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ICA E VALORES. i ora O que pode um professor? Ha que se pensar com 0 que fortalece o pensar, nao com ‘0 que 0 debilita. Com essa inspiragdo, Deleuze, sem falar de ética, afirma uma ética no pensamento e na vida Por Walter Omar Kohan ‘As palavras configuram esilos de pensamento; tecem aliangas;abrem ‘cerlos espagos para pensar, 20 mesmo tempo em que fecham outros; ecoam 1 pot€ncia de um pensamento ou, simplesmente, a ealam. Operam como maquinas que poem um dispastivo do pensar em movimento, Em outros termos, pensar é mexer numn dicionério, dar poténcia a algumas palavras; ccalar outras, travar, afinal, uma lita de seatidos ¢ significados. Quando se considera arelagdo entre fildsofos ¢ palavras, ha que se percorrer uma via de ‘mo dupla: algumas pa- lavras chamam a eertos PENSAR E DAR POTENCIA A ALGUMAS issiase bt uisemnto PALAVRAS, CALAR OUTRAS, TRAVAR UMA tr0s, assim como alguns LUTA DE SENTIDOS E SIGNIFICADOS fil6sofos exigem que.se considerem certas pala- ras ¢ desconsiderem-se ‘outras, Peguemos como exemplo a palavra “representaga0”, © Jogo pens ‘mos em Plato, em Descartes, em Kant, em Hegel... consideremos a pala- ‘yra*tempo” e aparecem Hericlito, Ariststeles, Santo Agostinho, Bergson, Heidegger... Fagamos 0 movimento contrério. Pensemos em Plato ¢ vem, por exemplo,“idéia", “bem”, “sofista”.. Pensemos em Foucault ¢ surge *yerdade”, “saber, “ gonealogis”... Pensemos em Heréclito © se mostrain a8 guerra”, “fog0”, “logs”. Toe a er ibs as apace as on aS © caso € que, qualquer que seja a alterativa entre as duas citadas, a tarefa dada 20 texto {que estamos apresentando parece ado levar a lugar nenhum: a éti= ‘ea ¢ 08 valores nilo fazem pensar em Deleuze € também Deleuze nio parece ter dado muita aten- ‘¢éo a palavras como ética ¢ va- lores. Basta notar, por exemplo, que nenhum desses dois termos (nem outros afins como “moral”) aparecem em dicionérios da obra deleuziana como os recentes de Zourabichvili (O Vocabuldrio de Deleuze) ou 6 mais amplo volu- mecoletivo organizado por Sasso e Villani (Le Vocabulaire de Gilles Deleuze); ou que Deleuze gio menciona sequer uma vez 4 palavra ética nas sete horas © meia de gravagdo com Paret ‘que deram lugar a O Abecedério de Gilles Deleuze. A esta altura, mais de um leitor pode estar se perguntando, entio, porque aceite o convite dos organi- zadores da revista para escrever este texto. B uma bela pergunta, cheia de bons motivos. Deixando de lado as ‘questdes mais banalmente pessoais ‘que podem ter movi essa decisto = inclusive aquela que diz respeito a uma tendéncia a aceitar 0s desa- fios mais dificeis -, uma espiada lum pouco mais atenta mostra que as coisas nio sto tio simples como parecem & primeira vista Uma ética ndo-fascista Vale notar alguns signos for- tes. O primeiro vem de um parcei- ‘artista americana Jonny Holaor (1950) expée cantinuamente bras no ‘pag0 piblee, usando palavras frases ‘que "abrem espagoe para pensar” 10 de Deleuze, Michel Foucault. O nome nio & um detalhe jé que, embora tenham —permanecido afastados nos anos que antece- deram & morte de Foucault em 1984, os dois explicitaram certo incémodo com esse distancia- mento e reafirmaram que estavarn “do mesmo lado da barricade”, ‘ou seja, tinham projetos filoséti- cos diferentes, mas travavam uma Tuta em comum no campo intelec- tual. O caso € que Foucault esere- ‘eu uma bela introdugio & edigfo ‘em inglés do_primeiro liveo que Deleuze © Guattari publicaram juntos, em 1972, que foi também. © primeiro volume do conjunto 49 JETICA E VALORES i | “Capitalismo e Esquizoftenia": Ona letura de Foucault, pensar um ra; segundo, expande 0 desejo, 0 i Anti-Edipo. pensamento ndo-fascista, esbocar pensamento © a acio através de i Foucault diz, surpreendente uma vida nfo-fascistae ofaznum — forcas que compOem e preservam . « provecadoramente, nto apenas estilo de escrita também niio-fes- a diferenga¢ nfo que dividem ou que O Anti-Edipo € um livro de cista, Por isso afirma que 0 livro hierarquizam; terceiro, afirma 0 Giica, mas também que é 0 pri- €uma introdugio a uma vidango- positive sobre o negativo, o mtl- meiro livro de ética escrito na ” fascista. B como Foucault sabia tiplo sobre © uniforme, o noma- Franga “depois de muito tempo". quanto era arriscado relacionar ade frente a0 sedentério; quarto, € Por qué? Porque emboraas prate- obra de Deleuze ¢ Guattari coma ume vida revolucionésia, em que + 9 revolucionério no esté num habito ou costume, mas em certa ‘A POTENCIA PARA AGIR E EXISTIR AUMENTA forma de relaglo entre desejo ¢ (OU DIMINUI EM VIRTUDE DAS IDEIAS §—_—_lidade que a vida afirma; quin- E DOS BONS ENCONTROS QUE SE TEM to mee ato eet to como send inversamente pro- porcional a sua pretensio de ver- Teas das livrarias estejam cheias ética, pede licenca para iss. dade; sexto, concebe 0 individue ‘de livros que estampam a palavra Vamos explicitar um pouco como produto do poder ¢ milo a0 Gtica no titulo, O Anti-Edipo € 0 mais a justificativa que Foucault contrério; busca des-individuali- primeiro livro, em muito tempo, _oferece para essa conexto: a ética Zar os individuos, multipticando, {que afirma um modo de pensar ¢ diz respeito a umn modo de vida, destocando o exercicio do poders de viver num estilo coerente com a um estilo de existéncia. Qual € sétimo e Ultimo, é uma vida que ‘esses modos. A imensa maioria a vida que O Anti-Edipo afirma? no se enamora do poder. os livros que se escrevem com Uma vida que, em primeiro I~ Foucault nio se interessa pe- fo nome de ética so de fato livros gar, libera a apo politica de toda os detalhes da critica de Deleuze de moral. O Anti: pretensio unificante ¢ totalizado- e Guattari & psicanilise. O grande song inimigo do livro na leitura fou- ‘caultiana € 0 fascismo, nio ape- nas fascismo de Estado, dos regimes fascistas, mas, sobretu- do, 0 fascismo de dentro, 0 fas- cismo que faz um corpo desejar ‘9 mesmo poder que o subjuga e submete. Temos, ento, uma pri- meira linha, para pensar a ética em Deleuze e suas repercussées educacionais: 0 que seria uma ‘educagiio ndo-fascista? Ow me- Ihor, ¢ mais especificamente, © ‘que significaria erradicar 0 fas- ‘cismo que habita os corpos edu- ichel Foucautt (1926-1984), Interlocutar de Deleuze, tomou O 50 ‘Anti-Gaipo como um livre de ica Ma obra do brasileiro Bispo do Fosério (1900-1089), repetioto 6 pega fundamental cacionais, o nosso corpo, aquele que nos manda desejar 0 que o submete? O que significaria tra- var relagdes nfo-fascistas nas escolas e fora delas? Podem ser inspiradoras as sete perspectivas mencionadas para pensar uma vida educacional nfo-fascista? ‘Que conseqiéncias se seguiriam se nos des-enamordssemos da verdade, do poder ¢ das preten- sdes unificantes e totalizadoras’? ‘Spinoza e Nietzsche: poténcia em vez de dever Assim, temos, nesse signo aberto por Foucault, 0 aceno de uma ética deleuziana no Anti- Edipo. Bsinda podertamos acom- panhar seus desdobramentos em Mil Plaids — a contimuagio do ‘Anti-Edipo ~, publicado em 1980 ©, antes, no livro que escreveu com Guattari sobre Katka (Kajka. Por wma Literatura Menor, 1975). ‘Como se isso nao bastasse, ha ou- tvos signos que ajudam o anterior. Basta notar, por exemplo, que a ética € um dos campos principais onde travam seu pensamento os dois filésofos “preferidos” de Deleuze: Spinoza Nietzsche, para perceber a fragilidade de nossa primeira avaliago e 0 tom apenas ret6rico das licengas pedi- das por Foucault, Essa conexio € fortalecida pela concepciio de- Teuziana da filosofia ¢ sua relago com a hist6ria da disciplina, pois, para Deleuze, a interlocugo com 0 fil6sofos da historie ocupa um eg Ri wg ea 51 52 ETICA E VALORES DELEUZE papel principal; ele concebe a fi- osofia como criagdo de conceitos a partir de problemas tragados so- bre planos nos quais convivem fi- I6sofos de diferentes épocas;com- preende a hist6ria da filosofia por ‘meio de uma légica dos estratos ¢ nio pela linearidade do tempo como Khronos: num mesmo es- trato, encontramos, por exemplo, Descartes, Kant e Heidegger eem outro Hericlito, Hegel e Marx. Assim, Deleuze constréi sou pen- samento sitaando-o em planos em que convivem, em planos di- versos, Hume, Leibniz, Spinoza, Nietzsche, Bergson... Constitui a ética um plano? Podemos en- que nutrem a relagio caracteristica de cada corpo. Uma das questées Gticas principais passa a ser entio: deque coisas alguém écapaz de ser afetado ou em que tipo de relagies pavticipa de maneira a aumentar a sua poténeia para afetar e ser afeta- do, Para isso seria preciso saber 0 {que pode um corpo; porém, apesar de toda a pretensto da cigneia € da religido, ainda nfo sabemos 0 que pode um corpo, suas fungbes, nem qual é a sua capacidade de ser afetado, De certo modo, nu- ca ser possivel sabé-lo, porque o que pode um corpo nao é apenas questo de conhecimento, mas de experimentacio. PADRES, JUIZES E PSICANALISTAS contrar no plano ético a obra de Deleuze junto com, dentre outros, Spinoza ¢ Nietzsche? Talver. ‘Vamos ver dé que maneira, Comecemos por Spinoza, @ quem Deleuze chamade“o prinei- ‘pe dos fildsofos”, o qual, segundo tele, esté no seu coraglo. Deleuze 1é a Ftica de Spinoza como uma tcoria dos afetos, sendo o afeto a variago continua da poténeia de existir ou da forga para agit. Para 0 Spinaza de Deleuze hi dois afe- tos fundamentais: a alegria - 0 afeto que aumenta nossa poténcia de agir ~ea tristeza —0 afeto que a diminui, A poténcia para agir ¢ existir aumenta ow diminui em virtude das idéfas e dos bons en- ‘contros que se tem, das conexdes SAO EXEMPLOS DE FIGURAS TRISTES, QUE DEVEM SER EVITADAS # Referindo-se Spinoza, Deleuze distingue ética e moral. A primei- xa fem a ver com a poténcia © 0s actos; a segunda, com 0 dever. Nsse sentido, considera que tanto Spinoza quanto Nietzsche ~ ambos “pensadores némades” — foram profundamente imorais; negaram dever e apenas se ocuparam de entender 0 que aumenta ou dimi- nui @ poténcia da vida. Por isso seria interessante saber 0 que pode ‘um corpo: nil para Tegislar sobre ele, mas para poder propiciar as relagées que o potencializem, que ‘aumentem sua forga, 08 encontros gue explorem ao méximo sua ca- ppacidade de ser afetado ¢ Ihe doem a forga para viver mais intensa- mente a vida. O legado spinozista conclama Deleuze a evitar as pai- xGes trstes e viver com o maximo da poténcia que a alegria fomece; padres, jufzes e psicanalistas sto cexemplos dessas figuras que se deve evitar pelo tanto que alimen- tam paixdes tristes como a resig- nagéo, a mé-consciéncia, a culpa. E 0 professo:? Mas antes vamos tratar de alguns aspectos do legado nietaschiano em Deleuze. A critica de Nietzsche & moral mais conhecida, Critico feroz da ‘cultura, afirma que os valores no so absolutos, mas inventados; bé que se fazer uma genealogia de- les, um estudo de sua origem, das forgas que os alimentam. Nao bé fatos, mas interpretagbes, As inter- pretagées nfo sio mais verdadeiras ‘ou falsas, mas nobres ou vis, sitas ou baixas; algumas afismam uma rmancita baixa ov vil de pensar e de viver, outtis explicitam uma ‘via genetosa, criativa; as interpre tagbes falam do tipo daguele que interpreta ¢ no da esséncia das coisas; elas mostram o “quem?” e no 0 “que?” elas remetem, em ‘ikima instncia, a uma vontade de poder, que néo designa uma cons- ciénoia on desejo de poder, mas © ‘elemento genealdgico de toda for- «a, isto é, 0 que produz a diferenga de quantidade entre duas ou mais forgas em relagio, ao mesmo tem- po em gue produz a qualidade de cada fore. ‘Assim, a vontade de poder é para Nietzsche, 0 que da signi- ficado ao sentido, sentido as in- tespretagies, e valor aos valores. Por isso, 0 valor de algo depende a vontade de poder que expres- sa; cla afirmativa ou negativa’? yp ac 8 a Expressa-se por forgas ativas ou re-ativas? Ela afirma ou nega a vida? A tarefa do genealogista é, em sitima valores dominantes, asseverar 0 ative © nfo o re-ativo; transmu- tar o valor da afirmago sobre a negego, O caminho da transmu- tagio dos valores est dado pe- las metamorfoses do espitito de Zaraustra, que devém primeiro no camelo que obedece e leva a pesada carga dos valores impos- tosculturalmente; depois se trans- forma no lefo que resiste ¢ critica cesses valores, para finalmente vit sera crianga que € a criagio dos novos valores, a inocéneia de win supremo dizer sim. Menos conhecido 0 apro- veitamento que Deleuze faz. de conceitos nietzschianos como © de repetigéo. Em Diferenga ¢ Repetigdo, Deleuze afirma que Nietesche pensa a repeti¢io da seguinte forma: 1. a repetigao en- ‘quanto tal & algo novo; a novidade nstancia, inverter os nd surge fora, mas na propria 1e- petigdo; ela & vontade, liberdade, novidade; 2. a repetigio est as- sociada ao movimento € oposta A natureza; ela nao € lei natural: 3. a repetigio se opde & Lei Moral; ‘ela & um pensamento para além do bem € do mal; nfo est asso- cciada a um imperativo categérico (a pretensdo de legislar sobre toda © qualquer repetigio) como em Kant, mas a fazer da propria repe- fico uma lei que reéna o singular 0 universal para além da moral assim acabe com toda lei geral com a submissdo do particular a qualquer lei geral; 4. a repetigao 6 ‘oposta as generalidades do hébito (habitus) © s particularidades da ‘meméria (reminiscéncia); @ repeti- «20 € a poténcia positiva do esque- cimento, Desta forma, Nietzsche ilustra um dos problemas de toda filosofia da conscineia: colocar a lei moral como oposta mas a uma 86 vez calcada no modelo da lei natural. A tentativa da recupera- ‘Obra da artista brasileira Lygia Pape (1927-2004) a pottnela nasce dos conjuntos e nde apenas dos individuos 40 nietschiana é liberar a repe- tigdo da filosofia do sujeito e dar nova poténcia ao conceito. Spinoza e Nietasche inspiram. assim a imoralidade de umm pensa- mento que afirma a todo instante a sua poténeia: que propicia aquilo do que vive: encontros alegres, for as criativas: sensibilidade atenta ‘a0 que dé vida, recusa do que pre- tende legisla, HA que se pensar com 0 que fortalece 0 pensar, no com o que odebilita, Comessa ins- piragio, Deleuze, sem falar de ética, afirma uma ética no pensamento, na vida, nfo apenas no Anti-Edipo, ‘mas em toda a sua escrita; é uma 4tica para além das morais, para além do bem e do mal, negagdo do dever, do querer € do poder, de toda forga reativa que afeta, em pri- meito lugar,o pensamentoe a vida, Uma ética da alegria, da poténcia do pensar. E de viver, porque nfo hha pensamento sem vida ETICA E VALORES: a inco foreas ‘Talvez. soja interessante con- ferir alguns detalhes dessa cria- gio de Deleuze em obras poste- riores a0 Anti-Edipo. Quem sabe, sua forea atinja nossa capacidade de ser afetados. Distinguitei cinco forcas e em cada uma delas uma ressonfincia para a quesifio que nos convoca, assim como uma pergunta para pensar o problema que este texto se coloca. Primeira forca: 0s agenciamentos No real, @ forga minima pro- dutora so os agenciamentos © niio 0s individuos. Os agencia- mentos sto multiplicidades nas quais funcionam elementos hete- rogéneos, espessura, idade, sexo, tamanho; slo conjuntos, coleti- ‘yos, que péem em jogo popula ‘g6es, desojos, multiplicidades, devires, afetos, acontecimentos. pottncia nasce do conjunto.¢ néo dos individuos, das associagSes que se fazem, das composighes em que alguém pode entrar, dos estilos que The permitem falar. [A questio passa a ser, entio, de ‘quais agenciamentos se participa; quais deslocamentos € posstvel fazer neles; em quais politicas de agenciamento circala-se. A ques- tio no € apenas ontolégica, mas politica: ser de esquerda € uma ‘questio de percepgio: perceber primeiro 6 conjunto, 0 horizonte, ‘© contomo € $6 depois 0 indivi- ‘duo, 0 si proprio. O que pereebe primeiro um professor? Segunda forga: aimanéncia s agenciamentos dio-se num plano de imanéncia. A imanéneia 6 absoluta, pura, uma vida de po- téncia completa, Ela é composta de virtualidades, o teal em proces- © QUARTETO FOUCAULT-SPINOZA- NIETZSCHE-DELEUZE ABRE AS PORTAS DE UMA ETICA IMORAL EDUCADORA B neles que se compdem os in- dividuos entre si e com outras miquinas. Todo agenciamento tem quatro componentes: estado de coisas (a paisagem, 0 contex- to) estilos de enunciagao (modos de organizago dos signos que se ‘compéem); territérios (especifi- cidades do lugar); ¢ movimentos de des-territorializagio € re-ter- ritorializagéo (saidas através de linhas de fuga ¢ re-entradas em outros territérios), Ressonancia: & so de atualizagio. Deleuze reou- sa toda transcendéncia, qualquer instineia que ultrapasse a Terra € ‘os seus habitantes. A transcendén- cia pode ser Deus, mas também ‘as idéias ou Edipo. Na imanéncia hi devires, linhas e blocos, movi- ‘mentos em velocidades diferentes, ccontinuos de intensidades, conju- gages de fluxos. O mundo esté em ‘movimento permanente. As linhas, ‘que estio imbricadas sempre mum plano de imanéncia, so de ts ti- pos: os segmentos mais dures, rfgi- os (como a familia ou a escola); ‘0s mais flextveis, moleculares (as conexées que se produzem, sem ccoincidir com aqueles); as Tinhas de fuga (que arrastam os indivi- duos entre os segmentos). Os seg- rmentos mais duros tém t€s carac~ teristicas: dependem de miquinas bindrias (classe social: rico-pobre; sexo: homem-mulher, idade: adul- to-crianga; setor: piblico-privado; raga: branco-preto etc.); implicam dispositivos de poder; conformam planos de organizagio - a educa- ‘cdo ~ para formar © descnvolver 08 sujeitos. Os segmentos mais flexiveis constituem devires ¢ blo- cos de devir. Entra-se neles como sum bloco de camaval: dangando, a diversa velocidade, conjugando fluxos, mum continue de intensi- dade; 08 fluxos e as linhas de fuga tiram do lugar as méquinas bindrias os segmentos duros; sio ruptaras, interrupgbes, fissuras. Enquanto as méquinas bindrias estabelecem modelos a serem seguidos, os blo- 0s de devir nio tém modelo, esto sempre em processo, As primeiras conformam o macro; os segundos, ‘o micro, A diferenga entre micro & smaero no € de tamanho, mas de intensidace, de capacidade para conectar forgas heterogéneas. Toda politica € ao mesmo tempo macro ‘e micro, mas $6 a micropolitica é criadora © revolucionétia, 36 cla vive nas linhas de fuga que fogem do controle, munidas de uma forga de resistencia, Hi linhas de fuga nas escolas que nos arrastem a de- vires minoritérios? Transitamos por elas? Nés as experimentamos? Resistimos aos modelos? Terceira forca: uma imagem amoral do pensamento Pensar & um ato de sensibili- dade. Um encontro com signos. Nao se pensa representando ou contemplando, Pensar no tem nada a ver com a moral. Circula, na filosofia, na pedagogia, nas chamadas “eifncias ~lumanas” ‘uma imagem dogmética, morali- zada do pensemento. Ea imagem de umn bom pensar e do bom pen- sador; ela diz que o bem move~ se em dirego a0 pensamento € que quem pensa bem encontra a verdade. Trata-se de puro mora- lismo e se o que interessa € pen- sar a fundo, com intensidacle, hd que se combater essa imagem; pensar é uma forga que abre mun- dos e nao que controla.o mundo. Pensar € um ato imoral; ele diz ".Seetsorstw respeito a encontros com signos que nos forgam 2 pensar e que entram pela nossa sensibilida- de aberta. O pensar tem mais @ ver com 0 sentido do que com a verdade. Ele 180 busca resolver problemas mas crié-los, jé que os problemas abrem horizontes de sentido, inauguram.perspectivas impensadas e levam 2 criagio de conceitos. Portanto, pensar ndo tem nada a ver com ser uma pes- soa boa (ou niim) ou “viver num mundo methor”, mas com dispor uma sensibilidade aberta aos sig- nos do mundo. A imagem mora- lizada do pensamento tira dele a sua poténcia, faz dele um exer- cicio triste. O pensar dominante na instituigo escolar, caleado na técnica, nas idéias de representa. foe reconhecimento, é um modo Cinematic faces de exercer o poder, de diminuir a forga dos outros, de impedir que de fato se pense: uma meneira de controlar, julgar ¢ eondenar. Hi entio espago para uma ética do pensamento, que no dita seu dever, mas abre condigdes para ‘os encontros positives no pensa- mento, aqueles que expandem a poténcia do pensar e com ela a da vida; os que atualizam as inser- ‘gBes em linhas doadoras de vida, aquelas que permitem a explosio de sentido, Pensamos na escola? Quarta forga: o rizoma endo a drvore éa imagem do pensamento ‘A conceppio tradicional do sa- ber utiliza a figura da drvore para seexpressar; um tronco, a filosofia, a mde dos saberes, ¢ dela deriva- riam os outros; a érvore tem rafzes das quais se nutre © nas quais se apéia e ramificagbes nas quais se expande ¢ especifica; as Arvores silo a cara visivel de um paradigma hierfrquico e unificador do conhe- cimento, do pensamentoe também dda vida: a érvore como imagem do mundo; @ verdade como repre- sentagfio; 40 contrério, o rizoma remete 2 auséncia de hierarquia & a presenga da multiplicidade. As multiplicidades, substantivadas, io rizométicas. No tizoma néo hi sujeito e objeto, mas determi- nagées, dimensdes; um rizoma ‘conecta dois pontos quaisquer (co- nectividade) sem origem ou ponto de reumio, com tragos de outras naturezas (hetcrogeneidade), sig- ‘nos muito diferentes; no rizoma trabalha-se por composigdes, que fazem expandir ¢ diversificar as ‘ultiplicidades; o rizoma nao tem ccomego nem fim, apenas meios pelos quais eresce e transborda; nele, a idéia de continuidade no tom forga: ele pode ser quebrado rnum lugar e nascer em outro; ele riéo sabe de princfpios ou funda- ‘gGes; no tem gnese ou estrutura, as suas diregdes so movedigas € instéveis; sempre provis6rio, emt devir, nio se deixa apreender ow ‘calear (reproduzir uma estrutura jé dada), mas cartografar (construir, experimentar, de forma aberta, um campo de conectividade) nas suas miftiplas entradas safdas. Método do no-método, o rizoma assinala para uma ética da pesqui= sa, de experimentagdo permanen- te, criago sem fimn que expande o miplo. Experimentamos 0 mil- tiplo na escola? Quinta forga: 0 menor sobre o maior Deleuze (com Guattari)esté in- teressado sobretudo nos exemplos estéticos: no cinema ¢ na literatu- ra, Uma literatura menor € uma minoria falando wma outra lingua ‘uma contra-lingua — nama Iin- gua maior. Fm sew texto sobre Katka, Deleuze mostra as trés ca- racteristicas principais do menor na literatura: 1. des-terrtorializa a lingua; o que significa falar como um estrangeiro na prépria Lingua, ‘estrangeirizar uma lingua de si ‘mesma, para tirar dela o controle ‘dentitério, para explorar as suas Jinhas de fuga e nomadismo; 2. 0 politico esti imediatamente pre- sentte em cada palavra, sifo como ‘manifesto mas como movimento desafiador, de resistencia e fuga; 3. niio hd enunciagao individual mas enunciagio coletiva. Entre 16s, Siivio Gallo deu um belo exemplo de deslocamento 20 pensar 0 sig- nificado de uma educagao menor. Perguntamo-nos, com ele, qual é a lingua que se fala na educagéo? Etica imoral educadora Pode-se perceber a forca desse pensamento para a educagio’? Por ‘um lado, ele afirma uma revira- volta do que hoje se escreve © so diz da ética na educagio, calcado sobre a ldgica do dever ¢ da ver- dade; cle possibiltaria entender a tristeza que se esconde nas pre- tensdes legisladoras, a diminuiggo da poténcia que elas comportam; fo niilismo que acompanha 0 dis curso da crise de valores; a pre- tensio evangelizadora do fetiche da formagio ética. Assim, o quar- teto Foucault-Spinoza-Nietzsche- Deleuze denuncia o moralismo da tica na educaglo e abre as portas de uma ética imoral educadora, Esbogames alguns elementos do que poderia ser considera- da uma ética no pensamento de Deleuze. Poderiam ser outros. Talvez o gesto ético mais interes sante de um pensamento como 0 de Gilles Deleuze niio esteja nesta ‘ou em qualquer outra construgio que se possa fazer de seu pensa- ‘mento, Hii nas linhas aqui escritas ‘um convite @ pensar um outro ponsamento, a viver uma outra vida educacional. O que pode um professor? No sabemos. Ninguém sabe, Deleuze também nao sabe. Por que entdo ler seu pensamento? Porque a partir de sua forga pode-se encontrar uma outra vida, que no legisle, que no diga a si mesma o que um professor deve ou nfo fazer, que explore os bons encontros que au- ‘mentem a sua capacidade de ser afetado. Uma vida nfo-fascista em permanente luta por aumentar « poténcia da prépria vida. As implicagoes para a educagio poderiam ser afirmadas de muitas ‘maneiras. Seria possivel olhar com algum cuidado 0 que Delewze afir- ‘ma explicitamente sobre a educa ‘cio, sobre a escola, sobre sia pro Ptia experi8ncia de aluno ¢ de pro- fessor, Preferimos nfo fazé-to. Nao 1d modelo a imitar. H4 um mundo 4 ser criado, Um mundo novo. O ‘novo, ensina Deleuze, no se opde a0 velho, no € 0 futuro melhor pe- rante 0 passado. O novo opie-se 20 rotineiro, previsivel, ordindtio, Ele implica a distinedo entre dois pla- nos: 0 plano temporal da histéra, ‘cronologia, sucesso numerada de movimentos organizados em pas sado, presente © futuro; € 0 devir e Aion, temporalidade virtual da duragio, nilo-sucessiva. O novo é ‘um acontecimento inesperado que interrompe a previsibilidade na his- Aria, sua trangUila sucessio, para atualizar um virtual inesperado, im- previsivel, intempestivo. © mundo se cria quando passarnos do ser a0

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