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Gai rina segundo Acondo Ongrico da Ling, Persp de 90: Env vga no Br paid 005 (Gia Guts de lear da bistria no dscar! Eni P. Onand (org) [etal] sed. ~ Campinas, sr: Editor da Unica, 2014 1s Andis do dacs. 2 Leiars~ snide ensno 3, Linguistic. LE P Ould I Til, Indes pr cago stent A memoria de Denise Maldidier Anulise da dscarea 8 Copyright © by Ei Paceline Coppi ©20r4 by Editors de Unianp Dik reevidrercegidos pel ei 610d 1921998. potas predate era on pec em ste, Foifenoodep tors da Uncump Rua Calo Gree Prado 50 Capen Unica (CEP 1083892 Carpinar~ SPB anpbe Bibliografia FOCAULT, M, Las mat et le ces: une arco de sees bamaines. Pais Gallimard 966 FREUD, S."Zeigemise ier Krieg und Ted’ Gesmmle Werke, X. Fak, Fischer Vera 95 PP 2.455 *Gelatwortm Angst Aichom VeraceteJigend Gesammele Werke, XIV. Viens pp S652 FREUD, S.e BREUER “Studien he Hyer’, Gesamme Wek. Vien. 9, pprrse JAMES, W. Principles of psychology. Nova York. Dover, 1980. KANT Amdbpelge du pin de ue pragmatique. Tea Michel Foucault pate, died. de foo Pas, Vin, 1979. MILNER}. C."Lingusigue, biologie, pychologie in Onde et ein de lenge. Paris Seu 9. NIETZSCHE, Fir Genesee der Moa: cine Seite Leip, 8. POPPER, K. To open city andi ene, ed ex smp. Lone, Rosledge and Kegan ath 966 SIGMANN,) 1848 —Leréslaton romentiuet decide rope Pats, Calmann Lévy 970, ONDE, W.Fresngn iter dis Menschen und Tiree. Leipti 86 Grundcige der phyilagicenPrybologie. Legg 187987 Valero Leg, 1900-920 56 IIL. Ler 0 arquivo hoje’ Michel Pécheux A histéria dos rastros do homem através de seus pr6- plos textos permanece em grande parte desconhecida. ‘Michel de Certeau propésito deste texto € 0 de examinar o desenvolvimento atual das quest6es que envolvem.a andlise dos discursos, textos e arsuivos, interrogando sobre as relagbes entre o aspecto histrico.e psicolgico (linguageiro” no sentido amplo) ligado & leieuta de arquivos, 0 aspecto matemitico ¢ informitice ligado.20 tratamento dos docu- ‘mentos textuais € avango das pesquisas em linguistca formal. ‘A evolugio, manifestamente bastante répida, da pesquisa em Linguistica sobre estas quest6es, assim como a retomada do inte- resse pelos problemas de tratamento de textos, em particular pelo viés — culturalmente epoliticamente problemético — dos “ban- cos de dados’ esta na origem desta reflexio. ‘As aporias de uma seméntica puramente intralinguistica (ou de uma pragmatica insensivel is particularidades da lingua), ¢ as reflexdes sobre a especificidade do arquivo textual, levam a pensar que uma pesquise mulsidisciplinar €indispensével para um acesso realmente fecundo. © discursivo informaticamente marcado sob a forma dos “dados textuais” nio tem, efetivamente, a mesma relagio nos Exe tet fa objet deinimerr disuse com Beraed Coin, Jean Juste Curing, FanjoseGader, cies Gilhaunoa, Clade Huoche, Pal Henry. Mille Lagargue Jcqieline Leon, Dente Maddie Jan-Mar Maran, ” ww. plceEux procedimentosligico-mateméticos que este outro tipo de dados, de natureza quantitativa,utilizados em economia, em demografia, em histéria ete. De forma que esse dominio, 0 qual sera conveniente aqui chamarmos do discurso textual, é0 lugar em potencial de um confronto violentamente contraditério: a figura de Blaise Pascal, refletindo 20 mesmo tempo sobre quest6es filoséficasereoldgicas ce sobre 0s problemas fisico-matemiticos de seu tempo, éevocada debom grado pelo humanismo contemporiineo, mas referencia aeste ancestral de duplo rosto nao basta para dissimular o abismo aque se ampliou desde a Fra Clissca entre estas duas culturas que 4 tradigio escolar-universiciria designa respectivamente como a “liceria” ea “cientifca’ ‘Ao longo de toda uma histéria das ideias que vai do século XVIIL ao séeulo XX (através de Auguste Comte — A era da cién- cia — € 0 positivismo logico, face aos romantismos, as filosofias ida historia ¢ as disciplinas da incerpretagio) essas duas culturas rio pararam de se distanciar uma da outra, veiculando, cada uma, nao somente suas esperangas ¢ ilusdes, como também suas manias c seus tabus, ignorando de uma maneira mais ou menos delibera- daa propria existéncia da outra. cE or radi¢éo, os profssionais da leitura de arquivos sio“literatos (historiadores,fildsofos, pessoas de letras) que tém o habito de contomnar a propria questao da leitura regulando-a num impeto’ porque praticam cada um deles sua propria leitura (singular e solitiria) construindo o seu mundo de arquivos. ‘Als, foi assim que — frequentemente em tomo de nomes, proprios fundadores —em rorno dos arquivostextuis, surgiram posigbes implicias (de grupos, de escolas, e até de “igrjinhas") que se acotovelam numa relagio ambigua de concorréncia, de sudigts eerie eee iene See erst ines 38 LER 0 ARQUIVO HIE aliangas patciais € de antagonismos disfargados. Os grandes de- bates memorialistas, filos6ficos ou liverios (tal qual ressoam no espago ideolégico e cultural francés) sio os mais frequentemente estruturados através dos confrontos sobre temas, posigSes ou, as vezes, sobre métodos de trabalho, Mas, mesmo neste iltimo caso, a questéo da leitura permaneceu quase sempre implicita: hd, entretanto fortes raz6es para se pensar que os conflitos explicitos remetem em surdina clivagens subterraneas entre maneiras dife- rentes, ou mesino contradit6rias, de lero arquivo (entendido no sentido amplo de “campo de documentos pertinentes edisponiveis sobre uma questio”). Seria do maior interesse reconstruit a histéria deste sistema diferencial dos gestos de letura subjacente, na construsio do at- {quivo, no acesso 20s documentos ea maneira de aprcendé-los, nas priticas silenciosas da leitura “espontanea” reconstituiveis a partir de seus efeitos na escritura: consistiria em marcar¢ reconhecer as evidéncias priticas que organizam essas leituras, mergulhando a “leivuta literal” (enquanto apreensio-do-documento) numa “lei- ‘ura’ interpretativa — que jd € uma escritura. Assim comegariaa se constituir wom espaco polémico das maneiras de ler, uma descri¢io do “trabalho do arquivo enquanto relagio do arquivo com ele-mesmo, em uma série de conjunturas, rabalho da meméria histérica em ‘perpétuo confronto consigo mesma’. A outra vertente da leitura de arquivo — sem a qual aprimeira no existiria provavelmente como tal — tem aderéncias histéricas completamente diferentes: tratase desse enorme trabalho andnimo, fastidioso, mas necessétio, através do qual os aparelhos do poder de nossas sociedades gerem a memoria coletiva. Desde a [dade Média a divisio comegou no meio dos clérigos, entre alguns deles, autori- zadosaller, flare escrever em seus nomes (logo, portadores de uma Ieitura ede uina vbra propria) ¢0 conjunto de rodos os ousros, cujos _gestos incansavelmente repetidos (de cépia, transcrigio, extragio, classficagio, indexagio, codificagao exe.) consticuem também uma deitura, mas uma leitura impondo a0 sujeito-leitor seu apagamento atris da instieuigao que o emprega:0 grande niimero de escrivies, 72 M.plcuaux. copistas “continuos’ particularese piblicos, constituiu-se, através da Era Classica ¢ até nossos dias, sobre esta rentincia a toda pre- tensio de “originalidade’, sobre este apagamento de si na pritica silenciosa de uma leitura consagrada 20 servigo de uma Igreja, de uum rei, de um Estado, ou de uma empresa Desenvolver socialmente tais métodos de tratamento em massa do arquivo textual, com fins estatais ou comerciais, supunha tor- né-los facilmente comunicéveis, transmissiveis ¢ reproduziveis: as irtudes de ordem e de seriedade, de limpeza e de bom carter, relaxados desde o século XIX pela democratizacio do ensino (no nivel “primario” ¢ “primério-superior”) encontraram ai um de seus empregos: a questo da “objetividade” dos procedimentos € dos resultados tornava-se, do mesmo modo, erucial, a ponto da referencia’ “ciéncia” (sob a forma das macemticas, especialmente das estatisticas como “ciéncia dos grandes niimeros’ ¢ da légica ‘matemética como teoria das linguas univocas) se impor progres- sivamente como uma evidéncia. As necessidades da gestdo administrativa dos documentos textuais de todos os tipos fizeram, assim, na primeira metade do século XX, sua ungao histérica com os projetos cientficos visando Aconstrugio de linguas artificiais (a heranca leibnitziana do Circulo de Viena). A primeira onda de desenvolvimento informatico das décadas de 1950 a 1970 veio confirmar essa unio. Os diferentes métodos mais ou menos sofisticados de andlise textual (desde a anilise de conteiido até aos atuais sistemas de interrogagio de dados) resultam dessa convergéncia, que nao parou, desde entio, de despertar o interesse dos “cientistas" pelos materiais discursivo-textuais. Evidentemente,o divércio cultural entre “literério” €o “cien- tifico” a respeito da leivura de arquivo néo ¢ um simples acidence: esta oposigao, bastante suspeita em si mesma por sua evidén recobre (mascarando essa leitura de arquivos) uma diviséo social do trabalho de leicura, inscrevendo-se numa relagio de dominagio politica: a alguns, o direito de produzir leituras originais, logo “interpretac6es", constituindo, a0 mesmo tempo, atos politicos 60 LER O ARQUIVO HOTE (sustentando ou afrontando o poder local); a outros, a tarefa subaltemna de preparar e de sustentar, pelos gestos andnimos de tratamento “literal” dos documentos, as dias “interpretagies’. Ecsta divisio social do trabalho da leitura que estéatualmente se reorganizando totalmente, aprofundando-se: compreende-se ue, de diversos lados, os poderes “interessem-se” pelas cigncias do tratamento dos textos. Sublinhar até que ponto 0s procedimentos “objetivos” destas se inscrevem tio facilmente numa série de efeitos burocriticos nao é senao denegrir exageradamente a situagao. A légica das classificagbesautoriza o desvio da atividade matemética pela gestdo administrativa, ou seja, pelo funcionamento de “mé 4quinas’ cuja memériaéconstivuida exclusivamentede lembrancas, listas e quadros: a palavra "IBM" esté ai para nos lembrat que a informética tem, espontaneamente, parte ligada & burocracia ad- Iministrativa. Isso nao impede que pesquisascicntificas possam ser conduzidas com o auxilio do computador, mas em certascondizdes gue se tentaré explicitar mais tarde, interpretando-as no campo discursivo-textual que aqui nos concerne. Feita essa evocagio, em consideragio ao legitimo ponto de hhonra do “cientifico” (repugnando a idcia de ser brutalmente comparado a um burocrata!),cabe constatar que a formagio na dominante “literiria” dos especialistas da leitura de arquivo for- hneceu muitas vezes pretexto aos “cientistas” para expandir um pouco mais o fosso de incompreensio que os separa, E ha fortes razdes que nos levam a pensar que, no contexto da Europa da década de oitenta, a tradigio dos grandes praticantes do arquivo vai se encontrar numa posigio cada vez mais delicada, face & pro- liferagio previsivel dos “métodos de tratamentos de textos” indu- Zidos pela desordem informatica que se prepara em nossas socie- dades, A arrogincia e a condescendéncia fobicas dos “literatos” ameaga isoli-lus sais e anais (culeural ¢ politicamente)* face & + Inimeroshistoriadores, Elser «gence delet expeimentan ca senso de n= potéacia. De diverioe ado, apres. cm dclarlo “lege fehunde tm ped "apidamence as questes qu els claczam (no slo XV, 08 ests lara, dos janselsasdelarando-sincompreenstvek) Mats upear no regime cara dos o phone paciente e mordaz modéstia“utiltiria” dos cientistas de arquivo, ‘que tém 0 futuro diante deles’ Logo, nos encontramos diante de uma nova divisio do traba- Iho de leitura, uma verdadeira eeorganizacio social do trabalho inteleewual, cujas consequenciasrepercutirio diretamente sobre a relagio de nossa sociedade com sua prOpria meméria histérica. 1No cerne da questio: a ambiguidade fundamental da palavra de ordem mais que centeniria “aprender a ler ¢ a escrever", que visa ao mesmo tempo 4 apreenséo de um sentido unfvoco inscrito nas regras escolares de uma assepsia do pensamento (as famosas “eis” semntico-pragmaticas da comunicagio) ¢ ao érabatho sobre 4 plurivocidade do sentindo como condigio mesma de um desen- volvimento interpretativo do pensamentot Atualmente, essa ambiguidade esti diretamente associada Aguela que diz respeito Certamente,adifusio maciga desta abre — sob condigoes que ‘evocamos abaixo, concementes & anise discursivo-textual — a possibilidade de uma expansdo dos prvilégios “literirios” da lei- ‘ura interpretativa em amplos setores onde (como, por exemplo, discursos politicos de uma parte, publicitirios de outra,o provam formética, “ert” érambéen 3 oporinidce de uma rancormagio de sos pica se let nfo «querem se teduidos org congruent, spemidos ene fabrcagho de “produos ‘Elan detiedos i expertapio i elebegi wna doepoderes opts, (© seoriteriio da Escola Normal Superior (Um) se comotes (tardimente) om cst seg nests vermos eds em Se eosprstivimo “Alda fang gerl de focrasSon0 rigor, + dciplina maremdia spresenta uma wade der atl de inswamento, para toda ume guma de especidades (Lingus, ecanomis soilogs geoph cea) emaisgeamenteparatodororpengundoresconfontdos com ‘oxproblema danse de dose como eatameno informatio de vss documentos ‘Mesmoseuma cera divs de trabalho inentel of peaqlsadoresdevero cern cles pepios, daminarsubcietementeointrumeato matic pars no seem mente hms aos ntrmeirosmatemstca ov 20 tenis de informa pos ‘otatamentoeonganzago de es dado. Send, ¢ grande o rico de ver pemuiadotet cess ae ego roe campos de esis ligador ie huranidaes clin, com todos os inconvenintes, qu oo poder compara (Bultin de le Sc der Amis de ENS, x24, abe 198 re) Ceres tendéncis said psclinguiic,atentadesbeeantespetagio doinante error de Choma levareram ambigudade por na prpea cont coniderando ‘Tingoagem como um "sea de retamento ede transforma da infoxmagis a Lek O ARQUIVO HONE suficientemente) a pritica da “leitura literal” se mostra perfeita- ‘mente insuficiente. Mas também grande, pelo menos, a ameaga de assistira uma restrigao politica dos privilégios da leitura interpretativa (no qua- dro da “reprofissionalizagio” do trabalho intelectual ¢ cultural), sobretudo se 0 essencial do debate informatico desse ponto de vista é silenciado: néo considerar os procedimentos de interrogagao de arquivo como um instrumento neutro e independence (um aperfeigoamento das técnicas documentais) é se iludir sobre 0 clcico politico e culcural que nao pode deixar de resulear de uma expansio da influéncia das linguas ldgicas de referentes univecos, inscritos em novas préticas intelectuais de massa, Nao faltam boas ‘almas se dando como missio livrar 6 discurso de suas ambiguida- des, por um tipo de “terapéutica da linguagem” que fixaria enfim © sentido legitimo das palavras, das express6es ¢ dos enunciados. E uma das significagdes politicas do designio ncopositivista esta de visar construirlogicamente, com a béngao de certos linguistas, uma semantica universal suscetivel de regulamentar néo somente 4 produgio e a interpretagio dos enunciados cientificos,tecnols- {gicos, administrativos... mas também (um dia, por que nao?) dos ‘enunciados politicos. Nesta medida, 0 risco é simplesmente 0 de um policiamento dos enunciados, de uma normalizagao asséptica da leisura e do pensamento, ¢ de um apagamento seletivo da memeéria histovica: “quando se quer liquidar os povos’, escreve Milan Kundera, “se comega a lhes roubar a meméria® Nesta inquietagéo ecoa a observagio de Georges Cangui- Them: Tnvimeros [1] sio 0s que se interrogam sobre os manifests de alguns sltculos politicos, sobre certosmétodos de psicoterapis dita comportamental, sobicosbalangos de certs socedades ce intormatic. Els acreditam disetnit ‘isso a vireualidade de uma extensio programada de técnicos vsando, em ‘lima andlise, 2 normalizagio do pensamento. 9» G.Canghem, Lecereeant pond, Cours Puli de MURS, 20 de feet de 990, pot. 6 .pECHEUX Falar hoje no interior desta situagio, tomada nos quiproqués (prolongados ¢ explorados politicamente) do divércio cultural entre “Tiveraros”c “cientistas’,e levantar a questio da leitura do arquivo & entao se ditigit, a0 mesmo tempo, aos “literatos” ¢ aos “cientistas’. B, em particular, dizer aos “liveratos": vocés acreditam poder ficar assim A discincia da adversidade que ameaga historicamente ‘a meméria e o pensamento? Acreditam poder ficar tanto tempo ainda protegidos, na casa do seu mundo de arquivo particular? E & também dizer aos “cientistas": vocs, a quem chamam de fabricantes-utilizadores de instrumentos, vocés acreditam poder ainda por muito tempo escapar & questo de saber para que voces servem c quem os utiliza? E, portanto, buscar suscitar sobre esse ponto as confrontagoes cas discussbes com conhecimento de causa. Isso mudaria — em consideragio & prodigiosa ignorincia reciproca na qual se protege cada um a respcito do outro — aquilo de que os politicos tiram proveito tio facilmente, Mas falar assim a uns eaoutros, no entremeio, sup6e especificar 4 posigdo que nds mesmos pretendemos ocupar: a presente reflexio fandamenta-se sobre o fato teérico que constitui a existéncia da lingua como materialidade especifica, constantemente contorna- da, ignorada ou recusada pelas duas culturas em divércio que (se) dividem assim 0 territério® Na realidade: — aculeura “litericia’ por sua familiaridade mesmo com o escti- ‘to, transporta consigo evidéncias de leitura que atravessam a materialidade do texto, sempre tido como linguisticamente transparente,sobretudo nos casos dos historiadores¢fildsofos. O caso das poetas, romancistas, escritores etc. & profissional- ‘mente diferente, na medida em que, nao tendo necessidade da a posiao desenovdacargumentada no eto ecente de Frangsise Gaderer Michel Plcheux. La ange introuable’ Callsion There Pass Mespero,9. 64 LER 0 ARQUIVO HOE pura narraséo de um pensamento, estes iltimos sio forgados a “habitar” sua Lingua sem se contentarem em marcar e reco ahecer nela aparigées/desaparecimentos de palavras, fancio- nando como mengGes, referéncias ou designagdes, De manei- ra que sio, frequentemente, os poetas ou romancistas que ideias” aos linguistas. Além disso, a difusao das concepgdes psicanaliticas (em particular lacanianas) favorecem, pelo menos em certos caso, este reconhecimento da mateialidade da lingua como constituindo o incontornavel do pensamento. = quanto a cultura cientifica ela finge por precaucio “metodolégi 1-8 Marcle, "Problémes de socolingicigue’, Congas de Tours, Pe 55,006 354 (© DISCURSO POLITICO E A GUERRA DA ARGELIA totalidade, Postulamos, entio,o relacionamento entre umaestrututa sintitica ¢ um comportamento politico, Nao sio as palavras, masa “distribuigao das palavras no texto que implica um modelo ideo- ogico subjacence". E, pois, em dieegio a uma andlise de discurso ue este trabalho se orienta desde seu inicio, €o relacionamento dos dois modelos repousa sobre aseguinte hipdtese: sea partir de enunciados que podem ser considerados como representativosdo dliscurso politico da guerra da Argelia, as frases de base, que suben- tendem o discurso em seu funcionamento sincrOnico ¢ talvez em seu funcionamento diacrénico, podem ser determinadas, teremos estabelecido, de certa forma, um modelo de competéncia comum 4 todos os locutores: as vatiagoes de perfirmance poderio, entio, set sincronicamente postas em relagio as clivagens sociopoliticas, dando conta diacronicamente de fenémenos de evolucio. Nessa perspectiva, os enunciades selecionados para a andlise devem poder ser considerados como representatives do discurso politico da guerra da Argélia. Tal necessidade conduziu & cons- trugao do texto, isto é,& detetminagio do subconjunto do corpus submetido & anilise. © problema fica reduzido & escolha de in- variantes ou de palavras-pivé em torno das quais a andlise possa organizar-se de modo vilido. A solugio adotada das escolhas iniciais. Se o contetdo selecionado ¢ o problema da relagio entre AcB,cseodiscurso politico da guerra da Argélia édefinido como © discurso que contém uma representagio da relagso entre estes dois termos, parece legitimo submeter & andlise os enunciados formadosem tomo das unidades Agia e Franga e dos adjetivos «argelino ¢ lancts. A medida que o conteiido ideolégico de todo Adiscurso politico da guerra da Argélia reside, nao nos termos AeF, angelino ou francés, mas na relagio que se insttui entre cles, evita. se, através desta escolha, qualquer preconceito sobre o contetido plopriamente dito. * ean Dubpis, “Lexicologie er analyse dénanct Colloque de LesclogePoiique de Sint Cloud, Cabins de Lasoo 3969, 5. 55 O método de andlise Ele esté fortemente vinculado as hipdteses de base. A andlise ‘comporta dois aspectos complementates, ou melhor, dois tempos distintos: a) a construgéo do modelo linguisticos b) a exploragéo desse modelo. Usilizamos, para a construgio do modelo, o método defini- do por Harris em seu artigo "Discours analysis, Esse método, cujos principios jé so conhecidos, visa clasificar os clementos do texto de maneira a fazer aparecer os esquemas recorrentes de -morfemas, constituindo assim classes de equivaléncia ou para- digmas dos elementos que aparecem no interior de uma mesma estrutura proposicional. Esse trabalho de classficagio necessita recorrer a uma “manipulasio transformacional’,fundada sobre a ideia de transformagio ¢ definida por Harris como uma regra de cequivaléncia entre duas estruturas. Através desse procedimento, puramente operacional, pode-se “normalizar” o texto ¢ reduzi-lo um pequeno ntimero de esquemas. Inspirando-nos em tais prineipios, no primeiro momento de anilise construimos 0 modelo, isto é, determinamos as frases de base que subentendem o discurso politico da guerra da Argélia. ‘A nogio de “frase de base” remete a uma certa combinagio de morfemas — realizada ou nao no texto — que dé conta das per- _formances rexeuais, Pudemos, desde a primeira sincronia, estabelecer a existéncia de duas frases de base, ‘A primeira, 4 F,realiza no texto sob a forma cnfitica Algerie, est la France, a partir da qual se pode explicar um grande ndmero de sintagmas e de performances do discurso, ‘A segunda, a Argélia depende da Franca, nio pode set arestada como tal no corpus: ela é apenas implicada pelo emprego de certos, substitutos do tipo colénia-meirdpole e, cal como a primeira, dé conta de numerosas realizagées do texto, > Flas, “Lanalye du dscour Lange, Ted: Dubois Char 156 (0 DISCURSO POLITICO E A GUERRA DA ARGELIA Esse modelo, fixado para a primeira sinctonia, mostrou-se validado diacronicamente. ( segundo tempo da andlise comporta, em fungo da propria hipétese adotada, a exploragio Linguistica do modelo, o qual define o que é comum 20 conjunto dos locutores: as performan- ces, segundo as quais se realiza em cada jotnal, remetem a0 que especifico de cada grupo de locutores, representativo de um ‘grupo social ou de um comportamento politico. Trata-se, pois, deestudar as diferengas entre as performances dos periédicos. S40 cessas diferengas que poderio ser relacionadas is diferencas de comportamento politic. ‘A andliselinguistica ests, nesse segundo tempo, centrada sobre feriomenos de reformulacdo, sobre procedimentos linguisticos pelos quais o enunciado de base ou 0 enunciado oficial é eproduzido ou reconstruido: adigio ou substituicio de um termo, transformages que atingem ou nao o significado do enunciado (transformagao negativa/transformagao nominal), formas de modalizagéo, de re- jeigdo ou de distincia em relagao ao enunciado, Nessa perspectiva, «estamos longe da nogio de transformagio, no sentido harrssiano, deregrade equivaléncia entre duas frases: adite-se, a0 contrétio, 4quea natureza das transformagées ¢significativa, que a ordemea escolha das transformages manifestam a intervengio do sujeito € seu projeto no ato de enunciaglo. Os fatos de entnciagao, to- talmente apagados na perspectiva da Harris, encontram lugar na anilise, tanto por poderem ser o lugar de clivagens sociopoliticas, quanto porque podem ser relacionados com 0 tipo de discurso estudado: o diseurso politico. Resumo dos resultados da andlise Embora esses trés aspectos estejam fortemente imbricados, va- ‘mos lembrar sucintamente nossas conclusdes sobre o discurso politico da guerra da Argélia, as clivagens sociopoliticas e os problemas de evolugio. 57 O discusso politico da guerra da Argélia caracteriza-se por dois tragos essenciais: ~ éum discurso polémico; ~ aambiguidade nele reveste-se de importincia central, ‘Afirmar que o discurso politico da guerra da Argélia é um dis- curso polémico consiste em dizer que cle se situa em uma relagio de oposigio seja com um discurso realizado anteriormente, seja com proposigo(6es) implicantes atribuida(s) ao adversério. A oposigao polémica manifesta-se em varios planos: ~ no discurso dos dirigentes franceses que combate as propo- sigbes implicitas ou explicieas dos nacionalistas argelinos; ~ no discurso que este ou aquele jornal mantém sobre 0 dis- curso oficial; — secundariamente, os enunciados de um jornal podem visar a0 discurso mantido por um outro jornal sobre o discurso oficial. Eoqueocorre, por exemplo, no FIG de 1-11-54:*O ‘nacionalismo argelino; expressio brandida antcontem por /’Humanité |)” ‘A apreensio desse caréter polémico pode fazer-se através do cestudo das formas do enunciado. Dois tipos de enunciados parece essenciais: 0 tipo assertivo, através do qual uma assergio opée-se cexplicitamente ou nao a uma outra asser¢o; 0 tipo performativo, através do qual uma vontade determinada é expressa, opondo-se auma vontade contréria, explicitamente ou nio. Formalmente, nada marca o caréter polémico do enunciado assertivo: 0 enunciado 4 ¢ F nao se distingue em nada de um enunciado que constata — esta casa é baixa, Scu valor polémico advém do sistema geral das proposigdes em que est integrado. contexto situacional é determinante. Assim, a proposigio 4 éFé polémica porque nega a proposigao 4 ndo é F que implica, desde 6 primeiro dia, o combate nacional argelino*, Ela entra, por seu turno, em relagao de oposicao transformada (transformagia ne- © Argos: ase necesito preci que et ropes io ext omen implicid pelos aconteciment. A delrigio da FLN (Fete de Liberagso Nein), no dia dene verbo de1954, 20 refer se nacionaidaeargeliatsarcaasignitcagio dos senades ‘desencadeados no eto agelna, 158 gativa) ¢ reformulada que enconteamos a partir de 1954 no Hi: A néo €F, AéA, Podem-se representar essa oposigées pelo seguinte esquema: Ando bP <———--— AEF <~ > AnaoéF AéA proposicao dos proposi¢ao ‘Transformagio nacionaliseas oficial ncgativa + argelinos reformulagéo deH Iniciagao & agéo, 0 enunciado performativo tem geralmente a forma de um enunciado modalizado por querer, cujo sujeito €0 tetmo F. Esse, por sua vez, responde a um enunciado perfor- ‘ativo de sentido oposto atribuido aos nacionalistas argelinos. Em 1954, quando esses sistemas de oposigio sio particularmente claros, 0s enunciados com sujeito F sio simetticamente inversos 408 enunciados com sujeito os nacionalistas argelinos/rebeldes. Encontram-se os pares: os nacionalistas cs Endo quer ase- cangelinos querem ” cesséo asecesséo os rebeldes 0s nacionalistas F quer a sobera- argelinos néo ” nia francesa querema sobera- ia francesa as rebeldes ‘A oposicio, idéntica em seu principio, € mais complexa nas sincroniasseguintes:o enunciado performativo com sujito Fé uma reformulagio que nega implicitamente o enunciado performative dos argelinos. Assim, em 1956, temos os seguintes pares: 159 os rebeldes querem a independéncia _(proposigio realizada) > F quer rforgar os lagos entre Ae F (proposigio implicada) 0s nacionalistas A querem a nogio A > F quer reconhecer a personalidade argelina Aambiguidade desempenha um papel importante no discur- so oficial. Correlativamente, ela determina, como veremos, uma oposig4o essencial no nivel dos jornais, pois estes devem tomar uma decisio encre desambiguizar ou nao — desambiguizar 0 enunciado que relatam. Bla caracteriza algumas das performances oficais desde asegunda sineronia, com os enunciados de Guy Mollet — os lagas entre A e Fea personalidade argelina — constituindo-se, como sabemos, em um trago essencial do diseurso gaullista, Do ponto de vista linguistico, ela promove principalmente a conciliagio de modelos diferentes. Certas formulacées ambiguas ‘obrigam a empregar tanto a forma positiva quanto a negativa da frase de base: 4 éFe Ando F. Assim o enunciado a personalidade argelina & um exemplo desta tentativa de conciliagao: ele implica canto A do 6F, pelaintermediagio de um processo de transforma- ges complexas que abrange a passagem de A para.a categoria dos animados, quanto 4 ¢ F, j4 que o mascaramento chega 4 rejeigio do substituto de cariter politico de A na frase negativa: a nagao Ando ba nagio F. ‘As proposigées assim conciliadas representam dois aspectos do referente da Argélia: no plano do direito, a Argélia éa Franca ‘mobiliza um modelo ideologico; ja Angelia néo éa Franca remere para o plano da realidade étnica, social etc. A ambiguidade da formula resulta da conciliagao das duas proposigdes, remetendo ‘aos aspectos contiaditérios do reference, E precisamente a guerra que rompe a unidade aparente do referente Argélia e provoca a manifestacio das contradigées entre realidade e principio. O discurso oficial, que cm 1954 era simples repeticéo encantatéria do enunciado 4¢F, é rapidamente coagido 160 © DISCURSO POLITICO EA GUERRA DA ARGELIA a ceder, sob pena de adotaro sistema ideolégico do adversitio, & tentagio de conciliasio, vale dizer, Aambiguidadc. ‘Uma parcela essencial das clivagens socolingwisticas pode set relacionada 3 ambivaléncia do modelo, a um s6 tempo linguistico e ideol6gico: as proposigées 4 é Fe A depende de Fconsticuem tanto tum modelo linguistico quanto uma representagéo ideolégica da relagio entre A ¢ F. Esse cariter ideolbgico do modelo justifica o estabelecimento deuma relagio simples entre performances realizadas eo conteiido préprio a cada jornal. Pode-se, pois, admitir que: 1) as realizagoes das proposigées ou de suas transformagies implicam a adesio a0 modelo idcolégico que elas representam; 2) as reformulagdessignificativas ou as ejcigdes dessas propo- sigdes podem ser interpretadas como uma recusa desse modelo; 3) as performances ambiguas remetem aum modelo ideoldgico ambiguo. ‘Auavés das diferencas sintdticas, atingem-se as diferengas de ‘contetido. Com base no modelo ideolégico, colocou-se em evidéncia, desde a primeira sincronia, uma clivagem fundamental entre 0 conjunto de jornais que aderem & formula 4 ¢ F, eZ, que a rejei- ta, substituindo-a por é 4, 4ma nagdo. Diacronicamente, esta clivagem modifica-se a partir da segunda sineronia, chegando a uma tripartieipagéo: # grupo: AU, FIG, PL modelo AéF 24 grupo: POP, LM. modelo ambiguo 3° grupo: H modelo dé.A No plano das unidades lexicais essa clivagem determina acxis- téncia de sistemas estruturados em torno das proposig6es tomadas como modelo ideol6gico. Para osjornais que possuem um modelo ideologico determinado, nio hi, em principio, interferéncia entre 161 cesses sistemas: pode-se dizer que, no vocabulirio da guerra da Ar- sélia, para um mesmo referente, seesso pertencente ao sistema dos partidirios do modelo 4 éF, enquanto independéncia inscreve-se no sistema adverso. E, quando uma unidade do sistema oposto aparece, guarda as marcas formais da tejcigio. Embora num primeiro momento possa parecer paradoxal, 0 estudo confirma que os grupos sociais diferenciam.-se menos pelas palavras do que pelas proposigées que as representam ou nas quais estio implicadas. A maior parte das palavras que constituem 0 vocabulério politico da guerra da Argélia s6 assume um determi- nado contetido politico através da proposicdo que representa na estructura profunda, vale dizer, da relacao que elas instituem entre Ae. A anilise mostrou que as palavras podiam aparecer em sistemas ideol6gicos adversos, remetendo a proposigées radical- mente diferentes. Desse modo, najéo/pdtria, unidade da nagio, 4 independéncia da nagdo referem, segundo 0 modelo ideolégico do locutor, a Franga oud Argélia. Na situasio hiseérica da guerra da Argélia, a palavra nagdo & comum ao conjunto dos locutores; &a proposicio dos combatentes argelinos — a Argélia é uma nagdo — que divide a comunidade francesa, Da mesma forma, 0 cestudo comparativo dos sistemas de designaso dos combatentes argelinos e dos autores do golpe de Estado de 13 de maio fornece termos compartilhados: rebeldes/patrioras, Os mesmos termes remetem a uns €a outros, conforme se encontrem em um jornal de dircita ou no H. No EM, cujo modelo ideol6gico é ambiguo, zebeldessecve para designar tanto uns como outros. E preciso considerar separadamente 0 caso de coléinia, tabu para todos 0: jornais, salvo para H ¢ POP em 1934, € tejeitado por toda.a imprensa de direita, nas sineronias seguintes, A existéncia dessa clivagem poderia conduzir ideia de que “colénia’, termo decorrente de um certo tipo de anilise das relacées socioecand- ‘micas, em geral mascarado pela ideologia das classes dirigentes,é ‘uma “palavra de esquerda”. Assim procedendo, voltariamos tese das palavras-indice. Ora, o emprego decolénia como substituto de Argéliaimplicaa adesio 3 proposigio A éuma colinia, Pode-se, pois, 1 (© DISCURSO POLITICO F A GUERRA DA ARGELIA admitir que no contexto da guerra da Argélia, é essa proposigio, € ndo a palavra, que é rejcitada. O tabu que incide sobre colénia confirma, por outro lado, o caréter mais ou menos mascarado do modelo ideolégico A depende de Fe permite-nosavangar ahipétese de que a formulasio 4 ¢ Fsirva apenas para mascaré-lo, ‘A medida que o modo de enunciagio pode ser revelador da maneira pela qual o grupo social concebe sua relagio com a.co- munidade, as formas com que se reveste o enunciado determinam as clivagens sociolinguisticas, das quais a principal é operada pelo enunciado performativo da forma F + quer + SN Ele permite distingui — um grupo de jornais (40; FIG, PL) que produz esse tipo de enunciado: a distancia minima ¢ a inclusio na comunidade sio mareadas, sobretudo.em AU, pela utilizagio dos pronomes pessoal € possessivo em substituigio ao termo F e a0 adjetivo fiancés (AU 11/1254: Nés permaneceremas ld com todos os nossos direitos e todos 4s nossos deveres); — doisjornais (POP, LM) quco produzem exclusivamente nos enunciados relatados, manifestando a propenséo de neutralizat a modalidade; = H, que o exclu, substituindo-o por dois tipos especificas de enunciado em que figuram 0s modalizadores poder e dever, O primeito institui uma relagio de nao excluséo entre duas proposigdes segundo 0 esquema x nao exclui y ¢ forma um par légico-semantico com enunciados que exprimem uma relagio de exclusio. Temos, por exemplo, 0 conjunto: X" exclui Y e X exclui Y* aindependénciadeA do exclui novas relagies entre Ae F anio independénciadeA —_exclui novas relagies entre Ae F aindependéncia de A exelui a separagio de Ae F 163 deseacamos assim uma estrutura légica do discurso de H que se opée incisivamente as performances conotadas de certos jornais, de direita. © enunciado modalizado por dever decorre logicamente da proposigéo 4 é 4. Eta é sua forma: F deve reconhecer 0 fato nacional argelino/a independéncia de A. Essas formas especifcas de enunciado situam He AU como antipodas: seja pela recusa a integrar-se ou identificar-se com entidade F cuja vontade é interpretada pelos dirigentes (tipo 2), seja pela referencia a uma Franga, aquela que pode instituir novas relagbes com a Argéli,relagio de amizade ede entendimento com © povo argelino (tipo 1). ‘Como vimos acima, uma clivagem essencial éestabelecida entre 6 jomnais que desambiguizam c aqueles que se recusam a desambi- guizaro discurso oficial, sta oposigio faz um novo recorte em re- lagio aquele feito com base na atitude relativa 20 modelo ideoldgi- co.4éF. Emoutros termos: a desambiguizagio é propria dos jornais que possuem um modelo ideolégico no ambiguo; ela aparece como a rejeigio de um modelo ambiguo. Assim, ea é comum 20s jornais queadmitem 0 modelo 4 éF: AU, FIG, PL e H, que rejeita esse mo- delo pata substitui-o por A é 4. No caso de H, desambiguizacio tejeisao constituem um par solidario. A nio desambiguizacio, ca- racteristica de POP¢ LM, pode ser rlacionada Aambiguidade deseu modelo ideoldgico. Apesar das dferengas dos objetivose das filo- sofia implicta desses dois jornais, pareceu-nos legitimo aproximar «sta nio desambiguizagio A sua adesio comum a um modelo socio- culeural subjacente a numerosas formulagSes ambiguas — os lagas entre Ae F, a personalidade argelina, a ascii — que implicam ‘uma representago personalizada da relagdo entre Ae Fe a referén- cia humanistic a valores que possilitam evitar 0 problema poli- tico colocado pela guerra da Angelia. O estudo do metadiscurso e de suas marcas formaisiluminou a imporcancia dos fendmenos de rejeigio ¢ de reformulagio. Cli- 164 ‘0 DISCURSO POLITICO B.A GUERRA DA ARGELIA vvagem essencial que opée aqui o conjunto dos jomais que tém um metadiscurso fortemente explicitado, tal como PL. Por razdes que decorrem de sua propria estructura, PL, jornal popular de grande difusio, consagra pouco espago ao comentério. Convém, entrecanto, cobscrvar sobretudo sua tendéncia de excluir pura esimplesmente unidades lexicais que apresentam problema: sintagmas ambiguos, termos pertencentes ao sistema adverso etc... Esse ponto chamou nossa atengio a medida que vai ao encontro das observagées de J. B. Marcellesi em seu estudo sobre o vocabulétio do Congresso de ‘Tours’. Ele constatou que, em 1920, sucedia 0 contrério: 0 meta- discurso era mais explicito no jornal popular do que no restante daimprensa. Sem divida,asituagio era muito diferente: em 1920, sublinhava-sea especifcidade dos prop6sitose das unidades produ- 1idas por um grupo politico determinado, Partido Socialista. Na épocada guerra da Argélia, PL, que adere sem restrigio ao modelo ideolbgico 4 ¢ F, coloca sua grade referencial sobre 0 discurso e imina toda proposigio adversa, ambigua ou problemitica. Problemas de evolugao © estado diaerOnico permitiu verificat a validade do modelo de competéncia estabelecido a partir da primeira sincronia. Se o modelo de competéncia € invariante, a vatiagdo deve ser relacionada is performances realizadas. Assim, em seu principio, o estudo diacrénico — no nivel propriamente linguistico — nao difere do estudo sinerdnico quando esse se associa As variagGes realizadas nos periodos. Os problemas de evolugio podem ser considerados do ponto de vista do enunciado oficial e da perspectiva das modificagSes nos sistemas linguisticos dos jornais, ‘Ao nivel do enunciado oficial, nossa primeira observagio era ade que a guerra da Argélia se situava entre as formulagoes Ae F caindependéncia. Agora, pode-se afirmar com mais rigor que hi uma correlagio diacrOnica encre: 7-8. Marcle, "Analyse ngubiquecsciolingsinigue du vocabulice da Congr de “Tous La Poe 5,975 165 AGF > AnéoéF (cnunciado inicial realizado) (enunciado implicado ao fim da guerra pelo reconhecimento de A como nagio) AdependedeF ~~ > Ando depende de F (enunciado inicial implicado) (enunciado realizado ao final da guerra soba forma do sintagma no- minalizado: a indepen- dencia da Argélia) Oestudodo funcionamento diacrénico do cnunciado permite vver por que meios linguisticos se passa do enunciado inicial a0 enunciado final, sendo essa passagem considerada como resultante de transformagées. No quadro de nosso trabalho, limitado a quatro sincronias, constatamos a passagem do enunciado 4 ¢ F, de 1954, & autode- Lerminagéo,em 1959, através das etapas personalidade argelina, de 1956, ¢ das formulas ambiguas de De Gaulle — Nao existem senao _francesesplenos (il n'y a plus que des Francais é part entiére), fazer ‘0 resto, a associagéo — datadas de 1958. A ambiguidade desempenha um papel importante nessa ppassagem. Ela aparece tanto como possibilidade de evolusao € elo de continuidade, quanto como principio de mediacio politica entre formulagées univocas. Ela prepara a passagem & formulagio da autodeterminagio que, embora nio coincida com 6 fim da guerra, constitu, nos planos linguisticoe historico, uma ‘etapa decisiva em fungio do questionamento do modelo ideols- gico— A depende de F. Esse questionamento decorre da andlise da autodeterminasao: dé-se conta deste sintagma — nominalizagio de A determina A, admitindo a substivuigio do sujeito A pelo sujeito F na proposigao inversa — F determina A — equivalente ded depende de F. 166 © DISCURSO POLITICO B A GUERRA DA ARGELIA ‘No nivel das modificagdes que se produzem diacronicamente nos sistemas estudados, podem fixar alguns tragos. ‘As mudangas essenciais dizem respeito a POP e LM que pas- sam da adesio 20 modelo ideol6gico 4 éF a uma atieude ambigua em relacao a esse modelo. No plano linguistico, essa evolugio sanifesta-se pela inclinagéo aos sistemas duplos onde coexistem termos pertencentes aos dois modelos ideoldgicos; pela producéo de sintagmas ambiguos, nio desambiguizados ou que recebem uma dupla tradugio; pelo diseanciamento tomado em relacio a0 cenunciado, seja pela neutralizacio da modalidade, seja por uma forma de enunciagio que nio implique nem sua assungio, nem sua rejeigio, A estabilidade dos sistemas lexicais dos outros jornais responde’& estabilidade de seu modelo ideol6gico. E interessante observar que AU FIG passam de sistemas exclusivos (no produgio das unidades do sistema adverso) a sistemas de rejeiso explicca, registrando-se correlativamente 0 abandono dos tabus, evolusio {que atesta o aumento da tensio polémica e dé testemunho da incidéncia da guerra sobre o discurso politico. ‘Mudangas manifestam-se igualmente na forma do discurso politico da guerra da Argélia, endo seu trago essencialo recuo do éenunciado assertivo em proveito do enunciado performativo, tanto no discurso oficial quanto no diseurso dos jornais. A passagem do enunciado assertivo de 1954, éF, para o enunciado performative gaullista [4 mao existem senao franceses plenos, enunciado do tipo mégico que pretende, pelo nico fato de sua enunciagéo, trans- formar a realidade, sublinha uma evolusio importante: odiscurso politico no pode mais se contentar em enunciar principios, ele é ‘uma ago que se insere em uma agio e responde a uma ago. ‘A parte diacrdnica do trabalho, em fungéo dos préprios prin- cipios sobre os quais esti fundada — recortes em sincronia— nao. podia prevender resolver os problemas da histdria propriamente dita. Apenas pudemos conscatar evolugdes que esperam por set verifcadas. Se o estudo linguistico pode esclarecer certos aspectos do discurso politico, em sua dimensio diacrénica, cle aborda neces- sariamente — sem que esteja em seu poder resolvé-lo— o problema 167 da relagio entre discurso e historia, Negando ou reformulando as proposigdes dos argelinos,o discurso politico insereve-se em uma relacio dialécica com a realidade, Se ele a reflece indiretamente, tende a mascaré-la, fandando uma nova referéncia ambigua. A ambiguidade, a nosso ver, afigura-se definitivamente comoo trago cessencial do discurso politico da guerra da Argélia. Seré preciso nla pereeber o reflexo dos progressos da causa argelina ou ela & tuma arma ideolégica destinada a combaté-la? Inscrevemos af o problema da articulagio do nivel do discurso politico com o da relagio de forgas. Este problema ulerapassa o propésio do linguisa “Para encontrar a fungio de uma ideologia’ escreve Régine Robin, “6 preciso sair do texto, mudar de terreno e passar da linguistica 4 historia’, A linguistica ordena a ideologia, mas o significado social de ideologia est fora de seu campo"®, Em nossa opinio, ‘esse ponto assinala claramente as bases sobre as quais pode e deve desenvolver-se uma frutuosa pesquisa interdisciplinas, ‘Traducio: Freda Indursky esa cage como se sabe, “hiteasgiia mteilisme hisrico [Réine Robin, "Veer ane histoire der iddologis-la notion defndalie dans edie cl Tidéologie juridique bla find 8 scl ales Hivorigues de la Revolution Prange 168 VIII. Efeitos do arquivo. A andlise do discurso no lado da histéria Jacques Guilhaumou (CNRS) Denise Maldidier (Paris X-Nanterre) Nossos trabalhos sempre se insereveram em um espaco bem de- terminado: na relagio entre a ist6ria ea inguistca, Participamos da emergéncia, na Franga, de uma nova disciplina, a andlise do discurso. Partilhamos suas esperancas, seus conceitos, suas ilusbes. No entanto, os obstéculos que surgiram da relago com a historia ogo nos levaram a criticar a configuracio metodolégica do ponto de partida. Nossas diividas concentram-se na questao do corpus ¢ foi o conceito de arquivo que nos permitiu uma resposta. Do arquivo ao corpus ou a emergéncia da coordenagao pao e x Séries textuais e dispositivos de arquivo Oarquivo no interior do qual andlise do discurso clissica recor- tava seus corpus tinha como origem séries textuais impressas, j6 conhecidas e analisadas pelos historiadores. Quando eventual- ‘mente nos interessvamos por sua materialidade, nds atomvamos como uma evidencia’, sboramos esa crtica tm 1979, em um ago da Diletigue cf Bibliografa. Es fo objeto de dcbates na RCP Adel: Retomamot aes questo em Guilauon (58). 169 J.GUILHTAUMOU + D, MALDIDIER Na perspectiva atual, consideramos a complexidade do fato arquivista. O arquivo nunca ¢ dado « priori, ¢ em uma primeira Icicura, seu funcionamento é opaco. Todo arquivo, principalmen- te manuscrito, éidentificado pela presenga de uma data, de um nome proprio, de uma chancela institucional etc, ou ainda pelo ssa identifieasao, puramente cla diz pouco do funciona- ‘mento do arquivo. Nossa pritica atual de anilise do discurso re- toma as preocupagées dos historiadores de mentalidades, que na construgio de objeros como a morte, o medo, o amor, 0 profano 0 sagrado, instalam, pela confrontagio de séries arquivistas,re- sgimes mileiplos de produgio, eirculagio e leitura de texto*. Esses historiadores teabalham ao mesmo tempo sobre a longa duragio € sobre o acontecimento: a instituigso — e a clasificacao arqui- vista que ela impde — sempre mantém, para eles, uma divisio problemética, iso porque o arquivo no é0 reflexo passivo de uma realidade instieucional, ele é, dentro de sua materialidade ediver- sidade, ordenado por sua abrangencia social. O arquivo nao é um simples documento no qual se encontram referéncias; ele permi- te uma leitura que traz & cona dispositivos e configuragoes signi- ficantes. Tnicialmente presa ao genero do discurso politico, andlise do discurso clissica nio tinha nenhuma necessidade de diversificagio do arquivo, No entanto, a partir da busca por aquilo que instala 0 social no interior do politico, néo pudemos mais ignorar a multi- plicidade de dispositivos textuais disponiveis. Vemos quea anilise do discurso ampliou seu campo de investigacao: do interesse pelo discurso doutrindrio ou institucional, ela passou 0 que poderiamos chamar a histéria social dos textos’. Referio-nosporexempl, x Ares (977) eVovele(985)-M,Pécheus fx cefrtnl 8 ‘ain proximal enue hina ds mentalidaes ea andi do dso ese lume ge publ na cevita Mot, 9.1984 Es expresso scfece uma parce dr preocupagies ds RCP Adela. Vr em Haire ot lisse, Gian (19848) e Mali (984) 170 [EFEITOS DO ARQUIVO, A ANALISE DO BISCURSO NO LADO DA HISTORIA Justifica-se, assim, nossa escolha inicial: um trabalho sobre a maior questo social da Franga do século XVII, a questio da subsistncia'. O problema da subsisténcia concentra grande parte das relagdes entre 0s grupos sociais subalternos, as elite ¢ os po- dezes (o Estado monarquico, o Parlamenco, as comunidades etc.) tendo um papel fundamental na formagéo da opinio publica Esse problema mobiliza um vasto leque de arquivos: do grito do povo amotinado que chega atéa justia atéo tratado de economia politica, passando pela corcespondéncia dos intendentes, a obra literdria ou o debate da assembleia etc. O trabalho que desenvolvemos mostrou, as vésperas da Re- volucao Francesa, uma participacio entre dois dispositivos de arquivo: o primeiro manifesta-se pela emergéncia macica do termo “subsisténcia’. No antigo regime, o rei tinha a responsabilidade do bem-estar e do desafogo de seus stiditos, da subsisténcia de seu povo: cle er20 pai adotivo, Sé.a partir de 1770 0s intendentes procuraram claborar os estudos de subsisténcia, fazendo deles 0 objeto de um saber administrativo. O segundo dispositivo de ar- quivo adquire sua importéncia durante o periodo revolucionirio sobre 0 qual nos detemos. Coneretiza-se na circulagio da expressio “paio® durante os confrontos de rua e em frente as padarias, apare- cendo em mensagens ou pedigées, eem panfletos que exprimem a demanda pelo pio. Num momento cm que a democratizagio fiz surgit um grande niimero de instancias legitimas, a questio do pio, associada & dos direitos fundamentais do homem, introduz © aspecto social no campo politico. A procura desse dispositive de arquivo, percorremos as fontes impressas: panfletos, jomnais, livros, cartazes etc., assim como pesquisamos fontes manuscritas: processos verbais de assembleias revolucionatias, correspondéncia entre cubes sociedades populares, mensagens epetigbes,relasrios da politica einterragarsrios jndiciais ere (CE Gulhaumon (19848) ¢ Gllhanmou Maile (984). mn | GUILHAUMOU + D.MALDIDIER ‘Tema e acontecimento discursivo ‘Tradicionalmente, a questao da subsisténcia ¢ considerada uma questio de histéria econémica e social. © historiador america- no Steven L. Kaplan (1976) abordou-a no terreno dos poderes, atribuindo através dela uma importincia nova 20s textos, em relagio as estatisticas. Nossa perspectiva€sensivelmente diferente: interessamo-nos pela emergéncia dos discursos em circunstancias determinadas, o que implica uma preocupagao com 05 usos s0- ciais da lingua. Ao invés de falarmos da questao da subsisténcia, recorremos 4 nogio de fem falando, portanto, do tema da subsis- téncia. A nogio de tema nao remete, aqui, nem A andlise temética, tal como ¢ praticada pelos criticos literrios, nem aos empregos que dela se faz. na linguistica. Essa nogio supde a distingao entre “0 horizonte de expectativas” — o conjunto de possibilidades atestadas em uma situagio hist6rica dada — eo acontecimento discursive que realiza uma dessas possibilidades,inscrito o temaem, posigio referencial). © acontecimenco discursivo nao se confunde hem com a noticia, nem com 0 fato designado pelo poder, nem mesmo com o acontecimento construido pelo historiador. Ele & apreendido na consisténcia de enunciados que se entrecruzam em um momento dado. ‘Nos primeiros meses de 1789 ocorreu, a0 mesmo tempo, 2 formagio, em todo o reino, de assembleias eleitorais que exercem seu novo direito de deputagio dos Estados Gerais assim como a ‘multiplicagéo espontinea de revoleas populares contra oalto custo de vida. Apesar das novas liberdades, os confrontos entre 0 povo ‘que sc revolta cas autoridades permanece inalterado: 4s propostas paternalistas dos representantes do rei, ao grito “Force a la oil” (Forga para a leit) dos oficiais municipais, segue-se — quando necessirio — o uso da forga armada. Erente a esse impasce os deputados do tezeeiro Estado dos Estados Gerais recebem um 5 capresso “hotzone de expecatvay foi criada por R Kose eR, Jus Ver em francs Ras. Pr ane cohlque de Le repo Pai, Gala, 978 ma [EFEITOS DO ARQUIVO. & ANALISE DO DISCURSO NO LADO DA HISTORIA ultimato da opiniaio publica para encontrar uma nova solugao. ‘A solugao chega com o préprio acontecimento, 0 14 de Julho, as Jornadas de Outubro, Falamos de traeto temitico na questio do pio para definir 0 conjunto de configuragées textuais que, de um acontecimento a outro, associam a demanda pelo pio, alinguagem da liberdade e as primeiras expressies dos Dircitos do Homem. A andlise de um trajeto tematico remete a0 conhecimento de tradig6es retéricas, de formas de escrita, de usos da linguagem, mas sobretudo, inte- ressa-se pelo novo no interior da repeti¢io. Esse tipo de andlise nao se restringe aos limites da escrita, de um géncro, de uma série: cla reconstréi os caminhos daquilo que produz o acontecimento nna linguagem. Como exemplo, de acordo com R. Robin, temos 0 trabalho de D. Slakta (1971), em que 0 autor pesquisou, nos Cahiers de Doléances, as premissas de uma nova linguagem re volucionscia, ao contrério de outros historiadores, que os leram como 0 Testamento do Antigo Regime. Ao longo da lista infinita de reclamagées constitui-se um novo sujeito de enunciagao, 0 sujeito coletivo que aparece no ato de pedir. © ato da demand ques analisalinguisticamente nos Cahiers € produto. a matriz de um grande numero de debates, confrontos e reclamagdes que preparam o terreno para a linguagem da liberdade. Vemos que a anilise do trajeto temtico fundamenta-se em um vaivém de atos linguageiros de uma grande diversidade e atos de linguagem que podemios analisar linguisticamente e nos quais os sujeitos podem ser especificados', Voltando & quescao da subsisténcia, & pergunta habitual sobre alto prego do pio e 8 resposta, nao menos habitual em termos de conspiragio, soma-se, véspera da Revolugéo, uma demanda que abre nosso tema: © nodosum dining ent os ats de ngugen frmlizndos na rageica lings eosaroslinguageios ques manifexam em milo nics nis configures 3 .GUILHAUMOU + p.MALDIDIER ‘Demanda importante para todo o bem piibicoe paratodaa nagao em ger: deonde vem o pio tio caro? Fisa razio: £0 trigo que est. fora de prego por questéesde monopélio.emanobras |] Porisso, pedimos que sjaordenada A primeira assembleia dos Estados Gerais uma lei referent 280. ‘Addemanda por pio nao é em si nova, ela se desloca do rei para © povo: o péo entra, assim, no campo do politico. Quando da reuniao dos Estados Gerais, a questao do pao se realiza em diversos tipos de enunciados: o grivo de revolta (“pio, ppio!”),aameaca terrorista (“Nos dé pio, rhpido!”), a constaragso da «escasseze do alto prego do pio, o pedidode redugio do prego do pio. Coma tomada da Bastlha, em que o movimento popular instalaa linguagem da liberdade, os motins pela subsisténcia adquirem um novo sentido, Assim, ao antincio, a20 de julho, de perturbagdes na regio parisiense, um deputado entio desconhecido, Robespierce, estabelece uma relagio entre a demanda de trigo ea exigéncia de liberdade: "E preciso amar a ordem, mas sem prejudicara liberdade [..] a revolta de Saint Germain e de Poissy tiveram como causa o alto prego do trigo (..]- Foi a propria insurseigéo condenada pela mogio que salvou a capital” Encontramos esa relagio em um dos primeiros textos que estabelece a meméria do acontecimento de14 de Julho: “Franceses!, a nossos representantes, guarda francesa, ands mesmos, que devemos nossa liberdade; masa liberdade nao é nada sem as boas coisas da vida; ¢ espero que nossos deputados cocupem-sc do barateamento do pio, em favor da classe menos favorecida”, Uma copresenga significativa toma corpo aqui: pao ¢ liberdade, Nio é uma variante do ato da demanda. A associacio dos termos “pio” c ‘liberdade” provoca uma ruptura: ela designa uum possivel valor do politico no campo das relagdes sociais. Na conjuncura revolucionatia, estabelecer uma relagio entre a questi do pio co rema da liberdade ¢ ir contra o sistema representative > Eaende de um Cabier de alder amponds da jis de Paris * Disease de Robespiee' 6 das Obras Completa, Pais 1950. “Rucicdesévnemenerearqublesquion ops aba des an de ag de 79 (sea dvd por M, Ric). 74 FEITOS DO ARQUIVO. A ANALISE DO DISCURSO NO LADO DA HISTORIA pteconizado pela burguesia moderada, Esse sistema, 20 associar a lei marcial lei de livre circulagao de graos, ratificaa divisao entre as classes dirigentes e as massas populares. A relagio entre pao liberdade é nova ¢ constitui, naquele momento, a abordagem ‘mais global da presenga do social no politico. O aparecimento da relagdo pao-liberdade acontece em meio & hostilidade inerente dos patriotas para com as manifestagées pela subsisténcia, que s6 seppreocupam com aquestio do pio, Trata-se, para eles, da ltima :manifestagio de compld aristocrata, Cotexto, corpus Reromando um termo que utilizamos em nossas pesquisas ante- riotes (Guilhaumou, 1978), denominamos “corexto” 0 conjunto dcenunciados que determinam a visualizagéo mais ampla do tema estudado e, que ao mesmo tempo, permite enxergar as recorrén cias linguisticas. A andlise do trajeto temético corresponde um procedimento essencialmente de comprcensio. Jé o momento do cotexto introduz a possibilidade de construir um objeto dis- cursivo: a compreensio dé lugar & extensio™, As ocorréncias em que aparece a relagio pio-liberdade constituem, podemos dizer, a matriz de nosso objeto de anilise. ‘Um acontecimento — as Jornadas de Outubro de 1789 —con- cretizao papel matricial da relagéo pio-liberdade. Assim, a marcha das mulheres a0 grito de “Pio ea Versailles, a 5 de outubro de 1789, inscreve-se imediatamente na meméria coletiva da seguinte :“[n] Dizem-lhes que seo tei readquirisse coda sua autori- dade, nao faltaria pio ao povo. Que responderam nossos franceses 4 essasinsinuagées pérfidas? Que eles quetiam pio, MAS no a0 No utlizamer a doromia compreensio/ezensio sl coma a lingua os iis Refrimo-ns ead floss, parialrintea Kant, gue ding oprocedinente Now coment ein na obras de Dano «Pon ae nin (Boone disordane edo" “entepn Che Vep. VO lament aco tnrodunld porque €apreeneio come oinioexdulo do reales come realidad. free s0 fe pons Iso bat prs confirma x consunsorignldae da posicio enmnciatn dos Be raids 186 EPEITOS DO ARQUIVO, 4 ANALISE DO DISCURSO NO LADO DA HISTORIA franceses de nossos dias” A pressuposicio da existéncia devida 20 emprego do possessivo (cf, igualmente, em /22/,liberdade deles) he confere entio um valor referencial; ~ (dignos de) liberdade, lives apazecem no paradigma W das sequéncias postasem equivaléncia com pao F ferro pelasestruturas tematizadas: w as necessidades dos homens dignos da liberdade /25/ a fortuna dos homens fires /11/ a égide dos povos livres /19/. Eles determinam a subclasse dos homens (povos) & qual se dirige a palavra de ordem pao F ferro, Esta se enuncia tragando uma linha de demarcagao entre os homens dignos de liberdade Aivres, dos quais la define as necessidades,e 08 outros, excluidos dda palavra de ordem. ‘A ambiguidade tedrica do adjetivo € resolvida pelo contexto; esta sequéncia do paradigma W testemunha isso: /15/ “a unio, a ambigio dos verdadeivos republicanos’, onde a anteposiczo do adjetivo “verdadeiro” impoe a interpretacio determinativa (os verdadeiros vs 0s flsosrepublicanos), ou ainda esta frase do con- texto de /3/ “os homens livres ém menos necessidades que 0s que vive sob o despotismo”. O lugar gramatical de liberdade/livre nos contextos de péo E ferro Ihe confere incontestavelmente um valor de pré-construédo, de *ja-ld”*, Mesmo se as estruturas tematizadas autorizam uma leitura atributiva® (a palavra de ordem visa homens/povos livres que tém uma existéncia real ou cla define, na convocagéo de um referente, as necessidades ce homens e de povos, pot pouco que sejam livres?), a liberdade mudou de estatuto: ela nao é mais, como na primeira configuracéo, 0 objeto de uma vontade politica, Ver? Sie Langage 81986 Dara além de efedncia elses DonllanK: 966), ver Galmiche (18). 187 J. GUILHAUNOU * D.MALDIDIER tum principio a conquistar. Sua retomada como pré-construido a coloca no horizonte da palavra de ordem como uma realidade politica associada a demanda dos direitos, uma realidade a mantet caconservar™, Palavra de ordem e conjuntura Englobando sob o termo palavra de ordem as formas de enuun- ciagio de pao E ferro, colocamos, rcobrindo-a a0 mesmo tempo, a questdo da relagao & conjuntura. Da maxima onde se cnuncia da maneira a mais geral até as sequéncias que carregam a marca da situagio, a palavra de ordem se desensola em uma relagio & conjuntura. Para além das méximas de J. Roux que, definindo a verdadeira riqueza do povo regenerado ou de toda nagio, se situam, ro presente intemporal do sujeito universal, muitos enunciados inscrevem, sob diversas formas, sua relagio a situagio: — presenga de umm dético temporal que parece ancorarapalavra de ordem no tempo da conjuntura: ‘/13/*Republicano, neste momento, preciso apenas que voce {5/[u1] eis os objetos mais necessivios aos franceses de nosos dias’ 141 “Nestes dias de justica [..]"5 ~ pronomes pessoais; nds /18/ “Tres coisas indispensiveis nos so necessdrias para vencer’, nds especificado no encadeamento = 08 francescs, /4/ “Os tiranos avangam sobre ns [1] € preciso aos franceses apenas ‘pao E ferro”; tu em uma recomendacio: /13/ “Republicano (..] apenas te € preciso Sera preciso concluir pelo carater estreitamente citcunstanciado. dda palavra de ordem (o contexto de guerra, as dificuldades do ano de 1793)? Ser preciso alargar o momento apontado pelos déiticos, como o sugere a expressio indeterminada “em revolugio”: /25/ tals sio — em revolugdo — as necessidades dignas da liberdade”? "© Ciph ual ff mn /24frencontamoralbverdae como objec de conqusa. £um cio se stra do enuncad de um convencional evi aos etc? 188 EFEITOS DO ARQUIVO. 4 ANALISE DO BISCURSO NO LADO DA HISTORIA Conclusao, ‘O trajeto tematico que conduz da expressio com valor de conceito (paoea liberdade & palavra de ordem pao ¢ ferro concretiza oduplo fancionamento do saber politico jacobino. Se pio ¢ a liberdade dominow a conjuntura dos anos 1789-1792, desde 1793 esta coor- denagio esté forgada a coabitar com pao eferro, palavra de ordem que adquire, nés 0 vimos, uma certa autonomia. A caracterizagio polémica do enunciado legitimo, através do jogo, proprio & nega- G20, da rejeigao do discurso do outro se ajunta a amplificagio da linguagem dos direitos fandamentais, principalmente o direito & cexisténcia. odireitoinsurreigéo, apontados pelo uso da restr. Aevolugio da nogio de liberdade €significativa do desdobramento do saber revolucionario: objeto do desejo, nogio-limite, a liber- dade é também um “j-14; um pré-construtdo do discurso. Assim, todo revolucionatio deve ao mesmo tempo criar as condigées de emergéncia da liberdade e conservar os dircitos adquitidos em nome desta mesma liberdade. Em tomno do enunciado virtualmente presente desde 1789 pio ea liberdade, “contradito” de alguma mancira das expresses ‘pio ¢ forros, pao ¢ correntes, pio e a Comsttuigao etc., uma estra- tégia discursiva especificamente jacobina se estabelece. De um acontecimento a outro, o legislador, presentemente Robespierte, Marat ¢ Robespierre, o Jovem, formula a posigéo legitima sobre a questio do pio enunciando sua necessétia conjungao com 0 desejo de liberdade. A palavra de ordem pao eferro procede de um funcionamento totalmente outro. Ela s6 é raramente pronunciada, pelos convencionais, detentos da fala autorizada. Pelo que sabemos Robespierre nao emprega jamais essa palavra de ordem, Com pao Cl aequesGuilhaamon, 194 A LINGUA PRANCBSA: PRE-CONSTRUIDO E ACONTECIMBNTO LINGUISTICO maneira, 0 desnivel enunciativo entre a assercio da principal ea assergio da relativa permanecerd perceptivel a uma leitura letrada. problema corna-se mais delicado no exemplo: “Os homens que sio criados para conhecer ¢ amar a Deus [...)”, onde a relativa diz uma evidéncia fundamental, nio interrogvel, pensada earticulada fora, dentro da doutrina crista, sem autor e sem mesmo necessidade de uma primeira formulagéo empitica atestada estabelecida, Aqui, o efeito de pré-construido € ocultado na lineatidade do texto, mas nem por isso deixa de assumir sua coeréncia semantica. Mas o pré-construtdo deriva também de analises linguisticas que incidem em predicados nao necessariamente frasais'. Denise Maldidier, no seu tiltimo trabalho’, romou apoio em sintagmas portadores de uma ‘histéria linguistic’ sja pela nominalizagio € seus apagamentos “a tomada da Bastilha’, scja pela construgio do nome do agente, espectador*, Ela conclufa: ‘Osresultados da nossa descrgio linguistica tendem a alorizaro peso da memériahistérica, Elescaracterizam, assim, isso que podemos chamar ‘um nio acontecimento. ‘A parte da inovagio parece ser muito restrta[..J. © historiador cexperimenta certo mal-estar em constatar que a anise lingufstica, na Acabamos de aber de um tabalho ato recene de P,Ssiot (La grande partion ‘enchtementapnsiqa staBeation Enoncatine st mémcie du exe Relation inter snore priate, Cahis deTLSL, 3 Lavan, 19)) qu vino sno weno: ahitea Dames sobre str om dD. Maingucneas Lina de dour Haha, 199: "Eyp onde conse es teal or objeto gue o daca ian set ‘wadscur' com aiusao derprimi ea pensmentor ede lar dcoissdo mundo esquecd do acter pre-onsrude dens cements] qvesenam senna domo sensi 196 A LINGUA FRANCESA: PRE-CONSTRUIDO E ACONTECIMENTO LINGUISTICO 4) O pré-construido s6 pode sec analisado pela sintaxe. Ora,a AD francesa prvilegiou por muito tempo a andlie das palavras ditas “pivds” ca andlise de sua distribuigio. As origens linguisticas de]. Dubois, lexiedlogo, podiam explici-las,em parte. Mass palavras- pivés e mesmo 0s sintagmas-pivés esto do lado da palavra” ‘A histéria dessas palavras s6 passa a contar a partir de sua en- trada num corpus. Sua histéria em lingua ¢ ignorada pela andlise discursiva, mesmo se a historia da palavra é uma velha prética filoséfica ¢ lexicografica”. No entanto, “isso que é pensado antes, fora e independentemente disso que esti contido na afirmagio global da frase” (M. Pécheux, 75), ou seja, isso que j esté constru- ido éda ordem da predicagio — mesmo se essa, como € 0 caso da nominalizagao, se reduza uma palavra — e, portanto, é do nivel da frase (al onde o efeico de evidencia € “opaco A consciéncia do sujeito” (M. Pécheux, 75)". {i) Mas entio, um confronto com a histéria das reflexGes e das, priticas linguisticas enquanto teoria da frase & inevitével. M. Pécheux foi de um modernismo frequentemente desconcertante para os analistas do discurso, propondo desde 1969 uma Andlise automética do discurso, Hoje, a pista computacional é dominante ‘em linguistica ¢ a semantica esta na ordem do dia. Entretanto, 0

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