo “os gentios do pais pareceriam ainda _mansos e tratéveis, como se aptesentaram aos primeiros descobtidores; mas tio not6ria era jé sua volubilidade que, longe de se fiar neles, o donatério se preveniu; e em pouco tempo conhe: ‘ceu que com razfio o tinha feito; porquanto nfo tardaram eles em dar algumas assaltadas & nova colonia; mas, vencidos ¢ levados depois com alguma politica, a capiténia seguiu em paz, bem que modestamente; por isso que a cla tinham acudido uns poucos capitais. A cultura e fabrico do agticar s6 mais tarde ai comegou mui vagarosamente, de modo que ainda em 1550 com dificuldade Para uma analise dos {ndios em seus primeiros contatos com os portugue ses, ver! Alexander Marchant, Do escumbo 4 escraviddo (2," edigio, Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1980). Em determinade momento houve necessidade de se proibir o envio de fhdios para Europa, pois muitos deles entravam nas naus pensando, segundo afirma o préprio Varnhagen, gue iriam para 0 cfu. Nesie sentido, € interessante yer como na fase inicial da colonizagio, enquanto os indios ainda nfo resistiam, e imagem do “bom selvagem” era projetada na Europa de modo significativo. Somente apés fa resistfncia indigena, ele passa a ser 0 "bérbaro antropéfago" dos cro nistas da invasio © dos historiadores. subseatientes, OF. A. Varnhagem, op. cit, vol. 1, p. 132. 100 podia a capitania dar carga anual para o navio, néo sendo mui ajudado do pau-brasil que nela se cortava”. 1° ‘Com a passagem da fase extrativa do pau-brasil para a agri- cultura, as relagdes entre indios e brancos se deterioram e Var- nnhagen muda também a imagem dos indios. Aparecem os “cruentos Aimorés” e 0 conflito se estabelece para ndo mais parar. Na Ba anota a “firia dos indios”, ao tempo em que os mesmos eram usados pelos cristios por serem “bérbaros”. O julgemento inicial de Varnhagen muda completamente. © canibalismo passa a ser execrado & medida que 0s fndios nfo se devoram mais entre si, segundo diz ele, mas se voltam contra os portugueses ctistiios. O batbaro, vaidoso e independente, desconhecendo os direitos da azo ¢ a supremacia da consciéncia, nem sequer admitia a admoes- taco que alguma vez, de parte de um ou de outro colono ¢ do proprio donétério, provinhe de verdadeira caridade evangslica. Demais, dissimulado sempre, e tendo para si que é ardil de ataque @ de desafronta 0 que, & nossa razodvel maneira de ver, € traigio e aleivozia, aproveitava-se da primeira ocasiéo para cometer um assassinato, crime que 0 nosso direito pune com a pena de Taligo". " Em face disto “a guerra estava declarada. Os indios retira- vam-se e preparavamse pata, na forma do seu costume, dar a Vingativa assaltada de surptesa. Os cristdos ou se fortificavam, ou, depois que conheceram que os gentios tomavam por covardia quaisquer esforgos para com eles se reconciliarem, e que, aleivosos, tinham a maior repugndncia de entrar em combate franco corpo a corpo, safam a agredi-los; e os prisioneiros de guerra traziam-nos para cativos. E cumpre confessar que nem havia nesta pena reta- Tiago; quando os mesmos gentios, logo que se declaravam inimigos dos nossos cs matavam ¢ devoravam. — E a prinefpio (quando se nfo faz freqiiente 0 uso dos saios ou gibées d’armas de seda acolchoados, introduzidos das antilhas, menos pesados que es cotas de malha, ¢ suficientes para embotar as flechas, tinham eles pelo niimero grande superioridade". #2 bid, p. 178. WIbid.. p. 218 "2 bid.. p. 208 108 Os padres culturais ¢ valores sociais tinham de ser impostos aos indios nessa missio “civilizadora” pois “conhecew-se que ou se havia de seguir tal sistema ou abandonar a terra para evitilo, Sabemos quanto cumpre na hist6ria ndo desculpar os erros e quanto 08 exemplos que nos levam a aborrecer o vicio so quase de tanta instrugio, como os que nos fazem enamorar das agSes virtuosas; mas temos que 0 hébito de esquadrinhar o lado desfavordivel dos fatos, para depois contar como verdade o que se maliciou, é repreensivel tendéncia do animo, que em vez de artificio inculca existéncia de pegonha” Continuando a justificativa da violéncia contra os indios © autor vale-se da opinido da revista do Instituto Histérico. e Geo- grafico que € transcrita © na qual se Ié que “sem o emprego da forga [...] nao é possivel repelir a agressio dos mais ferozes, reptimir suas correrias; e mesmo evitar as represélias a que elas io lugar, Entre os indios era tal a idéia dos beneficios, da ameaca © do terror, que eles préprios pretendiam intimidar aos eéus. dispa- rando-lhes flechas, com o intuito de aplacé-los” Baseado nessa sentenca da douta instituigo conelui que “com fa jurisprudéncia que se havia adotado acerca do gentio bérbaro da terra, aligs inteiramente em harmonia com a que hoje aconse- Tham os publicistas mais Tiberais, houvera aquela seguido culti vando-se, sem a dependéncia to imediata dos bragos dos pretos africanos que as providéncias filantrépicas, ao depois adotadas em favor das ragas americanas tornaram indispensdveis”. Da imagem do indi “gentil” & do "gentio feroz” oscilou a opinido de Varnhagen, acompanhando a evolugio do processo de ‘ocupagio das terras indigenas ¢ a correspondente resistencia a esse invasio. Esta primeira abordagem sobre o pensamento de Varnhagen em relagio a0 indio foi feita porque ela guarda profunda conexio com aquela que expressard em relaciio ao negro e a0 escravo em geral. Daf termos iniciado a anélise da sua histéria com este apa- nhado inicial "8 Ibid.. pp. 218-219, N Mbid.. p. 218. 102 Quanto 20 africano, a primeira referéncia que ele faz € sobre a vinda dos primeiros povoadores ao Brasil, ao afirmar que vinkam "2 frente de um limitadissimo niimero de colonos, contando entre cles alguns escravos de Guiné*. Esta referéncia, porém, nio escla- rece nem o seu nimero, nem a sua procedéncia, pois sabemos quie 0 termo da Guiné 6 genérico e significa africano trazido através do golfo do mesmo nome, nfo identificando, portanto, o grupo Gtnico de origem. Poderiam, possivelmente, terem sido trazidos de Portugal, © que € uma hipétese que Varnhagen também partilha Quando a escravidio se generalizou € que ele se detém mais analiticamente, iniciendo com uma digressio sobre a existéncia da escravidio desde os tempos remotos, para justificé-la moderna- mente, Afirma que ' principio da escravidio foi antigamente admitido por todos 0 povos, ainda o reconhecem algumas nagées da Europa, © aié'0 tolera o Evengelho. A introdugio, porém, da escravatura ddos Aricanos foi em Portugal uma espécie de continuagio & 1 dos Mouriscos vencidos nas guerras de religifo, em repre- ia 90 que eles faziam. A necessidade de bragos nas col6- has portuguesas das ilhas da Madeira e do Cabo Verde, a abundancia que deles havia na costa de Guiné, tio préxima, f senhoreada por Portugal, tinha induzido = muitos. propr tirios w mander por eles; porém como foi esclarecido (Reg. di Fazenda) que nenhuns de tais escravos pudessem ir de uma coldnia para as oulras, sem darem primeiro entrada no porto ‘dt capital, a fim de pagarem n siso, convertewse Lisboa em um grande mercado de eseravos africanos, do qual néo deixariam de aprovellarse com algumas pecus (como entio se dizia © se disse por muito tempo depois) os donatirios, que tanto ne- Gxssitavam de bragos, ¢ que nfo sabiam se poderiam contar ‘ou no com © gentio de suas capitanias, Os escravos eram com- sidetados, como na legislagio romana, coisa venal; © as Orde- ‘ages Manuelinas tratam deles em uma segio cujo titulo (Liv, 4, tit 16) por si nos revela a consideragio em que os haviam; diz assim: "Como se podem enjeitar os escravos © bestas por oentes ou mancos”. As Ordenagées Filipinas, que a substitu tim, alteramno desie modo (Liv. 4, tit. 17): "Quando os que ‘compram eseravos ou bestas os poderdo enjeitar por doengas cou manqueiras" Em nosso entender, of eseravos afticanos foram trazidos so Brasil desde sue primitive colonizagio; e naturalmente 103 muitos vieram, com seus senhores a bordo dos primeitos ns: vies que aqui sportsram, compreendendo os da armada de Cabral. Sem querermos entrar na anédlise particular desta questo, 0 certo é que, para ele, com o desenvolvimento da agricultura “os engenhos de agicar necessitavam, ¢ verdade, arduo trabalho © muitos bracos” e com isto iniciase o tréfico diretamente com 0 Brasil, depois de se tet resolvido 0 problema do pagamento da sisa em Portugal, fonte de renda da metrépole decadente. Varnhagen escreve, neste sentido, que “a colonizagao africana, distinta principalmente pela sua cor, veio para o diante a ter tic grande entrada no Brasil, que se pode considerar hoje como um dos tx8s elementos de sua populagio, julgamos do nosso dever consagrar algumas linhas neste lugar a tratar da origem desta gente, 2 cujo vigoroso braco deve o Brasil principalmente os trabalhos do fabrico do agicar, e modernamente os da cultura de café”, Analisando esta realidade, isto 6, a entrada do grande contin- gente negro na nossa populagao inicial, Varnhagen deseja um pro- cesso de branqueamento do Brasil, para melhoré-lo etnicamente, afirmando que “fazemos votos para que chegue um dia em que as cores de tal modo se combinem que venham a desaparecer total- ‘mente no nosso povo os caracteristicos da origem africana”. !7 A filosofia do branqueamento j4 aparece em Varnhagen mon- tada como um viés ideoldgico que atualmente é apresentado como cientifico. Depois de afirmar no pretender “entrar em explicagdes ana- témicas sobre a aparéncia fisica dos povos da Africa, nem nos interessa agora indagar como a pele aparece preta, como 0 cabelo se apresenta em forma de carapinha (0 que aliés no é sintoma infalivel das ragas pretas), nem qual seja a teoria dos angulos faciais, tudo 0 que deve ainda ser submetido a novas observacdes para dar resultados seguros e simples, capazes de serem aproveita- dos em uma historia civil”, passa a registrar o seu mimero, Para Varnhagen o afticano somente é relevante como instrumento de 16 Ibid, p. 222. wrbid,, p. 225. 1 Ibid, p. 224, 104 trabalho, como mao-deobra, dat porque nfo se interessar em fazer um “extenso catélogo das diferentes nagdes de raga preta, que os colonos preferiram nesta ou naquela época, e para esta ou aquela provincia”, Referese & sua fecundidade: "A fecundidade dessas ragas, em seus paises, era tal que permitiria até povoar o orbe todo de negreria, se de todo 0 orbe fossem navios por colonos delas”, apontando esta chamada explosio demogréfica africana como elemento justificador do seu aprezamento e comércio. Em soguida, aproveitando-se desse argumento, acrescenta que “passando & Amé- rica, ainda em cativeiro, no sé melhoraram de sorte, como se melhoravam socialmente, em contato com gente mais polida, e com a civilizagio co cristianismo, Assim a raca africana tem na América produzido mais homens prestimosos e até notdveis do que no Continente donde € otiunda”, Depois desse fator de civilizagao dos negros, via cristianismo, chama a atene&o para as suas qualidades como méquinas de traba- Iho, pois “estes povos pertencentes em geral a regiéo que os ge6 grafos antigos chamavam Nigricia, distinguem-se sobretudo pela facilidade com que suportavam o trabalho no litoral do Brasil, Iacilidade proveniente da sua forga fisica, da semelhanca dos climas, @ nfo menos do seu génio alegre, talvez o maior dom com que a Providéncia cs dotou, para suportar a sorte que 0s esperava; pois que, com seu canto mondiono, mas sempre afinado e melodioso, disfargam as maiores penas”. Assim, com uma predisposigfo inata para a esctavidéo, outor- gada por Deus, 0 negro era a pega de trabalho ideal para o regime escraviste, Ac apontar, por outro lado, a sua alegria como um dos fatores que os predispunham para o trabalho escravo, antecipa-se 1 certos sociSlogos que desejam ver na esséncia dionisfaca das culturas africanas uma qualidade cultural permanente dos africanos € do negro em geral Prosseguindo diz Varnhagen: “Dos mencionados povos negros, alguns havia com idéias religiosas de islamismo, e até jé cristia- nismo, em virtude da vizinhanca dos estabelecimentos e feitorias 1 [biden © Ibid dos europeus; mas pela maior parte eram gentios ou idélatras: em geral andavam nus, lavavam-se a mitido, e, muitos deles, em peque- nos golpeavam a cara pot distintivo de nagao. — Alguns adoravam fdolos, outros animais; acteditavam estes em calunduns, quigilas ¢ feiticos, aqueles faziam sacrificios e ofertas aos que tinham bas- tante chatlatanismo para se inculcarem por seus sacerdotes”. ®” Depois de assim descrever o nivel cultural dos africanos, € 0 processo civilizador que a escravidio determinou em relacdo a eles, presenta a contrapartida negativa que eles imprimiram & civilizagdo brasileira, “Se os colonos escravos africanos concor- reram a aumentar a riqueza piblica com o seu trabalho — afirma —, por outro lado, perverterem os costumes, por seus habitos menos decorosos, seu pouco pudor, ¢ sua tenaz audécia. A escravidio, como ela foi admitida entre nés, alheia a ternura da familia, endurecia o coraco dos escravos, os quais nfo queriam adquitir inclinagdes que de um a outro momento thes seriam con- trariadas, nem poderiam interessarse tanto pela prosperidade de seu préptio senhor, visto que dela nada Ihes cabia em sorte, desde © dia em que passavam 2 outro dono.” *! Neste trecho, que se contradi2 com afirmagdes anteriores do historiador, vemos que ele atribui as perversdes aqui implantadas aos hébitos que os negros trouxeram da Africa, mas, a0 mesmo tempo, destaca a sua indocilidade frente a escravidio, desfazendo a imagem da sta docilidade antes destacada, quando assinala na alegria dos negros um fator de adaptagdo ao tipo de trabalho a que eram submetidos. Esta indocilidade que Varnhagen assinala sem muito ressaltar, apareceré num fato concreto por ele natrado: a destruiglo de um quilombo de negros. Por volta de 1573, 0 capitio-mor Bernardo Pimentel de Almeida teve de empenhar-se, na Bahia, para destru(lo, “Seguiram-se no distrito desta cuidados’sérios por alguns pretos fugidos, que insurretos em quilombos ameacavam a tranqiiitidade dos lavradores. Era 0 primeiro ensaio dos bons com que nos mimo- seara a pseudo-filatropia, Consegui o governador sujeité-los, man- dando contra eles uma companhia de indios as ordens de Onofre Ibid, p. 225. 2 Ibidem 106 Pinheiro mamposteiro dos cativos da Bahia; porém, tantos gastos havia feito com a sua malograda expediciio a Parafba, que nic uso acometer de novo a empresa de sua conquista”. * Era o inicio do protesto do negro contra sua condigéo de escravo. E era este protesto negro a forma mais radical de protesto do escrayo que Varnhagen procurava ocultar. por ser 0 elemento desequilibrador do seu projeto. Para isto procura, em primeiro lugar, rminimizar e/au registrar imprecisamente a populagao escrava. Na composigdo demogrifica do Brasil colonia, ele € sempre impreciso ov omisso 20 registré-la. Pernambuco, por exemplo, @ mia “em que realmente havia luxo € trato cortesio”, a ‘inica ca Ewe qullombo a que Vernhagen se refere © euja destruiste fot inilada Gin 1573, por Onolte Pineiro, ¢ © mesmo gue se refer Cupistrano de SAbeea quando esreve que "a8 depois de fled Lourenco’ da Vein, focsor de Lute de Dito Aleit, fol gus por mandndo de Cxme Rngl, ‘andou un portgués por nome de Onofre com 0s indios das Ips busctndo © xpiondo. oF negror de Gulné evaniedss, que por ee Bahia ¢ dew nsi do que tomou nits, que se dram depos 80s Sos senboves'* Conl. “Trabuthos dot primero jesuias", em Revista do Instto Miadrico, n2 51. parle 12, pp. 246. O {alo oeorrido no tempo de Luts Brio € arrado stm nares eriea flo. et "Cuando 0s heros de" Cuiné alovantados deram em cas de Cristovlo de Agutar'¢ the motaram dots homem e The roubaram sua fazends estes Indios acon punherom a Goame Rangel c's) Diogo Diss [Vaz7} da Veiga. e foram Dele, © os ext tando alguns fomando otiron, que deem a seus senhores, Este ¢ 0 mesino qullombo 4 que se Tefere Roger Bastide, Considcrandeo 0 prineito. de que se Let polls, atibuindo sua des. frulgo a Lois Brito de Almeida, om 1575, afimmando que "0 prime Gullombo remonta quase & gpoca’ de nile do trilico negreiro, em 1373, Cgcalizvee ma Bahia, Fol dstruida por Luis Brito de Almeida” (Cont Royer asicer As relives fricanas no Bros, 2 vol. (S80. Palo: ES. Pioneira 11), vol l,p. 152) O que ndo € vordade, pols esse governs dorgerel nao posses a empresh, conforms informa, Varnagan. So snows foi dasruigo por Cosma, Rangsl Diogo Dis da Veiga, apés 4 torts de Lois Rrto do Almeida, € que Baste fer esta affrmagto bi Stadio cm Hnndsimann, gue asin se expressa sobre Tato: "O primero templo hstrico conheeldo fot na Baie, em 1575, dstuido pel gover edorgerl dali Lots de Brito ¢ Almeida” (ent. H. Handelmann, Hs. tor do Braet, vol y 307). O auilombo, no entaio,somenie fi tivamente Gaps do governo de Lis de Brito ¢ Almeid, Consider Germide no fompo deste goversadorgeral, indo. sendo letivamente destruido apés sun morte 107 sua populagdo era composta de “dois mil colonos e outros tantos mil escravos” nfo pormenorizando se eram negros ou indios. Quanto @ da Bahia é mais cuidadoso e afirma que “nesta cay tania [havia] também uns dois mil colonos, quatro mil escravos anos, e seis mil fndios cristianizados” e Tlhéus, “onde os habi tantes nio se estendiam mais de duas Iéguas, pela ourela da costa”, nfio particularizando a sua composigao étnica, A mesma coisa quanto @ de Porto Seguro. Sobre a capitania do Rio de Janeiro afirma que “tinha cento e cingiienta colonos e trés engenhos, traba- balhados principalmente pelos indios”.®* A mesma coisa quanto a Sio Vicente e Sio Paulo. Refere-se em seguida a Pernambuco de forma também vaga, onde “além da casa de engenho, da mora- dia, das senzalas ¢ enfermarias, havia que contar com uns cem colonos ou escravos”, também sem detalhar a otigem étnica. No entanto, a esta altura dos acontecimentos, ele préprio ja registra a importincia que os colonos portugueses davam ao tréfico africano pois “2s vezes associavam-se alguns senhores de engenho © mandavam navios por escravos africanos, que Thes safam assim muito mais em conta do que comprando-os aos traficantes, os quais, principalmente prazo, efetuavam as vendas com muita usura”,° Varnhagen chama a atengio, aqui, para a explorago a que estavam sujeitos os senhores de engenhos na compra de pecas africanas ¢ 0 esforgo dos mesmos no sentido de escaparem ao tré- Tico triangular. Parte, portanto, da anélise dos intetesses dos escra: vistas. Ao relatar a necessidade dos paulistas escravizarem indios, justifica-os afirmando: “Fizeram bem? Afirmé-lo fora tao pouco humano como defender menos nobremente qualquer outta escre- vidio. O certo é, porém, que os interesses do Estado nao estio ‘em alguns casos (temporariamente) de acordo com os sentimentos da mais generosa filantropia, a que alids desde séculos prega proclama louvavelmente a Tgreja [...1 £ assunto melindroso sobre que mais vale discorrer menos". * =F, A, Varnhagem, op. cit, vol. Hl p. 15. 21 Ibid, p. 20. bid, p. 25. 20 bid. p. 33 108 Esta posigio ideolégica de Varnhagen determina o seu pensa- mento bésico e vincula a sua natrativa aos interesses dos senhores, embora procurando esquivar-se — pelo menos no trecho acima — de uma ligagio moral com a realidade escravista, Por outto lado, queremos dizer que ha possibilidades de que a imprecisio de Varnhagen em relacdo & populacdo africana nas diversas capitinias deva-se a falta de informacdes mais precisas. possivel. No entanto, um historiador to escrupuloso como ele teria feito referéncias ao fato para justificar a omissio. Ha, de fato, uma intengio em Varnhagen, mais acentuada do que nos historiadores que o precederam, de omitir a presenga e a aco dos negros, escravos ou livres, como agentes histéricos ou como simples componente demogréfico do Brasil. Da mesma forma em que hé um detalhismmo até exagerado em descrever linhagens ¢ feitos dos donatétios, capities-mores e outros componentes do bloco de poder colonial, dilui 0 seu discurso em um meio-tom impreciso quando se ocupa dos indios, negros, colonos pobres, dos componentes da plebe colonial, quer a que estava inserida no processo de produgao escravista (negros e indios), quer da plebe residual que se formara ¢ atuava nos intersticios da sociedade colonial No episédio da ocupagio holandesa, desde o seu inicio, quando fos batavos desembarcam em Salvador, em 1624, até a sua capi tulagio em 1654, Varnhagen se alonga em pormenotes militares, em detalhes do comportamento dos senhores pernambucanos que organizaram a resisténcia final, exaltando-Ihe os feitos © os sacri- ficios. Por outro lado, deixa na quase total obscuridade os compo- hnentes das Forgas subalternas, os feitos dos indios, negros livres € escravos, dos moradores das modestas povoacées; finalmente, 0 grande pano de fundo dindmico que possibilitou a vit6ria de Por- tugal. Em conseqiiéneia desta postura tedrica, procura condenar todos aqueles elementos que se colocaram a0 lado dos holandeses como é 0 caso de Calabar, conforme veremos adiante, Para justificar esta diltima postura, Varnhagen apresenta esta Jute como se fosse uma Tuta de libertagao nacional, como se nds 109 {éssemos uma nagéo politicamente independente, lutando contra ‘um invasor estrangeiro. O que nfo eta verdade, Usa, no particular, um truque semantic, afirmando, sempre, ao veferir-se aos contin- gentes militares que davam combate 20s hotandeses, de_mossus fropas, nossos homens, etc., como se 0 possessivo designasse os membros da atual nagéo brasileira, em igual situacdo € com 0 mesmo sfatus juridico ¢ politico de agora. No entanto, historiadores ‘mais realistas como Handelmann, nunca deixam de referirse as tropas da resisténcia camo portuguesas, ou, pelo menos, represen- tativas do poder portugués (ou espanhol) na colénia, Isto, a nosso ver, expressa uma posicio ideolégica do autor que iré se refl mnelodologicamente numa falha de periodizagio da nossa histéria, pois inclui o periodo colonial, no qual o Brasil ainda nao era ser politico, como se fosse parte do periodo nacional, isto é, perfodo no qual o Brasil jé era uma nacionalidade, um ser politico indepen dente, Isto determina uma visio protonacionalista inconseqtiente, pois modifica os critérios de julgamento de todas as personalidades. frupos ott instituigSes que dele participaram. Dat a galeria de heréis e vildes ser analisada dentro de uma ética alienada, porque ho reflete 0 contetido real do papel hist6rico, social, politico cultural dos seus personagens quer individuais quer coletivos. Esta postura leve-lo-é a avaliar, através de padrdes normativos inver- tidos, 0 desempenho dos nativos nessa luta entre dois colonialis: mos: 0 portugués ¢ o holandés. Quanto a0 papel do negro cle € tido como positive todas as vyezes em que se coloca a0 lado dos portugueses ¢ de traigéo quando fica ao lado dos holandeses. Por outro lado, todo o dinamismo dlossas lutas & gerado pelas personatidades da propria classe senho- rial possuidora de escravos, ‘A posico omissa quanto & participagio do negro escravo ou livre na primeira invasio holandesa € patente ¢ ndo hé o que acrescentar Aquilo que j4 dissemos antes em relacio aos historia- dores que 0 precederam. Em contrapartida, destaca 0 petigo ¢ a fameaca que 0s indios representaram nessa conjuntura que “com fos perigos € ameagas dos holandeses na Bahia, se levantaram os indios vizinhos, chegando a fazer estragos em Jaguaripe, Para- guacu e até no préprio Recdncavo, em Maragogipe: — pelo que se rissentou (9 de janeiro de 1628) de mandar AntOnio Rodrigues da ho Cachosira [odo Barbosa a trazer os indios da Paraiba, para Thes fazer frente. Também foi contra ele Afonso Rodrigues Adorno, que, em 29 de margo do ano seguinte, regressava com muitos dios presos, 0s quais foram distribufdos em tanto nimero que 36 90 governador couberam vinte e quatro pecas”. ‘A mesma acdo divergente dos indios é descrita também no Rio Grande do Norte, onde eles estavam sublevados, tendo sido mandado para destru(los e/ou aprisiond-los Greg6rio Lopes de Abreu. 2® Com a invasio de Pernambuco pelos batavos, Varnhagen des- taca a acio defensiva de Matias de Albuquerquer © os preparativos que cle tomou para resistir aos colonialistas holandeses. “Reco- mendou, por toda a capitania e pelas vizinhas que os homens de armas ¢ 05 indios amigos estivessem de sobreaviso, a fim de acudi- rem onde se mostrasse 0 inimigo".** mais: chegou a tomar a iniciativa de convocar os crimi- ‘noses “concedendo em nome do soberano perdiéo aos réus homi- ziados que s2 apresentassem a tomar as armas”. ® Como sv pode yer com facilidade, fato que ¢ descrito objetivamente por Var- nnhagen, os escravos negros foram excluidos inicialmente de parti ciparem das tropas defensoras de Pernambuco, embora Matias de Albuquerque tivesse assumido 0 compromisso, em nome do rei de perdoar os criminosos foragidos da justiga, numa espécie de anistia emergencial No entento, a populacio negra nao é mobilizada, como vemos ¢ Varnhagen registra. Em conseqiiéncia disto, os negros si algu- ‘mas vezes cooptados pelos holandeses, porém com muita reserva também, conforme jf vimos no texto de Southey, * Matias de Ibid. p. 201 2 Tide 29 [bid., p. 225. 30 [bid., p. 226, Sobre a participagdo do negro nas tutay durante « ocupa eserevemos em oulre local: "Durante a ocupagio holandes vimos, 05 negroes se portaram de trés formas: 2) Fuagiram para as malas © onganizaram quilombos. vendo o miaior & aquele que mais durou a Repiilica de Palmares: hholandesa, conforms ji Albuquerque continuo dinamizando a populagio para a resis: féncie © “resolveu organizar, & mancira do que se praticara seis anos antes na Bahia, vérias guertilhas, com 0 nome de companhias de emboscadas, entrando em cada uma delas alguns indios, a fim de vedar as comunicagdes dos habitantes com a vila ocupada pelo imigo, de impedir que estes fossem espalhando ¢ estudando os arredores ¢ de fazer a todos, pelo simples fato de se famniliarizarem arredores € de fazer a todos, pelo simples fato de se familiatiza- rem nas hostilidades, menos. propensos a reconciliarem-se com o invasor". #8 No entanto, os negros, quer escravos, quer livres, nfo forem ilizados para essas sortidas, ou pelo menos Varnhagen nfo a a sua presenca. Havia uma cautela deliberada dos portu- gueses em incluir os seus negros nesses contingentes militares impro- viisedos. Indios so encontrados em outras ages. Por exemplo, ‘quando o inimigo levantava do outro lado da iha de Santo Anté- nio 0 forte das Cinco Pontas, a que se deu o nome de Frederico Henrique, acudiram logo 0s nossos a atacé-lo, com citocentos homens, incluindo trezentos indios”. ‘Quando os portugueses suspeitavam de uma investida holan- desa contra o Rio Grande, Matias de Albuquerque desloce-se com trés companhias ¢ uns duzentos indios. Nesta altura, Varnhagen reporta-se ao episédio da adesio de Calabar, abandonando as fileiras lusas e passando-se para o lado dos holandeses. Superestima, nessa conjuntura, tal comportamento, dando-o mesmo como decisério na continuidade da campanha Escreve que by panticiparam como soldades ¢ guertthetros ao lado des tropas bra- sileras: ©) Iularam a9 lado dos holandeses. ‘A esses ts tipos de comportamento devemos acrescentar o bande: Ieivismo quilombola, exemplificads nos boschnegroes (como os holandeses chamavam a esses negros), que atacavam as estradas © engenhos indis- tintamente, fugindo para as matas apés cada sortida.” (Conf. Clovis Moura, Histdria do negro brasileiro (Sio Paulo: Ed. Atica, 1989, p. 42) FA. Vambagen, op, cit vol. Hl, p. 254 53 Ihidem. 2 | mais de dais anos haviam decorrido desde # chegeda dos ho- landeses, © se encontravam ainda encurralados dentro do Re- eile e do pequeno forte de Orange na iha de Itameracd, © jé ha Holanda se comecava a discutir 2 idéia do abandono do Brasil, quando uma lamentivel ocorréncia yeio mudar a face dos acontecimentes, atigar a guerra e prolongar a duragdo do dominio estranho, Referimo-nos & deseredo das fileias dos nos- ses. para o inimigo, de Domingos Fernandes Calabar, natural de Porto Calvo. Consia, pelo testemunho de dois escttores ‘gue conheceram pessoalmente mesmo Calabar, e que deram Seus depoimentos ante a posteridade alguns anos depois de ‘morto do mesmo trénsfuga, que a origem da desere0 proce: dew do temor do castigo, em virtude dos grandes crimes come- tides. 94 Esta desergao de Calabar teria destrogado os planos militares dos portugueses. ‘A primeita empress, eoncebida e ditigida pelo Calabar, fol a de um alaque de surpresa contra a vila de Igaragu. O conhe- timento que tinka do local e do fato de que um rio navegivel para canoas partia daquela vila 2 desembocar no longe da paragem ocupada pelos holandeses com o seu forte de Orange, fm frente da mesma ilha, eujas cimas se avistam da propria vila de Igaragu, lovaram o Calabar a lembrar as vantagens que of intrusos poderiam alcangar realizando aquela surpresa, em que nio correriam risco algum; tendo simplesmente a cautela de ordenar que do dito forte de Orange se enviassem com fantecipagio slgumas bereagas, para transporlar por mar os cexpedicionarios, depois de darem a assaliada. 38 Com a concordéncia de Waerdenburch, Calabar preparou 0 plano e este “se ofereceu a acompanhar em pessoa a expediao, ‘© que, alids, Waerdenburch houvera exigido, para deste modo télo como refém, Prepararamse quinhentos homens, levendo uns trinta ¢ tantos pretos para conduzir os feridos; passaram todo o dia 30 de abril acompanhando a atrevida expedicio o préprio Como vimos, também Southey, baseado em Calado, referese a esses crimes em termos quase idénticos 2 Varnhagen, 0 que prossupde terse bbaseado na mesma fonte. O anolador do historiador inglés, cOnego J. C. Femandes Pinheiro, diz desconhect-los. 55, A. Varnhagen, op. cits vol. II, p. 242. Waerdenburch, Encaminhou-os Calabar por junto de Olinda, onde foram pressentidos pelos vigias que deram logo aviso a0 arraial”, 3 Durante essa operacao, vencida pelos holandeses, ainda se- gundo Vamhagen, Calabar era vigiado com suspeita pois Waer- denburch afirmava que “em todos esses perigos estavamos depen- dentes da fidelidade de um negro, que nos servia de guia, e nio deviamos por muita confianca nessa gente estiipida”. Para Var- nhagen “o éxito desta empresa aumentou muito 2 forga moral dos holandeses ¢ 0 erédito para com eles de Calabar, que continuou sendo o seu fiel guia, a principio por todos os contornos do Recife, mais tarde por toda a cepitania e pelas vizinhas”. * Aqui cabe fazermos algumas consideragées sobre 0 episédio da desergio de Calabar. Em primeiro lugar, néo foi ele 0 respon- sdvel tinico pela mudanga da situagéo militar que passou a favo- recer os holandeses. Tropas frescas eram enviadas continuamente pela Companhia das Indias, o que veio fortalecer militarmente os invasores, como demonstra Oliveira Lima no seu livro Pernam- buco, sew desenvolvimento histérico. Nao havia, portanto, deses pero ou desénimo da parte dos batavos, nem Calabar tinha forga capaz de alterar sozinho uma situagio tio complexa, Vemos, também, que os negros somente aparecem na descrigao desse episé. dio como auxiliares dos holandeses, liderados por Calabar. E, finalmente, queremos assinelar a atitude de Waerdenburch que qualifiea Calabar de negro e complementa 0 seu pensamento com uma tirada racista e preconceituosa contra ele. Tudo isto demonstra como tanto os Tusos quanto os batavos tinham igual preconceito contra 0 negro ¢ por isso temiam yé-lo como agente social dind- ico, pois nfio sabiam até quando podiam controli-lo, O negro linha de ser conservado como expectador da histéria, quer por um, quer por outro, pois ambos pretendiam conservar as relagdes escra vistas. E continua Varnhagen descrevendo o rostrio de atividades de Calabar, que deixa Recife quando o comissério Gijsslingh em uma invasSo por Calabar idealizada desde 0 Porto das Pedras até fas duas Alagoas, Em conseqiiéncia dessa seqiiéncia de ages Tider. 51 Ibid. 24. 4 os moradores dos campos rcteremse a um engenho de Fron ico Costho onde so drgla# staclos Calabar, com algume ferge quando Ie armaram ume sila, ¢ (eve de relarse Rusceando empreender outro alague, mandou © meso Cal bar nowes conte so poderso chefs fondu, qu viv nos Series, umes tents legate, fim de quo vss 8 costa, Snde coconraria muito gado e tudo quanio pudewe desea Bhivou Jandut com os sus fads e, cando inesperadamente ho engenho de Trancsco Cotto, af ssasinaram a ex, bem fo mesmo engenho se hiviem reunido. Depots passou © [am dao forte. onde Tol agisathado por Calabar, em pago de furs tones sevagerias, © Terror € medo dos gentes comes tam st Teaer cada dia mals sportivel a ida. Jo jogo dos Termes. No eonsegui, porém, o ininigo artebanhar ous Wainhos. que i estavint de pazes cant om moradores. Sem Ahrmos intro exedto todos tr ricocnios sot de fie ¢ conse que ct nowoe croistasatribuem 20 Prin al Simo Sonres Tapuarri, depois de ter ido proto © crush mente meld a foros, € sm duvida gue ele © outros, apesar dh proverbial volublidade dor birbars, nfo se pasaram aoe Ste os nots, ¢ io eomidernd, eeu aebinho ott ou Camaro, jf agiaiado com brasio srmes, e-qusrenta il fis de ldo, © fil capitamon, nio dos Potigures, de Chie nasio ra, mish de todos or inion do Bras Para conseguir a adesio deles, anota Rodolfo Garcia, a Carta Régia de 14 de maio de 1633 determinava que se desse aos indios algumas mercadorias de fazendas, roupas ¢ quinquilharias, para estarem quietos ¢ trabalharem na guerra, Mas, as ages militares de Calabar continuam, e ele, segundo informa Vainhagen, sugere 20 almirante Lichthdart atacar Bag- nuolo em Porto Calvo, comandando duzentos homens; finalmente hé 0 sitio do Arraial, defendido pelos portugueses ¢ brasileitos a0 seu lado, tendo os seus ocupantes, de acordo com as condi de rendigao se retirado, levando “além dos escravos e paisanos”, ppecas de guerra entregues a0 vencedor. Durante o sitio do Arraial foram feitos prisioneiras Joao Fernandes Vieira © "o bravo ¢ fiel Henrique Dias”. + 438 id. p. 251 3 [bid p. 255. bid p. 239 Finalmente veio o episédio da entrega de Calabar as tropas lusas, Informa que: “No sexto dia do sitio (19 de julho) o inimigo mandou um tambor propondo capitulacdo. Foi admitida, conce- dendose que os estrangeiros saitiam conduzidos & Holanda. O inimigo exigia que na capitulacio fosse também compreendido Calabar; mas, resistindo a isso Albuquerque, foram as condicées aceitas, entregando-se além do major Picard, vinte e cinco oficiais ¢ oficiais inferiores, trezentos e sessenta e sete soldados armados, vinte e sete fetidos ¢ enfermos, nao passando os sitiantes de cento quarenta, fora os indios”. £ Vamhagen comenta: “ [...] a entrega de Calabar haverd si do, sem diivida, pouca generosidade da parte de Picard; mas nio foi © primeito caso, nem seré o tiltimo, de realizar-se 0 provérbio a respeito do diferente aprego que se dé A traigio e ao traidor.” # Submetido a conselho de guerra “este foi de opiniéo que a ‘inica meroé que devia esperar era de prepararse para morrer’. “Ao cabo do terceito dia, aos 22 de julho tirou 0 Calabar do oraté- rio € the deu morte de garrote, deixando o seu corpo esquartejado nna povoago que nesse momento abandonava aos holandeses que jé vinham chegando”. HG neste episédio de Calabar uma série de aspectos a serem considerados, Um deles é o tratamento que Ihe € dado tanto pelos hholandeses como pelos portugueses. Ao aderir a uma das forcas em luta, 05 nativos em geral ficavam numa situagio marginal, quer indios, quer negros, pois 20 cafrem prisioneiros de um lado ou do outro cram considerados traidores. O tratamento que Var~ nhagen dé a Calabar chamando-o de traidor era o mesmo que os hholandeses dariam a um outro personagem em. circunstincias idénticas. Outro aspecto é a énfase que o historiador di a essa condigfo de traidor, considerando quase como um castigo a sua punicao, nfo tendo o mesmo critério de julgamento em relagio ‘a elementos brancos livres que se passaram para o lado dos batavos, como o “yenerével” Duarte Gomes da Silveira e o jesufta Manuel Morais. Nesse julgamento severo e oprobrioso em relacdo a Cala- 81 Tbid, p. 265, 8 Tider. 48 Tbid, p. 288. 116 bar, vai implicito um julgamento de valor que nao se coaduna com a realidade hist6rica e politica da época. Vale destacar que a grande fonte informative de Varnhagen foi inquestionavelmente 0 padre Manoel Calado, 0 confessor de Calabar, conforme jé vimos ao analisarmos a obra de Southey. Desta forma, para ampliar o aspecto negativo da sua traicao, © historiador supervaloriza os seus feitos militares que equivale- riam a crimes politicos. Outra escala de julgamento ele tem em relago a Hentique Dias, conforme veremos em seguida. Henrique Dias ¢ apresentado, de modo geral, pela nossa histo- riografia como um her6i brasileiro, agindo numa época em que ainda nfo existfamos como nagdo. Ele e 0 seu companheiro de armas, Camaro, so apontados como exemplo de herofsmo e fide- lidade & patria, Nas biografias de Henrique Dias sempre & desta- cado este aspecto de fidelidade aos comandantes portugueses € a0 rei de Portugal, fato que ele proprio destaca em uma carta jé transcrita no capitulo sobre a Histéria do Brasil, de Southey. Fiel ao “Seu Deus ¢ seu Rei”, derramou varias vezes o seu sangue na luta, tendo perdido um brago em conseqiiéncia dos ferimentos recebidos em. campanha. ‘A primeira vez que Varnhagen refere-se a Henrique Dias é no ano de 1633, quando “seguem-se duas aquisigdes feites pelos pernambucaros. A primeira foi a do valente pernambucano Fran- cisco Rebelo; depois de haver permenecido quatro meses a bordo de uma nau, conseguiu escapar langando-se 40 mar e seguindo a nado para terra. A segunda foi a de um grupo de valentes pretos, mandados pelo bravo Henrique Dias, da mesma cor e que logo daf a dois meses (15 de julho) comerou a derramar o seu sangue pela causa que abragara, sendo ferido, na Varzea, por uma bala de mosquete". “Aqui, mais ume vez, pedemas ver como fonte © padre Manuel Calade, confessor de Calabar 48F, A. Varntagen, op. cit. vol. 1, p. 24. 7 Logo depois informa sobre novo ferimento de Henrique Dias. afirmando que “ao mesmo tempo os do Recife intentavam, do lado dos Afogados, duas sortidas a engenhos situados dali a uma légua de distncia, tendo Tugar, duas vezes, pequenas escaramucas, saindo da primeira ferido o chefe preto Henrique Dias”. Sofrendo pequeno revés, dele se vingam os holandeses “inten. tando novas sortidas. Foi a principal que fez contra Igeragu 0 tenente-coronel Byma; logo auxiliado pelo coronel Sigismundo com maior forga, ao ter noticia das que contra Byma havia enviado Albuquerque 8s ordens de Camaro, e depois de Luis Barbalho ¢ Riba Aguero. Mandou novas forgas, com outros cabos, ineluindo Henrique Dias, que por esta ocasido foi outra vez ferido e com duas balas. Tanto Byma, como Sigismundo, depois de pequenos encontros, recolheram-se do. lado de Tiamaracé, regressando por seu turno 08 nossos aos acampamentos”. 7 Varnhagen noticia mais um ferimento de Henrique Dias numa batalha de menor porte em 30 de marco, sendo este o quarto regis- trado. Logo depois, resistindo a um ataque dos batavos contra © Arraial, Henrique Dias recebe o seu quinto ferimento. Como se pode ver, a atuacdo de Henrique Dias era das mais eficazes ¢ a sua coragem ficou demonstrada na ago e no niimero de ferimentos recebidos. Finalmente foi capturado com a queda do Arraial, juntamente com Jodo Fernandes Vieira Podemos dizer que somente apés a retirada de Nassau, em 22 de maio de 1644, vamos ter novamente noticias de Henrique Dias no texto de Varnhagen. __No entanto, podemos nos valer do texto de um dos seus bidgrafos para ficar sabendo da trajetéria de Henrique Dias até a outra referéncia de Varnhagen. Escreve José Anténio Goncalves 6 Ibid. p. 247, + Ibider, 18 Ibid, p. 253 48 Tbid., p. 257 118 de Mello que entre aquelas pessoas que foram capturadas no Arraial “estava entre aqueles a quem foi permitido permanecer no pafs, contava-se Henrique Dias. De junho de 1635 a abril de 1636 0 Capitéo dos negros deixou-se ficar em tertit6rio ocupado pelos holandeses. No tomou parte, portanto, na retirada geral que, sob 0 comando de Matias de Albuquerque, se seguiu & tomada do Forte de Nazaré (julho de 1635), nem na batalha da Mata Redonda (janeiro de 1636) em que D. Luis de Rojas y Borja foi derrotado per Arciszewsky”. E prossague 0 seu bidgrafo: “Em janeiro de 1637 chegou a0 Recife Joo Mauricio, Conde de Nassau, ¢ iniciou logo @ lute contra os remanescentes do exército luso-brasileiro estacionado tem Alagoas, que com suas incursdes em territério holandés causava grandes prejuizos e impedia os trabalhos da agricultura, Em 18 de fevereiro a batalha chamada de Porto Calvo travou-se entre os dois exércites, 0 flamengo sob as ordens do Conde, o luso-brasi- leiro (ou melhor hispano-brasileiro, pois inclufa tropas espanholas e napolitants) sob 0 comando de Afonso Ximenes de Almiron Melhor dirigido © mais forte em contingentes, o holandés obteve uma vitéria fécil. Henrique Dias que tomou parte na batalha, com os seus negios, ‘procedeo muito bem, ¢ Ihe derdo hua pelourada no brasso esquerdo de que Ihe cortaram a terga parte delle’, diz uma relagdo contemporéinea.” § Voltando a0 texto de Varnhagen ficamos sabendo que “perio de més e meio depois, aos 25 de margo, (1645), 0 governador dos pretos Henrique Dies, com a sua tropa, bastante diminufda nos mocambos dos Palmares, onde havia sido pouco antes man- dada, devassa a fronteira do Rio Real, e era seguido pelo capitio- mor dos fndios, o comendador Camaro, com a sua. E logo depois o tenenteccronel André Vidal que ali se achava, a pretexto de interesses “particulares préprios", dava parte ao governador da Bahia da fuga do primeiro, e de haver ordenado ao segundo que fosse persegui-lo, e imediatamente regressava a Bahia, onde o José Anténio Gongalves de Mello, Henrique Dias — governador dos ‘pretos, eriawlos mulatos do Brasil (Recife: Ed, da Universidade de Re- cife, 1954), p. 15 3 Ibid. p. 1 9 governador, no dia 31, convocava a conselho os principais da cidade, que “concordaram que o tenente-coronel Vidal tinha feito © que naquele flagrante se podia [...] © que se avisasse aos holan- deses que o Dias ia como levantado e jugido, para que se 0 pren- dessem 0 castigassem como tal”. 5 Com este expediente conseguia-se justificur a fuga de Henrique Dias do tertitério do Arraial e iniciar a movimentagdo para dar-se inicio ao movimento de restauragéo. Logo depois, segundo Varnhagen, “recebiam-se pelo chefe politico de Alagoas, Moucheron, noticias da marcha das tropas do Camaro Henrique Dias, & s6 ento os do Conselho viram que a revolucao era mais séria do que pensavam™. Nesse-processo de articulagio restauradora, em uma acho sem precedentes, os chefes pernambucanos irdo refugiar-se em mocambos, como jé foi anteriormente registrado por Southey. Diz Varnhagen que “avisa dos os pernambucanos nos mocambos de que andavam as tropas para atacé-los, julgaram prudente removerse ainda mais para o interior, e passaram a Maciape, onde se demoraram cinco dias”. * Este episédio de Ifderes da restauraco refugiando-se em qui lombos taticamente, enquanto outros, como é 0 caso de Henrique Dias, os combatiam ¢ destrufam é um aspecio pouco estudado, mas demonstra uma visio ideolégica oportunista © repressora a0 mesmo tempo por parte dos componentes das tropas lusas € seus aliados pernambucanos em relacao 90s quilombos © & escravidio. © negro era usado como massa de manobra de acordo com os interesses militares e politicos dos restauradores, que nunca os inclui como forga regular na reconquista de Pernambuco. A posta deles era escravista, como aliés no podia deixar de ser, se considerar a esséncia dos interesses que estavam em jogo. Por outro lado, do ponto de vista institucional, eram contra as revoltas © @ organizacdo dos escravos negros em quilombos, chegando a0 ponto de se prestarem 2 destrutlos. Devemos salientar, como haviamos feito anteriormente,. como o historiador registra’ o fata de passagem e sem analisé-lo mais detidamente, nao nos dizendo quais os tipos de acordo, aliangas ou contatos vcasionais que os PA. Varnhagen, op, el, vol. I, p. 16, Ibid, p. 20 120 quilombolas fizeram com as tropas pernambucanas ¢ os seus chefes. Isto registramos quando analisamos a obra de Southey, 0 que se repete em Varnhagen. Foi na batalha das Tabocas que Joio Fernandes Vieira se atemorizou, e fez promessa de levan- tar ali duas igrejas, uma a virgem ‘de Nazaré © outra & do Desierto, € ao mesmo tempo mandou a pelejar a todos os festravos que junto a si tinhs, prometendolhes alforria, — Entio desceu do alto como um turbilhéo de gente, tocando atibagues © buzinas, fazendo grande alarido e gritando vit rig, clamor que porventura inlimidaria o inimigo, julgando-o fundado, A ago pessou a ter lugar corpo a corpo, os holan- deses que avangavam viramse obrigados a virar costas, em- parades como por uma torrente, semelhivel Bs lavas jorrando do cone dos vuleées ou fs grandes geleiras despenhadas das cinas das cordilheires nevadas, que, com a prépria forca de su1 massa acelerada, do levando apés si quanto enconttam. 6 Este episédio, j4 por nés comentado, na descrigéo de Southey, tem, no texto de Varnhagen um significado simbélico mégico, na sua configuraglo quase cabalfstica. Joao Fernandes Vieira, acionado pelo medo, azela para o mégico como solugdo, prometendo cons- truir duas capelas se vencesse. Ao mesmo tempo, como comple- mento, acene com a liberdade para os seus escravos se eles vencessem a batalha, como se fosse, essa atitude, também, um ato de reconhecimento de culpa e expiagio. Os negros escravos partem para a Tuta e o seu comportamento, com atabaques ¢ outros instru- mentos africanos, também usados nos seus atos religiosos, criam uma atmosfera de terror to acentuada que os flamengos se epavo ram e terminam derrotados. O autor neste trecho faz também uma comparagio sutil entre a ago dos negros ¢ as forges da natureza, vulefinicas, o1 de avalanches despenhadas das cordilheiras. Com a vitéria € 0 pouco nimero de mottos temos pouco para deixar- mos de acrecitar em um “milagre” e no na bravura e destreza militar desses escravos. Mas, a partir daf, as agdes de Henrique Dias e Camargo se amitidam. O primeiro com cingtienta pretos e Camaro com tre- BTbid.. p. 24 121

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