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Hlistinria de pone brasilecro MARILENA CHAUI Brasil Mito fundador e sociedade autoritaria 8 reimpressio Fundagdo Perse Abramo Inséesia plo Biteivn Nacional do Patio ds Taballadores em tio de 1996, Diretoria Presidente. Nico Mirae Vice presidente: Ei Pett ‘crores: Seka Rocha aco Jerse Pale Fon Bditora Fundagio Perseu Abramo Coordenaso Burerial Rogen Chaves Assisente Kalo Ragu! M. Cran (Courgio Hieron vo Povo Bassin Coordenador Fernando Teer Equipe Borat Alexa Fortes, Antonio Negro, Fernand Tecra (eto deste volume), Hilo a Costa Paulo Fontes Caps, projetn gefce« edhioragi sletrinicn ‘Huon Kestenbuann Imagem da capa Jari do Parain,eJan ge. 1620 Revisio Masco Balhanar Let ‘ers Lia Pre Bw mit fundaor creed svisia ‘Coprcighe@ 2000 y Marlena Cas 1 edigio: abit de 2000, 1 eimpecssio jancizo de 2010 “Todos os citeitos resersadot 8 ators Fundagio Perscu Abearne Rus Francisca Crim, 224 (4117-091 + Si Paslo * $2 « Bras “Tels (11) 3571-4299 « Foe (51 587-0010 Corio cleudaico:cdtoral@pabamaorg be ‘ows fpabeamaceg be ‘wwf corn be O mito fundador Em certo sentido somot todos funndodores Fundar & dedicaro pensamento, a rontade ¢o coreg, [J Ni hareria pétria, familia, igreja, 2 ne renovate, pelo pensamento ou pelo esprit, e ato de ova fundasdo ...} ao hb igreja, no hd familia, no hd potria que se fande um dia pare sempre, te 0 ato de funda nao se repete ou se renova com a fa fidelidade do primera dia Franexsco Canros, 1936 Cetamos nosso mito. O mito é uma cenca, una paixo Nao énecessério que sea uma realidade.E reclidade setia, porque enim, esperanga, f,nima, Nosio tnitoé « nagdo; nasa fe,a grandeza da nag Francisco Cawros, 1940 Cea vero flésfo franots Maurice Merleau-Ponty comparou o apare- cimento de novas idéias filoséficas —no caso, a idéia de subjetividade no pensa- mento moderno~ e a descoberta da América, A comparacio o levou a dizer que ‘uina nova idéia ndo pode ser descoberca, pois ela no estava ali A espera de que alguém a achasse. Ela é inventada ou construida para que com ela sejarn explica- dos ow interpretados acontecimentos e situacdes novos, feitos pelos homens. Uma idéia, escreveu cle, nfo esté & nossa espera como a América estava a espera de Colombo. O fildsofo se enganou. ‘A América no estava aqui a espera de Colombo, assim como 0 Brasil no estava aqui & espera de Cabral. Nao sio “descobertas" ou, como se dizia no século XVI, “achamentos”. Sao invenges histéricas ¢ construgdes culturais, Sem diivi- da, uma terra ainda néo vista nem visitada estava aqui. Mas Brasil (como tarabém América) € uma criagio dos conquistadores europeus. O Brasil foi instituldo como colénia de Portugal ¢ inventado como “terra abengoada por Deus”, i qual, se dermos crédito a Pero Vaz de Caminha, “Nosso Senhor nio nos trouxe sem cau- Saale HISTORIA DO FOVO BRASILEIRO sa”, palavras que ecoario nas de Afonso Celso, quando quatro sécalos depois escrever: “Se Deus aquinhoou o Brasil de modo especialmente magninimo, é porque Ihe reserva alevantados destinos”. E essa construgio que estamos desig. nando como mito fundador. No periodo da conquista ¢ colonizacio da América ¢ do Brasil surgem os principais elementos para a construcio de um mito fundador. O primeira cons- tituinte é, para usarmos a clissica expresso de Sérgio Buarque de Holanda, a ““Gisio do paraiso” e © que chamaremos aqui de claboragio mitica do simbolo “Oriente”, O segundo é oferecido, de um lado, pela histéria teoldgica providen- ial, claborada pela ortodoxia teolégica cristi,e, de outro, pela historia profética herética cristi, ou seja, o milenarismo de Joaquim de Fiori. O terceiro é prove: niente da elaboragao juridico-teocéntrica da figura do governante como rei pela graca de Deus, a partir da teoria medieval do direito natural objetivo e do direito natural subjetive c de sua interpretagdo pelos tedlogos ¢ juristas de Coimbra para os fundamentos das monarquias absolutas ibéricas. Esses trés componentes aparecem, nos séculos XVI e XVI, soba forma das trés operagdes divinas que, no mito fundador, respondem pelo Brasil: a obra de Deus, isto é, a Natureza, a palavra de Deus, isto é, a historia, ¢ a vontade de Deus, isto &, 0 Estado. Em suma, o mito fundador é construido sob a perspectiva do que 0 filésofo judeu-holandés Baruch Espinosa designa com 0 conceito de poder teoldgico-politia, A sagragao da Natureza Do ponto de vista histérico, ou seja, econdmico, social ¢ politico, sabernos por que se realizam as grandes navegacdes, as conquistas ¢ a colonizagio, isto 6, sabemos que sio elas constitutivas do capitalismo mercantil:“A colonizacio eu- ropéia moderna aparece, em primeira lugar, como um desdobramento da ex- pansio puramente comercial, Foi no curso da abertura de novos mereados para 0 capitalismo mercantil europeu que se descobriram as terras americanas”, Entretanto, do ponto de vista simbélico, as grandes viagens so vistas como um alargamento das fronteiras do visivel ¢ um deslocamento das fronteiras do invisivel para chegar a regides que a tradigao dizia impossiveis (como a dos anti +58° sys ee ces podas) ou mortals (como a zona torrida). Os mapas do periodo inicial das navegacécs so car- tografias do real ¢ do fabuloso ¢ as primeiras via {gens no trazem apenas novas mercadorias ¢ no- vos saberes, mas também trazem novos semiéfo- ros: os paises exéticos (india, China e Japio) ¢ um Mundo Novo, no qual se julga haver reen- contrado o Paraiso Terreal, de que falam a Biblia 0s escritos medievais. Assim, as viagens de des- coberta e de conquista ~ alargando o visivel ¢ atando-o a um invisivel originario, o Jardim do Eden — produzem o Novo Mundo como semidforo, Mas nio 86 isso, Os escritos medicvais consagraram um mito poderoso, as chamadas Ithas Afortunadas ou IIhas Bem-aventuradas, lugar abencoado, onde reinam primav ra eterna ¢ juventude eterna, ¢ onde homens ¢ animais convivem em paz. Essas ilhas, de acordo com as tradigdes fenicia ¢ irlandesa, encontram-se a ocste do case mundo conhecido, Os fenicios as designaram com 0 nome Braaz ¢ os monges irlandeses as chamaram de Hy Brozil. Entre 1325 ¢ 1482, os mapas incluem a este da Irlanda e ao sul dos Acores a Insulla de Brozil ow Isola de Brazil, essa terra afortunada e bem-aventurada que a Carta de Pero Vaz de Caminha descreveu 20 comunicar a El-Rei o achamento do Brasil Um pouco mais tarde, viré o nome do lugar e, com esse nome, se nomeia a primeira riqueza mercantil: pau-do-Brasil, pau-Brasil. Foi achado o Brasil SOBRE AS TERRAS E AS GENTES DO BRASIL “Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas birancas; ea terra por cima toda chi e muito cheia de grandes arvoredos. De pontaa ponta, é tudo praia-plana, muito chi e muito formosa, Pelo sertao nos parcceuy, vista do mar, muito grande, porque, a estender os olhos, nfo podiamos ver sendo terra com arvoredos que nos parecia muito longa, Nela, até agora, no pudemos saber que hajs ouro, nem prata, nem coisa alguma de ‘metal ow ferro; nem ho vimos, Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios, assim temperados, como os de Entre Dotro e Minho, porque neste tempo de agora os achivamos como os de Ii Aguas so muitas;infindas, E em tal maneira ¢ graciosa que, quetendo-se aproveitar, dar-se-&nela tudo, por bem das éguas que tem.” bal “Andavam todos tZo dispostos, tio bem-feitos e galantes com suas tinturas, que pare- iam bem, [...|. Andavam ji mais mansos ¢ seguros entre nés, do que nés andivamos entre ‘les, [..J. Parece-ine gente de tal inocéncia que, se homem os entendesse ¢ cles a nis, seriam logo cristdos, porque eles, segundo parece, nao tém nem entendem em nenhuma ‘renga. [...] porque, certo, essa gente é boa e de boa simplicidade [...]. E, pots, Nosso Senhor, que Ihes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, crelo que nio foi sem causa [...] Eles nfo Javratm nem criam, [..]. Nem comem sengo desse inhame, que aqui hi uit, ¢ dessa semente ¢ frutos, que a terra e as arvores de si langam. E com isso andam tals tie rijos € tao nédios que 0 nio somos nés tanto, em.maneira que si0 muito mais ‘nossos amigas que nds seus.” (Caminba, PeroVar de, Carta a EL-Rei D, Manuel sobre o ackamento do Brasil. n: Aguiar, Flivio (org). Com palmer media. Ter, trabalho e oot no ierauua baste Edivora Funai Perse Abra 1mo/Beitempo, Sio Paulo, 1999, p23.) +60" ] | Quando lemos os dirios de bordo € a correspondéncia dos navegantes, bem como a correspondéncia, os ensaios ¢ os livros dos evangelizadores, parti- cularmente dos franciscanos e jesuftas, percebemos que a palavra Oriente & um simbolo, ou seja, indica algo mais do que um lugar ou uma regio, e nos damos conta de que este simbolo é bifronte Oriente significa, por um lado, o Japio, a China e a {ndia, portanto impérios constituidos com os quais se pretende tanto a relagio econdmica como'a diplo- itica, mas sobretudo, se possivel, uma dominagio militar e politica pelo Oci- dente. Mas Oriente & também o simbolo do Jardim do Eden. De fato, a Biblia, no livro do Génesis,afirma que o paraiso terrestre, terra de leite e mel, cortado por quatro rios, localiza-se no Oriente. A partir dorrelato biblico, as grandes profecias, particularmente as de Isaias, descreveram com pro- fusio de detathes o oriente-paraiso, terra cortada por rios cujos leitos sio de ouro ¢ prata, safiras e rubis, por onde correm leite ¢ mel, em cujas montanhas derramam-se pedras preciosas, habitado por gentes belas, indémitas, doces ¢ inocentes como no Dia da Criagio, promessa de felicidade perene ¢ redengio. Com base nos textos proféticos e em textos dos cldssicos latinos, particularmen- te Ovidio, Virgilio e Plinio, oVelho, o cristianismo medieval criou una literatura cujo tema era a localizacio e descrigdo do Paraiso Terrestre, literatura que seré retomada com vigor durante a Renascenga, sob 0 impacto de fortes correntes iilenaristas e profétices. Numa palavra, portanto, Oriente significa o reencontro com origem perdida e o retorno a ela. O que € 0 Paraiso Terrestre? Antes de tudo, o jardim perfeito: vegetagao Juxuriante e bela (flores e frutos perenes), feras déceis e amigas (em profusio inigualivel), temperatura sempre amena (‘nem muito frio, nem muito quente”, repete toda a literatura), primavera eterna contra 0 “outono do mundo” de que falava o fim da [dade da Média, referindo-se ao sentimento de declinio de um velho mundo € esperanga de restituigo da origem, idéias vigorosamente reto- madas pela Renascenca, particularmente pelos neoplaténicos herméticos que, como Campanella, elaboraram utopias de cidades perfeitas guiadas pelo Sol e pelos“sete planetas”, fonte da futura elaboracdo da imagem do Brasil como Eldo- rado, No relato de sua TerceiraViagem e numa carta aos reis, em 1501, Colombo firma haver localizado o ParaisoTerrestre, descrevendo-o tal como vishumbrado ao longe (descrigdo, alids, que repete as descrigdes imaginarias elaboradas du. Gre KistORIA DO Po¥O snasitemo renner eee eee eee rante a Idade Média, nas quais o Paraiso esté protegido por uma muralha de montanhas ¢ rios bravios), s textos dos navegantes esto carregados com essas imagens, como vimos ‘hd pouco na carta de Pero Vaz, na qual a auséncia de pedras ¢ metals preciosos rio indica que a terra achada nio seja 0 portal do Paraiso, pois nao s6 os recém chegados nio adentraram pelo sertio e por isso nada podem asseverar sobre as Fiquezas, como ainda, diante de objetos dourados e prateados, os nativos fazem sinais para o interior da terra, nao sendo descabido interpreté-los como indica Gio de que nela hi metais preciosos. Em contrapartida, estio presentes e visiveis trGs signos paradisiacos que um leitor dos séculos XVI e XVII compreende ime- diatamente: a referéncia 3 abundincia e & boa qualidade das éguas (dizendo tact tamente que a terra achada é cortada pelos rios de que fala 0 Génesis), a tempe- atura amena (sugerindo tacitamentea primavera eterna) as qualidades da gen- te, descrita como bela, altiva, simples e inocente (dizendo tacitamente que s30 a gente descrita pelo profeta Isaias) Cartas ¢ didrios de bordo impressionam porque descrevem o mundo desco- berto como novo ¢ outro, mas o sentido desses termos é diverso do que esperaria- mos. De fato, ele ndo é nove porque jamais visto nem ¢ outro porque intelramente civerso da Europa. Ele & nore porque ¢ 0 retorno & perfeigio da otigem, a primavera do mundo, ou 3 “novagao do mundo”, oposta a velhice outonal ou 4 decadéncia do velho mundo. E & outro porque ¢ originario, anterior a queda do homem. Donde a descrigio da gente nova como inacente ¢ simples, pronta para ser evangelizada Essa “visdo do paraiso”, o zopos do Oriente como jardim do Eden, essa In. sulla de Brazil ou Isola de Brazil, sé0 constitutivos da produsdo da imagem mitica fandadora do Brasil e é ela que reencontramosna obra de Rocha Pita, que afirma explicitamente ser aqui o Paraiso'Terrestre descoberto, no livro do conde Afonso Celso, nas poesias nativistas roménticas, na letra do Hino Nacional, na explica- do escolar da bandeira brasileira ¢ nas poesias civicas escolares, como as de Olavo Bilac. Compreendemos agora o sentido mitico do auriverde pendo nacio- nal, De fato, sabemos que, desde a Revolucio Francesa, as bandeiras revolucio- nérias tendem a ser tricolores ¢ sio insignias das lutas politicas por liberdade, igualdade fraternidade, A bandeira brasileira 6 quadricolor e nao exprime o politico, no narra a histéria do pais. E um simbolo da Natureza. E 0 Brasil- jardim, o Brasil-paraiso, 162° bide see anes nate 8 ee: ag supr hiere BRASIL — NETO FUROADOR £ SOCIEDAOE AUTORITARIA Essa produgio itica do pals-jardim, a0 nos langar no seio da Natureza, Janga-nos para fora do mundo da histéria. E, como se trata da Natureza-para(so, nfo ha sequer como falar num estado de Natureza 4 maneira daquele descrito, no século XVI, pelo filésofo inglés Hobbes, em que a guerra de todos contra todos © 0 medo da morte suscitariam 0 aparecimento da vida social, o pacto social ¢ o advento do poder politico. Nesse estado de Natureza paradisiaco em que nos encontramos, hi apenas nds — pacificos ¢ ordeiros — e Deus, que, olhan- do por nés, nos deu 0 melhor de Sua obra e nos da o melhor de Sua vontade, Que efeitos reais produz o Brasil-Natureza? Mencionemos, brevemente, alguns efeitos, vindos desde a época colonial, ujo ocultamento foi decisivo na construgio do mito fundador, Desde o inicio da colonizagio, o escravismo se imps como exigéncia eco- némica. De fato; “Produzir para o mercado europe nos quadros do comércio colonial tenden- tesa promover a acumulagio pri tiva do capital nas economias européias exi. _gia formas compulsérias de trabalho, pois do contrério, ou nio prodziria para ‘mercado europeu ...] ou, se se imaginasse uma produso exportadora orga- nizada por empresirios que assalariassem o trabalho, os custos da produgio seriam tais que impediriam a exploracso colonial [..] atendendo, pois, as ne cessidades do desenvolvimento capitalista, s6 se podia ajustar ao sistema colo- nil [.] assente sobre ias formas de compulsio do trabalho —no limite © eseravismo —, ¢ exploragio colonial significava, em dltima instincia, explora- 30 do trabalho escravo”, Como justificar a escravidio no Paraiso? (Ora, se ndo estamos num estado de Natureza pensado com os conceitos modernos e capitalistas, isto ¢, como guerra de todos contra todos, ox como aquilo que um historfador chamou dle “individualismo possessivo”, 6 porque aqui se concebe o estado de Natureza segundo as teorias desenvolvidas pelos tedlogos da Contra-Reforma na Universidade de Coimbra, inspiradas nas idéias de direito natural objetivo e subjetivo, A teoria do direito natural objetive parte da idéia de Deus como legislador supremo e afirma haver uma ordem juridica natural criada por Ele, ordenando hierarquicamente os seres segundo sua perfeigao e seu grau de poder, ¢ determi- +632 HISTORIA 00 POVO BRASILEIRO nando as obrigagdes de mando e obediéncia entre esses graus, em que o superior naturalmente comanda ¢ subordina o inferior, o qual também naturalmente lhe deve obediéncia. A teoria do direito natural subjetivo, por sua vez, afirma que o homem, por ser dotado de razio e vontade, possui naturalmente 0 sentimento dobem e do mal, do certo e do errado, do justo ¢ do injusto, e que tal sentimen- to 60 direito natural, fundamento da sociabilidade natural, pois o homem é, por Natureza, um ser social Nessas teorias, 0 estado de Natureza, tal como narrado pela Biblia, isto &, ‘como estado de inocéncia do primeiro homem e da primeira mulher, é ameaga- clo (em decorréncia do pecado original) pelo risco de degenerar em injustiga € guerra, o que é evitado porque Deus, como governante e legislador, envia a lel e um representante de Sua vontade, o qual, em conformidade com o direito natu ral objetivo, manterd a harmonia natural origindria estabelecendo o estado de sociedade. De acorda com essas teorias, o ordenamento juridico natural, por ser ‘uma hierarquia de perfeigdes e poderes desejada por Deus, indica que a Nature- za é constituida por seres que naturalmente se subordinam uns aos outros, Expli ‘ca-se assim que Pero Vaz de Caminha, depois de descrever a inocéneia dos habi- tantes da terra achada, se lembre de dizer que no possuer crenga alguma, situ- ando-os na escala de seres abaixo dos cristios e sugerindo a El-Rei que“o melhor fruto, que dela se pode tirar, me parece serd salvar essa gente. E essa deve ser a principal semente que Vossa Alteza deve nela lancar”. Assim, em conformidade com as teorias do direito natural objetivo ¢ subjetivo, a suboredinagio ¢ o cativeiro dos indios sero considerados obra espontinea da Nata- rea. De fato, pela teoria da ordem juridica natural, 08 nativos so juridicamente inferiores e devem ser mandados pelos superiores naturais, o conquistador-coloniza- dor. Por outro lado, gragas & teoria do direito de Natureza subjetivo, diz-se que al- guém é sujeito de direito quando esté na plena passe da vontade, da r2zio e dos bens necessitios § vida — seu corpo, suas propriedaces méveis e iméveis e sua liberdade. Modernizado, esse direito subjetivo natural consagra a idéia de propriedade privada incondicional ou absoluta, tal como definida pelo antigo direito romano, Em outras palavras, a vid, 0 corpo, a liberdade sio concebidos como propriedades naturais que pertencem ao sujeito de direito racional e vohuntiio. Ora, dizem os tebricos, consi derando-se o estado selvagem (ou de brutos que no exercem ar22io), 0s indios no podem ser tides como sujeitos de direito ¢, como tais, so escravos naturals. +64 wt soins war ae uae aN o JOCIEDADE AUTORITARIA A inferioridade natural dos indios, alids, pode ser compreendida imediata- mente por uma pessoa dos séculos XVI¢ XVIl pelo simples fato de que a palavra ‘empregada para referit-se a eles &a palavra *nagdo”, que, como 108, exprime {até meados do século XIX) um agrupamento de gente com descendéncia co- ‘mum, mas que no possui estatuto civil ou Legal ~ os indios, dizem os navegantes 0s colonizadores, sio gente “sem fé, sem lei c sem rei”, Nessas condigées, estio naturalmente subordinados e sob poder do conquistador. Todavia, se essa teoria parecer excessivamente brutal, pode-se corrigi-la com 0 conceito de servidde voluntdria. De fato, segundo a tearia do direito natural subjetivo, a liberdade que ca- racteriza o sujeito de direito é a liberdade da vontade para escolher entre alter- nativas contrérias possiveis. A escolha significa que a vontade é uma capacidade & {que seu exercicio depende da racionalidade do sujeito de direito, Uma capacida- de é uma faculdade e & da esséncia de uma faculdade poder exercer-se ou ndo ser exercida, sto é, seu uso é facultativo, Assim sendo, os que escolhem nio exercer a faculdade da liberdade escolhem, espontaneamente ou por vontade, a servidio « por isso mesmo esta é uma servidio voluntéria. A inferioridade objetiva dos nativos na hierarquia natural dos seres justifica que, subjetivamente, escolham a servidio voluntéria e sejam Legal ¢ legitimamente escravos naturais, Que fazer, porém, quando a situagio ¢ aquela descrita por Pero de Maga- Thies Gandavo? “Os moradores desta costa do Brasil todos tém terras de sesmarias dadas € repartidas pelos capities da terra, © a primeira coisa que pretendlem alcangar so escravos[...] porque sem cles nfo se podem sustentar ns terra: e uma das coisas por que o Brasil nio floresce muito mals ¢ pelos escravos que se alevan- taro © fugirio para suas terras ¢ fogem cada dia: ese estes indios no foram tio fuagitivos « mudiveis, nio tivera comparagao a riqueze do Brasil”. ‘Ao que tudo indica, 03 indios decidiram usar a livre faculdade da vontade e recusar a servidio voluntéria, Seré preciso que a Natureza oferega nova soluglo. Passa-se, entio, a afirmar a natural indisposiggo do indio para a lavoura ea natural afziso do negro para cla. A Natureza reaparece, ainda uma yer, pelas maos do direito natural objetivo — pelo qual é legal e legitima a subordinagio do negro inferior 20 branco superior ~ e do direito natural subjetivo, porém no o65« HISTORIA pO FOYO BRASILEIRO ais sob a forma da servidao voluntéria e sim pelo direito natural de dispor dos vencidos de guerra, Afirmava-se que nas guerras entre tribos aricanas e nas guet- ras entre africanos e europeus os vencidos eram naturalmente escravos ¢ poder- sevia dispor deles segundo a vontade de seus senhores, Dada a “afeigdo natural” dos negros para a lavoura, era também natural que os vencidos de guerra fossem ‘escravos naturais para o trabalho da terra. A naturalizagio da escravidio africana (por afeigao i lavourae por dreito natural dos vencedores),evidentemente, ocul- tava o principal, isto &, que o arfico negrira“abria um novo ¢ importante setor do comércio colonial”. ‘A escravizagio dos indios ¢ dos negros nos ensina que Deus ¢ o Diabo disputam a'Terra do Sol, Nao poderia ser diferente, pois a serpente habitava 0 Paratso. Com isso, somos levados a um outro efeito da imagem do Brasil-Natureza. A disputa cSsmica entre Deus e o Diabo aparece, desde o inicio da colonizasao, ivisdes sociais, mas como divisio da e na propria Natureza: 0 sem se Feferir as ‘Mundo Novo esti dilacerado entre o litoral ¢ 0 sertio. ‘Os poemas e autos de Anchieta sdo os primeiros a construir a fratura da Natureza entre a costa litorinea, lugar do bem onde a palavra de Deus comega a frutificar, e a mata bravia, lugar do mal onde o deménio espreita, sempre pronto a atacar. 0 mal se espalha nos matos ou se esconde nas furnas ¢ nos pintanos, de onde sai incite sob as espéces da cobra e do rato, do morcego e da sanguessuga. Mas o perigo mortal se di quando tas forgis, ainda exteriores, penetram na aina dos homens Para compreender 0 embate entre Deus ¢ 0 Diabo, centro do drama de Canudos, Euclides da Cunha, no final do século XIX ¢ inicio do século XX, tomado pelo “complexe de Caim",na bela expresso de Walnice Galvao, descre- ve o sertio, (Esta autora usa a expresso “complexo de Caim” para referir-se a0 intelectual que, tendo sido conivente com o massacre, se arrepende, sente-se responsive e passa a chamar os mortos de “patricios” e“brasileiros", buscando entender por que surgiu Canudos. Nessa tentativa de compreender 0 aconteci- ‘mento politico, Euclides, homer de sua época, comera pelo determinismo ge0- _grilico ¢ geolégico.) 166+ | i i i ‘ : ASL = MITO FUNDADOR € SOCIEDADE AUTORITARIA Substituindo Deus ¢ o Diabo pela ciéncia, isto &, pelo estudo do clima, da geologia e da geografia, a descrigdo de Euctides é duplamente impressionante ‘em primeiro lugar, pela forga literaria do texto, mas, em segundo lugar, porque cela poderia ser lida como 0 avesso épico e dramitico da descrigio idilica de Pero Vaz, em cuja carta o sertio era apenas adivinhado e permanecia invisivel. Como é 0 sertao de Os Serties? “+& uma paragem impressionante. [As condigGes estruturais da terra i se vincularam & violéncia méxima dos agen- tes exteriores para o desenbo de relevos estupendos. O regime torrencial dos limas excessivos, sobrevindo de stibito, depois das insolagées demoradas, © ‘embatendo naqueles pendores, expas hi muito, arrebatando-Ihes para Longe todos os clamentos degradados[...] dispondo-se em cenérios em que ressalta, predominantemente, o aspecto atormentado das paisagens ...] no contorcido dos leitos secos dos ribeirdes effimeros, no constrito das gargantas e no quase convulsive de uma flora decidua embaralhads em esgalhos 6 de algum modo ‘o martirio da terra, brutalmente golpeada pelos elementos [..} [As forgas que trabalham a terra atacamn-na na contextura intima ena superficie, sem intervalos naagio demolidora, substituindo-se, com intercadéncia invari vel, as duas estagiestinicas da regiio. Dissociam-na nos verdes queimosos; degradam-na nos invernos torrenciis”. Euclides descreve uma terra torturada pela fitria elementar. Descreve um estupro, Feminina, a terra é golpeada, atormenteda, martirizada em sua contex- ‘tra intima, dissociada pelo calor e degradada pelo liquido. Mas essa visio tragica de uma Natureza desgragada & compensada pela descricéo épica do sertanejo, contraponde a dor do feminino a forga corajosa do masculino, Nao nos engane- mos, escreve Euclides, com a aparéncia raquitica, o andar ¢ a fala preguisosos, pois sob essa aparéncia esconde-se aquele que luta contra a firia dos elementos. ‘Aos “mesticos neurasténicos do litoral” preciso contrapor o sertanejo, aquele que “é, antes de tudo, um forte” [A divisdo natural do Brasil em litoral esertio da origem a uma tese de longa persisténcia, a dos “dois Brasis", reafirmada com intensidade pelos integralistas dos anos 20 ¢ 30, quando opem o Brasil litordnco, formal, caricatura letrada © bburguesa da Europa liberal, ¢ 0 Brasil sertanejo, real, pobre, analfabeto e inculto. 167° O sertio, diz Plinio Salgado, ¢ uma mentalidade, nag um estado de espirito, a brasilidade propriamen- : as te dita como sentimento da terra figs Esse mesmo contraponto reaparece nas ina- ra gens do “oeste” ¢ do “centro”, formuladas politi- per camente durante 0 Estado Novo, como se escuta na fala le Getilio Vargas, em 1939, a0 convocar a zagio para a marcha rumo ao sertio: “Caminha- mos para a unidade, marchamos para o centro, nio pela forga dle preconceitos doutrinsrios, mas 3 pelo fatalismo de nossa definicio racial”. ; Esse “atalismo de nossa definigSo racial”, que faz do sertio ou do centro o lugar de nossa desti- dua que: Ete neir Anis Cantar ap xr. 40 Se Ang Aon impedes lr cea anc: Pe piso que de Canudee se pee remind deg ile de Coin ture +68+ inane 9 FUNDADOR E SOCtEDADE AUTORITAR nagao natural, recebe seu sentido ideolégico claro na eleboragio do modernista Cassiano Ricardo, quando constréi a imagem do sertanista e das bandeiras como figuragso da esséncia e do destino da brasilidade, e quando faz do sertio a barrei- ra natural protetora que se ergue para defender as origens nacionais contra os erigos do litoral, importador do liberalismo, do comunismo e do fascismo: “Bendeirante no apelo ds origens brasileiras; na defesa de nossas fronterasexpi- rituals contra quaisquer ideologias exdticas ¢ dissolventes da nacionalidade; {Jima soma de autoridede conferida ao chefe nacionalsna ‘marcha para ooes- te" que € também o sindnimo de nosso innperialisme interno e no seu préprio Conceito; isto é, no seu sentido ‘dindmico' de Estado” Como observa Aleir Lenaro, elabora-se aqui uma geografia do poder em «que “o espago fisico unificado constitui o lastro empirico sobre 0 qual os outros elementos constitutivos da nago se apéism”. © Brasil é 0 solo nacional e este Possui uma qualidade primordial instituinte, a cor, que tinge o céu, a mata, a fauna e as rasas porque, no dizer de Cassiano Ricardo, ‘parece que Deus derra- mou tinta por tudo”. Dessa maneira, “a Nacio em marcha redescobre sta selva getia tropical cromitica, a sua qualidade natural prépria, forga criadora viva, obra-prima divina que o homem no corrompera” Fssa longa construgio do sertio mitico, que comega nos autos de Anchieta, passa pelo determinismo dle Euclides, aloja-se na ideologia integralista da men. talidade sertaneja e na getulista das entradas c bandeiras, encontra sua culminan cla em Grande Sertdo: eredas, que retoma o sentido jesuita inicial do embate entre tuas forsas césmicas, Guimaries Rosa escrevendo que “sertio é onde manda quem € forte, com as asticias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” E forte com as asticias, sabemos, & o Diabo. Por isso mesmo, na luta contra o Diabo, no foi menos significativa a u heira como se exprimiu a esperanga milenarista de Canudos, que, como toda revolta popular, intenta virar o mundo de pernas para 0 ar:“ento 0 certio virard praia e a praia virard certo [,..]. Hade chover uma grande chuva de estrellas e ahi serd o fim do mundo”, profetiza AntOnio Conselhelro, °O sertao vai virar mar/ O mar vai virar sertio”, canta o misico poeta, nos anos 60 do século XX. Essa promessa assinala o modo como, embebidos na Na- tureza, entramos na historia. Ou, como escreveu Euclides, o “messianismo reli- 69+ 030” fazendo irromper 0 “messianismo da raga", com a “desgraga dos podero- 8 pe er P sos, © esmagamento do mundo profano, o reino de mil anos ¢ suas delicias”. E pergunta; “Nio hi, com efeito, nisto, um trace superior do judalsmo?”. A sagragao da histéria ‘Assim, o segundo elemento na produgio do mite fundador val langar-nos na historia, depois que o primeiro nos hayia tirado dela, Trata-se, porém, da historia teolégica ou providencialista, isto é, da histéria como realizagio do pla no de Deus ou da yontade divina ‘A Antiguidade — tanto oriental como ocidental — concebia 0 tempo césmni- co como ciclo de retorno perene ¢ o tempo dos entes como reta finita, marcada pelo nascimento e pela morte. No primeiro caso, 0 tempo é repeticio ea forma da eternidade; no segundo, & devir natural de todos os seres, ai incluidos os impérios e as eidades. © tempo dos homens, embora linear ¢ finito, é medido pelo tempo circular das coisas, pots a repetigao eterna é a medida de tudo quanto E perecivel: movimento dos astros, seqléncia das estagGes, germinar e desenvol- ver das plantas, Enquanto o tempo cictico exclui a idéia de histéria como apari- 40 do novo, pois nao faz senao repatir-se, o tempo linear dos entes da Natureza introduz a nogio de histéria como meméria. O primeiro se colocara sob o signo da caprichosa deusa Fortune, cuja rods faz inexoravelmente subir 0 que esté decaido ¢ decair 6 que esté no alto; 0 segundo, posto sob a protegao da deusa Memori, garante imortalidade aos mortais que realizaram feitos dignos de serem lembra~ dos, tornando-os memoriveis ¢ exemplos a serem imitados, a perenidade do pas- sado garantindo-se por sua repetigio, no presente ¢ no futuro, como imitagio dos grandes exemplos. O tempo da historia antiga épico, narrando os grandes feitos dde homens e cidades cuja duragio € finita e caja preservacio é a comemoragao. Diferentemente do tempo cdstnico (natural) ¢ épico (histérico), @ tempo Liblico, como mostra Auerbach, ¢ dramético, pois a histdria narrada € no so- mente sagrada, mas também o drama do afastamento do homem de Deus © da promessa de recondiliacio dle Deus com o homem, Relato da distincia e da pro: ximidade entre o homem ¢ Deus, o tempo nio exprime os ciclos da Natureza e as ages dos homens, mas a vontade de Deus ea relagio do homem com Deus: 0 a5e4 srr ie eaten oR ROR ns RR BRASIL ~ MITO FUNDADOK & SOCIEDADE AUTORITARIA tempo judaico é expressio da vontade divina que o submete a um plano cujos instrumentos de realizagZo so os homens afastando-se Dele e Dele se reaproxi- mando por obra Sua, Esse tempo e esse plano podem ser decifrados, pois Deus oferece a alguns 0 dom do deciframento temporal, isto é, a profecia. O tempo é, assim, tempo profético, disso resultando duas conseqtiéncias principais que podem ser perce- bidas de imediato, Em primeiro lugar, o presente pode receber sinais divinos por intermédio dos quais 0 homem tem como decifrar o sentido do passado e do futuro; em segundo lugar, 0 tempo é sempre realizagao de uma promessa divina ©, por isso, finalizado © messiénico. O tempo nao é repetigio (césmica) nem simples escoamento (humano), mas passagern rumo a um fim que lhe dé sentido € orienta seu sentido, sua diregio, E esse carater dramatico do tempo judaico que dard forma e sentido a idéia cristi de histéria, na qual o drama retine homem e Deus, tanto porque o homem £0 ponto mais alto do primeiro momento do tempo, isto é, da Criagio, como Porque o homem é a forma escolhida por Deus para cumprir a Promessa de salvagio, isto é, a Encarnagio. No mundo judaico-cristdo, histéria ¢, pois, a operagao de Deus no tempo, e por isso ela é: 1) providencial, unitéria © continua porque é manifestagao da vontade de Deus no tempo, o qual é dotado de sentido e finalidade gragas ao cumprimento do plano divino; 2) teofania, isto é, revelagdo continua, crescente © progressiva da esséncia de Deus no tempo; 3) epifania, isto 6, revelagio conti- rnua, crescente ¢ progressiva da verdade no tempo; 4) profética, no s como rememorario da Lei e da Promessa, mas também como expectatia do porvir ou, como disse o Padre Vieira (1608-97), a profecia é “histéria do futuro”. A profecia traz, um conhecimento do que esta alam da observacio humana, tanto Saquilo que esté muito longe no tempo — o sentido do passado e do futuro — como do que esté muito longe no espago ~ os acontecimentos do presente no presenciados diretamente pelo profeta.A profecia oferece aos homens a possibi- lidade de conhecer a estrutura secreta do tempo ¢ dos acontecimentos histéri- £08, isto &, de ter acesso a0 plano divino; 5) salvivica ou soterioldgica, pois o que se revela no tempo € a promessa de redengio c de salvago como obra do pré. prio Deus; 6) apocaliptica (palavra grega que significa uma revelacio feita direta- mente pela divindade) e escatolégica (do grego, ta schatdn, as litimas coisas ou 38 a ‘rOnia BO FOV BRASILEIRO coisas tiltimas), isto &, esté referida nao s6 ao comego do tempo, mas sobretudo 20 fim dos tempos e ao tempo do fim, quando despontard, segundo o profeta Isafas, 0 Dia do Senhor, cuja irae julgamento antecedem a redengio final, quan- do a Promessa estard plenamente cumprida; 7) universal, pois nao ¢ historia deste ou daquele povo ou império, mas histéria do Povo de Deus, que criou © homem e salvaré a humanidade escolhida; 8) completa, pois terminaré quando estiver consumada a Promessa. Essa completude, para uns, jé se deu com 0 Ad vento do Messias; ainda se dard, com 0 Segundo Advento do Cristo, no Fim clos ‘Tempos, julgam outros, chamnados de milenaristas. Seja como historia messiéni- «a, sea como histéria milenarista, a histéria se completaré e o tempo findars Vem do Livro da Revelagao do profeta Daniel a expressio tempo do fim, prece- dido de abominagdes e da realizacio da promessa le ressurreigao ¢ salvagao dos aque estio“inscrtos no Livro” de Deus. Esse tempo final é descrito pelo profeta como tempo do aumento da ciéncia, quando os homens “esquadrinhardo a terra ‘eosaber se multiplicars” porque, entio, se dara aabertura do livre dos segredos do mundo”. Esse tempo tem duragSo predeterminada; “serd um tempo, mais tempos ¢ a metade de um tempo”, cscreve o profeta,€ se iniciard apés “mil e duzentos dias” de abominagio e durard “mil trezentos ¢ trinta e cinco dias”, de- pois dos quais os justos estario salvos. ‘A completude da historia universal (0 que judeus ¢ cristaos chamam de plenitude do tempo e os idedlogos do século XX chamam de fim da historia) foi, desde o inicio do cristianismo, matéria de controvérsia, disputa e, portanto, de heresia ¢ ortodoxia. De fato, a cristologia nasce em dois movimentos sucessivos: no primeiro movimento, o Antigo Testamento ¢ interpretaclo como profecia do ‘Advento do Messias; no movimento seguinte (quando, historicamente, o mundo ‘do acabou depois da Ressurreigio do Cristo o Juizo Final tarda a acontecer enquanto 0 mal se espalha por toda parte), 0 Novo Testamento passou a ser in= texpretado como profecia do Segundo Advento, a Segunda Vinds do Messiasno fim dos tempos, com a qual, finalmente, a histéria estaré completamente consumnada, Para decifrar os sinais da aproximagio do tempo do fim dos tempos, os cristios buscam os textos dos profetas Daniel e Isaias e os chamados “pequenos apocalipses” dos Evangelhos de Mateus, Lucas e Marcos, ¢, evidentemente, 0 Grande Apocalipse de Joio. De Isis, vern a figura do Dia da Ira ou Dia do Senhor, quando se dard o Juizo Final. Vein de Daniel, com a interpretagio dos wpe LAL MMAMAOLE AAAS AAEM EA IS BRASIL ~ s1ITO FUNDADOR F SOCIEDADE AUTORITARIA sonhos de Nabucodonosor, de que a sucessio temporal se realiza como ascensio e queda de quatro monarquias ou reinos injustos, até que, sob a ago do Messis, se erga o Gltimo reino, a Quinta Monarquia ou o Quinto Império (que Daniel julgara ser Israel, evidentemente). Do Grande Apocalipse vm os sinais de abominacao que anunciam a proximidade do fim (os Quatro Cavaleiros do Apocalipse— guerra, fome, peste ¢ morte), 0 reino do Anticristo ou Babildnia, a batalha final entre o Cristo e 0 Anticristo, e a idéia do Reino de Mil Anos de abundancia e felicidade, que precedem o Juizo Final, quando se dard o término do tempo ¢ a entrada dos justos e santos na eternidade. A consolidagéo institucional da Igreja durante a queda e o término do Impé- lo Romano levou & condenagio da esperanga milenarist, pois esta dave pouca tmportincia &instituigso eclesistica eno titha motivo para submneter-se a0 po- der da igre, fagare efémero, Como reagao ¢afirmagio de seu poderio, ainstitul ‘#0 eclesidstica, ou a“Igreja dos justos e bons”, foi proclamada o Reino de Mil Anos ou a Jerusalém Celeste, determinando que a revelagio estava conclufda com a Fncarnacio de Jesus © que a historia universal estva terminada com os Fvange. thos. Tudo esti consumado no mundo ¢ mesmo que este no acabe hoje, mas somente quando Deus assim decidir, nada mais hé para acontecer, sendo 0 pro- gresso individual do caminho da alma a Deus e a difusio da Igreja por toda a terra, Passa-se, assim, a se fazer uma distinglo entre o século, ou 0 tempo profa- no, € a eternidade, ou 0 tempo sagrado: a ordem sagrada da eternidade est concluida e a ordem profana do século é irrelevante em termos universais, ten- do relevincia apenas para a alma individual, peregrina neste mundo ¢ em itine- ririo rumo a Deus, O tempo perfeito e completo esti dividido em sete dias (a Semana Césmi- a: Criaglo, Queda, Diltvio, Patriarcas, Moisés, Encarnagzo e Juizo Final) e ein trés eras, correspondentes d agio da Santissima Trindade: 0 tempo antes da lei ou © tempo do Pai, que vai de Adio até Moisés; 0 tempo sob a lei, ou o tempo do Pai edo Filho, que vai de Moisés até Josus;e 0 tempo sob a graca, ou tempo do Filho ¢ do Espirito Santo, momento final da histéria universal e do tempo sagrado, tempo do cristianismo ou do Reino de Deus na Terra Essa cronologia esvazia uma questio antiga que nao cessard de ser retorna- da como problema: que se passa no intervalo de tempo entre o Primeiro ¢ o Segundo Advento, naquele intervalo de “siléncio de meia hora no céu”, entre a a HISTORIA BO POVO BRASILEIRO abertura do Sexto e do Sétimo Selo, de que fala o Grande Apocalipse? Que se passa no intervalo de tempo entre a vinda do Filho da Perdicdo (o Anticristo) ¢ 0 Juizo Final? Ora, esses intervalos temporais so o que une o tempo profano ¢ 0 tempo sagrado e formam o centro da histéria milenarista, pois neles haverd reve- ago, inovagio, acontecimento e preparacdo para o fim do tempo. Hé desordem no mundo, A desordem é um acontecimento que pesa sobre a cristandade e seu sentido precisa ser decifrado. Esse deciframento reabre a tem- poralidade e se torna busca do conhecimento da estrutura secreta do tempo ede seu sentido numa interpretago apocaliptico-escatologica da historia profética e providencial, cuja claborago mais importante encontra-se na obra do abade ca- labrés Joaquim de Fiori, escrita no século XII. Com Fiori, 0 tempo é a ordem de manifestacao sucessiva e progressiva da ‘Trindade, mas a temporalidade sagrada é escandida por trés estados que nao correspondem exatamente aos da seqiiéncia eclesiastica oficial: 0 tempo do Pai & ‘tempo da Lei (0 Antigo Testamento), 0 tempo do Filho é 0 tempo da Graga (os Evangelhos) e tempo do Espirito Santo ¢ o tempo da Ciéncia ou da plenitude do saber (o Evangelho Eterno). A Semana Césmica mantém as sete eras ou os sete dias, mas entre 0 sexto ¢ o sétimo dia 0 Anticristo scré aprisionado por um representante do Cristo, e essa prisio permitiré o estabelecimento de um Reino de Mil Anos de paz c Felicidade, ao término dos quais 0 Cristo libertara o Anti- cristo, 0 combateré e o vencerd para todo 0 sempre. Vira, entdo, a sétima era, 0 Juizo Final, e 0 oitavo dia seré o Jubileu eterno. © tempo sagrado tece 0 tempo profano. Esse tecido ¢ a ordem do tempo, estruturada pelos fios de trés tempos progressivos rumo a apoteose, gracas 20 ordenamento figurado ou simbélico dos acontecimentos narrados ou profetiza- dos pela Biblia, O Reino de Mil Anos de felicidade, que antecede a batalha final entre 0 Cristo ¢ Anticristo, € a obra de um enviado especial, o Enviado dos Uiltimos Dias, Esse enviado é a contribuigo propria de Joaquim de Fiori para explicar a ordem do tempo e se desdobra em duas personagens: o Papa Angélico = depois interpretado pelos joaquimitas como o Imperador dos Ultimos Dias —e oshomens espirituais—duas novas ordens monésticas de preparacio para o tem- po do fim, a ordem dos pregadores ativos e a dos contemplativos espirituais. (E desse Enviado e da ordem monéstica espiritual que trata o romance de Umberto Eco, O nome da rosa.) A plenitude do tempo seré assinalada, como profetizara +740 TO AUNDADOR E SOCIEDADE AUTORITAR: Daniel, pelo aumento da espiritualidade ou do conhecimento no mundo e pela instituigio do Quinto Império ou da Jerusalém Celeste, quando “todos os reinos s€ unirdo em um cetro, todas cabecas obedecerio a urna supreme cabeca ¢ todas as coroas rematardo num sé diadema”. Um s6 rebanho e um s6 pastor, profetiza- dos por Isaias, sio a condigio para realizagio do futuro. Resta saber 0 que a construcio judaico-crista da histéria, seja na versio providencial da instituigio eclesiéstica, seja na versio profética joaquimita, teria a ver com o achamento do Brasil. Se o Brasil é “terra abengoada por Dens”, se é paraiso reencontrado, entio somos bergo do mundo, pois somos © mundo origindrio ¢ original. E se 0 pais estd“deitado eternamente em bergo espléndido”& porque fazemos parte do plano providencial de Deus, Pero Vaz julgou que Nosso Senhor nio os trouxera aquisem ‘ausa” e Afonso Celso escreveu que “ha uma logica imanente; de tantas premissas de agrandeza s6 sairé grandiosa conclisao”, pois Deus “no nos outorgaria dédivas tio Preciosas para que as desperdigdssemos esterilmente, [..]. Se aquinhoou o Brasil de modo especialmente magndnimo, é porque lhe reserva alevantados destinos" Nosso passado assegura nosso futuro num continuum temporal que vai da origem ao porvir e se somos, como sempre dizemos, “Brasil, pa‘s do futuro”, & Porque Deus nos oferecew os signos para conhecermos nosso destino: 0 Cruzei- ro do Sul, que nos protege e orienta, ¢ a Natureza-Paraiso, mie gentil No entanto, no periodo da conquista c da colonizagio, nao é a histéria pro- Videncial eclesidstica que prevalece entre os navegantes e os evangelizadores, mas a histéria profética milenarista de Joaquim de Fiori. Eis por que, ao escrever aos reis catélicos, Colombo explicara que, para seu feito, nio haviam sido necessérios mapas-miindi nem bissola, mas Ihe bastaram. 3s profecias de Isias do abade Joaquim, Essa ldéta também é conservada por franciscanos ¢ parte dos jesuitas, porque essas duas ordens se julgam a realizaco das duas ordens religiosas profetizadas por Fiori para o milénio ou o tempo do Expirito (a ordem dos pregadores ativos e a ordem dos contemplatives). Qual o sinal de que as profecias de Joaquim de Fiori sobre o milénio esto sendo cumpridas? O primeiro sinal sio as préprias viagens e 6 achamento do ‘Mundo Novo, pois ¢ evidente que foram cumpridas, de um lado, as profecias de Isaias —ade que o povo de Deus se dispersaria na diregio dos quatro ventos, mas Deus viria “a fim de reunir todas as nages ¢ linguas”, e a de que seriam vistas “75° HISTORIA DO FOVO BRASILEINO novas terras e novas gentes, porque Deus estava para criar “novos céus € nova terra” —e, de outro, a profecia de Daniel sobre o esquadrinkamento de toda a terra no tempo do fim. Que disse Isafas? “Assim, tu chamaris por uma nagio que nio conheces, sim, uma nagio que no te conhece acorreré a ti” (Isaias 55, 6). Que disse Daniel? “Quanto a ti, Daniel, guarda em segredo essas palavras © mantém lacrado o liveo até o tempo do fim, Muitos esquadrinhario a terra e 0 saber se multiplicaré” (Daniel 12, 4). Se tais profecias se cumpriram, so elas o sinal de que a mais importante, por Isafas, esté para ser cumprida: “Bu virei,a fim de reunir todas as nagSes e linguas; elas virio ¢ vero minha gloria [..] Sim, da maneira que os novos céus e a nova terra que eu estou para ‘riar subsistirio na minha presenga, assim subsistiré a vossa descendéncia ¢ 0 vosso nome” (Isalas 66,18-22). Deus vird as nages linguas, ¢ elas virdo a Ele: est profetizada a obra da evangelizagio dos novos edus e da nova terra, que foram efetivamente criados. Por ‘que a evangelizagao foi profetizada? Por que o profeta fala em “nacdes” que acorre- io a Deus, isto 6, em gente sem fé, sem rei e sem lei que deveré tornar-se Povo de Deus por obra dos evangelizadores. As nagées vérn a Deus, e Deus vird a elas: essa vinda divina, restauragio de Siao descrita pelo profeta,serd a obra de unificagio de todas as nagdes ¢ linguas, a unificasio do mundo sob um iinico poder, isto é, por um tinico cetro € um nico diadema, o Quinto Império, profetizado por Daniel. E exatamente essa a perspectiva defendida com vigor, no século XVII, pelo Padre Anténio Vieira ao escrever a Hijtoria do Futuro ou Do Quinto Império do Mun- do ¢ as Esperongas de Portugal. Numa interpretacio minuciosa dos grandes profetas, particularmente de Daniel ¢ Isaias, versiculo por versiculo, o Padre Vieira demonstra que Portugal foi profetizado para realizar a obra do milénio e cumpriré a profecia danielina, jnindo o Quinto Império do Mundo, tendo a frente o Encoberto, um rei que sera o itimo avatar de El Rei Dom Sebastia« Que disse Isafas para que Vieira tenha essa esperanca?“Quem sfo estes que vém deslizando como nuvens, como pombas de volta aos pombais?”, indaga 0 profeta, Responde 0 jesuita: “As nuvens que voam a estas terras para as fertilizar sage sio os Portugueses pregadores do Evangelho, levados ao vento como nuvens; € chamam-se também pombas porque levam estas nuvens a dgua do batismo sobre que desceu o Espirito Santo em figura de pomba’. Para o Padre Vieira, as profecias de Daniel, se somadas is de Isafas, permi- tem recolher os sinais de que esto sendo cumpridas as condigSes para a Quinta Monarquia ou 0 Quinto Império ea chegada do Reino de Mil Anos: a aparigio de uma “hago desconhecida” ou de um Mundo Novo, a dispersio do Povo Eleito (no caso, a Igreja) na direszo dos quatro ventos, ¢ a descoberta de uma “nova gente" espera de “anjos velozes” Para provar que Portugal é 0 sujeito ¢ o objeto das grandes profecias, Vieira tera de mostrar qual o lugar do Brasil no plano de Deus. Ele o faz, provando que © Brasil foi profetizado por Isafas como feito portugués. profieta Isalas diz: “Ai da terra dos grilos alados, que fica além dos rios da Etiépia, Que envia ‘mensageiros pelo mar em barcos de papiro, sobre as dguas! Ide mensageiros velozes, a uina nado de gente de alta estatura e de pele bronzeada, a um povo ‘emido por toda parte, a uma nagio poderosa e dominadora cuja terra ¢ sulcada de rios”(Isafas 18, 1-2). Interpreta o Padre Vieira “Trabalharam muito os intérpretes antigos por acharem a verdadeira explicagio deste texto; mas néo atinaram nem podiam atinar com ele porque nio ti noticia nem da terra, nem das gentes de que flava o profeta...] que filo Faas 4a América € do Novo Mundo se prova fice claramente. Pois esta terra que i descreve o profeta que est situada além da Exipia e € terva depois da qual alo hi ‘outta, estes dois sinais tio manifestos sé se podem verificar da América [...] Mas porque Iselas nesta descrigio pe tantos sinals particulares ¢ tantas diferengas individuantes, que claramente estio mostrando que nio fala de toda aAmérica ou Mundo Novo em comum, seno de alguma provincia particular dele [...]. Digo primeiramente que o texto de Isaias se entende do Brasil.” Dende a dupla conclusio: a primeira é que a interpretagdo dos textos de Isaias revela que este profeta“verdadciramente se pode contar entre os cronistas de Portugal, segundo fala muitas vezes nas espirituais conquistas dos Portugue- a $n vo novo anasiuemo Ses eas gentesenagdes que por seus pregadores convertetn 8 F6"A segunda ue 05 tempos esto prontos para seu remate porque “hi profecias que sto mais clo que profecias”, como as de Joio Batista, que prometeu o futuro com a vor mostrou o presente com 0 dedo: “Assim expero cu que ostjam aquelas em que se fundam minkasexperancas¢ ve, 36 nos prometem a5 flicidades fturas, também hio-de mostra presen- ts [1-86 digo que quando assim suceder, perder esa nossa Histria glotio. samente o nome, ¢ que deixar de ser Historia do Futuro, porque o seri do Presente. Mas [..] © 0 império esperado, como diz no mesmo titulo, é de ‘mundo, asesperangas por que nio serio também do mundo, sendo sé de Port PA radio (perdoc o mesino mundo) & esta: porque a melhor parte dos ven. furososFatros que se esperam ea mais gloriosadeles ser ndo somente pro Pria 4 Nagio portuguesa, senio inicae singularmente sua. [..] Pars or inst. Besser dor para os nulosainvea, para os amigos ¢compancitono prazer © para vos, entio, a gloria, e entretanto as Esperancas.” © PadreVieira foi acusado pela inquisigio de juelaizar”¢ Euchdes da Cunha Bese 2AntGnio Conselheira como uma “forma superior de judaismo”. Que significa a acusagio que pesou sobre o jesuita ea criti. <2 que desceu sobre o chefe messinico? Os cristios chamam “judaizas” e Sudasmo” a renga, que a greja cchama de “carnal”, de que o reino de Deus é deste mun- doe nao de outro. © Brasil, achamento portugués, entra na histéria pela porta providencial, que tender a ser a versio da classe dominante, segundo a qual nossa historia jé esta escrita, faltando apenas o agente que deveri concretizd. 1h ou completé-la no tempo. E essa visio que se encon- tra na abertura do Hino Nacional, quando um sujeito oculto —“ouviram” — & colocado como testemunha de rey fede Towa decsaca tras! “um brado retumbante”, proferido por“um ovo herdi- Pp PX Pe ‘onjrmor spo: de Dane hoes 8 eporg de wn" deombeida os £0", grito que, “no mesmo instante”, faz brilhar a liber: um its Nw edauteredeone adeno “ebu da patria”, Num s8 instante ou instantanes, Ceram sepen dence: mente surge um pov herbico, sgnifcativamente figu- 198+ | | BRASIL — MITO FUNDADOR £ SOCIEDADE aUTORITARIA rado pelo herdeiro da Coroa portuguesa, que, por um ato soberano da vontade, cinde 0 tempo, funda a patria e completa a historia. Mas também entramos na historia pela porta milenarista, que, pouco apou- co, tender4 a sera via percorrida pelas classes populares. “O certo virar4 praia, 2 praia viraré certio [...] ¢ ahi seré o fim do mundo”, promete Anténio Conse~ Iheiro. Pela histéria profética, nossa historia est prometida, mas inteframente por fazer, devendo ser obra da comunidade dos santos c dos justos, exército auxilfar do Messias na batalha tltima contra 0 Anticristo, isto é, a treva, o mal e 2 injustiga. Canudos, Pedra Bonita, Contestado, Muckers, Teologia da Liberta- ‘0 s3o alguns episédios dessa longa historia por fazer. Mas, tanto na via providencial como na via profética, somos agentes da vonta- de de Deus e nosso tempo & o da sagragao do tempo. A histéria é parte da teologia. A sagracao do governante Um s6 rebanho, um s6 pastor. Uma s6 cabega, um tinico cetro e um tnico diadema, A imagem teolégica do poder politico se afirma porque encontra no tempo profano sua manifestagao: a monarquia absoluta por direito divino dos reis. Os historiadores nos mostram que a expansio ultramarina ¢ a formagio dos impérios coloniais sio contempordneas “do absolutismo, no plano politico, e, no social, da persisténcia da sociedade estamental, fundada nos privilégios juridicos”, Assim, o capitalismo mercantil, que vai desagregando a estrutura feudal, simul- taneo ao “Estado absolutista, com extrema centralizagio do poder real que, de certa forma, unifica e disciplina uma sociedade organizada em ‘ordens’, ¢ executa uma politica mercantilista de fomento do desenvolvimento da economia de mer- cado, interna externamente”. O mercantilismo ¢ favorecido por um Estado cen- tralizado que o fomenta e o garante, com 0 rei operando como “agente econémico extremamente ativo (Forgava as casas senhoriais a lanca- zrem-se nos empreendimentos comerciais maritimos), buscando na navegagio oceinica ¢ respectivos trificos, bem como em certas atividades industriais no- vas, as rendas que a terra no Ihe dé em montante que satisfaga as necessidades crescentes e que a contragio econéimica Ihe nega no mercado interno”, ry i ‘ E Porque somente um Estado unificado e centralizado pode operat como or- ganizador ¢ catalisador dos recursos internos ¢ externos, compreende-se que Portugal pudesse iniciar as navogagies e os impérios ultramarinos, pois estave Precocemente centralizado e se encaminhava para o mercantilismo como solu. ‘io das crises feudais. Em suas origens, a monarquia absoluta se instala para resolver as crises do Imundlo feudal e assegurar & nobreza a manutenglo de seus privilégios quando esta se vé ameagada pelo desaparecimento da servidio (Isto é, de uma economia fundada nio sé no trabalho servil, mas também no poder arbitrério do senhor de terray sobre a vida ea morte de seus servos) e pelas revoltas camponesas que se alastram pela Europa. Os poderes locas io tinham forsa para se opor a esses dois acontecimentos e o resultado foi “o deslocarnento da coergio politico-legal no sentido atcendente, em diregio a una cipula centralizada e militarizada ~ o Estado absolutsta[...] um aparelho reforsado do poder régio, cuja funcio permanente era a repressio das massas ‘camponesasc plebgias, na base da hierarquia social”, Porém, a fangio da monarquia absoluta nio se esgotava em assegurar 0 dominio da nobreza sobre as massas rurais. Cabia-lhe também ajustar 0 poder aristocritico ¢ os interesses da burguesia mercantil, que se desenvolvera nas cides medievais. A’ monarquia absoluta surge, portanto, detcrminada pelo Feagrupamento feudal contra o campesinato e sobredeterminada pela ascensio da barguesia urbana ou pela press3o do capital mercanti Se. expansio ultramarinae 0 sistema colonial fo a resposta da monarquia absoluta ibérica és pressdes econémicas antagénicas que a travejam, contudo, do onto de vista politico e social essa monarquia lancou mio de outros instrumen- tos. O primeiro deles foi odircito romano, o segundo, a burocracia de funcioné Tios, € 0 terceiro, 0 direito divino dos reis. © dlreito romano possula duas faces: o direlto civil, relative & propriedade Privada absoluta ¢ incondicional, regendo as relagdes entre os particulares, ¢ 0 Aireito publico, que regia as relagdes politicas entre o Estado ¢ os cidadios, Ou, na linguagem romana, o ju (que trata do que é objeto de litgio e arbitragem) ea ler (que define o mperium,o poder de mando legalmente estabelecido e recomhecido). A adogio do direito romano pelas monarquias modernas,a partir do século XVI, +80 rast (0 FunDapor § S06: permitia a quebra lenta, gradual ¢ segura do sistema feudal de vassalagem (isto ¢, de um poder fundado na relagio pessoal de lesldade e fidelidade entre os senhores feudais, segundo uma hicrarquia de poderes intermediérios até chegat a0 rei) com o reconhecimento da autoridade una e nica do monarca. Para que a intensificagio da propriedade privada, na base da sociedade, ndo se chocasse com a autoridade publica, no topo, a monarquia absoluta passow a invocar a tese do jurista Ulpiano, segundo a qual “o que apraz ao rei tem forga de lei”, ¢ a tese complementar, de acordo com a qual, sendo o rei origem da lei, no pode ser submetido a ela c por isso & legibus solutus (donde o regime ser denominado monarquia absoluta). Ora, cestando acima da lei e no estando obrigado por ela, 0 rei ndo pode ser julgado por ringuém, é a nemine judicacur A unificagdo territorial, feita sob a tese romana de que o fundo piblico (a terra) é dominium e patrimonium do rei, ¢ a autoridade régia como fonte da lei e no obrigada pela lei, determinou a fisionomia do Estado absolutista, obra de burocratas, funcionérios do Estado, versados no direito romano: os Iewados, de Portugal e Espanha, 08 maitres de requétes, da Pranga, os dectores, da Alemanha. Estamento a servigo dos interesses mondrquicos, os burocratas ou funcio- nérios do rei estavam encarregados nao somente da imposigio das teses juridi ‘cas, mas também do funcionamento do sistema civil e fiscal. Seus servigos eram cargos e tais cargos podiam ser adquiridos ou por um favor do rei ou por compra (os gastos com essa aquisigo sendo fartamente compensados pelo uso dos privi- ligios do cargo e pela corrupcio). Assim, a “expansio da venda de cargos foi, naturalmente, um dos subprodutos mais surpreendentes da crescente monetari- zacio das primeiras economias modernas e da ascensio relativa, no seio destas, dda burguesia mercantil e manufatureira”, ‘A politica fiscal nao tributava a nobreza eo clero e, gracas aos cargos, pouco ‘ou quase nada tributava.a burguesia, de sorte que o peso dos impostos recafa sobre as massas pobres, nio sendo casual que os coletores de impostos viessem acomnpa- nhados de fuzileiros e que revoltas populares espocassem em toda parte. Todavia, porque um principio juridico estabelecia que “o que tange a todos deve ser aprova- do por todos”, os monarcas eram forgados a convocar os estamentos ou as“ordens” = nobreza, clero © burguesia — ou 03 “estados do reino” (as Cortes, de Portugal e Espanha) para o estabelecimento das politicas fiscais e para “os altos negécios do reino”. Pouco convocados na pritica, os “estados do reino” ou as Cortes tornaram- 81+ E HISTORIA BO FOV BRASILEIRO se 0 espaco da disputa entre clientelas nobres, religiosas e burguesas, formando rredes rivais de apadrinhamento no aparelho de Estado, O estamento, como lembra Faoro, & um grupo fechado de pessoas cuja elevacio se calca na desigualdade social que busca conquistar vantagens materiais ¢ espirituais exclusivas, assegurando privilégios, mandando, dirigindo, orientando, definindo usos, costumes e manei- as, convengdes socials e morais que promovem a distingio sacial eo poderio polt tico. Lim estamento define um estilo completo de vida Para exercer o pleno controle sobre essa rede intricada de privilégios e pode- res estamentais, essa teia de clientelas ¢ favores, corrupeio e venalidade, a monar- guia absoluta precisaré de uma teoria da soberania com que possa livrar © monarca desses mandos intermedirios que se interpdem entre ele e o seu préprio poder. Essa teoria serd o direito divino do rei, gragas & qual o poder politico conserva estamentos (nobreza e clero) ¢ gera estamentos (os letrados e funciondrios vindos

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