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POSFACLO — Donde vens? — De um pais longinquo. — Quem és tu? — Eu sou o homem pobre. (Also waz shwester Katerei)! «Olhei para tras e vi que era seguida, O caminho do meu desejo é inexoravel; devo trilha-lo; exigem-no aqueles com quem. me encontro» (p. 87). Assim é: Maria Gabriela Llansol € seguida por um punhado de gente que se reconhece no seu desejo e que a obriga a seguir o caminho de um desejo miutuo, £ com ela que se acolhem as figuras que tecem a porosidade do encontro. Na” religido de Epicuro os deuses formam entre si, através de peque- nas sociedades de amigos, confrarias. O Livro das Comunidades dispée o legente para um comércio mittuo, em que se cruzam geragées idas e a nossa, escritas do passado e o presente que resta (G. Agamben). oe : . Oesejo, liberto do espartilho da psicanilise que o trata como «falta», conduz, produtivamente, para associagées novas, simbio- ses, reinos diferentes; estas passagens para 0 outro sao devires: devir-mulher, crianca, animal, planta, fundir-se nos elementos ou tornar-se imperceptivel. As associagGes produzidas pelo desejo e que sao as unicas que o definem, sdo «agenciamentos» — maqui- nas desejantes na sua actualizacao. O desejo prolifera em todos os sentidos, inventa devires, linhas de agenciamento e devires por- tadores de sentidos da vida, dando-lhe sentido: os agenciamentos colectivos de enunciagao, a literatura, deriva dessa fonte. Este livro vive do desejo — ai estdo a assinald-lo os «capi- tulos da espera» — e do didlogo com os mortos disfarcados em 1 Manifesto da scita do Livre Espirito. ton sombras de escrita € os seus estigmas, através da escrita: Sao Joao da Cruz que seguia o seu declinio, Nietzsche, «impregnado de lingua e que navegava com um. denso livro de 4gua», Hadewijch, que éorioe 60 pobre, Miintzer, que repete constantemente a Beatriz a mais terrivel frase deste livro: «O mistério do mundo nado est na ambicao dos poderosos mas na vontade de escravi- dao dos pobres» (p. 64). Este livro vive de miiltiplos textos que podem ver-se nos corpos transparentes, que regressam da litera- tura tradicional oral e que conversam com Nietzsche ou Miintzer ou Bernardim Ribeiro de uma forma citacional que os arranca ao contexto que destréi. Eis um tratado sobre a escrita e a leitura e a servidao; sobre a pobreza e a sobrevivéncia; sobre o humano e o pré-humano. Eis um livro sobre o despojamento. Oleitor deve esquecer os «dugares comuns da cultura», o sitio restrito do aquario; deve abandonar a ideia de narrativa e a ideia de clausura que lhe subjaz e entrar no rio que aqui se confunde com o mar (da escrita) abarcando a ideia da casa aberta e fechada, nada ficando a saber da sequéncia dos factos narrados; deve aprender a ver onde nos leva_a escrita € mais, aprender «a ver em cada corpo uma espessura prépria». Deve aprender a deslocagao, 0 nomadismo: «Nesse pais ja des- Cortino auséncia de fronteiras e terrenos vagos» (p. 66); deve via- Jar como contemplar, perder-se, maravilhar-se pelas mutacdes de tudo. Deve entrar neste livro como num laborat6rio alquimico, vazio, onde tera a visao da batalha perdida e onde conhecera 0 ee que assiste 4 transmutagao de silhuetas amadas; n oure-o rufdo do marulhar da Agua e da escrita. _ fede — aquilo que € apocaliptico é 0 con- € do homem e da mulher, da verdade e da mentira, i a da vida e da morte — é a que melhor conyém a uma seografia de Rebeldes. O A, Para d Nascer fron tice Pocalipse é 0 género mais bem feito n : anal ~ certar a escola socioliterdria, Se todo o género deve ma si i ‘ tuacdo social particular ou Sitz im Leben [conteto 102 vital] tomado como quadro de enuncia¢ao oral e instituida, 0 apocalipse escapa a esta lei, enquanto género insepardvel do livro. O livro substitui-se a situa¢4o social. Este meio de comunica¢ao ajusta-se a uma sociedade que, pelo facto da perda do seu futuro, vé os seus lugares enevoarem-se. Propriamente falando, 0 apo- calipse nao tem Sitz im Leben: é nisso subversivo. A sua fungao é fechar o livro, a sua posi¢do em relagao ao canone, ambigua (P. Beauchamp, Lun et lautre Testament, 1990, pp. 200-201). Porque é uma forma de escrita até agora escondida e nao cané- nica — tudo conspira para fazer deste mundo um lugar seguro, / para conservar o patriménio, para rentabilizar, para assegurar os circuitos da mesmice; porque o primordial aqui é a vibragao pen? | ‘santé e nado a encenagdo de actantes numa trama narrativa logo identificada; porque a ideia de mutacag invade a ideia de escrita ¢ invade tudo; «praticava novas mutagdes» (p. 58) — veja-se a estranha contiguidade que liga Nietzsche, Hadewijch, Sao Joao da Cruz, Eckhart — esta é uma escrita de dificil pratica e de peno: recepgao para quem perdeu a sensibilidade a escrita do divers E util saber, lendo este livro, que os livros, vindos de longe como o pobre de que fala a tradicao que liga Eckhart a beguinos € > beguinas,|se religam, se chamam, se misturam| Os sobreviventes da Restante Vida, convocados para 0 espago apocatastico de O Livro das Comunidades, sio os héspedes de Na Casa de Julho e Agosto. No fim de A Restante Vida, dia-se que Ana de Penalosa se encontra ja Na Casa de Julho e Agosto, Maria Gabriela Llansol escreve a nossa escrita: fragil, por- que misturada ao viver e ao morrer, obscura, metamérfica «com forma de homem e de mulher, e de permanentes cinzas e laba- redas», exposta ao acolhimento de figuras que aqui sio nomes: Jodo, Mintzer, Ana de Pefialosa. A escrita nao é apenas uma «arte demonstrativa»: é\uma arte de laboratério e de alquimia. «Mais uma vez pensa utilizar a escrita que sempre Ihe serviu de labora- torio e de alquimia» (p. 71). 103 Umaarte de ligacdes. Este € o livro das nossas ligacée: disciplinares e multiculturais. O sexo da escrita contra a fadiga ea banalidade e 0 «voyeurismo». Narrativa nao ha, apenas uma cor- rente em que uma caravela desliza, uma viagem com Hadewijch e outros seres femininos, num cendrio de guerra e de batalha per- dida. Desta batalha ficam os despojos, a cor, 0 som, a resisténcia, 0s corpos intensos que j4 nao se definem pelas partes funcionais (6rgaos) mas por zonas de intensidade que sao outros tantos , Patamares que compdem um corpo intenso ou sem érgio: } batalha fica o resto da experiéncia presente, tio desligado da esca- tologia da ruina como da salvagao (G. Agamben, Le temps qui "reste, 2000, p. 95). Pensdmos sempre que ler era ligar: segmento de frase a seg- mento de frase perseguiamos um sentido que se anichava entre as ‘ palavras, prosddica, sinctactica, semanticamente. Ler é perd , emaranhar-se. Ler nao é ver. Os livros sao silenciosos, s6 a escrit | fala, se ouve. Ler é emaranhar-se pelos bracos do rio adentro. | QO proprio da obra de arte é promover_a metamorfose percep- \ tiva e pensante através do gesto,da sua criacto. Ea operacao do Poiein, isto é do fazer poético que permite compreender como E que o homem, através dos seus gestos e dos seus actos, pode transformar a sua condi¢aéo banal quotidiana. Quer ‘dizer que a Jarteyem vez de se reduzir a uma operacao representativa fundada na observacio minuciosa de uma realidade, pera uma mutacad ‘We set} aparecendo cada obra como um campo operatério dessa metamorfose, em que cada individualidade apenas se realiza na Tevogacdo de qualquer identidade, remetendo para a unidade trans-individual do Mundo. Uma narrativa era, de certo modo, uma recensio, uma maquina temporal e espacial. Ali comecou a histéria, por ali se espraiou, além desembocou. Fim feliz, narrativa de transforma- 50 zero (narrativa infeliz). Mas eis que este livro, esta forma de éscrita despista toda a ligacao narrativa. Mal avistamos um relevo 104 ) de sentido, logo 0 chao nos falta, novos relevos, protuberancias, acidentes de leitura se levantam. O principio da metamorfizacao torna impossivel o principio da linearidade discursiva. Nao se Pesca, pois, ao leitor que resuma a historia que nao ha. De mutagées do humano, da ilusio de um s6 homem — «homem nao hd» — fala A Restante Vida. Sartre defendia que a concepcao duma «natureza humana» fosse banida porque impedia de tomar em conta a capacidade de ultrapassagem e de invenc&o de novos Possiveis no homem (Lexistentialisme est un humanisme, 1945). Heidegger recusa até a ideia de humanismo — © homem é de tal modo diferente de qualquer ente e de qualquer estabilizacdo essencialista (ou antropoldégica) que nem homem Ihe devemos chamar, mas Dasein (Carta sobre o humanismo, ed. port., 1973). Filosofias, limites do pensamento, aporias, E Séfocles quem mais profundamente abala 0 humanismo de Teréncio: Homo sum, humanum nihil a me alienum puto. Nao sera o homem 0 unico animal louco, o animal metastavel por excelén- cia, inqualificavel? Pode ajudar-se o homem a conjurar os seus dem6nios terriveis (em particular essa agressividade que Freud descobre por baixo do verniz da civ G40)? Assistimos em A Restante Vida a um trabalho de desapossamento muito diferente daquele que a ciéncia ea técnica ja fizeram reduzindo o humano ao homo technicus. Maria Gabriela Llansol pensa 0 impensavel no homem a partir de um outro horizonte: a literatura, Aqui o desa- Possamento — a figura do «pobre» é a figura do mutante — éde outra ordem: espiritual, alquimica. «O homem sera» aquilo em que se tornar. Herddmos restos, figuras de pobres, perdemos uma batalha. Ficou-nos 0: yazio, a virtualidade, 0 real'a nomear. No fundo, este texto desdiz.o que ficou escrito como evidéncia cega: que o Social é tudo, que cada deus é clonado numa infinidade de seme- thantes, como no epicurismo. Este livro lembra o que ingenua- mente esquecemos: que o homem é um monstro, Que o homem 105 destrutivel que pode ser infinitamente destruido (Maurice €é 0 indestr Blanchot). Donde a figura do resto. Se hd uma moral do texto € esta: «sejamos singulares» (p, 62) sonho da libertacao. O prazer catastatico compreende entem®* a des fumes gradativos» (p. 88). Este prazer sé variacdes, gradagoes, «per 8 ' 5 ‘ na contemplagao desejante pode atingir-se; sO ela mantem a tensao sobre o limite virtual da danga do eu que é aqui vertiginosa. Esta éuma escrita singular, intensa, como sao «intensas» as figuras que a atravessam. Como ¢ intensa a memoria subversiva da morte de Miintzer, como é¢ intenso o «Ver», como é intenso 0 sermao 52 de Eckhart sobre a pobreza. «Tornei-me, pois, o pobre» (p. 77). Que pobre é este de que fala A Restante Vida? O pobre nao é uma categoria social. «O pobre nao é 0 proletarion, lé-se na pagina 97. Sera entao o resto, o arqué- tipo, o pré-homem, o sobrevivente, «uma coisa de nada» que anda pelos caminhos ou que se transfigura em Hadewijch? Recorramos 4 tese langada no sermao 52 por Eckhart e que data pelo menos de 1318 («o homem pobre é aquele que no sabe nada, que nada quere que nada tem»). O homem pobre é o homem humilde e o homem nobre do Livro da consolagdo divina, aquele que conhece Deus na douta ignorancia, nao sabendo nada de nada, e nao aquele que conhece Deus. £ ao falar da humildade que o nosso Lebemeister Se expde a censura e 4 condenagao. A suspeita parece legitima. Eckhart escreve que o homem humilde e Deus sio a mesma coisa — um 86 ser e uma sé vida — o homem humilde nada tem a pedir as poe ahumilaae : o lugar exclusivo da luta entre formas de vids : a joe i simples: talase de virtudes, de a magnanimidade diy oa = sens Aquia Brandeza de alma, do ctistéo e a i melts do Pensador, alia humildade Brabant Tesume o Ponto de a aie pe formula ce Siger de ista aristotélico: a humildade é a vit- tude dos med; dade a virtude dos 8 ned imi Medici. 1Ocres, a magnanimi avi ie ‘cis de 4 Restante Vida? 106 aa A pobreza, a humildade e a nobreza resumem-se todas no desprendimento (Abegeschiedenheit). A pobreza e a humildade eckhartianas nada tém a ver com as virtudes cristas de que falam os (edlogos conservadores do fim do século XIII, nem a nobreza exaltada por ele se identifica com a magnimidade de Siger como a virtude dos grandes. A grandeza da alma de que ele fala é a do vazio, € esse «aumento da alma» através da aniquilacdo que eleva o homem acima de todo o criado. Grandeza e pequenez nao se opoem. A humildade é grandeza (projeccao geométrica da esfera) 0 baixo e 0 alto coincidem, O homem pobre, humilde e nobre sio um s6 e mesmo homem: o homem desapropriado, «sem qua- lidades», o homem «sem isto nem aquilo», o homem desapegado. O «homem pobre» manifesta uma identidade da nobreza e da pobreza. Essa identidade define 0 status adeptionis cristio — 0 adevir Deus» — como uma teogénese, um «nascimento de Deus na alma». Texto ambicioso pelo mito final que convoca: «extenséo a todo 0 corpo zoologicamente humano da dignidade teol6gica das almas» (p. 99). No homem e na mulher ha mais do que mascu- lino e feminino, macho e fémea: ha uma diferenga na igualdade da natureza e sé a partir dai se pode falar de unidade. Eessa diferenga que permite ser «uma sé carne». Trata-se de se tornar um s6 corpo sem negar a diferenga, mas enquanto uniao de dois corpos car- nais na unidade do Espirito, num corpo espiritual. Em semiotica, 0 sinequismo define as relagdes da alma e do corpo a partir de relages de interacgdo homogéneas e em Peirce esta associado ao monismo ea uma idade do mundo: a idade anancistica, baseada no reconhecimento das relagdes monistas de necessidade. A vida, como a literatura, nao € um estado mas um acto. A vida feliz, escrevia Eckhart, consiste em entrar no seu proprio fundo e, chegado 1d, em «agir» «sem porqué», «nem por Deus, nem para a sua prépria honra, nem pelo que quer que seja, mas unicamente em consideragao daquilo que é em si o seu proprio 107 ser ea sua propria vida» (Sermao 6). Esta é uma literatura porosa, permeavel ao reconhecimento do outro. Também aqui o poder do vaziv € 0 poder exclusivo da desapropriacao,do nomeado potencia as apropriagdes mais surpreendentes. A unica resposta a vertigem € 0 ritmo. O ritmo — 9 ritmo poético, o batimento da lingua — é uma figura. A imagem — a imagem poetica — € uma figura. A lingua do poeta configura-se, 9 poema é uma configuracao. O «como» da comparacao é também um cum — um com —, logo uma reciprocidade, uma mutuali- dade. Para 0 artista, o mundo é 0 lugar de des: lvimento das figuras. E a figuratividade do mundo que o poema diz, = O secular nao é s6 0 profano, eo sagrado nao €é 0 equivalente de «sobrenatural», eterno ou «supra-humano». A secularidade sayrada foi a atitude de muitos poetas e sabios que experimen- tarant a realidade Ultima das coisas mundanas sem as reduzir ao empiricamente dado. A secularidade sagrada reage contra a dicotomia das cosmovisées dualistas: 0 tempo agora € a eterni- dade depois. Tenta superar 0 dualismo sem cair no monismo; distingue, mas nao separa. As formulas de Samsara | nirvana | atman, theios | theopoiesis, uniao hipostatica, encarnagéo, tudo} Aponta numa mesma dir€ccdoj os valores seculares sdo sagrados. Pannikar propée a palavra tempiternidade para exprimir esta intuigao (R. Panikkar, El mundanal silencio, 1999). De nascimento fala A Restante Vida. Este nascimento é a verdadeira contemplagio filos6fica, a verdadeira realizagao do Programa ético do aristotelismo, assim formulado na Etica a Nicémaco X, 7: «Viver segundo a parte mais nobre que se encon- tra no homem», a inteligéncia, ou melhor: 0 intelecto. Esta con- templacdo é também a verdadeira felicidade nesta vida. E a be: tude do viajante imovel, Entremos havespessura d. bastio nem codigos, f sue ja Viagem que este livro propde: sem ema violéncia da interpretagdo com que OS n. Sem o fantasma das hierarquias por que os Meétodos nos armaran 108 possidentes da «coisa literaria» distribuem os textos em mai oo iores e menores. «Desmunir-se é a regra do abrir» (p.97).0 livre-espirito, go reduzir toda a regra, toda a «orientacdo» 4 bration ds ia ento, reclama os direitos Nai ay lamente de um mundo sem sujeitos, desenha iedade i 08, de os contornos duma sociedade insubmissa. Poderia haver para A ‘ografia de Restante Vida outra geografia que nao fosse uma Ge Rebeldes? e_uma Ger José Augusto Mourao (UNL-DCC)* ence eeneaSeaU eee 2 José Augusto Mourio (1947-2011) foi professor de Lisboa, Dominicano e membro do GFLL (Grupo de ride Semidtica na Universidade Nowa studes Hansolianos) 109

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