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CapiTuLo III Corpo da fala e corpo falante “A vocagdo para tornar-se humano nos é originalmente transmitida por uma voz que nao nos passa a fala sem nos passar, ao mesmo tempo, sua musica ...” (Alain Didier-Weill, 1999) Articulacdo sujeito-lingua-fala Talvez a questiio mais intrigante que pode ser levantada nesse ponto é: “como entender a dificuldade de pesquisadores/clinicos em definir a gagueira”? Retomo e insisto nessa questiio, interessada no que ela pode indicar como possivel abordagem alternativa, tanto teérica quanto clinica, de casos de gagueira. A resisténcia que a gagueira impde 2 uma “definigo objetiva” tem fomentado controvérsias quanto as bases empregadas para sua apreensao: mensuragdo e/ou apelo ao julgamento de ouvintes. Se sao declaradas insatisfagdes relativamente aos limites de descric¢&o decorrentes de tentativas de aplicagdo de instrumentais tidos como “objetivos”, no que tange ao julgamento de ouvintes, reconhece-se seu carater “subjetivo”, 60 Nao restam diividas de que # ¢ cuta do ouvinte detecta o que é/ndo é gagueira mas para um pesquisador, esse deveria ser apenas um ponto de partida. Espera-se dele, na verdade, que possa dizer sobre o refinamento da escuta do falante, além de um dizer sobre o acontecimento na fala. Acompanho a discussao de Lier-De Vitto (1999b, 2000a), empreendida sobre a polaridade normal vs. patolégico na linguagem. A autora nos diz que “erros” patolégicos diferem daqueles inerentes a fala, eles tem uma natureza particular: so inrolerdveis (inaceitdveis, ndo descontdveis) para um falante nativo. Diferente da disfluéncia inerente 4 fala, que o ouvinte aceita, nao estranha, o que se nota na gagueira é justamente a “ndo edicdo” das disfluéncias, pelo ouvinte ou pelo proprio falante gago. Isto ¢, a escuta que releva as interrupgdes, que homogeneiza 0 vai. vém da fala, no caso da gagueira, “ndo ignora”: estranha o que € da ordem do disfluente. A gagueira resiste, é marca na fala e ndo escapa a escuta do ouvinte. Quero dizer que a gagueira ¢ um acontecimento que nio deixa de ser reconhecido pelo ouvinte - curiosamente, até mesmo por falantes de outra lingua, Nao quero dizer que a gagueira seja um fendmeno desligado da lingua que se fala. Estudos lingiifsticos relacionam a prosédia a estrutura da lingua. A prosédia é imbricada a posigdes estruturais™. A conhecida sentenga, inventada por Chomsky: “colorless green ideas sleep furiously” pode servir para esclarecer esse ponto. Esse autor a utiliza como argumento empirico em favor da afirmagao de que ela é gramatical (embora inaceitavel). Se embaralharmos sua sintaxe, ela nao podera ser produzida enquanto enunciado e o falante poderd apenas dizer palavras isoladas: “furiously sleep ideas green colorless”. A \eitura um a um dos elementos da tltima seqiiéncia, sustenta 0 ponto de vista chomskyano sobre 0 © Como pontuou Scarpa em exame de qualificacdo, a palavra acentuada determina a curva melédica de uma lingua particular. 61 - sintatico ¢ indica, também, a relacdo estreita entre estrutura ¢ prosédia. Uma simples sequéncia de palavras nfo faz sintaxe e a implosio da sintaxe corresponde 4 implostio da melodia da lingua. Pode-se dizer que a gagueira vem atrelada 4 voz e ao corpo de que essa voz emana: subversao em um sé tempo ~ corpo ¢ voz capturados num mesmo movimento. Nisso a gagueira é, também, bem singular em relaco 4s outras patologias de linguagem. A rigor, ela ndlo “faz furo” no corpo da linguagem, ela esburaca a voz € marca 0 corpo do falante sem perturbar a _sintaxe, Talvez por isso ela possa ser reconhecida numa fala estrangeira, talvez por isso, também, ela resista mais que outras patologias de linguagem a tentativas de transcricdo. Se nas gravagdes perde-se 0 corpo (e sua tensio), as gravagdes retém a voz, que pode ser ouvida como gaga e que invoca, ainda, 0 gesto que a produziu. No passo seguinte, de maior distanciamento da fala, o da transerig&o, perde-se a voz ¢ a gagueira. De Lemos (2000) diz que nessa seqiiéncia de apagamentos, 0 pesquisador da Aquisi¢dio da Linguagem fica com um corpus, precisamente com 0 cadaver, que a lingua inglesa to bem trouxe do latim: corpse, como pontuou Lier-De Vitto. Interessante é que a gagueira parece viver enquanio corpo-voz, ela se dilui quando registrada num corpus uma vez que as descrigdes nfo a apreendem. A escrita, no caso da gagueira, nfo atinge o particular/singular dessa disfluéncia. De fato, a escrita mata a voz. E enquanto marca na voz de um corpo falante que ela afeta a escuta do outro. Nos estudos sobre a gagueira, contudo, o fracasso em circunscrevé-la Nao quero dizer com isso, que as transcrigdes de outras patologias ou de qualquer fala no imponham dificuldades — ha sempre um intervalo entre a fala e a escuta. Essa é uma questio bastante discutida (Ochs, 1979; Orlandi, 1996; Perroni, 1996; Vorearo, 2000; De Lemos, 2000, L.Andrade, 1998). Questo é que a gagueira impde mais resisténcia a transcri¢&o (assim como & mensura¢Zo, como vimos) 62 “objetivamente” € remetido a falta de recursos metodold icos adequados disponiveis para esse fim. Aposta-se, entilo, no incremento tecnoldgico futuro para discernir a gagueira. Note-se que, destacada do falante, a fala vira um acontecimento “em si", independente de seu efeito no gago e no| ouvinte/pesquisador. Talvez por isso. por implicar mais que qualidade de ' voz, € que a gagueira ndo seja considerada, e m mesmo cogitada como patologia pertinente 4 area de voz na Fonoaudiologia. A singularidade da gagueira fica ent&o exposta: ndo é nem quadro de linguagem esirito senso, | como disse, nem patologia de voz. Ela preenche um intervalo que faz dela! um enigma que, ao meu ver, talvez possa ser tocado exatamente na articulagdo entre corpo da fala ¢ corpo falante. No capitulo I, temos estudos que tentam abordar a gagueira a partir da descrigdo/mensuracao, eles langam mao (1) de aspectos motores envolvidos na produgdio da fala — atividade muscular, funcionamento cerebral, o que liga essa tendéncia ao discurso médico-organicista — e/ou (2) de aspectos “lingitisticos” como pausas, repetigdes de palavras ¢ de silabas, hesitagdes, interjeigdes, alteragdes ritmicas. Se os termos mencionados acima podem lembrar a Lingtifstica, a metodologia empregada se distancia irremediavelmente da que seria pertinente a esse campo. Mengées a freqiléncia de ocorréncia (de repetigbes, pausas, hesitagdes), a estimulos ambientais, a medidas de severidade (recurso a quantificagdes) ¢ a porcentagens de palavras ou silabas gaguejadas (metodologia estatistica) apontam para procedimentos forjados implementados na Psicologia Experimental. Cabe, nesse ponto, lembrar o que diz Scarpa (1995). Ela chama a atengdio para o fato de que pesquisadores da gagueira insistem em mensurar fenémenos indicadores de fluéncia/disfluéncia através ‘de medidas comparativas apoiadas em segmentos tais como: interjeigdes, repetigao de 63 palavras, frases ou sintagmas, fr incompleta, pausa tensa. Porém, esse * empenho é vio, diz ele. pois pesquisadores nio delimitam « gagueira e nem poderiam uma vez que nfo existe um padrdo de fluéncia normal. Mesmo \paqueles pesquisadores como Van Riper ¢ Bloodstein, que procuram ater-se A gagueira como fenémeno em si, nota-se um fracasso, que atribuo desarticulago entre fala e corpo falante © a conseqtiente aplicagao de instrumentais da Psicologia Experimental. Esses instrumentais descritivos no foram forjados para tocar a linguagem, “nem para distinguir entre normal e patolégico” * (Lier-De Vitto, 2000c). Merece atengdo que essa tendéncia & objetividade e a quantificaggo no tem apaziguado os pesquisadores e n&o chega, entéo, a delimitar a gagueira. Redireciona-se, entdo, 0 foco para possiveis alteragdes organicas no momento da gagueira. Como assinalei antes, fica se com o corpo/organismo: reduz-se falante a organismo e, por ai, perde-se a fala gaga. Ou melhor, ao atribuir a condicdo organica a ocorréncia dos sintomas na fala, perde-se a articulago falante-fala particular 4 gagueira (singular em cada caso). Como disse Vorcaro (2000), a clinica das patologias de linguagem, por essa via, desconsidera 0 “lago entre a lingua e o falante, como também, qualquer teoria lingilistica ou da subjetividade” (p. 135). De fato tais pesquisas alinham-se aquelas voltadas para a busca da etiologia da gagueira ¢ créem poder determinar, a partir do comportamento (observado e medido), uma explicagao organica e/ou psicoldgica ¢/ou social para sua ocorréncia. Como foi discutido, vale assinalar que a gagueira enquanto acontecimento de fala (e, portanto, lingiiistico) nao se rende a uma légica causal simples. Qu seja, as distingdes com as quais operam lingtistas - “correto/incorreto”, “possiveVimpossivel” (em relago as regras gramaticais de uma lingua) nao abrangem as ocorréncias de fala “patolégica”, elas “... ndo podem captar isso que a orelha do falanie de uma lingua escuta, estranha e distingue” (Lier-De Vitto, 2000). 64 Esclareso, ¢ freqiiente na Fonoaudioiogia remeter a explicagio de acontecimentos na fala a alguma instincia organica. A resisténcia ou dificuldade que 2 gagueira traz nesse particular ¢ a seguinte: as patologias da linguagem®> sistematicamente entendidas como sintoma na fala promovido por alguma “falta” no organismo — uma lesio (afasias), um déficit percepiual e/ou uma inabilidade motora (retardos de linguagem, distarbios articulatérios). Na gagueira nao se detectam lesdes no organismo, 0 que impede de se atribuir a ele uma falta que seja determinante do quadro- gagueira. Nao que o organismo n&o venha a tona — nele se notam “tens6es musculares”. Acontece que, de um lado, essa constatagdo embaralha a problematica da causalidade: as tensdes musculares so causa ou efeito da gagueira? Na verdade, pesquisadores tendem a considerd-las “efeito”. De outro lado, as tensdes mostram um “excesso” e nado de uma “falta” no organismo e na fala, como pontuou Lourdes Andrade, em exame de qualificagaio. Excesso de rigidez muscular, de movimentos faciais e corporais _ excesso de tensfo no corpo falante. Excesso de pausas, de hesitagdes, de prolongamentos, de repetigdes... excesso de tensio no corpo da fala. Nao é facil, também, remeter esses quadros a disfungdes perceptuais e/ou motoras (integragio de movimentos musculares). Nesse ambito, 0 orginico fica submetido a fatores ambientais, sociais, psicoldgicos, etc... A “falta funcional” é determinada (nao determinante) € o sintoma se expressa ainda como excesso. As tentativas de atrelar a gagueira ao organico vao além. No vazio da relag%io causal organismo > sintoma, ha quem a remeta a 5 Nao vou acompanhar a distingdo corrente na Fonoaudiologia entre patologias de linguagem e patologias de fala. Isso porque ela no me parece apropriada. “Fala”, desde Saussure, ¢ uma das faces da linguagem. A outta é a “lingua”, Prefiro ater-me a esta concepgio porque reconheco o gesto do fundador da Lingijistica e porque, na Fonoaudiologia, ndo se define nem “linguagem”, nem “fala”. 65 problemas de natureza genética (uma predisposigao heredititia). Mas, 2 vagueza das explicacdes ¢ a inconclusividade dos resultados, fazem com que essa hipétese, que remete a um “antes” do organismo, deixe 0 quadro ainda mais obscuro”. Poderiamos supor que na tentativa de apreender a gagueira, os estudos centrados nos “aspectos prosédicos” da fala (ditos de velocidade, pausa, ritmo, etc)’’, estariam mais préximos de configurar tal produso sintomatica, Nos raros estudos lingilisticos sobre esses aspectos, pesquisadores sustentam que a fluéneia é um ideal e que a disfluéncia é pertinente 2 fala (Finn & Ingham, 1991; Scarpa, 1993). O problema do fonoaudidlogo, entZo, seria 0 de distinguir entre “disfluéncia normal” e “disiluéncia patologica”, no caso da gagueira. Na auséncia de uma teorizagdo sobre a polaridade “normal” vs. “patolégico” na linguagem que desse suporte ao desenvolvimento dessa questio, 0 que se verifica € que a aproximagdo mitua entre estudiosos da gagueira e lingUistas interessados na fluéncia ¢ atravessada por esse siléncio e nfo tem sido frutifera. De outro lado, vale lembrar que tal oposigo nao faz parte das discussdes da Lingtifstica - nela so 0 “certo/errado”, “correto/incorreto” em relagdo a uma regra/proposigao empirica que fazem presenga. A polaridade normal/patolégico & categoria clinica e nfo da Lee 58 Tais investigagdes, que so pertinentes ao campo da Medicina, partem da constata¢ao da gagueira (da escuta do ouvinte) para a busca de suas causes no organismo. NBo ¢ Tegitimo reprovar que essa scja a “tarefa” desse campo. Acontece, porém. que fenoaudidlogos podem se entregar cegamente aos argumentos da Medicina. O que é problemético, em si Como pontuou Scarpa em exame de qualificagéo, sdo componentes prosddicos: duragdo, intensidade (seu correlato actistico é a amplitude), altura (seu correlato Sotstico é 2 freqiléncia), velocidade da fala ou “tempo”, pauss. “Constituem eles ubsistemas suprassegmentais pet se com variadas potencialidades distintas ow Significarivas nas linguas naturais, Combinados, estes pardmetros também sao responsdveis pelos subsistemas de ritmo, tom ¢ entonagdo” (1999:18). 66 . BEEEEUVIOG bUL re ocorrem (Lier-De Vito, ciéncia, dai que confusdes podem oco ) ‘Assim, no bojo desse equiveco 1999; sume-se que os fendmenos normais (a fluéncia) so abordados pela Lingtistica ¢ os patolégicos, pela Patologia quivoco” pois a polaridade da Linguagem (a disfluéncia). Disse que € um" normal/patolégico ndo interessa & Lingtiistica, Como diz L. Andrade as oposigdes da Linguistica, que separam correto ¢ incorreto, no tocam 0 patolégico: apenas permitem abrigd-lo na categoria indistinta de incorreto. Para comecar, como diz Scarpa (1995), so escassas as consideragdes de Tingtistas sobre o que seria fluéncia de fala - “os lingiistas relegam a uma posigéo secundéria suas reflexdes sobre a jluéncia™ (p. 163). Quando psicolingtlistas ou lingilistas abordam a fluéncia, ela ¢ definida por oposigao & gagueira - “oposto radical do termo neutro e ideal da fluéncia” (p. 164) (énfases minhas) - tema de interesse de fonoaudidlogos. Como disse acima € como sublinha Scarpa, o problema esta em que falas so disfluentes. Dai que, definidos por negago, acrescenta ela, os termos “fluéncia” € “disfluéncia” esvaziam-se: “fluéncia” € sindnimo de auséncia de “disfluéncia” ¢ vice versa. Retorna aqui, como subjacente, 0 equivoco ou suposigao ingénua, pré-tedrica, de que normal vs. patoldgico na gagueira pode coincidir com fluéncia vs. disfluéncia. ‘Apesar da aproximagdo entre as areas de estudos sobre linguagem - Lingtistica, Aquisig&o de Linguagem, Patologia de Linguagem - 0 transito entre elas ndo pode ser livre: diferentes sA0 as questées, os objetivos, as tematicas ¢ as abordagens. Quer dizer, relagdes devem ser pautadas por restrigdes impostas por tais diferengas (Lier-De Vitto & Fonseca, 2000; 67 . Landi, 2000; Landi & Pisaneschi, 1998)". De fato, a complementaridade da Patologia da Linguagem com a Lingilistica ndo pode render. Se restri¢des nao sio consideradas tem-se um movimento duvidoso cujos resultados mais confundem do que esclarecem as questdes ligadas a disflugncia. ‘do parece Ser outra coisa que o texto de Scarpa indica. Voltando a disfluéncia, vejamos © que diz a autora: “... caracteristicas da disfluéncia tém sido descartadas como néo dignas de serem tomadas seriamente do ponto de vista lingitistico" (p. 174) (6nfase minha). Note-se que, como “acidente”, as disfluéncias parecem nao interessar para o lingitista que se ocupa do “essencial”. Entende-se porque elas sao “higienizadas” (expresstio de De Lemos, 1982) ~ nao atendem ao requisito de “pureza”, meta e ideal do lingtiista (Milner, 1978)°°. Ignora-se, portanto, as impurezas, as disfluéncias, dado o assentamento de pesquisadores no imaginario de “fluéncia ideal”, identificavel, também, a “falantes ideais” (identificaveis a locutores de radio, ancoras de telejornal, oradores, etc.). De acordo com Scarpa, esses “estilos de fala” so integrados a “abstragio sujeito-fluente”. Ou seja, essa fluéncia decorre de “Jeitura ensaiada ou 5 Nesse sentido e a titulo de exemplo, pode-se dizer que a Lingilistica, ao teorizar sobre a lingua (entidade abstrata) toma distancia da fala, Ora, isso impoe restrigdes e necessidade de teorizago aqueles que se ocupam da oposig4o “normal” vs. “patoldgico” na linguagem uma vez que incluem necessariamente a fala e o falante em suas considerages. Como diz Milner (1978), “... a lingua como objeto da ciéncia se sustenta justamente no fato de ndo ser falada por ninguém” {p. 61). Quer dizer, a aproximagio a Lingllistica deve fazer problema da relagdo lingua-fala, 0 que nao é pouco, Essa restrigo ¢ exigéncia nio podem ser ignoradas. * Conforme diz esse autor, 0 ideal do lingilista ¢ 0 de que a linguagem seja representavel para um céleulo ~ assim, tudo que escapar a ele é ignorado. 68 ito ow de textos orais decorados ou ensaiados” ‘profissional’ de um texto es (p. 176). A fluéncia na fala &, entio, artificial ~ entende-se porque ela é “ideal” ©. No que conceme ao tratamento da fluéncia/distluéncia na Lingiistica excegio € feita, por Scarpa, aos trabalhos da “linglistica textual-interacional” integrantes do Projeto da Gramatica do Portugués Falado (PGPF)"', em que as interrupgdes no texto so tematizadas. Esses pesquisadores, alinhados mais 4 Pragmatica, argumentam que as disfluéncias no texto falado sao “constitutivas” da fala e nfo “acidentes” ou “problemas na elaboragdo textual”, Portanto, elas nado devem ser “ignoradas”: “[...] rupturas e inacabamentos sao constitutivos da oralidade e manifestam um pensamento em elaboracdo que, por isso mesmo, deixa-se ver em seus iateamentos” (Souza ¢ Silva & Crescitelli; 1998: 244) (énfases minhas). A referéncia a esses estudos ¢ importante na medida em que admitem que a disfluéncia é inerente a fala e rompem, assim, com o “ideal de fluéncia” derivado do texto escrito. Entretanto, é preciso dizer que, se rompem com o imagindrio de “fluéncia ideal”, eles mantém certa “iluséo” com relacao ao sujeito. Note-se que as interrupgdes da continuidade do texto so entendidas como “fateamentos” ou “estratégias” decorrentes de um pensamento em elaboragao. Tateamentos governados por um sujeito © Propostas terapéuticas que treinam um novo padrio de fluéncia com o paciente, parecem ter como norte, também, um “ideal de fluéncia”. Encontram problemas em produzir uma fala que no soe artificial e, ainda, em fazer com que o paciente use a “nova fluéncia aprendida”. 69 ‘ coneebido como epistémico 0 que, nesse caso, sustenta 0 ideal da razio ¢ do bomesenso + esse sujeito, exatamente, € aquele questionado pelas patologias de linguagem (Lier-De Vitto, 2000c). Um sujeito que, “sob efeito” da angueira, no pode eviti-la, ndo pode contorné-la, nde pode contornar 0 que no é controlavel pelo pensamento ou pela vontade. “« Ah! Ja foi!” / dicd! dicd/ died nada! Nao era “ed” que eu Um po queria dizer!", A verapeuta pergunta: “carro?”, @ que 0 paciente responde! “6... ndo, carona”. Depois de ter dito isso, de ter dito “carona” sem hesitar comenta com a terapeuta que uma pessoa The perguntou perplex 62”, Ou seja, porque, se ele pode falar a palavra voce nao fala de uma vez sem hesitar, cle hesita? Esse tipo de acontecimento, também, perturba 0 paciente: é enigmético. Outro paciente ao ler “uma frase de uma poesia”. aquela que "mais gostou", diz: “dei uma pa/iiparadona Ié .. ai gaguejei, ndo fiz nada .. fiquei tentando nao gaguejar”. Ou seja, ficou tentando evitar a gagueira. Essa tentativa o paralisou e 0 levou a “ndo fazer nada” nfo pode ler “a frase que mais gostou”. Também outro paciente, diz.que ao ler um texto para 0 pai: “fiquei segurando a mao para marcar ritmo”. Ele também fracassou, pois essa estratégia nao impediu a gagueira. io”, ligada & suposigdo de um ‘A nocdo de “estratégia” ou “compensa sujeito epistémico, vigors nos estudos sobre a fala gaga. Diz-se que 0 Ba80. © Seliar-Cabral, Martin e Chiari (1981); Koch & Perez (1992); Marcuschi (1993), 70 PT RL LAA h . Como mostrei acima. 0 gago néo tem controle esporadicamente essa “estratégia” pode despistar um momento de queira. ela ndo pode fazer cessar a gagueira. Fatalidade mesma da iluso de controle do sujeito Um outro paciente relata que sentiu extrema dificuldade em responder uma questo “ido simples” como: “para onde vocd e i indo?” Diz ele para a terapeuta: “Eu podia ter dito: ‘perto do Ibirapuera’, ‘perto do Derran* Lo). ‘perto da 23" [..] nenhuma delas eu sentia que ia sai boa, aquela que eu escolhi ndo saiu boa, imagina as ourras [...] a 23 de maio & a menos pior para comecar, o vinte tudo bem mas 0 trés [...] mas agora {na sessio] digo tudo [...]. Na hora, figuei enrolando: ‘deixa eu ver’... ‘sabe?’ .. “como vou ‘sabe? te explicar...’, ‘ah!’, ‘péra. Chamo a atengao para o fato de que embora ele gagueje nesse relato, ele nao hesita nos lugares em que disse nfo ter podido falar (‘perto do Ibirapuera’, ‘perto do Detran’, ‘perto da 23’), em resposta 4 pergunta que Ihe foi dirigida. Esse relato mostra que 0 paciente, mesmo sob efeito da gagueira (cle se reconhece gago) nao pode evita-la. As alegadas estratégias de (1) “substituig’o” (Eu podia dizer: ‘perto do Ibirapuera’, ‘perto do Detran’, ‘perto da 23’), e de (2) “evitagio” (deixa ew ver’... ‘sabe?’ ‘como vou te explicar...', ‘ah!', ‘péra...’, ‘sabe?") no mostraram sua eficdcia. Na verdade, elas contribuiram para a gagueira na situag’o mencionada. Vale dizer que isso ndo aconteceu no relato, que certamente implica uma posi¢do subjetiva outra™, © Voltarei a esse ponto em momento oportuno. n No decorrer de uma conversa com @ terapeuta, um paciente tem um “ploqueio”: “... riv/também assim”. A terapeuta pergunta; “o que aconteceu agora?”. Ble diz que, como no conseguiu falar “tipo”, mudou para “também”. Gostaria de assinalar que explicagdes de terapeutas coincidem com o que o paciente disse: que gagos usam essa estratégia quando pressentem 2 gagueira. Parece-me. contudo, que outra palavra vem, sob efeito do bloqueio. No caso, ndo vem uma palavra qualquer mas uma desencadeada por um gesto, por um corpo j4 posturado (“ri”), vem uma palavra autorizada por esse gesto. Autorizada por esse corpo “a postos” — pronto para falar (“tipo”, “também”, ou ...) @ partir de um gesto, no caso 0 he Vejamos a seguir outro segmento. O paciente diz: “pode ter aparéncia/// de um ser humano”. A terapeuta pergunta “o que aconteceu?” (sobre a hesitagdo). Ele responde “tire a palavra ‘ [“aparéncia fisica”] porque achei que nao ia conseguir falar ... estava procurando outra coisa para por no lugar’. Nesse caso, ndo houve, como se vé, “substituigao”, apenas intervalo, um espago vazio sem preenchimento. Lier-De Vitto & Fonseca (1998) discorrendo sobre a fala de afisicos € monélogos da crianga, questionam, com De Lemos, a possibilidade de “monitoramento” da fala pelo sujeito. Segundo as autoras: “[..] ndo & 0 sujeito quem"decide” 0 que vem & tona e nem propriamente aguilo que o sucederd, uma vez que o que vem d tona é que determinaré as possibilidades de apresentaao dos fragmentos que o sucederdo [...] Ele pode dizer “sim” ou “nao” a uma dessas possibilidades. Mas nao pode criar possibilidades” (ier-De Vitto & Fonseca, 1998: 54) (énfase minha). = = i) e PTL ALY Também e “substituigdes” na gagueira dizem de um acontecimento semelhante. Nas “evitagdes” de uma palavra, pode-se considerar que ele diz “nfo” dquela que deveria enunciar. Quando uma substituigao corre, ele parece ter podido dizer “nae a uma possibilidade & “sim” a outra. Pode acontecer, também, que o falante “gagueje" exatamente porque ndo pode dizer “sim” ou “ndo” as possibilidades de enunciaedo que uma lingua particular oferece. Quero dizer, com isso, que 0 gago ndo procura a palavra que quer ou nfo quer dizer, ele nao tem esse poder de decisio. As “substituigdes” “evitagdes” so governadas pela lingua, pela trama estrita das associagdes da rede significante. Se a crianga € 0 afisico sio fialados por “la langue”, 0 gago n&o escapa a essa determinagiio, ainda que seu modo de presenga na linguagem possa implicar uma posigao diferente frente propria fala ~ posigdo diferente da do afasico ¢ da crianca®’. Ainda assim, as “substituigdes” so governadas pelo jogo de referéncias internas da linguagem. O gago sé pode ficar “sob efeito” do jogo significante ¢ nao “na origem” dele nas supostas escolhas que diz-se que ele pode fazer. E exatamente essa relacio & lingua que retira 0 sujeito da condicao de senhor da propria fala. Ele esta ali mas entre significantes, implicado no jogo significante e sob efeito do que diz/ndo diz. Nesse intervalo, como mencionei acima, ele pode dizer “sim” ou “nfo” ao que sua lingua autoriza mas nao pode mesmo “criar/inventar possibilidades” ~ substituides so aquelas autorizadas pela lingua. Na gagueira, o falante fica no intervalo ... hesita. 3 Embora eu esteja me referindo a afésicos, criancas e gagos, entendo que ser falante de ‘uma lingua é ser governado pelas restrigdes que essa lingua impde. Uma fala patolégica ou nao é sempre determinada por elas. B DULLERELLE dizer, também, que 0 que o gago “antecipa” é uma Talvez se po condigio, um modo de presenga na Tinguagem — a de ser gago (efeito maior de sua fala sobre ele). Ele diz localizar momentos ~ “palavras”, “situagdes”, “gstados emocionais”, “pessoas a quem se dirige” — em que vai gaguejar. Intrigante ¢ que essa “antecipagdo” atigura-se como uma suposigio jd que nfo impede a gagueira. Ilusdo mesma partilhada por todos os falantes: a de que se esti na origem da fala, que se tem poder de devisio sobre a linguagem™. Paradoxal é que a gagueira mosiza na disfluéncia perturbadora da fala que © sujeito nao esti no comando (Lier-De Vitto, 2000c), que em qualquer das posigdes da cadeia si nificante, “o sujeito faz signo de sua presenga (Milner, 1978: 64). E nesse ponto de subjetivagao que a cadeia bascuia: vacila em produgdes heterogéneas, desdobra-se em ambigiiidades e abala a cadéncia da fala, Pode-se dizer, frente 4 fala gaga, que a alegada liberdade de antecipacdo/substituigo/evitagdo ¢ iluséria, j4 que sujeito algum dispde de tal liberdade, “o sujeito [...] rem a liberdade da indiferen¢a, todos os lugares [da cadeia] podem ser habitados pelo seu desejo" (idem) (énfase minha). Quer dizer, ele s6 pode aparecer na cadeia, ndo fora (ou antes) dela. De fato, gagos gaguejam e nfo gaguejam nas “palavras” ou situagdes” que, explicitamente, afirmam que “sabem que vdo gaguejar como vimos acima ¢ como diz um paciente: “com algumas palavras acontece isso. Por que? Se soubesse porque, quais momentos... poderia (fazer algo para mudar...”. Ele parece enunciar ai uma verdade ~ a de que nilo pode saber ¢ que “se soubesse...”. 6 Alinham-se af todas as teorias ndo sudjetivas do sujeito, entre elas, a Anélise do Discurso Francesa (com Pécheux), a Psicandlise (desde Freud), a Aquisicéo da Linguagem (com Cléudia Lemos), 2 Patologia da Linguagem (com Lier-De Vitto) 4 Um outro paciente diz que sempre Por isso, imagina que iri gaguejar em situagdes (ao telefone, ao interfone, 20 se apresentar 2 desconhecidos) em que tem que pronuneid-lo. Isso € dito assim: “eu nunca consigo falar ‘José’” “, Ele parece iludir- e de que sempre gagueja 20 falar seu nome, portanto. Chamo a atengio para o fato de que ele disse seu nome sem gaguejar na palavra mesma em que afirma gaguejar sempre. Na mesma diregdo, trago uma fala de gago, também, amplamente mencionada em trabalhos e reconhecida por fonoaudidlogos que atendem gagos: “quando brincando, atendo o telefone, de verdade ndo! .. no teatro me don bem!”, Como entender isso que & gaguejar/nao gaguejar que tanto perturba os clinicos? Assinalo, mais uma vez, que essa questio parece remeter A problemética da posigio subjetiva: ao modo como se esté implicado em uma fala, Questio que ¢ abordada na Pragmitica e tangenciada na Semantica. Em ambos os campos, toca-se 0 uso da linguagem. Ora, quando se fala em uso, ndo se pode deixar de mencionar, de alguma forma, o falante. O problema esta em que o falante é usuario. Ou seja, aquele que 20 usar a linguagem pode ser afetado por condigdes externas (contextuais, situacionais, interacionais/comunicativas, etc.) ou internas (emocionais, afetivas). Mas note-se, trata-se ainda de um “usudrio”, ou seja, essas condigdes afetam 0 uso, mas ndo o saber sobre a linguagem. Por essa via, sO se pode dizer que numa situago 0 gago gagueja/ndo gagueja. Isso no é uma explicacdo, € mais a constatagio da oscilagao entre gaguejar/ndo gaguejar. O que permanece inexplicado ¢ porque ele pode gaguejar quando est ¢ nfo est nervoso, quando estd e no esta ansioso, por exemplo. Nao se explica, também, porque ele ndo gagueja quando canta, recita, representa, etc. De 6 Esclareco que o nome do paciente foi mudado. 8 ago muitos pesquisadores procuram ontextuais ou causalidades si acionai Sem a possibilidade de generalizagio. A diregdo que tomo neste trabalho € outra, como tenho procurado mostrar. Eu disse acima, que o sujeito s6 pode fazer signo de sua presenca na iinguagem. “Falar”, nao pode ser identificado, aqui, a “usar” — a linguagem nao ¢ instrumento (Lier-De Vito, 1998b), ¢ efeito de “caprura”, como disse De Lemos (1992, entre outros). Sendo esse 0 caso, 36 se pode mesmo refletir sobre 0 modo de presenga de um sujeito na linguagem em termos de “posigaes estruturais” (De Lemos, 1999). Deve-se considerar, nos segmentos acima, que 2 “situagdo" (em palavras do paciente) ¢ bem outra. Menos que remeter essa oscilagéo a contextos particulares, condig6es emocionais (que allids, sto insuficientemente enumerdveis), penso que se pode abordd-la de outra maneira. Chama a atengdio nos exemplos acima (que sio exemplares do que ocorre na gagueira), que os pacientes dizem que brincando, representando, cantando, recitando, no gaguejam — 0 que, de fato, € atestado. Vimos, também, que quando o paciente “fala sobre si” para a terapeuta, “sobre uma situagiio em que esteve implicado”, ele nao gagueja. O que esses acontecimentos podem ter em comum, 0 que os aproxima? Exatamente o fato de que neles hé desiocamento de posigzo-sujeito. Todos de alguma forma, sio “diseursos citados”. Importa discemir entre as citagdes implicadas no “nao gaguejar do gago”. No caso de cantos, recitagoes, a citagio & reprodusdo. Quero dizer que a posigao do sujeito ¢ de alienacdo A fala, regida pela identificagao imaginaria (Lacan, 1961; De Lemos, 1999), Nesse caso, a voz do sujeito ¢ lugar do movimento significante: ele ndo responde nem pelo sentido, nem sustenta a “autoria’”. Fle se integra, nessa alienagdo, 8 comunidade dos falantes “/luentes ideais” 16 jeais - rem que todos somes falantes fuentes ids (Scarpa, 19 : quando cantamos, por exemplo, hinos nacionais 0 religiosos, cangdes |. naquel 0 gago estrangeiras. Quando recitamos ou quando rezamos. Nessa condi fala mas ndo escuta (no ¢ interrogado nem pela seqiiéneia rem pelo sentido 3 do que diz). 3 Quanto ao “fazer de conta” ¢ ao “representar” € preciso reconhecer que s jha diferengas. Embora citagdo, a identificagdo é a um outro, o que implica Log | uma outra posigao-sujeito: aqui, cle empresta a voz € 0 corpo para fazer viver i ‘| um outro (ao viver 0 outro). Nao se pode falar em reprodugio/alienagao TY & | porque nesse jogo no espello hi 0 reconhecimento pelo sujeito de sua cisto: ele é “ator” e “personagem”, poe em ato o outro: € outro — yestido com esta roupagem, cle néo gagueja. Aqui, fala € escuta so determinadas pelo texto do outro, texto em que o gago nfo se implica como sujeito. Quer dizer, 2 PWULLLLELUOUULDS 8 8 8 iB R Entende-se quando os pacientes relatam que no gaguejam quando dizem que er algo”. | escuta nfo € para a fala propria, Como disse, ele atua uma personagen- | “fazem como 0 outro”, “fingem que vo HA, ainda, outro diseurso citado, aquele implicado no relato. Trata-se sisd0 NO de um discurso denrro do discurso do sujeito (Jakobson, 1960: 150): discurso/eisdo no sujeito, Ndo se trata nem de alienagdo, nem de ele fala de si. Essa identificagéio a0 outro propriamente e, sim, de divisé fala sobre 0 passado e 0 passado de uma fala desioca 0 sujeito no espaco presente da enunciagtio e produz divistio entre aquele que fala e que faz mengao a si—o sujeito “faz de si o seu outro” (De Lemos, apud Perroni, M.C,, 1992). No interior dessa ficcionalizagio de si, dessa ambigilidade subjetiva em que ele é narrador de si, ele também no gagueja, Ndo gagueja no interior dessas “maguinagdes da ambigiiidade” (Jakobson, 1960: 150). Aqui, no proprio texto, ele ocupa posigio de outro de si (narrador). E desse posto que ele fala e escuta. 7 ‘no outro: nesse caso, ha restricdo, ele nfo pode de Com base no que disse acima, parece-me que 0 gaR0 nao gague); quando por alguma via ele & caprurado seja por um texto outro, sje pela posigio do outro. Pode-se levantar a hipétese de que o gage gapucla frente izar para a posigao subjetiva de outro. Procurei mostrar que sob o discurso eitado, que diz de um particular, A diversidade de posigdes subjetivas, que remetem ao modo singular de relagio do falante com a lingua/fala: da posigio do sujeito entre fala e escuta Como se v6, fico com a oposigdo eseuta/fala, articulada & problematica dos efeitos da fala no sujeito. Distancio-me, portanto, da _oposi¢vo conhecimento/uso. que supde 0 sujeito epistemico Essa decisio nao ¢ aleatéria porque, como disse acima, a oposicao saber/ndio saber nfo esclarece a oscilagdo entre gaguejar/ntio gaguejar e principalmente 0 porqué o falante, mesmo sabendo-se gago, nao pode evitar a gagucira. Convém lembrar, além disso, que 0 efeito sintomético da gagueira sobre 0 gago~ “uma palavra”, “uma situagdo” — 36 reconhecido depois de sua ocorréncia, da imprevisibilidade de sua manifestagdo. O gago, entio, fica preso nesses efeitos e faz deles, por uma conversto imaginaria, “momentos antecipaveis” — procede sob efeito de sua fala, a uma subversio seqilencial, inverte a relag&io do que vem antes ¢ depois. Fica, entdo, numa posigdo de saber que nao sustenta. Pude observar mudangas num paciente frente a sua fala. Ele reconhece que melhorou, néo fica mais “paralisado/imobilizado” na fala, nem “envergonhado”: “Ndo/acontece//ndo que ndo acontece (ri) acontega. Esses dias tava conversando com minha amiga e fiquei indo e voltando {na fala] ndo fol um horror, ndo que eu nao ouca mas é diferente é-Ah! Jé foi!” [na ocorréncia de um bloqueio)”. Chama a ateng%o que o primeiro riso fica no jntervalo de uma reformulacao, de uma fala que afeta uma escuta no instante 8 * diferente de uma hesitagdo ou bloqueio de uma hesi co que interrompe uma fala ou a deixa seguir para frente, ¢: sgarcada, aos tropecos. Também, surpreende que, ao ouvir um bloqueio ele rie diz: “AA! Ja foi!”. Isso implica reconhecer/escutar a interrupedo e prosseguir, o que parece indicar mudanga de posicao frente ao seu sintoma € 40 outro. Essa mudanga de relagio com a propria fala, que ocorreu na terapia, foi mesmo “surpreendente” pois mostra que a alegada “tomada de como um consciéncia” ou “nova percep¢ao” vem como efeito, ou seja. “depois” da mudanca de posigao. Quero dizer, o paciente deu-se conta da mudanga mas ndo a promoveu (conscientemente). Penso que o segmento acima ilustra esse ponto. Quanto a mim, mais importante que os comentarios que ele sempre fez sobre sua fala (e continua a fazer) foi o inesperado do riso que sinalizou a mudanga de posicdo. Ou seja, antes o efeito da gagueira era de tensdo ou vergonha (0 que implicava a ilusdo de que ele falhava em controla-la), agora esse efeito se traduz em descontragao ¢ riso. Pode-se dizer, com O. Mannoni (1988), que: “[..] 0 erro aparente [...] gue se apresenta inicialmente ao ouvinte produz uma defesa primdria, que é a vontade de indignar- se ou de corrigir ou mesmo de irritar-se [...] 0 riso, que substitui a reacdo negativa, é como 0 abandono dessa defesa, a resolucao da tensdo ~ e [...] também [passat] da oposigéo a cumplicidade” (p.135) (énfase minha). f No lugar mesmo de um efeito, outro pode advir e isso indica mudanga de posigdo-sujeito frente ao “erro” ¢ 20 outro: de indignagdo ¢ irritagao... de ilusio de responsabilidade pelo erro e sua corregao, ao reconhecimento de 79 |, que © saber esté além dele, na propria lingua, como diz De Lemos (1991). Nao que © suieito saiba disso, ele simplesmente cede a isso. Esse € 0 ponto de mudanga que leva a0 riso ¢ & cumplicidade com o outro (poder rir da gaguelra). O riso parece vir como um rir da suposi¢io de que se pode controti-la ~ “ndo que eu nao ouga mas & diferente é - Abt Jd fol!”. Note-se que se sua posigo na lingua no mudou (ele permanece gago), uma diferenga faz presenga: a de sua relagiio & propria fala (0 efeito dela sobre ele mudou). Levantei, neste trabalho, uma primeira indagagdo: “como teorizar a gagueira para poder tocd-la de outro modo?”. De fato, como discutido no primeiro capitulo, estudiosos desse quadro atestam que, apesar da presenga inequivoca dos sintomas na fala, a gagueira nfo é apreensivel via mensuragaio embora reconhecida pela escuta (““julgamento”) do ouvinte. Isso significa dizer que ela resiste 4s tentativas de mensuracdo ~ instrumental que é classicamente utilizado por pesquisadores do assunto. Nota-se, ao lado disso, que a gagueira envolve além de “tensio no corpo da fala” também tensio no “corpo do falante”. Assim, frente ao insucesso da mensuracao da disfluéncia patolégica no “corpo da fala”, pesquisadores ¢ clinicos deslocam a questo para o “falante” em seus aspectos corporal, mental ou social. E por ai que a problematica da etiologia e da consciéncia da gagueira vem tona. E por ai, igualmente, que a fala resulta naturalizada, perdida em seu acontecimento singular. Pude notar que na primeira vertente de trabalhos (os de descrigdo/mensuragiio), 0 falante & marginalizado e, na segunda vertente (busca etioldgica), apagada é a fala. No que se refere a consideragdes clinicas, como vimos, fonoaudidlogos voltam-se inevitavelmente para 0 sujeito gago. Em se tratando de clinica, 81 pECCELLEEEL se nota, implicita ou explicitamente, ¢ ito epistémico — aquele que que o falante aparece sob 2 modalidade de s sabe sobre sua fala, Dentro dessa légica ha que s¢ supor que o gago, instrumentalizado por esse “saber sobre”, fosse capaz de mobilizar estratégias para evitar a gagueira — 0 que nio acontece pois cla nao deixa de se apresentar. Esse paradoxo nio impede que se insista nessa tendéncia. Na verdade, fonoaudidlogos-pesquisadores apegam-se ao que 0 gago diz sobre sua condigao: que ele sabe quando vai gaguejar, que faz isso ou aquilo para evitar a gagueira, etc.. Aderem a esse dizer sobre o “saber” e nao avangam a indagagao relativa a que. embora “sabendo”, ele no pode impedir que sua fala seja gaga. Neste trabalho, coloco esse argumento em discussio. Detive-me prioritariamente sobre essa questo — a do sujeito do controle — no debate tanto tedrico, quanto clinico das propostas de fonoaudidlogas brasileiras pois, ao aproximar-me delas, incomodou-me 0 fato de que a terapéutica parecia ser orientada exatamente pelo que se admitia determinar/manter a gagueira. Quer dizer, se 0 gago, ao tentar controlar sua disfluéncia acabava por tornd-la mais acentuada, a terapéutica sugerida seguia a mesma direc&o do sintoma. Ou seja, a proposta era a de que cle deveria ser levado a aprofundar sua percep¢do/consciéncia relativamente 4 fala emitida para assim poder exercer maior controle sobre sua produgao. £ como se 0 saber do gago fosse insuficiente, equivocado, e que “mais saber” seria, entdo, exigido. Nesse ponto deve-se dizer, entéo, que no fundo duvidat se do saber suposto ao gago sobre sua gagueira. Nao se duvida, porém, da suposigéio de que ele possa vir a “saber mais sobre” a linguagem. E essa suposigdo que parece estar na base dessas propostas terapéuticas. “Neste trabalho, procuro ressignificar esse saber suposto a0 gago, deslocando-o para a condigao de “efeito” da gagueira sobre o falante gago (cuja razio de ser é, de fato, ignorada). Por uma conversio imaginéria, essa 82 « norancia consti Dai o gago dizer que pode saber de antem@o “quando”, “porque”, “com quem vai gaguejar”. Digo, neste trabalho, que ¢: da de consciéncia” ¢ efeito da gagueira sobre o gago; cle sé pode saber que gagueja mas nio pode modificar essa condigZo, exatamente porque ndo pode controlar sua fala e a linguagem. Ele no pode tomar conscigneia sobre o “saber da lingua”. O falante tem um saber que ignora ~ ele fala mas ndo sabe sobre a linguagem (De Lemos, 1991). A lingua é um cesouro depositado no falante (Saussure, 1916). Esse saber é tdeito (Chomsky, 1965, 1970, 1998, 2000, entre outros) - é saber que no se sabe. Ou scja, a lingua tem um saber que o pesquisador quer enunciar, um saber que se movimenta no falante mas que ele ndo pode movimentar Sendo assim, de que recursos dispde 0 fonoaudidlogo frente a gagueira? Procuro indicar uma diregio alternativa que leva em conta a suposig¢ao acima. Em outras palavras, que considera o dizer da Lingiiistica sobre a lingua e o falante. Mais especificamente, tenho em conta uma reflexéio particular, aquela proposia por De Lemos (1992, 1995, 1999, entre outros) na Aquisigao da Linguagem ¢ por Lier-De Vitto (1998b, 1999, 2000 a,b, c,d), na Patologia da Linguagem. Essa reflexéo articula sujeito-lingua-fala. Assume 0 sujeito como efeito da lingua/fala. Os acontecimentos na fala dizem da posig&o do sujeito ~ de seu modo singular de habitar uma lingua. Nesse sentido é que procurei, nesta dissertagdo, ressignificar a insisténcia do sujeito na gaguelra ¢ problematizd-la. Afasto-me, assim, das mensuragdes, que abordam a fala gaga como um “em si” - como fala sem sujeito - de explicagdes que fazem remissao instancia orgénica ¢, certamente, daquelas que deixam reinar 0 sujeito psicolégico. De fato, assumir o ponto de vista de que 0 sujeito é efeito de lingua € dizer, com De Lemos, inspirada na Psicandlise, que ele € “caprurado” — um 83 ; z ze = WW PHAM © awavessamento da linguagem, que serve de pal determinante do nascimento do sujeito. E exatamente a linguagem a causa de uma descontinuidade entre organismo e sujeito, da impossibilidade de jeito, como equivaléncia entre organismo ¢ sujeito. Ora, se cla ¢ causa do s Jogicamente supor que ele possa inverter essa ordem de determinagio. j4 que “determinagdo é correlativa & nocdo filosofica de fatalidade e fatalidade é restri¢do no sentido de que a direcdo que ela impoe é compulséria” (Liet-De Vito, 1998b: 26). Bem, a nogdo de captura implica a determinagiio do sujeito pela ordem prépria da lingua. implica, portanto, 0 reconhecimento da anterioridade da linguagem - sujeito ¢ corpo falado/falante. Procurei abordar alguns acontecimentos sintomaticos na gagueira como efeito da posicao singular do sujeito na lingua/fala (de sua relagdo com a propria fala e com a fala do outro). Em destaque, ficou a nogo de escura que implica a de sujeito cindido, dividido entre fala e escuta®. A partir dela procurei, entio, movimentar a discussdo do sujeito na gagucira. Ou seja, _ indagar sobre sua posigiio frente & propria fala ¢ A fala do outro, Procurei sluminar a questo relativa a quando ele gagueja e quando nao gagueja. ‘Acompanho, aqui, os desdobramentos dessas nogdes no campo das patologias da linguagem. Parto da afirmagao de Lier-De Vitto (20006): “a escuta de um falante distingue entre falas [...] é refnada o suficiente para i a2theenne aoe % De Lemos (1998, 1999), propde que as mudangas de posi¢do devam ser pensadas enquanto mudanca de posiedo da crianga na lingua-fala, Ela indica wés posigdes: na primeira, a porta de entrada da crianga na linguagem, ela diz fragmentos da fala do outro — bla esta “ino intervalo dos significantes do outro”, na segunda posi¢do, a crianga esta “no intervalo dos significantes da lingua", os fragmentos incorporados sio movimentados pela lingua e na terceira posi¢ao, 0 sujeito fica "no intervalo entre sua escuta e sua fala”. ou seja, “... 0 sujeito falante se divide entre aquele que fala e escuta sua prépria fala {..] entre a insiGncia subjetiva que fala e a instdncia subjetiva que escuta de um lugar outro” (1999), 84 De fato, o ouvinte nao releve gago nfo releva suas interrupgées hesitantes, bloqueios, mesmo que diseretos, Essa fala soa “estranha”, “imaceitdvel”. Dai seu efeito patolégico. Efeito que no escapa & eseuta do gago para a gagueira, ele a reconhece (em sie em outros); reconhece que uma fala ndo progride, que estanca num ponto, que desarmoniza 0 movimento Uo corpo. Nesse sentido, ele “sabe-se” gago, no escapa a esse efeito do “como fala” (embora nfo o afete “o qué” fala). Ao meu ver, as declaragbes de pacientes, parecem referir-se a um incémodo relativo ao modo de falar € nao ao “sentido” da sua fala. O que perturba o gago € reconhecer que gagueja mas, apesar disso, ficar ali, no intervalo ... hesitante. Ficar ali, no “excesso” de tensdo no corpo, no corpo da fala. E ficar ali, determinado por ela. Isso é bem diferente de considerar que o problema esta na representagao que ele tem de si como mau falante - 0 que, de fato ele “sabe” mas, de fato também, nao parece plausivel apostar nesse saber nem num “saber mais” como direc3o de cura. Como admitir que a diluigao da gagucira possa decorrer de mudanga no estatuto do saber, se saber que 0 gago tem nao cessa de fracassar? De que vale insistir na mesma diregao — na direco do saber? Por ai, no sé a diregio soa paradoxal, como disse, mas ela aprofunde © mistério que se esconde sob a terapia — sob eventuais sucessos ou insucessos terapéuticos. Quer dizer, seria aceitavel afirmar que certos gagos chegam a “saber mais sobre sua gagueira” e que, por isso, deixam de ser gagos € que, inversamente, outros “ndo chegam a saber mais sobre sua $7 Diz Lier-DeVitto que a escuta do falante de uma lingua distingue estilos, dialetos, tipos de fala (crianga, adulto, estrangeiro, patolégica) ¢ faz concessbes ou nao, Quer dizer. eleva ow nao tais diferencas. O falante/ouvinte é sujeito da linguagem, sua escuta para juma fala reconhece semelhangas e diferengas a partir de sua posicao de sujeito falante na lingua. 85 Nao seria m is plausivel particulares que remetem a a do que é sintomatico na gagueira. Deve-se reconhecer que 0 ais especificamente, que ele nado apresenta “problema gago fala, Fingilistico” propriamente dito: nfo hd problemas “sinviticos”, nem “semanticos”, nem “fonolégicos” ou mesmo “discursivos”. Isso distingue a gagueira no conjunto das patologias ditas de linguagem. Na gagueira hd um “falante pleno” mas que vacila ao ter que sustentar essa posi¢do/condi¢ao. oO problema & de natureza prosédica: 0 sintoma ¢ apreendido enquanto hesitagdo. descompasso melédico no “corpo da fala” (na entonagao, na velocidade da fala) e, também, tensdo no corpo do falante. A questo que disso decorre para a clinica remete a natureza de agdes terapéuticas compativeis com a especificidade do sintoma na gagueira e com a assunco de um corpo-falado, de um sujeito “fora do controle”. Penso que se deve problematizar a implementagiio de técnicas como as de manuseio corporal no tratamento da gagucira jd que assumo a descontinuidade entre organismo e sujeito, ja que entendo que o corpo que fala sé fala porque é falado, movimentado pela linguagem. Nao posso conceber, por isso, a possibilidade de mudanga nesse corpo falado mediante uma operago que nao seja de natureza simbélica — mediante uma interpretacdio® . ‘Além disso, a insisténcia do sintoma (apesar das inferéncias que 0 gago faz sobre sua gagucira- seu “saber sobre") sinalizam, ao meu ver, para a 6 Embora essa clinica produza efeitos ainda nio se tem uma defini¢do precisa, que circunscreva sua natureza particular. Por ora, fica-se com o atestado de que ela produz mudangas. Esclareco que esse é um ponto que pretendo enfrentar em trabalho posterior. Recomendo a leitura do trabalho de Lier-De Vito ¢ Arantes (1998) que discute essa problematica da interpretagao e, nesse sentido, assenta as bases para uma discussdo 86 nece! relagio do gago com seu sintoma. E preciso que ages terapéuticas no impegam que o paciente possa ar sob ef@ito do que enuncia, das _contradigdes_ de __suas explicagdes/certezas. Isso ¢ diferente de fazé-lo ~inferie mais” ou “saber mais” sobre a gagueira. Nao que se deva desconsiderar 0 que o gago diz sobre sua gagueira, a questo para mim &: omo o terapeuta escuta esses dizeres”. De minha parte, procuro nao fazer_complemento_a eles, procuro interroga-los ¢ interrogar o paciente. Os efeitos que esse procedimento tem produzido me parecem com aquele mencionado por Mannoni: uma reagdo negativa da lugar a uma reagdo positiva ~ “abundono da defesa e resolugéio da tenséo”. Tenho podido notar mudanga de posi¢do do gago frente 4 sua fala, noto um rebaixamento da guarda e, por vezes, melhora da gagueira. ‘A clinica da gagueira € bastante singular. Vale sublinhar que, na fala do gago, o sentido no se perde porque seu enunciado “faz sistema”. Ou seja, 0 que de sua fala perturba a escuta nao sto desarranjos segmentais, sequenciais — isso nfo se nota. A fala gaga é expresso de um excesso, excesso de hesitagdes e prolongamentos que esgarcam a seqiiéncia sem destrui-la. Euma fala escandida que perturba, as vezes demais, a cadéncia mas que nao fere a sucessividade segmental — 0 gago desafina mas nao sai da pauta. Nisso, a gagueira é absolutamente particular. Tao particular quanto deve ser a interpretacio a incidir sobre ela. Posso dizer, por ora, que o reconhecimemo de sua especificidade levanta uma questio forte para minha clinica — a de explicitar a natureza de minhas interpretagdes. Para isso, faz-se necessdrio, porém, acompanhar 0 © Aproveito expressto de M.T.Lemos (1994, 1995), quando diz que a fala da crianga “nao faz sistema”. Digo que a do gago “faz sistema”. 87 sponder sobre come a gue deixo para mim, uma fala de um afeta a fala do outro, Esta é a quest? questo para a clinica. 88

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