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GENERO, SEXUALIDADE E DIREITO: UMA INTRODUGAO Genero, Sexuaidade« Dire: Uma Inrodesio Onganiadore: Marcle Maciel Ramos, Pere Augusto Gravaté Nie, Paula Rocha Gouna Breer iio ~ 2015 — Iisa Via Copyright © dee ego 206) Ins Via Fars Led Rus dor Timbls, no 230~.10}104~ Bare Lourder Belo Hosiaont, MG, Bras, yo1o-061 ior Chef: bold Line Rei Projet glo «dug: Livia Prado ‘Are da capa: Lisa Ssocor Pal, ThapeC. da Costs Santor « Anténia Augusto Lemar Rasch “ueaia do milo: Designed by Smithyomy Feeplecom ‘TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Probia a teprodugio tu eu pac deste lite ou de gussguer unas de sss pare, por qualquer mio ot proce, em a pris ators do Ei gue pare desta obra em sistemas de pocesamente de dados A vile dos dts autora € punivel come eine epsivel de indniags diversas Veduds s memoszaio elu scuperaio tol ou pati, bem como since de qual (0484 Genero, snaldade diet: um iodo! organindores Marea Mail Ra Ines, Pedro Augusta Cravaté Nico, Paula Racha Gauva Bene. ~ Belo Hoi ene: Tata Via, 2016 2p, uiror astra: Lae Lopes, Gstne Henig Pris Rib, Bruna Camila de Souza Tima eS, Thay C. da Cosa Santos, Thiago Cosel, Tauane Cal ra Porc, Fagnr Lio de Tle, Taynk Roberts Ales dor Res, Vitor Sous Bartos Marcil e Fags Mares Olveis Barto, Caio Beneviee Pers, Lohans ‘Mell Tare Santor, Jodo Felipe Zi, Ana Fis Vit. lnged Cunha Danis, Ua de Sura, Jilla Somberg Art, Masia Gongares Guimatis, Grave Le snes, Leticia Lee, Maia C, Cots Fetoandes, Gabriela Allain, Gustav Leet <8 Queior, Vieor Afonso de Alms, Rafe Porte France ISBN 9785-64926 [pres] + Diteios humanos. 2, Pieoogin. , Mentiade de géneto. 4. Comportamenco Sena. Ramos, Maelo Maciel I. Nal, deo Augusto Grave I. Bene, Paula Rocha Gouvéa I. Tilo DD a7 GENERO, SEXUALIDADE E DIREITO: UMA INTRODUGAO 2016 ORG ANIZADORES: MARCELO MACIEL RAMOS PEDRO AUGUSTO GRAVATA NICOLL PAULA ROCHA GOUVEA BRENER INITIA VIA ewe EDITORA NOTA DOS ORGANIZADORES Esse livro é resultado de uma aventura! Uma aventura que comegou despretensiosamente na forma do grupo de estudos Sexismo ¢ Homofobia na Faculdade de Dircito da Universidade Federal de Minas Gerais. No comeyo, éramos doze pessoas reunidas em torno da tarefa de enten perverso silencio das cinciasjuridicas diante das discriminagéese violén- cias sofridas por mulheres ¢ pessoas LGBT Rapidamente, percebemos a necessidade de ampliar nosso escopo ¢ 0 grupo passou a se chamar Género, Sexualidade e Direito. Nessa jornada, que chega ao seu sexto semestre, mais de 500 pessoas passaram por nossas reuniées. Foram mais de r00 textos, entre artigos e capitulos de livros, lidos e debatidos, e tantos outros descobertose estudados a partir das nos- sas discuss6es semanas. Discusses que transformaram o cendtio de um espaco tadicionalmente conservador, apegado a tudo quanto seja vetusto Mas foi a recusa do passado sexista ¢ LGBTfSbico que permeia os do- ios do Dircito que nos moveu, Do velho, do siléncio longamente im- posto diante das questdes de género e sexualidade, o que se tem asistido €a reinvengio (mesmo que modesta) do espago do Diteto, que na Faculdade de Direito da UFMG passa a acolher um nimero enorme de estudantes mulheres, gays, Iésbicas, bissexuais, pessoas rans (¢ eventualmente homens hheterosextais) vidos por compreender as estrucuras de dominagéo mascu- lina, as ideologias sexstas e heteronormativas e suas relages com o juridico 0 politico, Surge por aqui uma geracio fortemente interessaca em repensar ctiticamenteo diteto, em suas categoras tericas em suas priticas,a partir das teorias de génezo e sexualidade. As pesquisas, os eventos € 0s tabalhos de final de curso sobre o tema tém se multiplicado e ocupado um lugar inimaginivel hi tés anos essa aventura, que tem transformado as nossas vidas, as nossas pets- pectivas eas nossas pesquisas, nasceu o Programa de Extensio Université rio DIVERSO UFMG ~ Niicleo Juridico de Diversidade Sexual e de Gé- nero que tem como objetivos o combate das discriminagées e violéncias soffidas por mulheres e pessoas LGBT em razio do género ¢ da sexualida de, bem como a promogéo de reconhecimento social e protegio juridica desses grupos. “Tratacse de projeto interdisciplinar que pretende congregar esforcos tebricos de diversos campos do saber, especialmente das ciéncias sociais, da psicologia e do dircito, e que parte do principio de indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensio para formagio de estudantes sensi- veis & perversa realidade de violagées de direitos humanos e, sobretudo, comprometidos com o dever de instrumentalizat os seus conhecimentos ¢ transpor os espagos da universidade pata a translormagio social Ese livro éa filha dessa aventura! Ele tem um propésito bem singel: apresentar em pequenos capitulos diditicos as categorias bsicas que per passam os estudos de géneto e sexvalidade. Trata-se de uma inwodugio que procura failitar 0 acesso a0 tema ¢ divulgar suas questées fundamen- ‘ais entre estudantes, juristas, cientistas sociaise curiosos. O livro est dividido em quatro partes: Fundamentos: Vivéncias de Géne- 10; Sexualidade ¢ Normatividades e Violéncia: Aprofundamentos Temsticos A primeira parte do livro, Fundamentos, apresenta as prineipais cate- gorias ¢ questées que constituem a base para os estudos de género © se- xualidade. © capitulo 1 explora a conceituagio ¢ apontamentos em toro do géneto, destrinchando as diferentes correntes teorias sobre o tema. O capitulo 2, por meio da exposigéo do desenvolvimento histérico da sexua- lidade, procura esclarecer os problemas e difculdades em dererminar 0 que «la é, bem como os perigas de the impor conceitoslimixadores. O capitulo 3 procura esclarecer 0 que é 0 ferinismo, diferenciando as suas vitias pets pectivase correntes sob um panorama histérico. E para concluir a Parte [do livro, o capitulo 4 procura apresentar as rlagées entre o campo juridico, 0 Género ea Sexualidade, destacando criticamente suas implicagoes. ‘A segunda parte do livro, Vivéncias de Género e Sexualidade, procura cxplicar as diferentes identidades sexuais e de género, os sentidos que the so associados, bem como as experiéncias ¢ desafios que Ihes s40 préprios © capitulo 5 tata da lesbianidade, 0 capitulo 6 da homossexualidade e 0 capitulo 7 da bissexualidade em suas diferentes expressies. O capitulo 8 aborda a cisgeneridade ¢ transgeneridade, perpassando pelo problema da arribuigio pela sociedade de expectativas ¢ rétulos baseados meramente na formacio genital, sem que se considere as idencidades construidas. O Capitulo 9 aborda a travestilidade e 0 capitulo 10, parte de uma narrativa de vivéneia real para desenvolver os sentidos e desafios da transexualidade © capitulo ts explica 0 que é intersexo e 0 capitulo #2 a assexualidade. O capitulo 13 diferencia Drag Queens © Crossdreses AParte II do Livro tata das teméticas das viol jas contra mulheres « pessoas LGBT. O capitulo 14 aborda a heteronormatividade, o capitulo 15 explora as faces das violéncias de género em seus diferentes matizes. O capitulo 16 enfrenra 0 problema do feminicidio ¢ o capitulo 17 esclarece « problematiza © machismo, O capftulo 18 procura explicar © que € a LGBTfbia e o capitulo 19 0 discurso de ddio ¢ os meandros dos lugares de fala, O capitulo 20 desenvolve a questéo dos direitos sexuais¢ eprodu- tives, encerrando a Parte HI do Livro, ‘A Gima parte do livro introdu alguns debates e aprofundamentos que estéo na pauta do dia das teorias de género e sexualidade. O eapiculo 21 explica o que é interseccionalidade. O capitulo 22 procuta esclarecer o leitor sobre a Teoria Queer. No capitulo 23, uabalha-se 0 conceito de abjeto, em referencia a forma como pessoas LGBT sio normalmente p cebidas socialmente, O capitulo 24 enfrenta a questio do nome social para pessoas trans ¢ travestis, das suas origens aos seus aspectos legais atuais. capitulo 25 expée o problema da divisio sexual do trabalho, desafio a ser cnlrentado pelas mulheres e pessoas LGBT. O capitulo 26 reintroduz a nosio de lugar de fala, em defesa da importincia de se dar vor 3s minorias O livro termina com ensaio sobre a solidéo do gay preto Vale ressaltar que 0 livro Género, Sexualidade e Dirito: uma introdw 4o foi produzido no ambito do grupo de pesquisa Ecos de Liberdade, a partir do qual surgi a experigncia do grupo de estudos ¢ do projero de extensio DIVERSO UFMG, Ademais, ele € resultado de uma incensa in ceragdo ¢ integragio entte a graduario e a pés-graduagio, contando com a colaboragio diteta de virios graduandos, pés-graduandos e professores ligados & linha de pesquisa Histéria, Poder e Liberdade do Programa de és-graduagio em Diseico da UFMG. Marcelo Maciel Ramos Pedro Augusto Gravatd Nicoli Paula Rocha Gouvéa Brener AGRADECIMENTOS Agradecemos a0 Programa de Apoio & Extensio Universitéria do Mi- nistério da Educacio, a0 Consclho Nacional de Desenvolvimento Cienti- fico ¢ Tecnolégico (CNPq). 4 Fundagio de Amparo & Pesquisa do Estado cde Minas Gerais (FAPEMIG), 4 Coordenadoria Especial de Politicas de Diversidade Sexual da Secretatia de Promogio e Defesa dos Ditcitos Hu- manos do Governo de Minas Gerais, 8 Embaixada dos Paises Baixos, & Universidade Federal de Minas Gerais a0 Programa de Pés-graduacio em Direito da UEMG pelo inestimavel apoio institucional ¢ financeiro, sem o qual nossasatividades e esse livro nio teriam sido possives. ‘Agradecemos, ainda, 4 Gabriela Allemin pela colaboragéo na concep- 40 € organizasao desse livro, & Luisa Santos ¢ a Thays Costa pelas cores ¢ artes que tém estampado nossas vidas €a capa desse livto. SUMARIO NOTA DOS ORGANIZADORES AGRADECIMENIOS PARTE |: FUNDAMENTOS caPiruLo 1 (© QUEE 0 GENERO? Istrodagso +. Género: a poténcla polities de um coneito 2.0 ginero como constr social 4. Diferentes dimensoee do género ‘Consideagées fins Referéncasbibliogrficas caPiruLo 2 ‘© QUE E SEXUALIDADE? Inerodugio +. Sujctas do desio caPiruLo 3 ‘© QUE E FEMINISMO E QUAIS SAO SUAS VERTENTES? 2. Feminisme Marisa 3. Feminism Radical 4 Feminism Inetseccional 5. Tansfemiaisme 6. Femini Consideragées ins Ref iat bbliogificas ” 9 9 9 a ” 34 4 55 9 40 ° 2 ® “ 6 © CAPITULO 4 ‘COMO © DIREITO SE RELACIONA COM 0 GENERO E A SEXUALIDADE? Inwredugio +. Dircito,génetoe exualdade mo construgéessocais 2. Tipologiae de porgber«discursoe pats anaisar at relat 5. Variagéese conexdesaravés da histéria Consideragées ins Referéncssbibliogrificas PARTE Il: VIVENCIAS DE GENERO E SEXUALIDADE CAPITULO 5 (© QUE E LESBLANIDADE? Tnnrodugso 1. Lesbianidadee lesbianism 2.0. iodo movimento Kabico¢ a constant busea por afirmagso 3. Conecite ‘Consideragéesfinais Referéncasbibliogrfcas CAPITULO 6 (© QUE E HOMOSSEXUALIDADE? TInsrodugio +. Do Homosserualizme & Homossexulidade: 3 despatologizagio dos modos de se viver 2. Sob o Signo da Cruz: Homostexulidade o Pecado da Ci 5. Homossexualidade em sua dimensio politica 4. Homosseualidade() co Outs: et, Sewalidade e Exotisme Consideragées fina Referéncasbllogrdficase sugests de Iara 50 se se * 8 9 9 62 63 6 6 6 & 6 caPiruLo 7 (© QUE E BISSEXUALIDADE? Inwodagio 1. Erimologia| 2. Arulidade 5. Eneresipos Consideragées fins Referéncasbibliogrifcae caPiTULo 8 ‘© QUE SAO CISGENERIDADE E TRANSGENERIDADE? Inwedugio ae no sia moldadae nossa identidades de géncro? 2. Afinal. o que és “ci” ou “tans”? 5.0 padi de género 4 Ar muikiplas cigeneridades 5. Asdentidades ans Consideagées fina Ref iat bibliogificas caPiruLo (© QUE E TRAVESTILIDADE? Introdugio 1 Historia 2. Mentidade 4. Marginalizagso ‘Consideragées fas Referencias bibliogrfcas caPiTULO 10 (© QUE E TRANSEXUALIDADE? Inttodagio 1 Teemos,sgnificados ¢contextaliasio 2 Transexlidade no panorama atl Consideragéesfinais Flee, svete lizorrecomendados ” to te fb % % 85 5 5 e 9° oo o % 94 4 96 oe 105 106 108 of 69 us capiuto 11 (© QUE E INTERSEXUALID ADE? Inwodagio 1.0 grande espectro de posibildades genticas a Tnverexoe género 30 ema em defini 0 género da crane Consideragées fina Ref iat bibliogrificas ‘Sugertes de eicura capiruLo 12 (© QUE E ASSEXUALIDADE? Insrodusio 1. Aspectoshistérieos da asenualidade: Asex history 101 gies: Asx FAQ. 3. Aseuvaldade e wanstornos sexsais 2. Comeci 4. Ocspecto cinza ‘Consideragées fas Referéncasbibliogrfcas caPiTULO 13 ‘© QUE SAO DRAG QUEENS E CROSSDRESSERS? Inttodagio 1. Drag Queens 2 Crossdrener Refer ar bibliogrifcar PARTE Ill: NORMATIVIDADES E VIOLENCLA caPiruLo 14 (© QUE E HETERONORMATIVIDADE? Intrdugi 1. AHetetonormatividade e excisio do outro 2A Heteronormatividade no diaa-dia Referencias bibliogrfcas 124 ny ny 26 0 a a us 136 36 6 146 147 us 49 we caPiruLo 15 ‘OQUEE VIOLENCIA DE GENERO? Inwodagio 1A percepeio social da voléncia de géne 2. Vieléncia de género: seus desdobramentos ¢0 earamenso por parte do Extado Consideragées fina Referéncasbibliogrifcat CAPITULO 16 (© QUE E FEMINICIDIO? Inuodugio 1. Baubasamento Tdtico 2. Andlise do feminicidio na atulidade 5. Pade o Drei aperar camo insrumente contra 4 villa de genera? ‘Consideragéesfnas Referéncasbiliogriicae capiruLo 17 ‘© QUE E MACHISMO? Inwrodugio +O machismo na roiedade 2. Ae diverse manifesagées do mach Consideragées fins Referéncasbibliogifcas CAPITULO 18 (© QUEE LesTFOBLA? 1.0 que ELGBTfobia? 2. Av idcologas por tre da LGBT obi Ieteronarmatividadee sexismo 1 LGBT ii é violencia 4.0 Diet ea LGBTiobia Referéncasbibliogrfcat Sugesses de lvrot Sugesties de filmes Sugestées de eutameeagens brasiletos 183 8 4 7 60 60 162 ca 183 164 167 173 oa m4 us Ho 183 » 4 we 190 wr 9a 9a wa cariu.o 19 (© QUE E DISCURSO DE 60107 Inreodasio 1. Desigaldad,Preconcito e Disriminaio a consrgio do dicuro de do a. Libedade de Expresso: a condi para a sutodetrminagio 3-0 confita de 4. Cites de dio ea Legidlagio citos Pundamentais ‘Consideragéesfnas Referéncasbibliogr cas caPiTuLo 20 (© QUE SAO DIREMTOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS? Inttodagio 1. Alinguagem dor direitor a heteronormatividade ‘como ator imitante 2. Dircitos Sentai © Reprodutivos como Diteitor Humanos Breve histo edefinigio 4, Direcossexaieereprodutivs, Feminismo € “Movimento LGBT 4. Matemidade voluntiia, prateroa e segura 4 Tnterrupgio volunttia ds gravee 5. Desafio frente a uma nova perspeciva dos diteitor sown © reprodutivor ‘Consierasées fina Refesincisbibliogriicar Pars saber mais Sagerter de filme 193 oa 94 196 98 204 295 206 296 206 207 aot 209 26 26 aa PARTE IV: APROFUNDAMENTOS TEMATICOS cariruto 21 (© QUE E INTERSECCIONALIDADE? Inxrodacio +. FundamentosTetios 2. poise aplicr a tori inceteccional? 5. Tncrecionalidade para quem? Consideragées Fiaais Refs iat bbliogificas capiruLo 22 (© QUE E TEORIA QUEER? Insrodugio 1.0 que € “Queet” Primera reflexes sobre o terme 2. Teotia Queer enquanto saber sstematizade: principisideie e propostar 4, Principaisaucorare autores da Teoria Queer € sgestes de textoe para aprofundamer 432 Texsoe Basiares da Teoria Queer 4.2 Produgées Brasleiras sobre a Teoria Queer 543 Texos Introdutérios para um primeiro conto ‘com a Teoria Queer Referéncasbibliogrficat caPiTuLo 23 (© QUEE 0 “ABJETO"? Introdugio 1. Os sere compos abjetos LGBT's 2. A exclusio dentro ds exclusio: a abjegio por exeléneia ‘Consideagées fina Referéncasbibliogrfcas CAPITULO 24 ‘© QUE E NOME social? Introdagio 1 Nome 220 221 my ay at 230 20 ne 241 EEEEE 246 246 7 2. Nome Socal 49 4-0 nome socal €0 principio da dignidade da pessoa humana 251 4. Da Ressalva do Diseito de Teeetos a Consideagées fina 254 Referéncasbibliogrfcas 5 caPiruLo 25 (© QUEE A DIMSAO SEXUAL DO TRABALHO? 256 Tntodugio: uma dviio seasta e hieréequiea do uabalho 236 1.0 mundo de tabalho como propagador das desigualdades 357 20 thalho reprodutive: doméstco,failia ede cuidado 357 3.0 trabalho deméstico como questi (também) juridiea oo 4 Minvisblidade do tabalho de euidade aio emunerada 6 5. Acomodifcagio do cuidado ea manutengio da divsio sexsal do cabal 264 ‘Consideragées iis por aanjos iguaitos 265 Referencias bllogétcas esugestées de leicura 265 caPiruLo 26 (© QUE E "LUGAR DE FALA™? 268 Introdugio 26 +. Coneeeuagio inci 26 2. Por que “lugar de fl & impo a0 5.0 que "lugar de fila? no & an Consideragées fins ™ Referéncssbibliogiticat a4 ‘caPiTULO 27 ASOLIDAO DO GAY PRETO 278 Inuedugio os 1. C&entte nds: oimagindrio branco sobre o negro 276 2. Solidso negra. Solugio branca fo 5. PROCURA-SE um negro com pau grande ay Consideragées fina 286 Referéncasbibliogrficas at —OB “| eh K PARTE |: FUNDAMENTOS CAPITULO 1 © QUE E 0 GENERO? Laie Lopes! Introdusio “O que€ 0 géneto?”. Trat-se de uma pergunta de diffi resposta, endo cm vista a inéditadisseminagio do termo, nos mais diversos contextos, nas décadas mais recentes. Do cotidiano dos movimentos sociais 3 formulagio de politicas piblicas, das pesquisas universtiias aos meios de comunicacio, o géncto se ornou um conceito amplamente compartilhado e imprescindé vel para a compreensio de relagées socais. Uma tendéncia de alcance global dessas discuss6es tem ganhado impulso, sobrecuco com o advento das novas «ecnologias de informacio ¢ comunicagio, dentre elas a internet. Longe de tomar o termo “género” como autorreferente, ou seja, dotado de qualquer significado evidente por si mesmo, é necessériodiscernir a com- plexidade implicada em sous miltiplos usos e acepeées. Os diferentes sen- ‘idos de emprego dessa palavra associam-se a estudos, mobilizagbes socais « experiéncias normativas igualmence multifacetadas, Estudos académicos, las sciais edisidéncias polticas contibuiram, ao longo do tempo, paraa consolidagio de uma pluralidade de perspectivas sobre o tema, Este capitulo «emo objetivo de fornecer um panorama dessas cortentes reérico-anaiticas, fornecendo um arcabougo conceitualintrodutério para posteriores adensa- rmentos articulagbes com teméticas conexas, que serio desenvolvdas nos ddemais capitulo desta obra 1. Genero: poténcia politica de um conceito Uma profusio de discursos sobre género marcou as décadas finais do século XX ¢ 0 inicio do século XI. Desde 0s anos 1960, iniciativas cien Uiicas, politicas, normativas € sociais centralizam a categoria do género na busca por compreensio ¢ modifcacio das estruvuras sociais vigentes Embora o termo possa ser encontrado em dicionarios oitocentistas para se referir As relagées entre os sexos, & no perfodo recente que a palavra “géne 10” tem se tornado decisiva na andlise teériea ena intervengio na realidade social (SCOTT, 1990). La Lopes dmc doternda em Dio pela Universidade Feder de Minar Geri 20 CGENERO, SEXUALIDADE E DIRENTO A importincia do termo parece residir, sobretudo, no seu potencial de agregar abordagens ceéricas divergentes, mas que evocam uma preo- ccupagao comum: as relagées entre os sexos ~ como se determina 0 que & feminino e masculine? E como essas concepgées podem ser reformuladas, propondo-se, inclusive, uma superacio desse binarismo? As explicagées contextualmente oferecidas para explicar esses elementos variam confor me os referencias tebricos adotados. Vale destacar que em especial os es cudos feministas, em suas diversas vertentes (que serio mais detalhadas no capitulo 3 desta obra), © os estudos da sexualidade tém se dedicado & compreensio ~ ¢ nfo raro também & reinvengio ~ do género Ainda, 0 género converteu-se em um marcador central para politics publicas ¢ lutas sociais. A emergéncia dos chamados “novos movimentos socias” nas décadas finais do século XX reuni articulagbes das feministas € dos movimentos negtos ¢ LGBT. Buscou-se, desse modo, pressionar Vrios pals, em Ambito interno e internacional, a adotarem as categorias do géncro, da raga e da orientagio sexual como varidveis relevantes na produgio normativa ¢ de intervengio estatal na sociedade. Esses mo mentos foram assim denominados “novos” por reconfiguratem a esfera publica, demonstrando que dimensées antes consideradas concernentes A “Vida privads” — como 0 corpo, a intimidade © a sexualidade ~ tam- bém estio permeadas por relagbes de poder (MISKOLCT, 2013). Ademais, esses grupos colocaram em pauta demandas que iam além daquelas dos movimentos operdtios tadicionais ~ que se guiavam pela redistibuigéo ccondmica ~ passando a enfocar 0 direito a0 proprio coxpo, a desvincu- lasio entre sexualidade e reproducio, bem como 0 combate as formas de estigmatizagio dos grupos marginalizados pelos saberes considerados legivimos (como a medicina e o dieito) Contrapostas a esas reivindicagées, néo raro se colocaram tendéncias conservadoras, de descrédito das discussbes de género, Atores sociais que podem ser identificados como reacionatios, ais como organizagées rl giosas,vislumbraram nas discusses de género uma ameaga ’s instituigSes estabelecidas. Grupos de pressio fundamentalistas ~ no Brasil, especial- mente aqueles provenientes de igrejas catélicas € neopentecostais ~ se imiscuem em érgios representativos em fertenha oposisio a0 que deno- minam “ideologia de géneto”, © intuito declarado é o de barrar a con quista de dizeitos de mulheres e grupos LGBT, sob a frequente alegagio de que as politicasafirmativas colocariam em risco a familia como base da sociedad, Na mais recente de suas “cruzadas’, as bancadas rligiosas dos legislativos nacional, estaduais © municipais brasileiros tém empreendido OQUEE 0 GENERO? uma ferrenha oposigio A inclusio, nos curriculos escolares, de temiticas de combate as discriminayées de género ¢ orientagio sexual, O género, nesses discursos, figura como palavra proibida, que deve ser estxpada do cotidiano da educagso por contaminar uma suposta pureza de eriangas € adolescentes, bem como corromper a legitimidade da familia tradicional, fandada no casamento heterossexual ¢ cristio (VITAL: LOPES, 2013) Ese intenso rechago 4 palavra “género”, ¢ a todas as discusses tebticas por ela viabilizdas, apenas confirma potencial politico do termo. A nogio de género foi consolidada como uma forma semantica de ressténcia& natura- liagio de desigualdades existentes — naturalizagio essa que ¢ produida ¢re- produzida por diversas instituiges socais, entre as quaisfiguram as organi _agbesteligiosas. Por isso, é preciso compreender como o género éconstruido. 2.0 género come construgio social A difusio do termo “género” no vocabuldrio de andlise da organizagio social deve-se, em grande medida, inseryéo do termo nos estudos € movi- ‘mentos feministas, que objetivavam assinalaro caréter cultural das distin 6es assentadas sobre 0 sexo biol6gieo. No interior da prépria teoria femi- nista, adogio da categoria representa um deslocamento testico e analitico: para além dos “estudos sobre as mulheres’, tomados como uma disciplina separada, comou-se importante enfatizar uma perspectiva relacional das im bricagées entre mulheres e homens, que moldam o tecido social. Ness vies, torna-se invidvel analsar a feminilidade desassociada de uma investigagio sobre masculinidades. Assim, as teorias feminists convertem-se em teorias soiais por desdobratem, em suas diversas vertentes, a constiuigéo crtica de categorias de andlises idemttérias para compreensio relacional das rlagées de poder e desigualdades socais na histéria da modemidade, Nese sentido, os primeiros esforyos de teorizagéo sobre 0 géncto ve saram sobre a necessidade de diagnosticar as principais modalidades sexismo operantes em sociedades contemporineas. Adrienne Rich (t980), com base na obra de Kathleen Gough, ressalta as principais modalidades 2 Plisower uqu pena» rai eet contetgés aoe debates de gneo no cobtete ‘aslo, que etd wiociads a um escent, ns Arve Latina, de tender conser ‘dors no bite dor dior sexual « repredatvor, com uma spropeagio de Estado pela eligi que cloea em eos democrariae aeidade (LIONGO, 2014). Conte, 6 gltere como catepeinnetedors depois pti tense atc em inimerat ‘uty eeatie, comm demonstra SCOTT (2008), a0 slate 2 eporigi do Vaticano © ‘utes groper rigid adore deter “neo” nes abalhoe da Quata Cones ‘Mandi bee Maher, que aco em Peg 1995 CGENERO, SEXUALIDADE E DIRENTO de opressio das mulheres: a negacio ¢ a coacio da sexualidade feminina; © comando ow a exploragao do trabalho para controle daquilo que as mu- theres produzem: 0 uso delas como objetos para transayées € negoviagSes masculinas: 0 confinamento fisico ea imposigéo de impedimentos 3 livre movimentasio das mulheres; 0 controle ou a retirada de suas eriangas: 0 engessamento da criatividade das mulheres ¢ a restrigéo de acess femini- no a0 conhecimento ¢ as realizagbes cultura. ‘As explicagées mais recorrentes para essas hierarquias tém insistido 1a polarizagio entre natueza ¢ cultura, o& mesmo em biolégico ¢ social Nese sentido, 0 género € concebido como construsio social de papeis « desigualdades ancorada no sexo, compreendido como fato biolégico Assim como a natureza figura no pensamento ocidental como 0 substrato da cultura, o sexo aparece como a matériacprima da fabricagio do género (LAQUEUR, 2001). Impresso sobre a matéria, o género é compreendido como um revestimento social e cultural da diferenga sexual As tcorias ferninistas, 20 adotar 0 dualismo sexo-géncro, buscam des- vvencilhar-se de quaisquer determinismos biolégicos que situam no corpo 4s causas para a infriorizagio socal das mulheres por exemplo, a ideia de que © metabolismo feminino, por ser supostamente passvo, conservador « estével, coma as mulheres inaptas para a atuagéo na vida politica (MIK- KOLA, 2016) ou que as mulheres néo poderiam pilotaravides porque uma ver por més estio submetidas ainstabilidades hormonais (ROGERS, 1995), ‘A historiadora Joan W. Scott, no texto “Giner: wma categoria sil para andlisebistirica", dematea tres posigBes tebricas Fundamentais na abordagem critica do género: os feminismos do patiarcado, os feminismos marist € as ‘corias psicanalitcas. Sem pretender esgotarasteorizages sobre 0 género, esse esquema sistematiza de forma bastante didatica como as compreensées sobre 0 tema foram elaboradas na histéria do pensamento recente. Em suma, esas discutem quais si as priticas sociais que constroem o género, bem como qual éo impacto dessa construsio social nas vivencas de cada genet. As teéricasfeministas do patriarcado acentuam, em suas andlises sobre © género, 0 papel da dominagéo masculina’. Uma estrutura fixa © tota- 5 Elmporante rant que hi autora que consideram que "patiarado’ class de eo" nia podem econeehdor em um mesmo plane de ale, yetanda sobre lets das nino, que no alam ete. Cf Machado, 2000. Pars uma defers do emo “poate, por ou poten ulleadoe das diferentes fet da demise eaten, < PATEMAN (1964) « WALBY (1990) Adotsve neste tet, centude, © eauara de Scott (1990), considerado mais sbrangente na demacegio perl de eens penpeear teller abo gine, endo ina dba estes do paid. OQUEE 0 GENERO? lizanee de submissio das mulheres decorre da necessidade dos homens, biologicamente privados dos meios de procriagio da espécie humana, de controlatem os provessos reprodutivos préprios do corpo feminino. Teo rizando sobre as relagées reprodutivas ¢ familiares, autoras como Mary (O’Brien e Sulamith Firestone apontam a procriagio como a base ltima da subordinacio ferninina, Outras auroras, como Catherine MacKinnon, posicionam a pr6pria sexualidade enquanto a origem do sistema de opres séo das mulheres. Para Mackinnon, em linhas geras, 0 género € 0 signi- ficado social da diferenga entre o sexos, que decorre da reifcagio sexual, por meio da qual as mulheres sio representadas como meros objetos para a satisfagio de desejos dos homens (MacKinnon, 1989). Nese viés, o fe rminino se define pela submissio e 0 masculino pela dominagio, de modo que 0 género, por definicio, express justamente a dinamica hierarquizada das relagbes de poder assentadas sobre a sexualidade. Scott apresenta algumas das erticas frequentemente opostas a essas tcorizagées do patriarcado. A primeira delas é que se rata de uma expli- casio tautolégica, pois realiza uma andlise interna do sistema de género, situando a opressio patriarcal na génese da organizacio social como um todo, Ao se fundar nas rlagées reprodutivas e sexuais, esas teorizagées do patriarcado tomam a diferenga fisica como universal e imutivel, separan- do de uma ver por todas o feminino ¢ 0 masculino, e desconsiderando, na visio de Scott ahistoricidade do género, Ainda, outros questionamentos costumam ser formulados por dife rentes tedricas: citicase 0 fato de que as teorias do patriarcado estariam ligadas ao realismo de género, ou seja, 4 pressuposigio de que todas as mulheres, como grupo que compartilha necessariamente caracteristicas definidoras (sejam clas vivéncias, experiéncias, sociaizagao ou persona lidade), diferem-se de todos os homens, de forma fixamente determinada pela estrucura patriaral (MIKKOLA, 2016). Essa visio negligencia 0s mo- ddos como o género se relaciona com outtos marcadores identititios im- portances, como a rasa, aetnia,a classe social e a nacionalidade. Entender as mulheres como grupo homogenco significa subestimar © modo como a diferenga constitui a experigncia de ser mulher. Um exemplo comumente levantado é 0 de que as mulheres negras nio sio submetidas & mesma ordem de objetificagso sexual que as mulheres brancas. A escravidio ne gra na histéria contribuiu para consolidar uma representagio das mulhe- res negras como hipersexualizadas e sempre disponiveis sexualmente, de modo que mesmo 0 estupro de mulheres negras tende a ser mais ‘ado, visto como de menor gravidade ou violéncia (HARRIS, 1993) 24 CGENERO, SEXUALIDADE E DIRENTO [As tricasfeministas manxistas, para Scott, adotam uma abordagem de cunho eminentemente histrico, a partir da associago entre dois sistemas © patriarcado e o capitalismo, Arciculam em suas andlises, portanto, as re lagées de géncro ea critica 3 estrutura de clases das sociedades contempo- rineas. Nesse viés, a divisto sexual do trabalho, ¢ todas as demais desigual- dades entre os géneros,estariam atteladas& pra organizacio dos meios de produséo econémica. Com influéncia preponderance da obra “A origem da familia, da propriedade privada e do Enado”, de Engels, os feminismos socialstas tematizam “as relagées entre trabalho doméstico ¢ reprodugio da forsa de trabalho” na construgio da familia burguesa ¢ da experiéncia da sexualidade (SOUZA, 2000, p. 70). Essa obra mostrouse determinante no sentido de langar luz aos debates sobre © mbito doméstico e privado cm suas interconexdes com a organizacio social como um todo. Outras «céricas de relevo foram as socialstas Clara Zetkin ¢ Alexandra Kollontai, bem como a anarquista Emma Goldman. No Brasil, as obras de referén nacional do feminismo marxista foram eseritas por Heleieth Saffiot, tai como “A mulher na sociedade de clase: mito erealidade” de 1976. ‘Um ponco bastante sensivel abservado por Scott nas terizagées soca liseas diz tespeito as relagGes entte os sistemas econdmicos e as estrucuras de dominagio masculina, Conforme a autora, su causalidade econdmica na abordagem do género: a opressio das mulheres € remetida, de mancira mais ou menos direta, a organizagio das relagbes socioeconémicas. Nio raro, o sexismo € resumido a um subproduto da dominagio burguesa e do advento da propriedade privada, de modo que rio sio reservadas as relagbes de género um estatuto de andlise pr6prio, com a abordagem das especifcidades das quest6es suscitadas pelas femi- nistas (SCOTT, 1990; MIGUEL, 2014). Donna Haraway (1991) destaca a dificuldade das vertentes marxistas tradicionais de historiciar as relagbes entre classe, género e raga marcador este que, por muito tempo, teria restado inexplorado nos mais influentes textos feministas socialists As teorias psicanallticassio bastante divetsficadas, de modo que a and lise de Scott enfoca a produgio de Nancy Chodorow e de Carol Gilligan, baseadas nas ceorias psicanalistas da linguagem de Jacques Lacan. Para estas «eéricas,aidentidade de géncro é um aspecto da subjetividade que se desen- volve na infincia a partir das interag6es comunicativas das ctiangas com os pais, as chamadas relagbes objetas. Assim, alinguagem exerce uma fungio primordial, mediando os sistemas de significagio por meio dos quais 0 su- jeito constiru-se como ser gencrificado. © papel da mac ou de outra figura feminina, vista como o adulto de referéncia na maior parte do desenvolvi ‘uma tendéncia de OQUEE 0 GENERO? mento infantil criadiferensas psiquicas entre meninas ¢ meninos, Incons- cientemente, as mies tendem a se identficar mais com filhas do que com filos — que séo encorajados a serem mais auténomos, enquanto relagses de maior dependénciasio m: Desse fendmeno decorreria 0 fito de que a personalidade masculina tende a ser mais autorreferente ¢ emocionalmenteinibida, o passo que as mulheres se orientariam a uma aptidio para a maternidade, por se caracte rizarem, psiquicamente, por maior dependéncia emocional e preocupagio com os demais (MIKKOLA, 2016). A chave para mudanga dessas tendé cias psiquicas que contribuem para as desigualdades de género, segundo Chodorow, estaria no maior envolvimento dos pais no cuidado com os filhos, com um compartilhamento mais equinime de tarefas de cuidado. Scott apresenta também suas erticas As perspectiva psican por stem fundadas na andlise do Ambito doméstico e familiar, mostram-se insuficentes para explicar dindmicas polccas, econdmicas e sociais mais abrangentes da experiéncia do género. Ainda, ao derivar a identidade de género das relagées objetas, as teorias psicanalitcas tomam a construgio do sujeto como deterministica e descuidam do fato de que 0 feminine ¢ o masculino sio representagbes simbélicas socialmente compartthadas, que variam conforme contextos culturais ehistsrieos. Mais além, essa descrigio psiquica nio fornece os elementos tedricos para a compreensio das relagées de poder por meio das quais a masculinidade é privilegiada em dettimento da feminilidade, Como constata Scott, a dicotomia homem/mulher é to icas que, ‘mada por esas teorias como um universal, suas dferengas esti pré-finadas, reforgando o determinismo que o feminismo buscou afastar com a separa- 40 conceitual entre sexo ¢ géneto ‘Tendo em vista a eritica apresencada, Joan Scot postula uma com: preensio do género como categoria hist6rica, sempre mutével, como “ele- mento consticutivo das relagbes sociais Fundadas sobre as diferengas p cebidas entteos sexos 0 género é um primeito modo de dar significado as relagées de poder” (2990, p. 14). Nesse sentido, o género engloba diversas dimensées da vida social, conforme se verd adiante (ponte 4 infra), estru- turando as relagbes estabelecidas de forma sempre contextual e variivel Desde a escrita do clissico texto de Scott, vias perspectivasanaliticas foram formuladas ou aprofundadas, tomando-se fundamentais para a com preensio do género na contemporancidade. Duas delas destacam-se © tra- ‘vam interessantes didlogos entre si, ganhando especial visibilidade contem- porancamente: as teorias queer ¢ os feminismos interseccionais. Ambas as vertentes contrapéem-se 20 tealismo de géneto, ou seja, & nog metafsica 2s 2% CGENERO, SEXUALIDADE E DIRENTO de que necessariamente haveria alguma caracteristica comum ot experién- cia compartlhada por todasas mulheres que as identificassem como grupo, © feminismo incerseccional baseia-se no reconhecimento de que distintas formas de opressio operam em conjunto com as desigualdades de géncro. Raga, etna, sexualidade, clase social, nacionalidade, dade, eligito e condi- «0 coxporal convertem-se em marcadores idensititios que, atavessados por cixos de podet, se entecruzam na formagéo das experiéncias conctetamente vivenciadas por cada mulher. A especificidade das dinimicas sociais derivadas da sobreposigio desses marcadores requer uma andlise complexa. A tebrica Kimberlé Crenshaw cunhou, na década de 1980, 0 ermo “interseccionalida- de” para fornecer um instrumento teério para essa andlise, sustentando que “uma das razées pelas quais a intersecionalidade consttui um desafio & que francamente, ela aborda diferengas dentro da diferenga (Ind, p. 9) A inverseccionalidade tomouse imprescindivel diante da constaagio de que © feminismo hegeménico ocidencal, embora pretend representar po liicamente todas as mulheres, em se centrado nas demandas formuladas por mulheres brancas, heterossexuais, cconomicamente favorecidase prove- nientes de pases desenvolvidos. Nesse sentido, a interseccionaldade se de senvolve a partir das critics formuladas, sobretudo pelo feminismo nege desenvolvido por autoras como Angela Davis Sucli Carneiro, que apontam as invisibilidades derivadas de uma associagio entre 0 sexismo ¢ 0 racismo. ‘A partir dessa perspectiva, as feministas negras demonstraram que o fe- sminismo tradicional desconsidera a hummanidade das mulheres negra, ocul tando inclusive as opressées que lhe sio impostas pelas mulheres brancas Além de expostas 20 racismo instivucionalizado pelo Estado (por exemplo, através do genocidio da populagéo negra), maior vulnerabilidade 4 vio- lencia sexual ¢ doméstica, aos padtes de beleza racistas, a maiores indices de aborto ¢ negligéncia médica, as mulheres negra a da se encontram em 40 “penociie ds populaso ne” canst no stemitice exteminio de pevoue near (que em sede crater ma bindria do Br epaado pl tacienerecialente eminad « snstucionalado,sobretade a stung rpreiva dor cpioe poli Nee ventide, dar enatiicorcomprovam tendinear de aumento na iniegfo de prstos neg, marcodamentedajrentde neg O fice de Valeria Jreil ‘Violéaca « Desigualade Rai, de 2014, demonsta que a tara de ovens negroes sador por 100 ra habitaner subi de 605 em 2007 pra 70.8 rm 2002, enquano a de ven base, o meso peiodesumentou de 26,1 ara 27-8, Deaconde cme oes nln contra a Male: Feminine Bra do PEA. 60% das mulbees ssinadas to Bra entre 2001 « 2011, feiniiin contra rulers negasaumentou (quate ¢ atasiate de muleres banca dina 98%, confome Mape de Vi (22015. Os rovimestey agit ten denancida ee wraninatn eo dates kat (ge or legimame (RIBEIRO. 2018) OQUEE 0 GENERO? posigdes assimétricas em relagio a mulheres brancas ~ como no caso do nercado de trabalho, em que mulheres negras ¢ pobres sio maioria nos ser- vigos domésticos, ainda desvalorizados e sub-remunerados (CRUZ, 2016) Donna Haraway apresenta um exemplo contundente dessas desigual- dades e suas repercussbes na vida de mulheres negras: “[nlo patriarcado brranco norte-americano, as mulheres lives eram ttocadas num sistema aque as oprimia, mas as mulheres brancas herdavam mulheres © homens nnegros” (r991, p. 145). Nesse sentido, enquanto as mulheres brancas eram casadas com homens brancos, as negras escravizadas cram consideradas propriedade de ambos. Essa diferenga engendrou, historicamence, dife- rentes contetidos de demandas reivindicadas pelos dois grupos. Haraway cxplica que os diteitos reprodutivos das mulheres brancas dizem respeito a0 controle do préprio corpo, a decisées sobre quando e como se dario a concepgio, a gravidez.¢ o nascimento, Ao passo que, para as mulheres ne- ras, 0s direitos reprodutivos centram-se no “controle geral das criangas”, da possbilidade de protegé-las contra as mais variadas adversidades, como © exterminio, a seletividade do sistema penal, a pobreza e a mortaidade infantil. A andlise interseccional, portanto, torna ainda mais complexo © género, mostrando que © proprio conceito “mulher” encontra-se em disputa e nio pode ser considerado uma categoria universal e homogénea “Também a teoria queer pode ser apontada como um esforco de descons- «rucio de categoriasidentitéias hegeménicas, O queer surgi como esforgo de sstematizagio teérica de intervengées e dentincias de movimentos sociais a respeito da violéncia softida por aqueles segmentos sociais considerados abjetos, desviantes ou aberrages por néo se adequarem as prescrigbes so- ciaisa respeito do que é ser considerado homem ow mulher. Nesse sentido, lésbicas, gays, bissexuais, uansexuais, travesti, assexuais e pessoas néo bi nirias tém consolidado, a0 longo das dltimas décadas, uma critica social is estruturas de poder que separam o que é tido por normal, saudivel © correo, ¢ aquilo que € rejeitado socialmente como anormal, patolégico ou inadequado, O aparato legal e médico, especialmente dos saberes “psi” (psi cologia, psicandlisee psiquiatia) foram apontados como priticas diseurs- vas legitimadoras dessas disriminagées Judith Butler, autora feminista considcrada um dos maiores expoentes da teoria queer, formulou reflexées de especial interesse para os estudos de género. Desde sua obra “Problemas de género — Feminismo e subverséo da 5) Ene temo, coma dice tévics de sus cepts tabalkado com malo dense: tment em tn eaptile pei dra chr 2 26 CGENERO, SEXUALIDADE E DIRENTO identidade” (1990), Busler tem crticado as politica identitiias, Fundadas na pressuposigio de pertenga a um dado grupo, por exemplo de mulheres, por compartilhamenco de caracteristicas comuns. A autora alerta que as categorias identiirias no se resumem a serem apenas desertivas, mas sempre sio, em alguma medida, prescrtivas: normatizam 0 modo correto de se conformar & definicéo do grupo em questi. Ainda, para Butles, a propria identidade de género € um construco normative. O género néo inscreve uma esséncia compartilhada e profun da, um aspecto psiquico ou biolégico, mas representa uma construsgio performativa constantemente reatualizada pelo corpo, Ser mulher nio é tum destino natural, mas uma repetigéo estilizada de normas sociais que impéem linguisticamente o que é eulturalmente aceito como feminino ou masculino, Ainda, essas normas se inscrevem em ma matriz heteronor- nativa, que se funda sobre a nevessidade de adequagio a expectativa de linearidade entre sexo (biolégico). géneto (como identidade psiquica eso cial) ¢ orientagio sexual (que envolve as priticase desejos afetivo-sexuais) Espera-se que uma mulher tenha uma anatomia considerada de “fémea’ © oriente sua sexualidade para o desejo ea interagio com homens. Os cor pos sio compelidos a se adequarem a essas normas, sob pena de sofierem sangées corretivas, como violéncias fsicas, simbilicas ou verbais. Aqueles seres que nio se submetem aos padres heteronormativos de ferinilidade « masculinidade tem o reconhecimento de sua humanidade prejudicado, rio sendo considerados culcuralmence inteligives. Seo género se impée por meio da tepetigio performativa de normas de heterossexualidade compulséria, Butler conchti que 0 sexo é tio cons- truido quanto 0 género (BUTLER, 2001). As relagbes de poder se locali- ‘am em todas as instituig6es socias (a familia, a igteja, a escola, a ciéncia a medicina, ete) ¢ incidem sobre os corpos para submeté-los i hetero- normatividade. Todas essa instincias pressupéem o binarismo de géncro de tal modo que nao podem ser concebidos corpos “desviantes”, Mesmo ros casos em que um corpo nio posta ser considerado nem cotalmente masculino ou feminino, como no easo dos recém nascidos intersexo, os saberes legitimados pelo aparato médico-legal, atuam por meio de cirur- gis c intervengées hormonais para atribuir um ~ ¢ apenas um ~ sexo Aquele corpo (FAUSTO-STERLING, 2000; MACHADO, 2008). Teata-se de uma demonstragio de que o género produ. o binarismo sexual, através de uma conformasio ativa da matéra pela intervencio da tecnociéncia. Contudo, o género pode ser reinventado por meio da subverséo, Bucler vislumbra a possibilidade de se questionar o cardter deterministic do sexo OQUEE 0 GENERO? justamente pela desnaturalizasio dos atos que 0 constrocm performativa- nente. A reconstrusio do corpo de forma nao nacuralizada, como na apre- sentagio teatral de uma drag queen, demonstia que nao hi uma esséncia fou natureza insita ao “ser mulher”, mas que normas de género forcam 3 adequagio de todos os corpos aos parimetros cultura de feminilidade © masculinidade, A inobservancia dessas normas conduzem a sitwagses em que a identidade de géneto ¢ vista como nio coerente, acarcetando inclusi ve a possibilidade de sangées sociais negativas ~ como as violéncias homo- Sbicas ow transfébicas. Contudo, é justamente por néo poder nunca ser decerminado em definitivo, que o géncto pode ser recomposto e vivido de formas miltiplas, como as experimentadas pelas pessoas trans, Ness senti do, é possivel eeonceber 0 género como uma construcio que engaja corpo, normas, discusos, teenologias ¢ significados sociais de forma intrincada © nutivel historicamente (LOPES, 2014). As diferentes perspectivas tebricas apresentadas indicam que 0 género € uma temética complexa e que suscta amplas discusses, ainda por serem desenvolvidas. © género néo é univoco nem mesmo quando abordado fora do contexto desses embates tediricos. Ao se mencionar 0 termo géne ro, torna-se necessério precisar a que aspecto da vida social exatamente se far referéncia, conforme se explictard no subitem seguince 3. Diferentes dimensées do gnero No género, como construsio social, converge uma pluralidade de ele- rmentos consticutivos. Judith Lorber, em seu livro “Panadoxor do género” (2994), lista algumas das diversas esleras de caracterizagSo do génevo. sintese, denota-se que o género é composto por vérias dimensées da vida social, de modo que a uilizagio do termo pode fazer referéncia a aspectos muito diferentes entre si A autora menciona, em especial, 0s “status de género”, que englobam as expectativas sociais de apresentagio comporta mental, gestual, linguistica, emocional efisica diferenciadas conforme os sexos, Como desdobramento, pode-se apontar a “aparéncia corporal de género": distintos objetos pessoais, vestimentas, cosméticos, adomos, ¢ marcadores corporas, permanentes ou reversiveis, considerados préprios de cada um dos dois géneros impostos normativamente. Uma dimensio ‘mais propriamente subjetiva costuma ser identificada, ainda, na existéncia de tragos da personalidade ¢ da pricologia individual correspondentes a homens e mulheres, bem como de crengas e valores de género justificados com base na diferenga sexual 2 30 CGENERO, SEXUALIDADE E DIRENTO Lorber ressalta também um vids institucional do. género: reiterada- mente atividades ¢ lugares sociais especificos so, de f nos explicit, atribuidos a cada sexo. Nesse sentido, a divisio sexual do trabalho, desdobrada em fungées no ambito da familia e do mercado de trabalho, marca a vida ¢ as possibilidades de homens © mulheres. Essas diferenciagées vinculam-se & imposigio de expectativas sociais quanto a arranjos relacionais ¢ familiares pré- estabelecidos, com a existéncia de padrées heterossexuais de priticas e desejs afetivo-sexuais. ‘Ademais, o género se afirma no conjunto de representagées culeuris, autisticas ¢ simbélicas que expressam imagens naturalizadas do que é set hhomem ou ser mulher. Nesse sentido, Haraway enfatizou, com base na teé rica da cgncia Sandra Harding, que o género é “uma categoria fundamental através da qual se atribui sentido a tudo” (r991, p 140-141), Essa perspectiva se desdobraré, nas tcorizagbes de Haraway. em andlises do género como componente semidtico que informa visées, individuais e coletivas. Seott (1990) estabelece quatro diferentes dimensées interligadas do género como categoria social de andlisehistérica do que se percebe como diferenga sexual. Sao eles: (2): simbolos culeurais dspontveis que evacam reptesentagées sobre 0 masculino e o feminino (com fiequeéncia contra ditrias entee i — como por exemplo a visio da mulher como profana ¢ santa nas figuras de Eva e Maria da teologia crist); (2): conceitos normati- vos que evidenciam as interpretagées possveis desss simbolos, no sentido dde concer suas possbilidades metaféricas, nos diversos ambitos culturais ddoutrinas rligiosas, educativa, cientificas, politicas ou juridicas; (3) nosio de politica de género, bem como uma anilise das instituigdes © da organizagio social que a cla se referem e, por fim, (4): as manciras de construgio generificada da identidade subjetiva ~ so “quatro elementos ¢ rnenhum deles pode operas sem os outros” (p. 15) Em suma, 0 género (visto, nfo raro, como “cuktunl”) envolve papeis, es cereétipos, represencagies ¢ construgées simblicas ¢ materaisatibuidos & diferenga sexual (ida, por outro lado, por “natural”). Constitu-se, portanto, cm cada “possivel esencializagio que fixe modelos de masculinidade e femi- rilidade baseados em atibutos decorrentes de caracteristicas inatas, natura, detivada da biologi’ (BELELL, 2010, p. 54). Em algumas perspectives, como ada tedtica Judith Butler, acima abordada, 0 género € compreendido como o préprio dispositive social que, através de relages de poder, produz diseursivae ‘mente diferenca sexual, O género, nese vids, e desdobra nas normas heteros- sexistas, a parti das quas as identidades de masculino e feminino sio vistas ¢ incorporadas como possbilidadesculturalmente legitimas, ou sea inteligiveis OQUEE 0 GENERO? Consideragées finais © género é um termo com significative potencial teérico € politico. Diversas investigages, com os mais variados referencias tedricos, busca- ram aprender seu sentido ¢ suas nuances, Nio obstance a extensa produ- sao pretérita, © género continua sendo um campo para renovados estudos ¢ aprofundamentos, particularmente tendo em vista as demandas emer- gentes da realidade social, com a atuagio de atores © movimentos sociais que propsem novas quests. Anda, conforme se abordard nesta obra, o géneto é um ponto de par ‘ida fundamental para uma série de outrasrellexées ~ como as vivencias plurais da sexualidade ¢ da identidade de género, as formas de norma- tividade social e de violéncias, bem como as temiticas contemporincas prementes, como o nome social, a interseccionalidade ¢ a divisio sexual do trabalho. Investigagées a respeito de como 0 Direito normatiza essas questées atravessario todo o livro. Bases consistentes para se compreen- ddr as complexas relagdes entre género, sexualidade e direito precisam ser c)pensadas, em prol da construgio de sociedade em que as diferentes formas de compreensio e vivéncia do géneto sejam, de fao, levadas a sério © normativamente asseguradas, a despeito de quaisquer pretensées de retrovesso conservador e discriminate Referéncias bibliogrificas BELELL lara Géneo, In: MISKOLCI, Richard (Org). Maras da E renga no ino Escola. Séo Catlot: Editora da Universidade Federal de Sio Carlos, zor BUTLER, Judith, Corpor que pecams sobre o liter dicurios do “eso” In: LOM RO, Guacira Lopes (org). © compo educado ~ Podagogias da sexualidade. Blo Horizonte: Auéntcs, 2001 Problemas de giver: Femin Rio de Janeto: CivilizagSo Beale, 2a Pd. 200, mo ¢ subverso da identidade. (CRENSHAW, Kimberlé, A Intereeionalidade na. Discriminasio de Rasa © Géneto. [sd]. Disponivel em: LOPES, Lals Godel. Carper price da penvaidades emetginela¢ a dsconstu <0 da idenidade de géneto. 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Que varia- s6es existem nos cérebros, horménios, coxpos ¢ gentilia dos seres huma- 1hos que possam justificar (ou pelo menos indicar um caminho racional) a sexualidade de cada um? Estaria a esposta verdadeira a tais perguntas 20 aleance da racionalidade humana ou estarfamos nés fadados a compreen- dé-la pelo intermédio divino? Essas sio, decerto, questbes tio inguietantes quanto recortentes, as quais no buscaremos responder nesselivro, ama ver que, a nds, outtas questées patecem ser mais reevantes & busca por uma compreensio dos mistérios da sexuali Quem de nés nfo ouviu a0 menos uma ver na vida frases como “esse cara tem muito jeito de viado”, “essa garota parece ser bem safada/puta’, “essa menina tem cara de sapatéo” 04 "Santinho desse jeito, com certeza io pega ninguém”. Essas frases, ainda to corriqueiras em situagées cotidianas, tem um tinico denominador comum: a inferéncia, a partir de elementos miitiplos expressos por tais pessoas (aparéncia, roupas, com de vo2, predilegdes, jito de caminhar, etc), sobre o comportamento sexual de cada um, ou seja, uma leitura comportamental eestética por meio da qual se presumem as priticas sexuais de um individuo, Néo raras sio as veres em que ‘ais inferéncias provamse flsas, entretanto permanece intacta a associagfo de condutas ou apaténcias a certas sexualidades, que permitem idencificar figuras como o “viado”, a “sapatio’, a “safada” e tantas outras Ainda que tais associagées entre comportamentos sociais e sexo nos pa- recam hoje naturais, nem sempre elas estiveram nos juizos do Ocidente sobre os individuos, ainda que existam indicios de que as prdticas sexuais ide humana. 5 Graduando em Duco pela Unveridae Feder de Mina Gea Pagudor vluntiie de Nile de Pesquisa em Pcologa Jura da UEMG, gutavebpribviso@gmailcom © QUE € SEXUAUIDADE? as quais elas se refiram tenham, por ras, feito parte da experiéncia huma- 1a, como nos tem ensinado a Historia sobre a pedagogia grega, os banhos ligiosos dos povos celas. © surgimento de tais identidades, alicergadas sobre um pretenso conhecimento da sexualidade individual, mostra-se como uma questio curiosa, merecedora de alguns questionamentos: qual a inffuéncia da se xualidade de uma pessoa sobre a sua identidade? Que caminhos interpre cativos permitem que uma pessoa se identifique ou que seja identificada socialmente pela sua sexualidade? De que formas a sexualidade influencia a localizagéo de individuos em grupos sociais? A partir dessas questées, buscaremos encontrar, em meio a séculos de construges sociais e discuss: vas, algumas clucidagdes sobre essa dimensio tio explorada e, ainda assim, obscura do comportamento humano: a sexualidade. 1, Sujeitos do desejo © sexo ha séculos tem rendido muitas discusses na sociedade ociden- tal, endo assunto em ambientes diversos, desde conversas de bar até art gos e livos cissicos. Nessas conversa, varios discursos foram enunciados, comentados ¢ repetidos, refutados ou sactaizados ao longo do tempo, sedimentando-se na forma de conhecimento ¢ conformando muitas das “verdades” ditas sobre a sexualidade humana. Todo esse processo cons situtivo do saber sexual, entretanto, softeu profundas alteragbes a partir do século XVII, quando as questées do sexo deixaram de pertencer 20 dominio piblico, passando 3 incimidade da casa e da familia, cormando-se segredo sobre 0 qual pouco se fala, mas muito se dita Banido das conversas piblicas, 0 desejo sexual se tornou assunto de Estado, educagio, religiio © cigneia, as quais foram incumbidas de re- pensar ¢ definir 0 papel do sexo na sociedade, submetendo-o a rigorosos controle ¢ moralidade, fundantes de uma ética sexual que vitia a reformar profundamente a sociabilidade do Ocidente. O prazer e 0 goo, basilares da arte exética (ars erotica)’ por meio da qual diversos povos ~ os gregos © 0s romanos, por exemplo ~ expressavam ¢ transmitiam seus saberes, foram vatridos aos dominios do pecado, da insalubridade e da ilegalidade, 7 Foucault defies ar entice como um precedente por miedo ual um grande nine as 46 CGENERO, SEXUALIDADE E DIRENTO Partido dos Panteras Negras”. Ainda segundo Ribeiro (205), em Quem tem ‘edo do feminismo negr?. as mulheres negras iniciaram uma luta para serem consideradas pessoas, enquanto as mulheres ndo-rancasjélutavam por ditei- tos. Iso se corna evidente no discurso de Sojourner Truth" em 851, que diz Aquele homem ali dz que é precio ajudar as mulheres asubie uma eatuagem, € precio eartegar elas quando atavestatn ‘um lamagal e elas devern ocupat sempre os melhores lugates [Nunes ninguémn me ajuda a subie numa eaeruagem, a pasar par cima ds lama ou me cede o melhor liga! E nde sou uma sulher! Olhem para mira! Olhem pata mes brago! Ea eapi- i, ea plane, junte palha nos eeleitos © homem neshum consegui me superat! E no sow uma mulher? Eu consegul trabalhate comer tanta quanto um homem ~ quando tisha 0 ‘que comer etrnhérm aguentei as chicotadas! Eno sos uma snulher! Pati cinco filhor ea matoria delet foi vendida come cseravos. Quando manifest! minha der de mie, ninguées, a ‘ouvia! E no sou uma mulher?” (© racismo, uma estrutura de poder ¢ dominagéo de uma raga ou etnia privilegiada sobre outa, ea luta de classes sio quest6es centrais que se ana- lisadas por uma perspectiva interseccional geram as pautas especficas que nortciam a vertente. Dentre as principais pautas de debate e combate do feminismo negro, pode-se citar 1) 0 genocidio ¢ encazceramento do povo regio, 2) a erradicagio da discriminagio sexual, 3) a equidade no mercado de trabalho, 4) a legalizasio e descriminalizagio das drogas, 5) a hipersexua- lizagao ¢ mercantilzagio do corpo negro, 6) a solidio da mulher negra, 7) apropriaggo estéticae cultural, 8) o reconhecimento das formas culturais de resistencia negra € tesgate da identidade negra 9) 0 pleno acesso & sade, 17 Fandado em 1956, Cables, com o abjesvo de protegeros guts aegts de ase vo [estar por parte da pla, A organza petmancoru nine norEntador Unido at (982, 18 Exceseava que fro dsuta“E ex no su uma mle” a Contenso dr Dito at Mathers em Oho 19 No origin: “That man ove thee ray that women eed tebe blped inte eaiages, ane cd eves dtcher, and to have the est place everywhere, Nebo eer helpe se inte ‘ere or ver mad puddle, orgies me any bet plae! And ist woman? Look t tne! Look at my ata! have ploughed and plate, and gathered int bars, and ne man, could bead mel And sist 1s woman? could werk ar much and ext a much aa man ~ fvben ould gett and ber the Lach awe And ait a woman! [ave borne heen ‘len and sen mow allel off slavery and when Iced out with ny othe pe one but Jers bead ee! And aint Ta woman?” oaue EMIN'SMO E QUA'S SAO SUAS VERTENTES? ceducagio e seguranga ¢ 10) a intolerancia religiosa ¢ a valorizagio das reli- sides de mattiz africana e 1) desmilcarizagio da Policia Militar, pautas essas que néo sio englobadas por outras vercentes do feminismo™, Especificamente no Brasil, com a abolig uicios dessa época ainda sio nitidos ¢ 0 mito da democracia racial, onde todas ¢ todos somos mestigos, acaba por mascarar 0 racimo estrutural ¢ institucional que priva o povo negto do acesso aos direitos bisivose& vida (© Feminismo Negro, nesse sentido, coloca a vida negea como uma pauta uurgente#, & medida que o Estado ¢ a sociedade promovem 0 genocidio € excerminio do povo negro diariamente Atualmente, nota-se um fortalecimento das identidades negras e um em poderamento estético que, mesmo gerando intimeras citicas por sua ligagio com o sistema capitalists, surge como ferramenta para resgatar uma autocs- sima hi muito perdida. Em A Intenccionalidade na Dixeriminasdo de Raga € Ginero, Kimbetle Crenshaw (2004), debate sobre a invisibilidade da mulher negra a0 dizer que os problemas desas mulheres fcam subineluidos dentro do feminismo branco. Segundo a autora, “é como se, embora se possa falar sobre todos os problemas enfrentados elas mulheres, suas especificidades nio ddevessem ser discutidas”. O Feminismo Negro luta pelo diteto a vida e por tum feminismo que nio veja a questio da raga e da classe apenas como um recorte, mas como ponto central para se dscutir a emancipagio das mulheres tardia da escravatura, 08 tes Consideragses finais HA uma tendéncia de reduzir © movimento feminista a vertentes es pecificas, o que evidencia as divergéncias tericas entre as diferentes for sas de atingir 0 mesmo objetivo. Nio falamos de um feminismo tnico, integrado © homogéneo, e sim de feminismos que se completam ¢ que abrangem grupos diversos de mulheres. Atualmente, coma difuséo da teoria feminista nas midias, se faz mais ne cessrio que materais de fontesconfiveissejam produzidos, a fim de garantir tum acesso & informagio que nio gere retrocesso no histrico de hata femi- nist, © pattiarcado, enquanto sistema que combate o feminismo, wtlza-se ddas mesmas midias para suprimit, dstorcer e manipular as agées e produgées protagonizadas por mulheres. E imprescindivel cautela neses tempos onde a informasio é criada edifundida sob o anonimato e méscaras das reds sociais 20 Ver: ADORNO, 1995; ADORNO, 1996; BARAITA, 2002; CARDOSO, 2014 DA. Vis, 1982; GONZALEZ, 1983; HOOKS, 1982; SOUZA, 1985; WACQUANT, 2006, 2 Acese «| placemats coml> ar 48 CGENERO, SEXUALIDADE E DIRENTO Referéncias bibliograficas ADORNO, Siig. Ditcriminacd race uica criminal em Sdo Pou, Neves Estudos Cebrap, 4p 4564 199. ADORNO, Sérgio. 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