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Freda Indursky Solange Mittmann Maria Cristina Leandro Ferreira (organizadoras) MEMORIA E HISTORIA NA/DA ANALISE DO DISCURSO MERGIDO® A LETRAS DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAGAO NA PUBLICAGAO (CIP) (CAMARA BRASILEIRA DO LIVAO, SP, BRASIL) Meméria 6 hisiéra naida andlise do discurso / Froda indursky, Solange NMitimann, Maria Cristina Leandro Ferrera, (organizadoras).— Campinas, SP + Mercado de Letras, 2011, Varios autores. Bibliogratia ISBN 978-85-7591-106-9 1. Anélise do discurso 2. Andlse do discurso ~ Ensalos I Indursky, Freda. Mitmann, Solange. Ill, Ferreira, Maria Cristina Leandro, 1109732 c0D-401.41 Indices para catélogo sistematico: 1. Andlise do discurso : Ensaios : Linguistica 401.44 capa e geréncia editoriat Vande Rotta Gomida _preparagdo dos original: Ealtora Mercado de Letras DIREITOS RESERVADOS PARA A LINGUA PORTUGUESA; (© MERCADO DE LETRAS EDICOES E LIVRARIA LTDA, Rua Jodo da Cruz e Souza, 53, Telofax: (19) 3241-7514 CEP 19070-118 Campinas SP Brasil www.mercado-de-letras.com.br livros @mereado-de-letras.combr 1 ediggo ‘SETEMBRO/2011 IMPRESSAO DIGITAL IMPRESSO NO BRASIL Ea obra oth proteis pla Le 961098. E probida su reprodugo parcial ou ttl ‘sem a autorizagao prévia do Editor. O infrator ctr seo As perades provi ra Lk 4 A meméria na cena do discurso Freda Indursky Mémoire, Histoire: loin détre synonymes tout les oppose. La mémoire est la vi Elle est en évolution permanente, ouverte & la dialectique du souvenir et de lamnésie, inconsciente de ses déformations successives, ... susceptible de longues latences et soudaines revitalisations. Lhistoire est la reconstruction toujours problématique et incomplete de ce qui nest plus Lhistoire est une représentation du passé La mémoire senracine dans lespace, le geste, limage et lobjet. Lhistoire ne sattache quaux continuités temporelles.' Pierre Nora, Les Lieux de Mémoire,1984 1. Meméria, Hist6ria: longe de serem sin6nimos...tudo as ope. A memoria é a vida... cla esté em evolugdo permanente, aberta a dialética da lembranga ¢ da amnésia, inconsciente de suas deformagdes sucessivas...suscetivel de longas laténcias ¢ repentinas revitalizagées, A histéria é a reconstrugdo sempre problematica ¢ incompleta do que jf nfo existe mais. A histéria 6 uma representagao do pasado... ‘A meméria se enrafza no espago, no gesto, na imagem, e no objeto. A histéria se apega to somente as continuidades temporais (A tradugdo é minha). MEMORIA E HISTORIA NADA ANALISE DO DISCURSO. 07 Situando a reflexao A teflexao sobre meméria sempre esteve presente no quadro da Teoria da Andlise do Discurso, muito embora, nos textos fundadores, esta nomeacao ainda nao tivesse tido lugar. Pensava-se sobre memoria, mas sob outras designagées, como, por exemple, repetigio, pré-construitio, discurso transverso, interdiscurso. Estas nogdes foram formuladas no 4m- bito da Teoria da Andlise do Discurso e encontram-se reunidas em Semiintica e Discurso (Pécheux 1975[1988]). Todas remetem, de uma forma ou de outra, 4 nocg&éo de meméria. Mais exatamente, trata-se de diferentes funcionamentos discursivos através dos quais a memoria se materializa no discurso. Vamos examiné-las um pouco mais de perto sem, entretanto, procurar estabelecer uma cronologia exata para esta trajetoria teorica. Diferentes funcionamentos discursivos e sua relagéo com a memoria Se nos reportarmos a um dos textos fundadores da Andlise do Discurso, que Pécheux assina juntamente com Fuchs (1975[990]), vere- mos que a reflexao sobre sentido inicia a partir das relagGes de parafrasagem que as diferentes expressées, palavras e enunciados mantém entre si no interior de uma matriz de sentido que se organiza no ambito de uma Formagao Discursiva (FD). Os autores entendem que estas relacdes con- sistem em uma operacao em que umas retomam as outras. Mas cabe frisar de imediato: se a matriz de sentidos se institui através do proceso de repetibilidade, ela também coloca os limites dessa repeticao, pois a matriz de sentido estabelece o que pode e deve ser dito no interior de uma FD. O que equivale a dizer que ha sentidos que nela nao podem ser produzidos. F igualmente interessante remeter a Achard (1983[1999, pp. 12- 14]). Para o autor, sob a repeticiio, ocorre um efeito de série de onde decorre a regularizacfo de determinados sentidos, a qual se institui pelo viés de diferentes funcionamentos discursivos de retomada: implicitos, remis- s6es, efeitos de pardfrase, os quais evidenciam que “ha repeticdes que fazem discurso” (Courtine e Marandin 1981, p. 28). 68 EDITORA MERCADO DE LETRAS a Vou examinar um pouco mais detidamente algumas nogdes que esto diretamente relacionadas ao modo como 0 jogo de repeticao dis- cursiva se produz. A partir dos estudos das relativas empreendidos por Henry (1975) e Pécheux e Fuchs (s/d), foi desenvolvida uma reflexio da qual resultou a nocao de pré-construido. Esta nogdo vai permitir melhor perceber os entrelacamentos entre repeti¢io, meméria e sentidos. Ou seja: todo o elemento de discurso que é produzido anteriormente, em um outro discurso e independentemente, é entendido como um pré-construi- do. Segundo Pécheux (1975[1988, p. 164]), “o pré-construido é 0 sempre- jé-la’ da interpelacdo ideoldgica que fornece-impie a realidade’ de seu sentido’ sob a forma da universalidade”. Ha duas modalidades através das quais o pré-construido pode ser mobilizado. A primeira delas ocorre por uma operagiio de encaixe sintatico no interior do discurso do sujeito. E, para ser af encaixado, 0 pré-cons- trufdo mobiliza uma operacao sintética que sinaliza a fronteira entre 0 que veio de outro lugar, 0 pré-construido, e o que foi produzido pelo sujeito do discurso. No entanto, esse encaixamento, em lugar de ser assim percebido pelo sujeito, produz o efeito de ter sido formulado no seu discurso. Sobre isto, Pecheux(1975[1988, p. 167]) afirma que o dis- curso do sujeito é “um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma interioridade’ inteiramente determinada do exterior”. Para ele, isto € resultado do trabalho da forma-sujeito que “tende a absorver-esquecer © interdiscurso no intradiscurso, de modo que o interdiscurso aparece p.167). Como se vé, sob a noc&o de pré-construido, encontramos um dos como puro jé-dito do intradiscurso” (i funcionamentos discursivos que mostram de que forma pode ocorrer a repetibilidade. Por seu intermédio, podemos observar como elementos provenientes do interdiscurso sao inscritos no discurso do sujeito. Esta- mos diante de praticas discursivas no interior das quais saberes circulam e so apropriados/discursivizados em diferentes discursos. Paralelamente a essa operacdo de encaixe, Pécheux constatou que o pré-construido também pode ocorrer sob a forma de discurso transverso. Sobre este funcionamento, Pécheux (1975[1988, p. 166}) afirma que ele “zemete aquilo que classicamente é designado por metonimia, enquanto relacao da parte com 0 todo, da causa com 0 efeito, do sintoma com 0 que ele designa etc.”. Como se vé, trata-se ainda da retomada de saberes jé-ditos em outro discurso, em outro lugar e cujo eco ressoa no discurso do sujeito. MEMORIA E HISTORIA NA/DA ANALISE DO DISCURSO 69 Em um texto inédito, que Pécheux assina juntamente com Catherine Fuchs, encontrei a melhor formulacao para discurso transverso, porque explicita de que forma esta metonimia funciona discursivamente. Segun- do os autores, o discurso transverso funciona como “exterior ao discurso considerado e o implicit que ele constitui é explicito alhures” (Pécheux e Fuchs s/d., p. 39). E com esta formulagdo que podemos nos acercar melhor do funcionamento do discurso transverso e é ela que ilumina 0 modo como este processo de retomada se faz no discurso do sujeito: 0 discurso-outro entra de viés no discurso do sujeito, tangenciando-o e nele fazendo eco de algo que foi dito em outro lugar. E também através dessa formulacio que é possivel perceber as diferengas entre 0 encaixe do pré-construido e a linearizacéo do discurso transverso no discurso do sujeito. O primeiro ¢ objeto de uma operacdo de apropriacao que, através de um encaixe sintatico, estabelece correfe- réncia entre o que é apropriado e encaixado no discurso do sujeito eo que af jé se encontrava formulado, produzindo o efeito de que aquele pré-construfdo foi produzido ali, no discurso do sujeito. O segundo retoma um pré-construfdo que foi objeto de assercao em outro lugar e que, no discurso que dele se apropria, ressoa metonimicamente, como um implicito. Dois funcionamentos diversos de apropriacéo do pré- construido, dois modos distintos de retomada de discursos, duas formas diversas de fazer ressoar discursos que j4 esto em circulacao em dife- rentes praticas discursivas.” Assim, a nogao de repetibilidade permite observar que os saberes pré-existem ao discurso do sujeito: quando este toma da palavra e formula seu discurso, 0 faz sob a ilusdo de que ele é a fonte de seu dizer e, assim procedendo, ele funciona sob 0 efeito do esquecimento de que 0s discursos pré-existem (Pécheux e Fuchs 1975[1990, p. 172-176}), que foram formulados em outro lugar e por outro sujeito, e que ele os retoma, sem disso ter consciéncia. E, desta forma, encontramos uma caracteris- tica essencial da noc&o de meméria tal como ela é convocada pela AD: 0 sujeito, ao produzir seu discurso, o realiza sob o regime da repetibilida- de, mas o faz afetado pelo esquecimento, na crenca de ser a origem 2. Em A fala dos quariéis e as outras vozes (1997) formulei a nogdo de incisa discursiva para analisar uma forma muito especifica de discurso transverso marcado pela apropriagio fragmentada ¢ nfo-marcada sintaticamente do discurso do outro. 70 EDITORA MERCADO DE LETRAS daquele saber. Por conseguinte, a meméria de que se ocupa a AD nao é de natureza cognitiva, nem psicologizante. A meméria, neste dominio de conhecimento, é social. E é a nocao de regularizagio que da conta desta memiéria. Assim, chegamos as primeiras reflexdes em torno de meméria: se hé repeticao é porque ha retomada/regularizacaio de sentidos que vao constituir uma meméria que é social, mesmo que esta se apresente ao sujeito do discurso revestida da ordem do ndo-sabido. Sao os discursos em circulagao, urdidos em linguagem e tramados pelo tecido sécio-his- térico, que so retomados, repetidos, regularizados. Se o discurso se faz sob o regime da repetibilidade, no interior de certas prdticas discursivas, cabe questionar qual é a natureza desta repeticdio. Jé sabemos que ela é nao-sabida, andnima, mas isto nao é suficiente. Repetir, para a AD, nao significa necessariamente repetir palavra por palavra algum dizer, embora frequentemente este tipo de repeticdo também ocorra. Mas a repeticéo também pode levar a um destizamento, a uma ressignificaco, a uma quebra do regime de regu- larizaco dos sentidos. Isto se dé porque 0 sujeito do discurso pode contra-identificar-se com algum sentido regularizado ou até mesmo desidentificar-se de algum saber e identificar-se com outro. Essa possi- vel movéncia dos sentidos pode ser captada pelo viés dos processos semanticos que se instauram no discurso. E ainda com Pécheux que podemos entender este tipo de movimentagao dos sentidos: “um enun- ciado é intrinsecamente suscetfvel de tornar-se outro, diferente de si mesmo, de deslocar-se discursivamente de seu sentido para derivar para um outro” (Pécheux 1983[1990, p.53]). Se tais deslizamentos so da ordem do discursivo, j4 nao é mais suficiente pretender encontrar o sentido comportadamente circunscrito ao interior de uma matriz de sentido, Faz-se necessario perceber que os sentidos, pelo trabalho que se instaura sobre a Forma-Sujeito, podem atravessar as fronteiras da FD onde se encontram, e deslizarem para outra FD, inscrevendo-se, por conseguinte, em outra matriz de sentido. Ao migrarem, esses sentidos passam a ser determinados por outras relacdes com a ideologia. Essa movimentagao nas filiagdes dos sentidos 86 € possivel porque, ao migrarem, esses sentidos se ressignificam. Percebe-se, pois, que o fechamento das FDs nao é rigido e suas fronteiras sao porosas, permitindo migracao de saberes. MEMORIA E HISTORIA NA/DA ANALISE DO DISCURSO n Por tudo quanto precede, pode-se dizer, juntamente com Pécheux, que as FD nao existem isoladamente. Ao contrario. Elas relacionam-se entre si, constituindo um complexo de Formagées Discursivas das quais uma é dominante (Pécheux 1975[1988, p. 162]). E, a este propésito, 0 autor acrescenta: propomos chamar de interdiscurso a esse “todo complexo com domi- nante” das formagées discursivas, esclarecendo que também ele & submetido a lei de desigualdade-contradigdo-subordinagio que carac- teriza 0 complexo das Formages ideolégicas. (idib., p. 162) Estas nocGes, construfdas ao longo da década de 70, permitem-me afirmar, como fiz na abertura deste trabalho, que todas elas constroem uma trajet6ria que conduz inexoravelmente A formulacao da nogao de memé6ria, © que vai ocorrer nos anos 80. A meméria em Andlise do Discurso: teoria, andlise e retorno a teoria Vou estabelecer, como efeito de inicio para a formulacao da nao de meméria no ambito da Teoria da Anélise do Discurso, o trabalho de Courtine (1981) que revisita a Arqueologia do Saber de Foucault e dela retorna, trazendo para a AD a nogao de meméria. Inspirado na reflexao de Foucault sobre os enunciados, o autor vai entender que toda produgao discursiva faz circular formulagdes anteriores, porque ela possui em seu dominio associado outras formulagdes que ela repete, refuta, transforma, denega... Isto é: em relago as quais esta formulagio produz efeitos de meméria especificos. (Courtine 1981, p. 52, 0 desta- que é meu) E, mais adiante, ele acrescenta: “a nocéo de meméria discursiva diz respeito a existéncia historica do enunciado no seio de praticas discursivas, reguladas pelos aparelhos ideolégicos” (idib., p. 53). Para Courtine, interessa saber como o trabalho da meméria, no ambito de uma FD, permite a lembranca, a repeticao, a refutacfio, mas também 0 esque- cimento destes elementos de saber quando sao formulados pelo sujeito em seu discurso. Ao que eu acrescento: como certos sentidos cristaliza- dos podem se transformar e tornarem-se outros. 72. EDITORA MERCADO DE LETRAS Uma andlise em trés tempos Neste ponto, proponho-me fazer um pouco de anilise para melhor vislumbrar estas questdes. Para tanto, tomo o Discurso do Descobrimento do Brasil, e, em seu interior, fago um recorte, dele retendo a Carta de Caminha (1500) e a Primeira Missa no Brasil, quadro de Victor Meirelles (1861). Elegi estas duas materialidades discursivas porque esta tela de Meirelles repre- senta, como veremos a seguir, um recorte pictérico da Carta de Caminha dirigida ao Rei de Portugal, contando a boa nova e ambos os textos consti- tuem um lugar de memoria’ (Nora 1984) para os brasileiros. Interessa-me examinar a representacdio que esta obra faz daquele distante abril de 1500 ede que modo ela povoa o imagindrio dos brasileiros. Primeiro tempo da analise Figura 1: A Primeira Missa no Brasil (Victor Meirelles) 3. Lugares de meméria, nogio forjada por Pierre Nora (1984), se apresentam sob a forma de objetos, instrumentos, instituigdes, documentos, vale dizer, tragos vivos constitu{dos no entrelagamento do hist6rico, cultural ¢ simbélico. MEMORIA E HISTORIA NA/DA ANALISE DO DISCURSO 3 Nessa representacao, € possivel explorar questées diversas. Aqui, desejo colocar 0 foco de observaca4o em dois diferentes planos deste quadro. Tomo como primeiro plano, o altar, representado pela cruz de lenho, que remete a celebracéo da missa. Junto ao altar, encontram-se portugueses, religiosos, militares e uns poucos civis que faziam parte da esquadra de Cabral. Se observarmos 0 entomo desta cena, que tomo aqui comoo segundo plano da tela, sem nenhum propésito de hierarquizar estes dois planos, veremos que 0s indios af séo representados em atitudes bastante diversas: ha os que estao sentados em um galho de arvore, olhando com espanto a cena do primeiro plano; hé os que estdo mais afastados, como se estivessem indiferentes; h4 uma india amamentando, um indio curioso, apontando alguma coisa e um indio muito desconfiado, quase de costas, em atitude de retirada, com uma arma na mio. Ou seja: estes dois planos pictéricos indicam o imaginrio projetado por Victor Meirelles a propésito do modo como teria transcorrido a primeira missa na nova terra, sobretudo como os indios teriam visto/interagido com aquela cena. Lendo a Carta de Caminha, vemos que este quadro é uma repre- sentacdo pictérica de uma passagem especifica dessa Carta. Vejamos algumas sequéncias discursivas dela recortadas: SDI- Ao domingo de Pascoela pela manhé, determinou o Capitio ir ouvir missa e sermao naquele ilhéu...... SD2- Mandou armar um pavilhao naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nés outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, ¢ oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer devogiio (...) SD3- Enquanto assistimos & missa e ao sermAo, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, ¢ andava folgando. E olhando-nos, sentaram, E depois de acabada a missa, quando nés sentados atendiamos a pregagdo, levantaram-se muitos deles e tangeram como ou buzina e comegaram a saltar e dangar um pedago (...) SD4- Ao sairmos do batel, disse o Capitiio que seria bom irmos em direitura A cruz que estava encostada a uma Arvore, junto ao rio, a fim de ser 74 EDITORA MERCADO DE LETRAS eee colocada amanha, sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joclhos ¢ ssemos para eles verem o acatamento que lhe tinhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que 14 estavam, acenaram-Ihes que fizessem 0 mesmo; ¢ logo foram todos beijé-la (...) SDS - Parece-me gente de tal inocéncia que, se nds entendéssemos a sua fala ¢ eles a nossa, seriam logo cristéos, visto que nado tém nem entendem crenga alguma, segundo as aparéncias. E portanto se os degredados que aqui hao de ficar aprenderem bem a sua fala ¢ os entenderem, nao duvido que eles, segundo a santa tengdo de Vossa Alteza, se fardo cristéos e hao de crer na nossa santa fé (...) A luz da teoria da AD, podemos dizer que a tela de Meirelles (1861) faz uma pardfrase deste recorte da Carta de Caminha (1500). Por conseguinte, a Carta de Caminha funciona como um lugar de meméria que reverbera na tela de Meirelles. Mais acima afirmei que este quadro representa o imaginario de Victor Meirelles a respeito dos indios durante aquela ceriménia religiosa. Isto pode agora ser retomado nos seguintes termos: a tela de Meirelles representa de fato o imaginario de Caminha sobre o modo como aquele ritual religioso repercutiu sobre os habitantes da terra. Este imaginario 6, de certa forma, 0 imaginario fundador de uma meméria discursiva sobre a chegada dos portugueses a nova terra, o qual ficou impresso no discurso da “descoberta” do Brasil. Esse discurso apresenta-se revestido do que estou chamando de regime de repetibilidade devido ao fato de ter sido repetido com persisténcia através dos tempos e, em fungao disso, ganhou regularizagéio, passando a fazer parte da meméria coletiva' dos brasileiros. Ou seja, pelo viés do regime de repeticaio tornou-se memo- ravel. Trabalho igualmente com a hipétese de que foram os livros dida- ticos de Historia do Brasil, tomados aqui também como lugares de mem6- ria, que consolidaram este imagindrio e tornaram possivel este jogo de 4. Meméria Coletiva é uma nogao formulada pelo sociélogo Maurice Halbwachs. ‘Segundo o autor, “a meméria coletiva tira sua forga ¢ sua duragdo do fato de ter enquanto membros do grupo” (Halbwachs 1950[1990, p. 51]). Mais adiante, o autor acrescenta que a “meméria coletiva... Por suporte um conjunto de homens retém do passado somente aquilo que ainda est vivo ou capaz de viver na consciéncia do grupo que a mantém” (idib., p. 81). MEMORIA E HISTORIA NA/DA ANALISE DO DISCURSO 75 repeticdo discursiva que alimenta 0 que é memoravel para um grupo social. Lembro do livro de histéria em que estudei. Nele encontrava-se uma reproducao da tela de Victor Meirelles. E, para mim, quando este tema vem a tona, a Carta de Caminha cruza-se com o quadro de Meirel- : estes dois textos” ~ a carta e 0 quadro ~ juntamente com os livros didaticos de Historia les, de tal forma que nao consigo dissocié-los. Ou sej funcionam como lugares de meméria e seus sentidos passaram a ser objeto de repeticaio e de repeticdo da repeticao, até cristalizarem e, por conse- guinte, regularizarem um conjunto de sentidos e saberes que discursivi- zaram esse acontecimento histérico. Tais saberes se organizam em redes discursivas de formulacdes que garantem o regime de repetibilidade destes saberes, sustentando, dessa forma, as redes de meméria que sustentam 0 memorével. De volta a teoria Com isto nao estou pretendendo afirmar que os sentidos, depois de cristalizados/ regularizados, nao podem mais se alterar. Ao contra- rio. Os sentidos, a forca de se repetirem, podem acabar por se modificar, de modo que as redes discursivas de forntulagio, formadas a partir de um regime de repetibilidade, vao recebendo novas formulacées que, ao mesmo tempo em que vao se reunindo as jé existentes, vao atualizando as redes de memria. Tais formulacdes podem trazer 0 mesmo sentido e, nesse caso, produzem uma relagio de metdfora em que uma palavra é tomada pela outra, mas produzindo o mesmo sentido, tal como ocorre em uma familia parafristica que funciona como uma matriz de sentido. Frequentemente, no entanto, essas novas formulagées produzem. alteragdes nos sentidos cristalizados, provocando desestabilizac&o nos processos de regularizacao. £ ainda Pécheux, com seu texto o Papel da Meméria, que possibilita melhor entender essa aparente contradicao Hi ja algum tempo que considero que toda ¢ qualquer materialidade que dé suporte a um discurso pode ser considerada Texto, E nesse sentido que considero tanto a Carta de Caminha quanto a tela de Meirelles como textos. Por conseguinte, TEXTO 6 uma categoria te6rica que ndo se confunde com texto empirico. A categoria TEXTO deve ser compreendida como 0 suporte através do qual um discurso se materializa, podendo ser tal suporte verbal ou ndo-verbal. 76 EDITORA MERCADO DE LETRAS entre regularizacao do sentido e desvio de sentido: a meméria constitui, diz ele, “um espaco mével de divisées, de disjungées, de deslocamentos e de retomadas” (Pécheux 1999, p. 56). Vale dizer: se, por um lado, a repeticaéo é responsdvel pela cristalizagao dos sentidos, por outro, tam- bém é a repeticao que responde por sua movimentacao/alteragao.° Ou seja, os sentidos se movem ao serem produzidos a partir de outra posicdo-sujeito ou de outra matriz de sentido. Nossa primeira anélise flagrou uma formulacdo diferente, na medi- da em que passou do discurso verbal de Caminha para 0 discurso pictérico de Meirelles. Essa foi a modificagdo que o discurso fundador sofreu no percurso de 365 anos que separam os dois textos analisados. No entanto, os sentidos de ambos esto em relaciio de repetibilidade, afetados pela mesma FD, e inscritos na mesma familia parafrastica, produzindo efeito de sentido idéntico. Ou seja, em que pese a textualidade ser diferente, ambos os textos pertencem, de direito, 4 mesma matriz de sentido. Segundo tempo da andlise Para observar a movéncia dos sentidos no ambito desse discurso, vejamos de que forma o “descobrimento” é retomado em uma marchi- nha de carnaval, composta por Lamartine Babo, em 1934, intitulada Historia do Brasil. Esta marchinha, ao retomar o discurso do descobrimento, 434 anos depois, ou seja, quase meio século apés a “descoberta” do Brasil, acionou a meméria coletiva que os livros didaticos consolidaram, garan- tindo que a repetibilidade pudesse se estabelecer. Essa rede de meméria precisou ser acionada para fazer ecoar os sentidos j4-sabidos por todos 0s brasileiros. Assim, os versos dessa marchinha, ao mesmo tempo em que garantem o regime de repetibilidade, vao produzindo alguns efeitos de sentido que fazem deslizar o sentido inscrito na memoria discursiva, como podemos ver nos versos de Lamartine que se seguem. 6. _B, para retomar minha hipétese sobre os livros didéticos, devo dizer que examinei dois livros didéticos contemporéneos de Histéria do Brasil, ambos de 1997. Nesses dois livros, a historia da chegada dos portugueses & terra nova ja € narrada através do filtro ideolégico da colonizacao e da exploragdo que na colonia se fez, o que produz efeitos de sentido diversos. MEMORIA E HISTORIA NA/DA ANALISE DO DISCURSO. 7 Quem foi que inventou o Brasil? Foi seu Cabral! No dia vinte ¢ um de abril! Dois meses depois do carnaval Entendemos que Cabral inventou o Brasil parafraseia Cabral desco- briu o Brasil. Trata-se, entretanto, inicialmente de entender se esta paré- frase inscreve-se na mesma FD do discurso fundador ou nao. Se considerarmos que estes dois enunciados discursivos inscrevem-se na mesma FD, cabe fazer mais um questionamento: teriam sido esses dois enunciados produzidos a partir da mesma posicdo-sujeito? Em caso positivo, estaremos afirmando que se trata de uma palavra pela outra, tal como vimos em nossa primeira andlise, porque, nesse caso, os trés textos fazem parte da mesma matriz de sentido. Cabral inventou o Brasil, inscrito na mesma FD e produzido a partir da mesma posicao-sujeito em que Cabral descobriu o Brasil, remeteria para uma relagao metaforica, em que uma palavra pode ser tomada pela outra, produzindo o mesmo efeito de sentido. Entendo, entretanto, que essa andlise nao se aplica a esse nosso terceiro texto. Ha, nesse caso, uma outra possibilidade que passamos a examinar, a seguir. Se considerarmos que esses dois enunciados remetem a mesma FD, porém produzidos a partir de posigdes-sujeito diversas, estaremos enten- dendo que estes enunciados relacionam-se diferentemente com a ideo- logiae produzem efeitos de sentido diversos. Sendo, vejamos: a paréfrase produzida por Babo mobilizou saberes cristalizados através dos tempos, mas com sentidos diversos. Nao se trata mais de uma constru¢ao meta- forica simples, tal como vimos mais acima, na andlise dos dois primeiros textos. O enunciado Cabral inventou o Brasil pode ser desdobrado em pardfrases como: nada do que foi dito corresponde a verdade; néio havia desprendimento, ndo havia casualidade; os indios néo se converteram docilmen- te, o discurso sobre o descobrimento é uma lenda etc. Ou seja: ainda estamos diante de um efeito metaf6rico. Mas, nesse caso, a metdfora se produz pelo deslizamento de descobriu o Brasil para inventou o Brasil, indicando 7, Binteressante, igualmente, observar a data: 21 de abril. Por af, vé-se como as datas da histéria do Brasil vdo se embaralhando, o que sucede até os nossos dias, em que muitos confundem 0 21 de abril de Tiradentes, com 0 22 de abril da chegada dos portugueses & nova terra. 78 EDITORA MERCADO DE LETRAS que o processo metaf6rico deslocou-se de uma posicao de sujeito para outra, embora ambas ainda se inscrevam no interior da mesma FD, a do Descobrimento. Dizendo diferentemente: esse processo metaférico nao trabalha mais a partir da modalidade de uma palavra pela outra, produ- zindo o mesmo efeito de sentido, que é 0 que ocorre no ambito da matriz de sentido. No caso de que ora nos ocupamos, umefeito de sentido é tomado pelo outro efeito de sentido, e isso indica que ocorreu um deslizamento de sentidos. E esse deslizamento aponta para o modo como os lugares de meméria funcionam discursivamente. Percebe-se, pelo trabalho do sen- tido sobre o sentido, que se instaurou um movimento de contraidentifi- cacao em relacao aos saberes da FD do Descobrimento. Ou seja, os saberes desse dominio de conhecimento esto sendo interrogados. Esse funcionamento discursivo dos lugares de meméria permite avaliar a diferenca que se estabelece entre o processo metaférico, que ocorre no Ambito de uma matriz de sentido, e 0 efeito metaforico que se instaura pelo deslizamento entre saberes produzidos a partir de diferentes posi- cdes-sujeito, inscritas numa mesma FD. Entretanto, a contraidentificaco sinalizada pelo enunciado Cabral inventou o Brasil nao chega a instaurar uma relacao de tensdo com Cabral descobriu o Brasil. A relagdo que entre esses dois enunciados se estabelece € muito mais da ordem do ladico. Trata-se da irreveréncia propria das marchinhas de carnaval e nao de um tratado de Historia.* Nesse passo, interessa perceber que sentidos cristalizados podem se repetir, mas que nem sempre reaparecem exatamente da mesma forma; que, 4 forga de serem repetidos e, em func&o das condicées de producao em que essa repeticao ocorre (no caso, uma marchinha para foliées cantarem e brin- carem no carnaval), os sentidos vao se modificando, se ressignificando, produzindo contradiscursos. Ou seja: a regularizacdo dos sentidos, decor- rente de sua repeticao, nao impede que a movéncia dos mesmos, ainda que em pequeno grau, como é 0 caso que aqui estamos examinando. 8. Mais recentemente, o carnaval de rua, onde todos cantavam as marchinhas, deu lugar aos desfiles das escolas de samba. Esta mudanga abriu espago para os sambas-enredo que substitufram as marchinhas. Os enredos das escolas frequentemente elegem temas oriundos da histéria do Brasil e, mais uma vez, 6 possivel ver que os sentidos cristalizados pela narrativa histérica na escola influenciam sua elaboragao. MEMORIA E HISTORIA NA/DA ANALISE DO DISCURSO_ 79 De volta a teoria Encontramos aqui uma certa forma de retomar o jé-dito. A repe- tigdio discursiva, nesse caso, se faz pelo viés do discurso transverso. A marchinha faz soar o discurso do descobrimento mas este, ao ser reto- mado, ja o faz com deslizamento, ressignificado. Descoberta desloca-se para invengio, de forma que faz ressoar, desde o interdiscurso, mas transformado, o sentido cristalizado que ¢ da ordem do memoravel. E, ao fazé-lo, traz o diferente que aciona o mesmo: em lugar de “achamen- to”,’ como pode-se ler na Carta de Caminha, ou “descobrimento”, como apontam os livros didaticos de Histéria do Brasil de entao, vemos aqui aparecer “invengao”. Mas para que 0 efeito de sentido de inventar se produza, este convoca, necessariamente aderido ao seu, embora formal- mente intangivel, o efeito de sentido de descobrir que aqui esta ausente, mas que ressoa transversamente porque ele é da ordem do memorivel e é ele que sustenta a nova interpretacao. Estamos, nesse caso, diante de um efeito metaf6rico que se institui entre saberes enunciados a partir de diferentes posigdes-sujeito inscritas na mesma FD: a FD do Descobri- mento. Ou seja: o sentido do primeiro enunciado - Cabral descobriu o Brasil ~que discursivizou o acontecimento histérico de 1500, nao seapaga para que 0 outro sentido se produza. Ao contrario, O sentido do enunciado fundador necessita soar ali, apesar de ausente, para que seu desloca- mento seja entendido. Dito de outro modo: a rede de meméria funciona, em casos como este, como pano de fundo, possibilitando que se perceba que houve um distanciamento em relagao aos sentidos pré-construidos, e que esse recuo possibilitou a instauracgaéo de novos sentidos. Sem a meméria fazendo ressoar ai 0 efeito de sentido fundador, decorrente do processo de regularizacao, que € social , a ressignificagdo deste enuncia- do talvez. nao fosse interpretada como uma retomada da primeira for- mulacao. A rede de meméria faz ressoar esse sentido e trabalha por traz 9. Como podemos verificar nessa outra passagem da Carta de Caminha: “Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; ¢ nds todos langados por essa areia, E pregou uma solene ¢ proveitosa pregagio, da histéria evangélica; ¢ no fim tratou da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se A Cruz, sob cuja obediéncia viemos, que veio muito a propésito, ¢ fex muita devogao”, 80 EDITORA MERCADO DE LETRAS desse deslizamento, fazendo o sentido primeiro reverberar por tras do novo sentido, produzindo-se, desse modo, 0 que Courtine (1981) desig- nou de efeito de meméria. Terceiro tempo da andlise Tomemos mais uma parafrase desse discurso fundador. Desta vez, vamos considerar como objeto de observacao um cartoon produzido por Uberti, por ocasido dos festejos dos quinhentos anos da Descoberta do Brasil, e publicado no Catélogo da Exposigao Humores Nunca Dantes Navegados: 0 Descobrimento segundo os Cartunistas do Sul do Brasil, em 2000. Esse cartoon € 0 resultado de uma manipulacao sobre a pintura de Victor Meirelles e chama-se A Primeira Arvore. Pelo nome que Uberti lhe atri- buiu, ja 6 possivel perceber para onde navegam os humores de seu criador e em que sentidos vai aportar. Vejamos o cartoon. a= s 7 Num primeiro momento, nosso olhar um tanto disperso talvez nao perceba o que o cartunista fez. Uma primeira leitura vai constatar que ele mobiliza os mesmos dois planos anteriormente descritos, a propésito da Primeira Missa de Meirelles. O mesmo altar, o mesmo sacerdote, o mesmo ritual, os mesmos objetos, a mesma cruz, O mesmo batt, os mesmos fiéis. E, no segundo plano, também tudo idéntico: os MEMORIA E HISTORIA NA/DA ANALISE DO DISCURSO 81 mesmos indios, a mesma atitude curiosa, de espectadores; as mesmas posturas: indios cercando, um pouco mais distantes, a cena religiosa: a india amamentando, indias e seus filhos 4s costas, 0 indio olhando de sobre o galho da mesma 4rvore; o velho indio apontando com o dedo algo que lhe parece curioso; 0 mesmo indio armado e desconfiado. E é possivel afirmar que se trata do mesmo com base no memordvel. Em decorréncia disso, é possivel pensar que a pardfrase se situa unicamente no nome dado ao Cartoon: Primeira Missa remete a tela de Meirelles e A Primeira Arvore, ao cartoon de Uberti. Se mais nao fosse, esta renomeacao ja seria interessante de ser analisada, pois o titulo da tela de Meirelles remete ao ritual religioso que celebra a “descoberta”. Ao nomear sua tela de Primeira Missa, Meirelles relaciona o descobrimento, pelo viés da celebracdo da missa, a Igreja Catdlica. A nova terra nasce sob a égide da Coroa Portuguesa e da Igreja Catélica. E essa seria apenas a primeira de muitas outras missas que se seguiriam e esse marco religioso aponta para a missio dessa igreja: salvar aquelas almas que nao tinham crenca alguma, segundo Caminha, convertendo-as ao cristia- nismo. JA a renomeagao para A Primeira Arvore poderia estar referindo a primeira arvore abatida para obter o lenho destinado a primeira cruz, a qual se seguiria o abate de indmeras outras arvores para a instalacao dos portugueses na nova colénia. Mas, se o olhar deixar de ser vago, certamente iré perceber que a imagem também sofreu deslocamentos. Um olhar atento para o grupo que se encontra a esquerda do altar, logo atras do grupo de freis que ali esto ajoelhados, ver que ha um portugués que, na Primeira Missa, segura um chapéu na mio direita e que, na Primeira Arvore, segura, nesta mesma mao, uma moto-serra. Ou seja: no apenas o nome da tela foi ressignificado, A imagem também materializa um outro discurso. E esse novo discurso coloca os sentidos a deriva, rumo a outras redes de meméria. Por conseguinte, tanto o discurso imagético como o enunciado discursivo foram ressignificados e estes dois textos certamente nao se inscrevem na mesma FD. Enquanto A Primeira Missa remete para o discurso portugués do Descobrimento, a Primeira Arvore produz um discurso que denuncia, no minimo, a acao predadora dos colonizadores que, para obter o valioso corante vermelho, acabaram por exterminar 82 EDITORA MERCADO DE LETRAS Fr todo o pau Brasil. Ou seja, o texto A Primeira Arvore, tanto em sua materialidade verbal quanto pictorica, produz um deslizamento do discurso portugués da descoberta para os saberes dos brasileiros sobre a aco predadora dos portugueses durante a colonizacao, onde a érvore simboliza todas as riquezas que foram carreadas da colonia para a metr6pole. Dois textos imagéticos tao proximos, em relacao de parafrasagem quase perfeita, nao fosse pelo titulo e pela substituigdo do chapéu pela moto-serra. Nao é possivel mais pensar que essa pardfrase se fundamen- te na regularizacao de sentidos ocorrida ao longo do século e meio que separam a Primera Missae a Primeira Arvore. Ao contrério. Houve aiuma ruptura, uma desidentificagdo por parte do sujeito do discurso em relac&o ao discurso do descobrimento e um consequente deslizamento, bastante importante, em direcao ao discurso sobre a colonizagao portu- guesa. Trata-se da desidentificagao desse sujeito com uma FD e sua identificagao com outra que, com a primeira, estabelece uma relagao de sentidos bastante tensa. No entanto, o efeito de sentido produzido pela Primeira Arvore s6 pode produzir esse sentido forte e critico se o discurso regularizado sobre o descobrimento af ressoar transversamente. Ou seja: tanto em casos de contraidentificacdo quanto em casos de desidentifica- co, a relacdo dentro da rede de memoria ou entre redes de meméria se faz indispensdvel. E isso ¢ da ordem do memoravel. Quero deter-me um pouco mais sobre essa deriva dos sentidos. J examinei a renomeacao. Vejamos, agora, um pouco mais detalhadamen- te a operagiio de substituigio do chapéu pela moto-serra. Examinando esses dois elementos pictéricos, proponho consideré-los como sequéncias dis- cursivas pictéricas” recortadas dos dois textos imagéticos em exame e, enquanto tal, cada uma delas remete para saberes de diferentes FD. Enquanto o chapéu na mao indica o respeito com que o portugués esta assistindo a Missa que celebra o achamento da nova terra e uma conquis- ta da Coroa Portuguesa, a moto-serra sinaliza a afetacdo desse texto por uma FD distinta. Mas nao apenas. Examinemos. 10. Da mesma forma como um texto verbal pode ser recortado para dele extrairmos sequéncias discursivas de referéncia do discurso em anélise, entendo que um texto pictérico também pode ser scccionado para dele extrairmos sequéncias discursivas para andlise. MEMORIA E HISTORIA NA/DA ANALISE DO DISCURSO 83 Passar do chapéu na mao para a moto-serra na mao aponta nao apenas a deriva dos sentidos e a identificagdo com uma FD diferente e antagénica. Essa substituicdo aponta também para o que Pécheux enten- de como “o ponto de encontro de uma atualidade com uma meméria” (Pécheux 1983[1990, p. 17]) i esse encontro que leva o sujeito do século XIX para © século XX, para a sua atualidade. Enquanto o chapéu na mao do portugués representado na Primeira Missa conduziu Meirelles do século XIX para 0 século XVI, colocando-o no tempo e no espaco do Descobri- mento e assim o inscrevendo no lugar discursive de Caminha, a moto- serra na mao do portugués produz o movimento contrario, deslocando 0 sujeito do século XVI para o XX, mais precisamente para o ano 2000, 0 limiar do século XXI. Esse salto no tempo nao apenas atualiza a mem6ria, mas também reorganiza os saberes. Para pensar essa movéncia dos sentidos, é preciso percebé-la como a passagem da FD do Descobrimento para a FD do Pés-colonialismo. E.a insercao da moto-serra nao apenas aponta para a agdo predadora dos colonizadores, como vimos acima, mas, ao mobilizar a atualidade, inscreve o sujeito desse discurso em um outro lugar discur- sivo, o lugar discursivo de um brasileiro, a partir do qual ele denuncia a aco predadora que, desde 1500 nao cessou jamais e que, agora, é realizada por brasileiros de todas as ascendéncias que, 500 anos depois do “descobrimento”, desmatam em nome do desenvolvimento e do progresso e devastam, legal e ilegalmente, as florestas, acabando com toda a madeira nobre do pats e provocando alteragdes climaticas impor- tantes. Como € possivel perceber, estamos diante de uma FD extrema- mente heterogénea que trabalha varias questées referentes ao p6s-colonialismo, mas que, além disso, recebe saberes produzidos em uma outra FD, de natureza preservacionista. Assim podemos perceber que o memordvel é bastante heterogéneo e nao correspondea uma tinica formacdo discursiva. Ele aponta para diferentes regides do interdiscurso. Aqui cabe um questionamento: se ocorreu uma ruptura de tal envergadura, ainda assim é possivel pensar em paréfrase? Para refletir sobre isso, convoquemos uma vez mais Achard: um texto dado trabalha através de sua circulagio social, 0 que supée que sua estruturagio € uma questo social e que ela se diferencia seguindo uma diferenciagao das memérias e uma diferenciagao das 84 EDITORA MERCADO DE LETRAS produgées de sentido a partir das restrigées de uma forma tinica, (Achard 1999, p. 17, o destaque é meu) Como podemos ver, os sentidos nao pré-existem filiacdo as redes de significacdo. Eles precisam inscrever-se em uma FD para la receberem seu sentido, Em funcio disso, tanto a marchinha de carnaval Histéria do Brasil, de Babo, quanto o cartoon A Primeira Arvore, de Uberti, convocam, num primeiro momento, a memoria que subjaz.aos sentidos produzidos pela Carta de Caminha e pela Primeira Missa, e que se encontram inscritos no interdiscurso em fungao de sua repetic&o e regularizacdo. Mas, ao mesmo tempo em que isso sucede, percebe-se que, enquanto a marchinha fica no Discurso sobre o Descobrimento, a construgao discursiva dos sentidos das duas materialidades pictéricas remete ao filtro de FD diversas. A Primeira Missa se inscreve no Discurso fundador do Descobri- mento e a Primeira Arvore, no Discurso Pés-Colonialista Brasileiro. Ao se inscrever nessa outra FD, tais sentidos podem ser questionados, polemi- zados, criticados e denunciados, eles deslizam e novos sentidos se pro- duzem pelo trabalho de determinacao sécio-hist6rica dos sentidos sobre os sentidos. Resumindo ‘As anélises precedentes permitem visualizar de que maneira pré- construidos como“ Primeira Missa” e “Descobrimento do Brasil”, provenien- tes do interdiscurso, s4o apropriados e como a forma-sujeito trabalha tais sentidos, visando incorporé-los aos demais saberes que ela abriga. Essas anélises mostram como 0 trabalho do sentido sobre o sentido se faz. pelo viés do discurso transverso que ecoa nesse discurso como uma presenca- ausente, sem a qual tais sentidos seriam nao-sentidos. Deste encontro/desencontro entre o dizer cristalizado pelas praticas discursivas, que faz ecoar um sentido que circula na meméria social, € sua ressignificac&o pelo sujeito do discurso, que se desidentifica, no caso de Uberti, ¢ se contraidentifica, no caso de Babo, com os saberes do discurso fundador do/sobre o descobrimento do Brasil, dé-se a ressignifi- cacao dos pré-construidos aqui analisados. Tal ressignificacdo sustenta todo um conjunto de discursos que critica 0 discurso fundador. E para MEMORIA E HISTORIA NA/DA ANALISE DO DISCURSO. 85 que esta ressignificacdo possa ser interpretada como um questionamento e/ou uma dentincia a respeito do discurso fundador, é preciso que o sentido primeiro ressoe junto com os novos sentidos, funcionando como uma presenca-ausente. E 0 memoravel que af ressoa. Nao d& para interpretar uma atualidade sem mobilizar a memoria. Interdiscurso, memoravel, memGria discursiva: semelhangas e especificidades Neste ponto, impée-se uma comparacao entre interdiscurso e me- miria discursiva. Se o interdiscurso remete, como nos diz. Orlandi, & meméria do dizer, isto significa que tudo 0 que jé foi dito inscreve-se no interdiscurso e, se isso ocorre 6 porque o interdiscurso constitui-se de um complexo de formagGes discursivas. Ou seja: todos os sentidos jé produzidos af se fazem presentes, ¢ nao apenas os sentidos que sio autorizados pela Forma-Sujeito. E, se é assim, nada do que ja foi dito pode dele estar ausente. O interdiscurso nao é dotado de lacunas. Ao contrario. Ele se apresenta totalmente saturado. Esta 6 a natureza do interdiscurso: reunir todos os sentidos produzidos por vozes anénimas, ja esquecidas. E é por comportar todos os sentidos que ele se distingue da meméria discursiva. Voltemos a Courtine e a sua formulacao de memoria discursiva: “A nocao de meméria discursiva diz respeito a existéncia hist6rica do enunciado no seio de praticas discursivas reguladas pelos aparelhos ideolégicos” (Courtine 1981, p. 53). Mais adiante, ele questiona como o trabalho de uma meméria coletiva, no seio de uma FD, permite a lembranga, a repetigdo, a refutagao, mas também o esquecimento destes elementos de saber que so os enunciados? Enfim, sobre que modo material uma mem6ria discursiva existe? (idibid., p. 53) Se a memoria discursiva se diz respeito a existéncia histérica do enunciado no seio de praticas discursivas reguladas pelos aparelhos ideolégicos, isto signifi inscrevem nas ED, no interior das quais ele recebe seu sentido. E mais: se a memiéria discursiva se refere aos enunciados que se inscrevem em a que ela diz, respeito aos enunciados que se 86 EDITORA MERCADO DE LETRAS uma FD, isto significa que ela diz respeito nao a todos os sentidos, como € 0 caso do interdiscurso, mas aos sentidos autorizados pela Forma-Su- jeito no 4mbito de uma formagao discursiva. Mas n&o s6: a memoria discursiva também diz respeito aos sentidos que devem ser refutados. Ou seja: ao ser refutado um sentido, ele o é também a partir da memoria discursiva que aponta para o que ndo pode ser dito na referida FD. A meméria discursiva ainda tem um outro funcionamento: é em fungao dela que certos sentidos sao “esquecidos”, ou seja, certos sentidos que, em um determinado momento podiam ser produzidos no seio de uma FD, em fungao de mudangas conjunturais, nao podem mais af ser atua- lizados, lembrados. E 0 contrario também é verdadeiro: determinados sentidos que nao podiam ser ditos em uma FD, em funcéo das mudangas conjunturais, a partir de um determinado momento, passam ser autori- zados. Em suma: constata-se que uma ED é regulada por uma memoria discursiva que faz ai ressoar os ecos de uma memoria coletiva, social. Por outro lado, a memoria discursiva que se depreende de uma FD nao é plena, nao é saturada, pois nem todos os sentidos estao autorizados ideologicamente a ressoar em uma FD. Essa é a diferenca que se estabe- lece entre 0 memordvel, que é da ordem do “todos sabem, todos lem- bram”, ea meméria discursiva que é de ordem ideolégica. 0 ideolégico que responde pela natureza lacunar de uma FD e da memoria discursiva por ela representada. E ainda: se determinados sentidos precisam ser “esquecidos”, significa que eles desaparecem do ambito de uma FD. Quando isto sucede, é preciso questionar a natureza desse esquecimento. Significaria ele um “apagamento”?. Entendo que, se o sentido nao pode mais ser relembrado no interior de uma FD, isto nao significa que, num passe de magica, este sentido desaparece. O “apagamento” de um sentido em uma FD nao implica o apagamento deste sentido ao nivel do interdis- curso, que funciona como uma memoria de todos os dizeres. Dessa forma, percebe-se que um sentido pode desaparecer de uma FD, mas nao pode ser apagado do interdiscurso, onde ele permanece recalcado, Por tudo quanto precede, entendemos que tanto mem6ria discursi- ‘va como interdiscurso dizem respeito 4 meméGria social, mas nado se confundem. Ha diferengas importantes entre as duas nogées. A memoria discursiva é regionalizada, circunscrita ao que pode ser dito em uma FD MEMORIA E HISTORIA NA/DA ANALISE DO DISCURSO 87 e, por essa razao, é esburacada, lacunar. Jé o interdiscurso abarca a mem6ria discursiva referente ao complexo de todas as FD. Ou seja, a meméria que o interdiscurso compreende é uma meméria ampla, totalizante e, por conseguinte, saturada, Concluindo Como vimos ao longo desse texto, a repetibilidade esta na base da producao discursiva. E ela que garante a constituicdo de uma memoria social que sustenta os dizeres, pois s6 h sentido porque antes j4 havia sentido. Entretanto, essa repetibilidade nao é capaz de cristalizar os sentidos, pois, a forga de repetir, os sentidos vo deslizando e se trans- formando. Por conseguinte, a repetibilidade sustenta a um s6 tempo a regularizacao dos sentidos que se encontram em circulacao no social e sua desregularizagao e transformaciio. Os dois processos embasam a produtividade dos sentidos sociais e se fazem presentes na cena do discurso, embora com énfases diversas. Certamente, a regularizac4o dos sentidos é um processo mais presente, enquanto a desregularizacao dos sentidos é menos comum. E nao poderia ser diferente, pois se os sentidos estivessem em constante deriva nao haveria discurso possivel. Ao mes- mo tempo, sem a deriva dos sentidos, 0 discurso se mostraria indtil, pois os sentidos entrariam em um moto continuo. Assim sendo, regularizagio e desregularizagio sao processos que sustentam a discursividade social. 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