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Lisboaleipzig — O encontro inesperado do diverso - O ensaio de misica Maria Gabriela Llansol Publicado em Portugal por Assirio & Alvim www. assirio. pe © Espago Llansol © Porto Editora, 2014 Na capa: xilogravura de Ilda David’, 2014 1.4 edigao na Assirio & Alvim: Maio de 2014 Assirio & Alvim é uma chancela da Porto Editora, Lda. Reservados todos os direitos. Esta publicagio nao pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer proceso electrénico, mecinico, fotocépia, gravacio ou outros, sem prévia autorizagio escrita da Editora. Distribuig3o Porte Editora, Lda, Rua da Restauraco, 365, 4099-025 Porto | Portugal www portoeditora pt Exec gia Bloc Grafica Una nasi a DEP LEGAL srss45/4 198N 978-972-87.1772-5 Stee hee la 08 eon on autre, O extremo ocidental do Brabante | —____—_ talvez 0 meu texto venha um dia a desaparecer. Nao deixard de ser verdade que nasceu aqui. Entre vés, na minha lingua confrontada is vossas paisagens, Que podeis compreender e identificar sem, no entanto, desvendar a lingua que foi a sua raiz. Por outro lado, os Portugueses, que nem as véem, nem as identificam, nem sao embebidos por elas, podem ouvir a lingua que as fala. Esta sobreimpressdo, & primeira vista discordante ¢ contradité- ria, no surgiu por minha livre vontade. Impés-se-me, embara- gante e complexa, e exigiu de mim mesma uma mutag4o para a qual nada, nem ninguém, me tinha preparado. Eis 0 que aconteceu realmente: Sei hoje que vejo, com nitidez, que outros vieram ter comigo: qui viva, nestas paragens onde nao ha raizes». MI—_____ de tudo 0 que me aconteceu que eu queria poder falar-vos hoje. E a primeira vez que tenho a oportunidade de fazé- vlo, desde a minha partida para a Bélgica, no final, j4 tao longin- quo, do ano de 1965. E, no que eu vos venha a dizer, deveis ler, sobretudo, a expres- séo do meu agradecimento ao vosso pais que, jé Id vao trinta anos, Soube acolher-me com a maior generosidade. Quando soube que havia de vir aqui, tentei evocar, e trazer 3 minha meméria, o meu estado de espirito de entao. Nao tinha mais 133 nessa Gobreimpressao.que eu habito o mundo, e oY do que trinta anos; acabara de me me ¢ vinha, Sozinha, tep © Augusto que, umas semanas antes, se recusara a Patticipar 0 colonial, e desertado; deixava um livro Publicado ie nm embora jd concluido, ainda inédito. oe Ut Como poderei falar-vos de tudo isto? E o tempo passadg Vim com muito temor e, também, com uma enorme g liberdade, de novo, de atingit o amago do ser. Ninguém consepy ir ter uma pdlida imagem da densidade do ar que, 14 em baixo, s respirava, no exiguo cubjiculo fechado das nossas vidas. Eu Procy. rava evadir-me a escrever. A maior parte das situacGes que eu apon. tava eram-me totalmente desconhecidas. Tinha-as «vivido» no ¢- nema, € nos romances americanos. O meu encontro coma Bélgica deu-se ao crepuisculo, num fim de tarde frio de Dezembro; 0 ctu, cinzento; os l6dens, verdes; os transeuntes, de cabelo ruivo, as ruas desdobrando-se entre tijolos; e, comigo, a certeza de que tudo po- deria, enfim, levantar voo. — _ guerra ede de II] — Desses primeiros anos na Bélgica, guardo uma imagem di fusa, e ligeiramente irreal; as planuras do Brabante ¢ 0 vale do Mosa; as fachadas gOticas da Flandres; a vida de estudante, em Le vaina; 0 direito efectivo & informacio. As particularidades, mit plas e incontaveis, de um Pais conservador, percorrido por pee livres trabalhadoras que, embora achando muito original aim Nagao das gentes vindas de outras terras, nao podiam deixat r ry la com os indicios de uma espécie de bom sense iY ado. Nao queriam acred; vid seo No gue iar no que viam. Nessa ae a tansponivel a Benerosidade, mas também uma ” mundo? Reconhceg nt 2 dificuldade de partir para 0 vas "yy “onheso que sempre vivi nesse pais sem tentar oi nele, € torng ™né-lo meu; mas como poderia ser diferente, s y 134 me afastava daquele em que tinha nascido e, Pouco a pouco, nao possuia do passado senao_uma lingua de que nada, nem ninguém, conseguiriam separar-me. E, hoje, sei que essa lingua se tinha tornado © meu tinico ponto | firme — a minha ancora: o meu real; 0 né de certeza do_meu Se com_9 mundo. © meu 6rgio de convic¢ao, se assim vos aprouver chamar-lhe. IV — Quando me concentro para ver em que momento o meu jogo de espelhos se estilhacou — jogo a que se resume a vida da maioria, a maior parte do tempo —, acorrem, de stibito, 4 minha consciéncia duas imagens vibrantes. Estava eu de visita ao béguinage de Bruges quando, de stibito, tive a sensagao | estranha de que varios niveis de realidade ali apro- ‘oexistindo | sem nenhuma intervengao do tempo. Havia as mulheres beguinas, ao lado dos portugueses des- cobridores de novos mundos, tornados oportunistas e comercian- tes de especiarias; havia rebeldes ocultos, mas j4 no rasto da liber- dade de consciéncia; havia misticos com um pensamento; havia o mundo anénimo que, sem paranca, nao deixava de fluir. Estas pa- ragens atraiam o tenro; 0 Novo; O audacioso; 0 potente. Como uma | morada do que est4 de passagem. Geograficamente, era a encruzi- } Ihada do espiritual, num sitio ainda vazio, em que eu perguntava a mim propria em portugués, em portugués € nao em qualquer outra lingua O que se passou. aqui? C oO que’ é que aqui, no que se eee mua 4.4 passar? (qu’est-ce que s'est passé ici — ques que s'est écoulé continue de s’écouler?). eu trabalhava numa Escola que, com alguns na Rua de Namur. O espirito ou, conti- | Por essa época, amigos, haviamos criado em Lovaina, 135 s t-ce quiici dans ce ) 68 reinava ainda. E, para nos todos, era Muito in > titulo que a ancas de Maic a mesmo afectivo das cri | | mor nem embarago; : sa i enino ser domini se 1CANO, que falaya | | | | | aquisic4o de conhecimentos a ser capaz de tomar a palavra; os seus sentimentos. tbl, tant, XPtimig, queio sem fel Foi ai que encontre m francés de traposs submetido A terrivel contradigao de — ul vira Escola, chorando sempre com medo do Outro, e transpirand, uma angistia que nao tinha cabimento naquele lugar. Decidj . devia ajudé-la a libertar-se, pois instintivamente adquirira a certera de que acabaria por socorré-l —, porque o logos de ser s6 também era a minha terra conhecida, a — mesmo contra toda a esperanca V — Mas, apesar do afecto que nos ligava, ¢ da minha determin. | ao de curd-la, o choro nao estancava nunca; assim passava os diase, | no seu isolamento, piorava sempre, acabando a equipa por reco. | nhecer que tinha falhado, e que o melhor seria ela sair da Escola | Pedi, entdo, vinte e quatro horas para uma Ultima tentativa. Tinhaa plena consciéncia de encontrar-me face a face com uma crianga, | numa lingua que nao era a minha, nem era a dela, tentando deses peradamente abrir caminho para a palavra. Caminho que e” contrémos finalmente, no dia seguinte, de modo fulminante, sen" das no chao do soto, a brincar com uma gasta boneca de traps enfronhadas no jogo do eu/tu/ela, que repetfamos, e repetiamos até que os pronomes, 7 i oo se destacaram da sua massa = | rava: — Anda ae €acabou por dizer 0 que mais temor | Chamava-se Isabeli — O texto a que me refi Femandet, pro das com ro esté na origem de O Livre nidades, » Onde 0 te; O ; as © texto da sobreimpressdo comeca verdadeiramen 136 VI —O que, tanto num caso como. noutro, eu Proc ‘ava sem 0 saber, era o\logos a que mais tarde chamei cena fulgor— 0 logos lo | — da relacio; a fonte oculta da vibragio e da ale- gria, em que uma cena — uma morada de imagens — dobrando o espaco.e.reunindo diversos tempos, procura manifestar-se, Ea tnica realidade a que acedi, que tive de aprender, foi a de estar sempre atenta, de nao deixar escapar nenhuma cena diante do principio da nao contradicio, de olhar 0 que est4 advindo, a pro- por-se ao futuro. 7 Aprendi que ofteal fé um_né que se desata no ponto rigoroso em que uma cena fulgor se enrola, ¢ se levanta. — VII — mas, naquele tempo, eu ignorava-o. Princi- piou com o sinal de que eu estava a afastar-me lenta e progressiva- mente das pessoas, e a penetrar, sem caminho de Tegresso possivel, no amago da paisagem. O texto tornava-se outro; um percurso em que a vossa paisagem; pa aparéncia com a monotonia de uma mi- tiade de tons verdes, debaixo de um céu cinzento ou coberto de neve, entregue ao olhar distraido dos homens, me apareceu como um ponto de vista nao-humano sobre o deserto. O deserto do nome do homem. Sobre esse caminho, indo de cena em cena, deparou-se-me o que, mais tarde, chamei figuras \e que, num primeiro contacto, nada mais sio do que personagens histéricas ou miticas; plantas ou animais; um dispositivo de companheiros que tomam parte na Mesma problematica. TT VII ~ Esta genealogia de figuras |que © texto-aqui convocava; | UW: entao, Md em baixo; ou, entao, Té-em-baixo-sobre-aqui, 137 blematica, quer o s ma mesma PFO 2 CU Nome. indubievelment ou Hadewijch, ou Isab6l, ou Ana de Pejal* da Cruz, Copérnico, Nietzsche, Hé, de in, Mianezen oF ao d: ann ges, Joao e do Urso, Prunus Trilob: Hama Kafka Bach, Coraga0 lo Urso, ‘oba, Besante, 9, Pessoa , ato. anes o que possue™» J da Gobreimpressaoy'a sua arte de ' lindo a deslizar umas sobre.as OUT ca alcancaria submeter a0 s io. cé foi sempre nas encruzilhadas da soberania, eve em jogo 0 destino da Europa, que eles acima de tudo, em comum, € a téenj TO Mm undo sobreimpress paisagens afastadas quey y unpelind | poder nw E, no entanto, sobre os nés em que est se colocaram, e nos apareceram. Mas porqué? beldes a querer. dobrar o tempo histérico Porque todos sao re dos homens, com 0 desejo i de que eles se encaminhem par uma nova terra, bafejada por um céu novo. Na realidade, todos foram, abertamente, ou sem uma consciéncia clara, misticos que nao o puderam ser. Ja tive a oportunidade de expor, numa outra ocasiao, esse continente em que a mistica se desenvolveu pouco a pouc: mas sem nunca perder o seu fio de intensidade, a os omens mostraram a sua pior e melhor face sem saberem On, mente, que forcas estavam a desencadear. =< com em submetidos mais cra er Inconesavelmen Fegressaram Ou herdis, ov ome Eras egies Robt vagus desmnunides Vi chegar, num flui = Bente que eu, um dia, suing luir continuo, ao regaco humilde do O¢&™” que foi Kp, ra mim, nao h4 -.: lugar algum ine ha mistério que igualela poténcia do e%™ is ma sido dito que a finalidade da minha vit 138 escrevé-lo. E que coisa estranha era essa, de uma tal linhagem? Enigma sem resposta. Por que razio eu? Por Por que vim aqui, e numa lingua estranha 4 vossa, e fora del sos olhos? E em que é que 0 texto, ao convoca- Jos, os transfor : a Fé-los figu ras, NO Contexto do que eu chamei 2 eterno mado jtuo. Por outras palavras, todos S_esses s petsonagens, a aaa mis = ‘4 a maior parte sempre tendo ignorado o que era o afecto, o amor, a sintaxe do amante, foram dos pa , acto de recomeco, no contexto contemplativo da conversagio amorosa. Por outras palavras, o humano nao podera nunca definir-se pelo pela vontade, | oa mas pelo face a face ao Amante, de que 0 corpo é a manifestacio presente, €0 texto a auséncia que se manifesta, que me levava a fazer parte que nao um outro? X — Tudo se revelou_no i lugar, da géografia dessa linhagem, ¢ deparei com 0 denominado estético, o entresser entre o sensivel e o racional, alimaginagao criadora\da mistica arabe, que é, talvez, de todas as manifestagées de sobreimpressdo, a mais porten- tosa. Sé a partir de tais onfins olhei para trds, para os reler e para Os escrever a eles, figuras definitivamente incluidas andava procura do no drama europeu. XI — Referi-me, algures, 4 emblematica desse drama. Somos hoje os herdeiros de dois movimentos que poderiam ter n mando cada um a sua via, vieram @ passe, Provisdrio, assim espero. sido sobreimpressos mas que, caminhar para uma espécie de ir 139 N esta a ser celebrado agora, nestes dias da Ey, do descobrimento de novos mundos éa Um deles Amarca indelével de Portugal. Do outro, a a em inte © estron, mutagao de sociedade, a i doso fracasso. Nenhuma ¢ Partir do Centro europeu — seu lugar simbélico —, advém como nova ordem Pata pal 'Sioniy acontecimentos do mundo de hoje que da estio sempre a lembrar a importancia, ¢ os humanos. Sempre foi evidente para mim que, irrompendo deste moj, mento, despontaria a exigéncia da liberdade de consciéncia de cada 2 vivo em face de Deus, do Estado, ¢ da sua rede de miltiplos poderes, na tentativa indefinida — sem fim, ¢ sem limites — de alcancar pan cada habitante da terra o direito inaliendvel 4 autonomia do seu sop de vida, ¢ a realizagao da sua natureza. O direito, que nao pode ser contestado, ao logos de que jé falei, A cena filgor de cada ser: paisagem, ou relagao ao direito, afirmava eu, ao desdobramento da refulgéncia que exala a sua manifestaco, tao surpreendente e inesperada. E nao é menos verdadeiro que, com o impulso das Descober- tas, principiava a nascer, a meus olhos, uma outra busca, que f° irromper do dom poético, tao intimo na sua natureza que permaneceu sempre, € até 359% impenetravelmente misterioso. XII — Por varios motivos, tos, . z i mer" a sobreimpressao destes dois mov 7 i bs "Ssa0 | jo che vo nuo Ser em rarissimas ocasies da histéria da Europa 10° 80U nunca a realizar-se, virda ser a liberdade de : . um oF Mal conseguimos imaginar 0 que cons 6ticO- consciéncia trabalhada pelo dom P' a s dominadas pe la espessa sombr ‘evoco aqui. XIII — Os afectos, creio, sao | i ney aims $20 lugares muito mais humildes do que o poder; sao mais humildes — nao tenho am —- aochioen aes amenor —, como a is duvida humildes sao 0 meu Pais, € 0 vosso, no confronto com as poténcias que nos dominam. Ima vez aqui é 6 i U a qui chegada, € nesse nd que eu quereria acabar; sem- pre achei quase um milagre significativo que 0 texto envolva dois paises, que ele v4 estendendo, sobre um e sobre outro, a sobreim- pressao desses dois movimentos. Portugal é a margem de embarque da ponta extrema. A Bélgica é a pequena passagem estreita entre vizinhos que es- preitam o poder. Tanto um como 0 outro ~~ so, ndo apenas a insignia do dom poético que a todos foi con- cedido, mas 0 cais de embarque da ponta extrema da Europa para a consciéncia que se libertou; ¢ também para a liberdade de consciéncia que deve, em cada um de nés, estabelecer a sua navega- nos torna ajuizados e tristes) ea sede s vultos caricatos da criag4o). acta é insignia. a obrigacao de se cdo entre a raz4o invasora (que insacidvel das paixGes (que fazem de no: Nao estou a enganar-me — a palavra ex: Sobre nenhum dos nossos concidadaos pesa lhe submeter, nem mesmo de a olhar. No entanto é desse texto.que eu.quero ser a te : Nao posso, portanto, ficar insensivel a que © encontro « : entre os dois paises, se realiza no momento em aueal " a , uma vez, quer saber de que € feita, ¢ s¢ interroga sol og das suas fronteiras. Pr6pria aos outros, nos extremos limites das suas stemunha. ie agora, mais le si 141 a como, em Bruges, 0 texto o tinha bres fa todos esta a acontecer ° que sucedeu aquela eae Jar, que temia as primeiras palavras que lh Tui rdadeiro pavor do desconhecido j le mo Outro. ns Tudo recomes: hy SAisse, que nao sabia da boca, que tinha ve! tio desejado encontro CO! CTO ng tendo nunca participado na vida cultural bel j 82 dy. nos que aqui passei, jamais me viria ao espitito dirigir a palavra. Sue, 6s mesmos?», perguNto eu aos portuguese, m a v6s, agora, que vos voltais para o fy. xIv — Nao rante os vinte a um dia, vos viria a «Que fizemos de ni Pergunto-vos també turo, nos mesmos termos: «Que vamos fazer de nés mesmos»? Porque eu sinto que também pertengo as vossas paisagens, a este lugar, aqui. ‘ Mesmo se for um aqui poderosamente sobreimpresso. Mais uma vez obrigada. Brucxelas, 7 de le Outubro de 1991, na Xe Bienal das Artes da Calta dedicada a Portugal (Europdlia) 142

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