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| _ QUAL ee " “ DEMOCRACIA? econdmica e social por que ven pasando: complicade p ‘asem prec & mois do que o ; possibilidade de consolidacdo da demo: | em paises, como © Brasil e outros da América Lo: frontom com alarmantes disp tacdo do tecido social. As “nove ra da falénci eralizac nadas © uma a viver no fron Exolamente wal democr de garantir as con de resgator o préprio le nacional isso, quistas [6 olca sentido de viabil «Mid (GOxTPSNHILN Das LETRAS, 0 fim das ditoduras nd foi necessariamente 0 comeco das Semoctacios, A formalidade domocttica pressupse regras do jogo {que devem see respeitados por todos os {rupes poticos. © populsmo dssimulou otis elementos eutoirios dos regimes democréticos que precederam os golpes militares. A perspectiva tevoluciondra cssimulada sob os progromas de muilos partidos de fesquerda era inadequada pora a cconsttugao da demacracia. Todos esses enunciados, qvose consensvois nos dias {ue corte, dez anos airés ainda ndo estovam clots. Foucos como Francisco Weffort com imensa coragem conseguitom romper issimulagSes e impor a ransporéncia na teoria ena lua pola. Tonspondo fs certezas dos enganodores momentos de evfora das grondes mobilizasBes ¢ da construc dos novos partidos populates, foi copaz de antever@ cise fue se anunciows para © democracia, © pora os esquerdas. Com sensibiidade © fineza — marcos generosas de sua prética em fentes 150 diversas, do Univenidade oo partido, ede seu ifluente peasomento — desvendov com imensa cloreza os enigmas que os nows democracies irom enfrentar. E apontov 05 dlocerantes consequéncios dos regimes polticos na esteira do marsismo-leinism, ‘Um novo lvro de Francisco Welfor. Esta boa nova bostaria para prender a tendo e se mergulhar sem mois tardar na leva. Uma extraordingria ofortnidade pare se ever uma tojetria de ands, as novos configuacbes dos sistemos polticos, ne Bras e na América lating, & ceonhecermos os cenérios do futuro do demecracia, No se rata de uma caleténea de enscios, mas de pares integradas @ oriculodas de uma reflexdo sobre o teovia eo pxética poltica nas Uimas décados do século QUAL DEMOCRACIA? FRANCISCO C. W. QUAL DEMOCRACIA? 1S rimpresio * wo! % v %,, wy Neraca cov’ (GontNnta Das Cateas Ur — — ~ — , Copyright © 1992 by Franciseo C, Weifort Para Cape Maddalena, Carolina, Helena, Métio de Almeida Marina e Cristina Revisi: Isabel Camargo Cecilia Ramos ma Todos os direitos desta ego reservados Rua Tupi, 2 (1233-000 — So Paulo —s# Telefon: (011) 8261822 ax: (01) 826-5523 INDICE Nota do autor, 1. Construgaio da democracia e crise da comunidade nacional 2.A América errada, 3, Democracia politica e desenvolvimento econdmico 4, Novas democracias. Quais democracias? 5. Democracia delegativa versus movimento democritico 6, Brasil: perspectivas para os anos 90 7, Democracia e socialismo Notas NOTA DO AUTOR Este livro retine alguns ensaios que escrevi de 1988 a 1992. C dda qual tema sua circunstancia e a marca que esta Ihe imprime. Mas crcio que formam um conjunto tematico claramente identificavel no acompanhamento da transigao que o Brasil e outros paises da Amé- rica Latina vém vivendo. O primeiro capitulo, “Construgao da democracia ¢ crise da co: munidade nacional”, é uma reflexao que comegou em um simpésio da Unesp, organizado por Nilo Odalia, em Sao Paulo, em 1988. Foi bastante modificado para um seminario organizado, em 1990, por Jeff Weintraub e Carlos Forment, na Universidade da California (Los Angeles). Permanece, porém, tema das ameagas ao desenvol- vimento, que havia sido o centro dos nossos debates em Sao Paulo. ‘Em um pais como o Brasil, com uma experigneia secular de eres- cimento econdmico, o dado mais notavel dos anos80¢ 0 estancamen- to, Este dado se torna ainda mais sombrio quando estendemos a and- lise, no segundo capitulo, “A América errada”, para outros paises la- tino-americanos. Na verdade, nao é s6 0 desenvolvimento que se acha ameagado, mas as perspectivas de consolidagao da democracia Este ensaio, escrito em 1989, para um seminério organizado por Julio Cotter, no Peru, acabou revelando-se antecipatério do que viria a ocorrer em alguns paises. Af estio o golpe do Peru ¢ a tentativa de golpena Venezuela como exemplos de como € dificil estabilizar a de- mocracia em um contexto de empobrecimento 20 violento como 0 da tltima década. Por isso, deixeio ensaio como estava, emboraacre- dite hoje que tenha carregado demais no pessimism. terceiro capitulo, "Democracia politica e desenvolvimento econdmico”, ¢ parte de um esforgo,iniciado em 1991 em seminario internacional organizado pelo 19st ¢ coordenado por Herbert de 9 Souza, no Rio de Janeiro, para situara crise atual em um marco ana Iitico mais amplo. Temos, além da crise econdmica, uma complexa crise de Estado, que se revela em uma tendéncia a ingovernabilid de. na obsolescéncia econdmica do Estado e na sua incapacidade pa: ra manter algumas de suas fungdes classicas, no campo da seguran- ga, dos contratos ete. Revela-se ainda, finalmente, nas tendéncias & integragdo regional e internacional. as quais podem, por outro lado, estar apontando caminhos de superagao da crise. io parte do mesmo tema os capitulos que vem em seguida, “Novas democracias. Quais democracias?” ¢ “Democracia delegs tiva versus movimento democritico”. nascidos de discussdes han das no seminério East-South System Transformation, coordenado por Adam Przeworski, da Universidade de Chicago. As tcorias s0- bre a génese do Estado (e da democracia) no nos fazem esperar {que as democracias devam emergir em cenarios de clara transpa- réncia. O Estado, que 6, no essencial, um complexo de instituigoes que tém de especifico a capacidade de controlar a violencia, custou sempre, ele proprio, um alto prego em violéneia, nas partes do mun- do moderno em que chegou a se consolidar. Robert Dahl e Adam Prveworski diriam algo de semelhante sobre a génese da democra- cia, ela propria um resultado dos conflitos que, uma vez estabele da, serve para institucionalizar. Nada de surpreendente, portanto, que o Brasil tente cons- truir a democracia em uma época de crise, terreno fértil para os contlitos sociais ¢ para a violéncia de diversa natureza. O cendrio de alguns paises vizinhos, como Peru, Bolivia, Venezuela © Co- lombia, é ainda mais dificil, Na América Central, estabeleceu-se a pazem El Salvador e na Nicaragua, mas as tragédias sociais ¢ eco- nomicas continuam em todos os paises daquela sub-regido, com excegao da Costa Rica. E também o que vemos em alguns paises da Europa Oriental: lé alguns Estados, como a Checoslovaquia, & ‘omais importante deles todos. a URss, se desmembram. Ea lugos- Javia, além de se desmembrar, desce 0 plano inelinado dos horro- res da guerra is a pergunta que orienta os capitulos quatro ¢ cinco: qual de mocracia pode germinar no terreno minado da crise? Diferente de outros momentos em que acreditei que as “novas democracias” esti- vessem condenadas, esses dois capitulos expressam a convicgao de que elas podem sobreviver, mas a um prego muito mais alto do que as teorias clissicas da democracia representativa poderiam admitir. ‘As novas democracias sio as “democracias delegativas” de que fala 10 Guillermo O'Donnell. Séo democracias disformes, condenadas a ‘uma instabilidade crénica que as obriga a viver na fronteira da re- gressio autoritéria, A democracia tem uma chance de sobreviver, mas isso dependerd de um cuidado muito maior das liderangas do que aquele que normalmente se vé nesses paises. Quais as perspectivas? Nas circunstancias atuais, a indagagio sobre o futuro se apresenta como um desafio para qualquer tendén- cia de pensamento. Com mais razao, se apresenta como um desafio para esquerda, encurralada na defensiva, e vendo tornarem-se obri- gat6rios os temas neoconservadores, como 0 vemos no capitulo seis, “Brasil: perspectivas para os anos 90". Este ensaio nasceu no CEDEC, em semindrios internos organizados por José Alvaro Moisés e Régis de Andrade, Passou, depois, por um grande semindrio sobre as pers- pectivas da esquerda na América Latina, organizado em Madri em 1991, por Pablo Gonzales-Casanova, da Universidade Autonoma do México, e por Marcos Roitman, da Universidade Complutense. Se apés a Primeira Guerra Mundial, em especial depois da cri- se de 1929, parecia que o mundo imaginado pelos liberais vinha abai- xo ese impunha o crescimento do Estado, a €poca atual aparece co- moa da queda do Estado e da volta do mercado. Nao apenas 0 cam- po da esquerda foi afetado por essa grande mudanga, mas foi, certa- mente, a esquerda que sofreu 0 maior impacto. Especialmente no Brasil, ela comegou a desvendar as dificuldades da consolidagao da democracia no mesmo momento em que o socialismo se desmorona- vana Europa Oriental ‘O capitulo set um semindrio organizado por Mare Plattner ¢ Larry Diamond, no National Endowment for Democracy, de Washington, visando preparar um niimero especial da revista Journal of Democracy, em homenagem aos cingtienta anos do livro de Joseph Schum- peter, Capitalismo, socialismo ¢ democracia. Eu considero nesse capitulo algumas das mudangas recentes nas relagdes entre socia- lismo e democracia. A mais importante esté no fato de que, se du- ante algum tempo os socialistas democraticos acreditaram que a democracia nao teria perspectivas fora de um horizonte que tor- nase possivel a construcao do socialismo, deve ter ficado eviden- te, depois dos acontecimentos de 1989 e sobretudo do desmem- bramento da uRss em 1991, que é 0 socialismo que nao tem pers- pectivas fora de um horizonte que torne possivel a construgéo da democracia. O socialismo estatista, isto €, aquele que identificava socializagao com estatizagao, est morto como perspectiva hist6- ‘Demoeracia ¢ socialismo”, foi eserito para n cae rica, Com ele, desaparece também como perspectiva o socialismo autoritério. Deste modo, 0s socialistas tém de resgatar seus valores iberta- rios e igualitérios de origem, no mesmo momento em que tém de aprender a conviver com o mercado. De outro modo, perderao 0 minho da modernidade, Mas, aprendendo a conviver com o merca do, terdo que casar-se com a democracia, ligando-se a tudo o que sit- vaa reforgé-la¢ consolidé-la: os movimentos sociais, a sociedade ci- vil,opluralismo. De outro modo, perderdo nao apenas 0 caminho da modernidade mas, o que é ainda pior, o proprio sentido da liberda- de e da justica social Os enstios aqui reunidos se beneficiam do bom ambiente de trabalho que encontrei no Instituto Helen Kellogg, da Universida- de de Notre Dame, e, depois, no Woodrow Wilson Center, duran- te o periodo em que estive nos Estados Unidos, de meados de 1990 até inicios de 1992. Mesmo quando foram escritos antes disso, co- mo é 0 caso dos dois primeiros capitulos, as revisbes a que foram submetidos se beneficiaram de uma enriquecedora chance de de- bate e de informagio, Ficam aqui, portanto, meus agradecimentos aos diretores € colegas do Kellogg, em especial a Guillermo O'Donnell e Ernest Bartell, ¢ do Wilson Center, em particular a Joe Tulchin. Na verdade, 0 bom ambiente de trabalho de que se beneficiam cesses textos comegou antes de minha safda para o exterior. E conti- nuou depois da minha volta, Devo agradecer a todos os colegas com 0s quars tive oportunidade de discutir oy papers que deram origem 0s capitulos deste livro, Seus nomes esto mencionados acima co- ‘mo organizadores dos seminérios ou simposios, dos quais participei nestes ultimos anos, bem como nos préprios textos. Devo agradecer, em especial, a gentileza e a eficécia do pessoal da Pr6-Reitoria de Pesquisa da Universidade de Sao Paulo, sobretudo do professor Er- ney Camargo, poissem a notavel eficiéncia do Programa B1D-USP mi- nha estada no exterior nao teria sido possivel. Este livro retine a parte inicial, exploratoria, de um programa de trabatho que se encontra em andamento e que, se tudo sair como espero. inclui para 0 proximo ano um outro livro dedicado a estudos de casos nacionais. Permanece, portanto, a minha divida para com asinstituigbes ¢ os amigos que me apoiaram na realizacio destes tra balhos. Mas, se 0 pr6ximo livro vier, espero que conte, como este, com 0 apoio editorial de Luiz: Schwarcz e com a revisio de Claudio Marcondes. Converter papers académicos em livro destinado ao pt 2 blico em geral requer mais talento do que se imagina, Mais do que a competéncia, (do evidente no seu trabalho editorial, agradego-Ihes sobretudo a gentileza e a boa vontade. Francisco C. Weffort jutho de 1992 B I CONSTRUGAO DA DEMOCRACIA E CRISE DA COMUNIDADE NACIONAL! Para onde vai o Brasil neste periodo hist6rico que se inaugurou em 1988-89 com a criagao de uma nova ordem institucional e com as eleigdes presidenciais? Quais sao as perspectivas de consolidagao da democracia politica em um pais mergulhado na crise e apresentando um quadro de extraordinéria desigualdade social? Que tipo de de- mocracia temos em vista? Como encarar as propostas para um pacto social ou as previsdes de um futuro social-demoeratico para o Brasil? Estas sdo questes prementes na atual situagio politica do pais, Este ensaio, contudo, tem como ponto de partida uma antiga preo: cupagao dos intelectuais brasileiros. Ela vem, no minimo, desde a Revolugio de 30, que assinalou uma crise fundamental do Brasil agririo e tradicional, ao mesmo tempo em que abriu para o pais as portas da modernizagio ¢ da industrializagao.* Refiro me aquilo {que Afonso Arinos de Mello Franco expressou algum tempo atras, no estilo caracteristico do liberalismo brasileiro, ao dizer que, na his- {ria do Brasil, nunca havia sido possivel associar a “defesa da liber- dade politica” a "defesa da igualdade soc ‘A mesma idéia pode ser expressa de diversas maneiras, Endo é nenhumia coincidéncia que nela se detecta um eco das questdes te6- ricas clissicas sobre a formagao do Estado moderno (e da demoe cia moderna). H4 aqui uma confluéncia de concepgdes tao diferen- tes quanto as que poder pirar nas idéias de dois contempo- raneos das revolugdes do século XIX: Marx e Tocqueville, Entre os autores mais recentes que se ocuparam como tema, incluo os nomes de Hannah Arendt Norberto Bobbio, por seus trabalhos sobre te ‘mas europeus, e Robert Dahl, por seus escritos sobre a evolugao da democracia norte-americana, De qualquer modo, sao questoes que {se tornaram corriqueiras no Brasil e naqueles paises latino-ameri IS canos em que a democracia politica nunca chegou a se consolidar. Na realidade, na América Latina, a democracia politica ainda en- contra-se em fase de implantagao ¢, nas poucas ve7es em que chegou ‘a existir, nao passou de uma tentativa fragile instavel, com as possi: veis excegaes do Chile, da Costa Rica ¢ do Urugusi Em outubro de 1988, na cerimOnia em que foi promuleada a no- va Constituigao, o deputado Ulysses Guimaraes, presidente da As sembiéia Nacional Constituinte, chamou a atengao para um impor- tante aspecto do problema. Surpreendentemente, para um politico de orientagao liberal que costuma adotar um estilo juridico institu ionalista, ele fez tanta questao de enfatizar, pelo menos em um ni- velconccitual, o vinculo entre a “defesa da liberdade politica” ea da igualdade social, que sua definigdo da cidadania podia ser entendid: \ como estando baseada mais nos atributos sociais do que nos politi cos. “A Constituigio [..] quer mudar 0 homem em cidadao”, di cle. Noentanto, “$6 & cidadio quem ganha justo e suficiente salario, 1c escreve, mora, tem hospital ¢ remédio. lazer quando descansa” Como intelectual, Ulysses Guimaraes aproxima-se das posigoes de “Tocqueville e de Stuart Mill e, com certeza, encontra-se bem distan- te das idéias de Marx. eral, na qual a definigao do espago institucional que torna possivel a cidadania & fundamental. Se Ulysses Guimaraes nada tem a ver com Marx, 0 mesmo nao se pode dizer da questio da cidadania, pelo menos no seguinte sen- tido:“mudar o homem em cidadao” ndo pode ser considerado irre~ levante para os conteudos econdmicos e sociais que se manifestam no espago piiblico. O estabelecimento da comunidade politica, aquilo que se poderia chamar de “politizagao da sociedade”. nlio exclui — pelo menos nao necessariamente — a possibilidade da “socializagio da politica”, para usarmos a expresso do marxista italiano Umberto Cerroni, Este ressaltou um fendmeno tipico da sociedade moderna — ou da modernizagao, no caso da sociedade brasileira — ao afirmar que o Estado contempordneo sempre é, de \gum modo, tanto um Estado social como um Estado de massas. Tocqueville teria considerado tal fendmeno por um prisma maisne- gativo, mas nao discordaria do diagndstico. Exemplos desse fend- meno na hist6ria brasileira s20 0 perfodo iniciado pelo governo re- voluciondrio de Getilio Vargas (1930-37) e que se estendeu sob a ditadura no Estado Novo (1937-45), € 0 periodo da democracia po- pulista (1945-64). ‘Quanto ao relacionamento entre o Estado e as massas, importa 16 salientar que, mesmo quando adotou uma politica de exclusio des- tas, sob o regime militar inaugurado em 1964, mesmo assim 0 Bsta- do viu-se obrigado a levé-las em conta, pelo menos como ponto de referéncia, Embora procure reprimir as manifestagdes da “questao social”, 0 Estado nao pode ignoré-la, As sociedades modernas (ou tem processo de modernizagao) impoem ao Estado uma alternativa: ou ele promove 6 estabelecimento de uma comunidade nacional, 0 que implica, entre outras coisas, a criagao de um espaco institucional no qual haja lugar para as massas populares; ou entdo o Estado opta pela exclusio das massas e, neste caso, coloca em riscoa possibilida- de de uma comunidade nacional. Na tradigio democratica, que nos interessa aqui, o modo pelo qual se define a relagao entre politica e questdes sociais (ou entre Estado € massas) sempre & um ponto de- cisivo. E esta questao retorna mais uma vez. ao primeiro plano de nossa historia A ORDEM POLITICA E A “QUESTAO SOCIAL" A despeito dos avangos democraticos contidos na nova Consti- tuigdo, permanece sem solucéo a questo fundamental da separagao entre lierdade politica e igualdade social. No plano das intengdes € dos principios. um progresso consideravel foi alcangado. Todavia, manteve-se a tradicional desarticulagdo entre as instituigdes que ga- rantem a liberdade politica e a esfera das questoes sociais. Falando sobre isso na promulgagao da Constituigao, o senador Afonso Ari nos observou: “A garantia dos direitos individuais é cada vez mais. efetiva e operativa nas constituigdes contempordneas, mas a garan- tia dos direitos coletivos e sociais, fortemente capitulados nos textos, sobretudo nos paises em desenvolvimento, e particularmente nas condigoes do Brasil, torna-se extremamente duvidosa [...|. Direito individual assegurado, direito social sem garantia: eis a situagdo”. Meu objetivo é mostrar que esta desarticulagao entre liberdade politica e “demandas sociais” reflete diretamente a realidade politi cae social do pais. Para tanto, vou me basear em trés hipéteses: pri meio, de que @ nova Constituigao é a expressao politica de uma con- jungao de forgas —resultante da alianga entre “moderados” da opo- sigdo ¢ “liberalizantes” do regime militar — que dirigiu a transigéo democratica desde 1984, Segundo, de que a nova Constituigéo defi- ne instituigdes politicas cujas caracteristicas pressupdem uma or- dem politica democratico-liberal. E, tereciro, de que nesta nova or 7 acct foram “acrescenta- dem politico institucional as “questdes sociai das” & margem. Elas s6 estio ali porque foi impossivel e pecialmente devido as pressoes sociais exercidas no perfodo de re- dagao constitucional; de qualquer modo, permanecem margin: ‘Além disso, mesmo esta débil presenga social na Constitui pode ser desvinculada do cardter corporativista de muitas manifes- tages de grupos e movimentos, os quais se revelaram incapazes de propor uma nova visio da comunidade nacional. :stas hipdteses foram formuladas na linguagem dos objetivos politico-institucionais. No entanto, poderiam ter sido apresentadas na linguagem de uma sociologia dos atores sociais. Embora seja ver- dadeiro que a nova Constituigao contenha mecanismos que garan- tem a coexisténcia das classes e grupos sociais dominantes na socie dade brasileira, trata-se de uma meia-verdade. Durante as sessies da Assembléia Nacional Constituinte, as galerias no Congresso Nacio- nal foram ocupadas, paeifica e democraticamente, por todos os gru- pos de pressdo cxistentes na sociedade e isto foi um prentincio do iter abrangente da nova Constituigao. Além de garantir a coexist cia dos grupos dominantes, ela também assegurou a coexisténcia de todos os segmentos organizados da sociedade, inclusive de setores das classes dominadas, especialmente dos trabalhadores urbanos, A famosa afirmagio de Lula, de que “ninguém mais poder duvidar da capacidade de tuta dos trabalhadores brasileiros", nos ajuda a entender um aspecto decisivo da nova ordem politico-insti- tucional. Mais do que uma frase, trata-se de uma perspectiva de mo- bilizagao que data da fundaco do Partido dos Trabalhadores (vr) ¢ que se reatualiza na criagdo da Central Unica dos Trabalhadores (cur). A despeito de ter votado contra o projeto de Constituigao Proposto pela maioria, o Pr defendeu os direitos sociais, politicos e individuais incorporados ao documento. No final, concordou em assinar, juntamente com os outros partidos, 0 projeto que se trans- formaria na nova Constituigao. Votou contra, mas acatou a decisdo da maioria. Como expressao dos setores “organizados” da popula- ‘20, ou dos setores “organizados” das classes populares, 0 Pt deci- diu integrar-se & nova ordem institucional — a mesma ordem que, por outro lado, cle procura mudar por todos os meivs constitucio- nais disponiveis. A eleigio presidencial de 1989, na qual Lula ines- peradamente chegou ao segundo turno, simboliza este processo de integragao dos segmentos organizados dos trabalhadores a ordem institucional. Sem divida uma integragao dificil, mas nem por isso menos real, 18 Mas, ¢ quanto aqueles que nao fazem parte de classes ¢ grupos organizados? Obviamente,continuam marginalizados. Aqueles que esto na periferia da ordem social permanecem também a margem da ordem institucional, Eles constituem a grande massa dos “desor- zganizados” das cidades e dos pobres do campo, que podem correta mente ser chamados de “deserdados da terra”, em memoria do fa- ‘moso livrinho de Frantz Fanon. O cientista politico Hélio Jaguaribe stima que 52.4 milhoes de brasileiros, que constituem a populagio politicamente ativa do pais, concentram-se em sua maior parte nas faixas salariais mais baixas. Deste modo, 29.3% dos trabalhadores (excluindo-se os trabalhadores nao assalariados) nao recebem mais do que um salério minimo. No caso dos trabalhadores rurais, a pro- porgdo cleva-se para 42.9% , Cerca de 22.5% recebem apenas de um a dois saldrios minimos. Isto significa que, incluindo-se os trabalha- dores nao assalariados, “64% da populagdo economicamente ativa vivem em niveis que variam da miséria (um salério minimo ou me- nos) 8 extrema pobreza (até dois saldrios minimos)”.” Estes ntimeros mereceriam talvez uma atualizagao. Maso quadro {que eles retratam nao pode ser mais claro, E disso que se trata quando se diz que, no processo de transigdo, hd uma “questo social” a ser re- solvida, Na Europa de meados do século x1x,a expressio "questi so- cial” referia-se as condigGes de vida do proletariado industrial. NoBra- assim como em quase toda a América Latina, a expressao designa a enorme massa de pobres e miseraveis cujo numero, em alguns casos ultrapassa o do proletariado, Nocaso do Brasil, com 150milhoes de ha- bitantes, essa massa de pobres ¢ miserdveis compreende cerca de me- tade da populagio. Quais sao as possibilidades de consotidagio de uma democracia politica na qual perto da metade da populagio nao recebe nem mesmo os beneficios minimos do desenvolvimento? UM REGIME DE OLIGARQUIAS COMPETITIVAS Um bom ponto de partida para se discutir as perspectivas de uma demoeracia social sob tais condigdes € um artigo de Hélio Ja- guaribe, no qual este apresenta uma teoria geral da democracia ¢ procura aplicé-la a hist6ria brasileira. Resumindo idéias bastante complexas, cu diria que, em sua teoria da democracia, Jaguaribe fa- Jade uma transigio—nem sempre gradual e, por vezes, contliti de uma democracia de notiveis para uma democracia de classe média e,em seguida, para uma democracia de massas. Ele também diz.que y as democracias modernas — que sdo, ou tendem a ser, democracias de massa — podem ser divididas em dois tipos: democracia liberal ¢ democracia social. De acordo com Jaguaribe, a democracia social seria uma “de- ‘mocracia organizat6ria [..] que configura a sociedade para os fins da coletividade”: "De puro gendarme dos contratos, o Estado se torna [... fiscal da interdigao de certas praticas que possam afetar o inte- resse puiblico (medidas antitruste) e, finalmente, ativo coordenador da economia (dirigismo)e preservador dos interesses das classes tra- balhadoras (democracia social)", A “democracia liberal” seria ape- nas “regulatsria”, dedicando-se exclusivamente a regulagio da so- ciedade civil — os exemplos mais caracteristicos sao as democracias liberais da Europa Ocidental no século xix. Em contraste, a demo- cracia social seria representada pelas democracias contemporaneas que se caracterizam por um Estado de Bem-Estar.’ Com base nestas distingdes, pode-se dizer que no Brasil, apés a Constituigao de 1988 eas eleigdes do ano seguinte, vivemos em uma ‘democracia regulatoria”. Sua diferenga mais significativa em rela- ‘80 a classica democracia liberal européia de meados do século pas- sado é 0 fato de esta ser uma democracia de proprietirios. A nossa é uma democracia dos setores “organizados” da populagio, sejam ou nao proprictirios. Colocando de outro modo, nossa democracia corporativista no que se refere a participacdo dos segmentos organi- zados da sociedade, mas nela ainda esta presente a natureza “regu: ladora” das antigas democracias liberais. Nao estariamos entio no caminho de uma “democracia so cial”? Jaguaribe parece ser desta opiniao, pois afirma que embarca- ‘mos em um processo de “caracteristicas itreversiveis ¢ que (..) & queda dos regimes militares sul-americanos ...] seguir-se- a forma- io de democracias de massas ¢ seu encaminhamento para uma de- mocracia social”.’ Em outras palayras: estarfamos no caminho de um Estado capar de defender os interesses dos trabalhadores? Ha alguma perspectiva de um regime social-democritico no Brasil? Em aso afirmativo, ai estaria uma solugdo para nosso problema inicial, 0 da distancia entre a “defesa da liberdade politica” ¢ a da igualdade social. E teriamos também encontrado um meio para consolidar a democracia politica e solucionar a crise em que se encontra a comu- nidade nacional Antesde avancarmos na discussdo, serd necessério rever osigni- ficado (e 0 valor) das recentes vit6rias constitucionais. Nao hi diivi dda, para quem observar a atual ordem institucional, que houve uma 20 ampliagio dos direitos sociais e politicos individuais. Exemplos sio 0 habeas-data, as restrigGes impostas a uma poticia acostumada a abu- sar de sua forga, a condenagao da tortura. Os direitos politicos ago- ra incluem a liberdade de se organizar partidos politicos ¢ o de utili- zar os meios de comunicagao em campanhas cleitorais. Os direitos sociais também foram estendidos, com a equiparagao dos direitos dos trabalhadores rurais aos dos trabalhadores urbanos,a maior indepen ‘déncia dos sindicatos e, pela primeira verna Constituigio brasileira, o irrestrito direito de greve para todos os trabalhadores. Portanto, a despeito da persisténcia de certa autonomia por parte das inslituigoes militares, da sub-representagio das regioes mais modernas e de uma espécie de “congelamento” do problema fundiério, o processo de liberalizagio politica estabeleceu as condi- «des necessérias para uma futura democratizagao do Estado e da so- ciedade. Embora no contexto de uma transigo tao acentuadamen- te conservadora como a do Brasil, a nogo de uma democracia libe- ral “regulatoria” nao deve ser subestimada por aqueles que a consi: deram parte significativa da democracia em geral. Robert Dahl define, como necessérias para que 0 povo possa se manifestare exerceralguma influéncia sobre o governo, asseguintes garantias institucionais: liberdade de expressao e de associagao, ci reito de voto, direito de informagao alternativa, direito dos lideres politicos de competirem por apoio, elegibilidade para cargos ptibli- cos ¢ eleigdes livres.” E, segundo ele, precisamente por garantir ali- berdade de expresso, o regime oligarquico liberal da Italia, na épo- ggarra-se aseusinteresses particulares em detrimento dosinteresses frais, Em uma sociedade em crise, endividada ¢ estagnada, difun- aeree condutas do tipo “salve-se quem puder”, cada ver mais vio- lentas e exclusivistas. A capacidade que um grupo social demonstra para se organizar e participar coincide coma capacidade que dispoe para defender seus interesses. E, em muitos casos, trata-se literal- Inente de uma questio de sobrevivencia, O desenvolvimento da democracia depende, em grande. medi- da, de como venham a se combinar estas tendéncias contradit6rias de creseimento,seja das bases da democracia politica, eja do corpo fativiamo social Se a organizagao e participagio de cada grupo & proporcional A sua capacidade de sobrevivéncia na sociedade, entao Compreende-se que esta mesma situagao ocorra no caso da partici- pagdo desta mesma sociedade nacional no sistema internacional Em uma economia internacional em reorganizagio cnascircunstan cias criadas pela crise, terio mais possibilidades de sobreviver os paises que forem capares de se organizare de participar. Esta vanta- gem talvez venha a sera garantia da democracia. DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAGAO Daépoca atual pode-se dizer o mesmo que Norbert Wiener dis- se da maquina (¢ do universo): “Estamos imersos numa vida em que ‘© mundo, como um todo, obedece & segunda lei da termodindmica: aconfusio aumenta ¢ a ordem diminui. Supondo que assim seja,a 59 Pergunta 0 que fazer? Nasa eibernética, termo que tammy ara “governo” € para “ciéncia politica”, Wiener dir que desu capacidade de tomar decisdes. [a maquina) pod. jhe sua volta, uma zona de organizagio num mundo cu déncia geral ¢ deteriorar-se”. Transferido para a socied: racioeinio conduz-1o seguinte: 0 caos se combate tomando criando organizagbes, criando instituigdes. Combater a

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