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|O Brincar & a Realidade D.W.WINNICOTT C) Titulo original: Playing and Reality. Traduzido da primeira edi¢fo inglesa publicada em 1971 por Tavistock Publications Ltd,, 11 New Fetter Lane, London EC 4. Copirraite @) 1971 de D. W, Winnicot. Editoragao Coordenador; PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA Tradugao: JOSE OCTAVIO DE AGUIAR ABREU ¢ VANEDE NOBRE Revisdo: FRANCISCO DE ASSIS PEREIRA. Capa: LEON ALGAMIS 1975 Direitos para_a lingua portuguesa adquiridos por IMAGO EDITORA LTDA., Av. N. Sra, de Copacabana 330, 109 andar, tel: 255-2715, Rio de Janeiro, que se reserva a propriedade desta tradugio. Impress no Brasil Printed in Brazil D.W.WINNICOTT OBrincar & a Realidade Colecdo Psicologia Psicanalitica Directo de JAYME SALOMAO Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanélise do Rio de Janeiro. Membro da Associagio Psiquidtrica do Rio de Janeiro, Membro da Sociedade de Psicoterapia Analitica de Grupo do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro IMAGO EDITORA LTDA. wv © BRINCAR A Atividade Criativa ¢ @ Busca do Eu (Self) £ no brincar, ¢ talvez. apenas no brincar, que a crianga ou 6 adulto fruem sua liberdade de criagéo. Essa importante carac~ teristica do brincar sera examinada aqui como desenvolvimento do conceito de fendmenos transicionais ¢ leva em conta também uum paradoxo que precisa ser accito, tolerado ¢ nio solucionado — € € 0 que constitui a parte mais dificil da teoria do objeto transicional. ‘Um outro pormenor da teoria refere-se a localizagio do brinear, tema que desenvolvi nos Capitulos IH, VIE e VIII. A importineia desse conceito reside em que, enquanto a realidade psiquica interna possui uma espécie de localizagdo na mente, no vente, na cabeca ou em qualquer outro lugar dentro dos limites da personalidade do individuo, e enquanto a chamada realidade externa esti localizada fora desses limites, 0 brincar ¢ & experiéneia cultural podem receber uma localizacao caso uti- izemos 0 conceito do espaco potencial existente entre a mie © © beba. E pertinente reconhecer no desenvolvimento dos diversos individuos que a terceira frea de espaco potencial entre mie © bebé é extremamente valiosa, segundo a experiéneia da crianca ‘ou adulto que esteja sendo considerado, Refiro-me a essas ideias novamente no Capitulo V, onde chamo a atengao para o fato de que nao se pode fazer uma descrigao do desenvolvimento emo- ional do individuo inteiramente em termos do individuo, mas considerando que em certas reas — e essa € uma delas, talvez a principal — 0 comportamento do ambiente faz parte do pr prio desenvolvimento pessoal do individuo e, portanto, tem de ser incluido, Como psicanalista, acredito que essas influenciam num trabalho, sem que modifiquem minha adesio aos importan- tes aspectos da psicanilise tal como a transmitimos a nossos estudantes € que representam um fator comum no ensinamento a psicanalise tal como a consideramos enquanto oriunda da obra de Freud. 9 Nio é minha intengao deliberada tracar uma comparagio centre a psicoterapia ea psicandlise, ou empenhar-me em qual- quer tentativa de definir esses dois processos de modo que apre- sentem uma linha clara de demarcacio entre si, Parece-me va- lido 0 principio geral de que a psicoterapia € efetuada na super- posicdo de duas dreas Widicas, a do paciente ¢ a do terapeuta, Se o terapeuta nao pode brincar, entio ele nfo se adequa ao trabalho. Se é 0 paciente que nao pode, entéo algo precisa ser feito para ajudé-lo a tomnar-se capaz de brincar, apds 0 que a Psicoterapia pode comecar. O brincar é essencial porque nele © paciente manifesta sua criatividade, A BUSCA DO EU (SELF) Neste capitulo, todo o meu interesse est centrado na busca do eu (self), Insisto em que certas condigbes se fazem necessi rias, se que se quer aleangar sucesso nessa busca, Essas condi- {G8es esto. associadas dquilo que & geralmente chamado de eria- lividade. E no brincar, e somente no brincar, que 0 individuo, erianca ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: © € somente sendo criativo que o individuo descobre 0 eu (self). Ligado a isso, temos o fato de que somente no'brincar € possivel a comunicagio, exceto a comunicacio direta, que per~ tence a psicopatologia ou a um extremo de imaturidade. Constitui experiéncia freqiiente no trabalho clinico @ con- tacto com pessoas que desejam ajuda, que buscam o eu (self) € que estio tentando encontrar-se nos produtos de suas experién- cias criativas, Mas, para auxiliar esses pacientes, temos de saber sobre sua propria criatividade, E como olhar um bebé nos seus estédios primitivos © passar a olhar a erianga que tenta cons- tuir algo com as fezes ou qualquer outra substincia da mesma contextura, Embora esse tipo de criatividade seja vilido e bem compreendido, torna-se necessirio um estudo em separado da criatividade como aspecto da vida e do viver total. Estou suge- Findo que a busca do eu (self) em termos do que pode ser feito com produtos exeremenciais constitui uma busea fadada a ser interminavel e essencialmente mal sucedida. _Na busca do eu (self), a pessoa interessada pode ter pro- ‘duzido algo vatioso em termos de arte, mas um artista bem suce- 80 dido pode ser universalmente aclamado e, no entanto, ter fra- cassado na tentativa de encontrar 0 eu (self) que esta procuran- do. O eu (self) realmente nfo pode set encontrado no que é construido com produtos do corpo ou da mente, por valiosas {ue essas construgSes possam ser em termos de beleza, pericia € impacto, Se o artista através de qualquer forma de expressiio testi buscando 0 eu (self), entio pode-se dizer que, com toda probabilidade, jé existe um certo fracasso para esse artista no ‘campo do viver geral criativo. A criagdo acabada nunca remedia a falta subjacente do sentimento do eu,(self). ‘Antes de levar adiante essa idéia, tenho de expor um segun- do tema, relacionado com o primeiro, mas que necessita de {ratamento isolado: aquele que procura nossa ajuda pode esperar sentir-se curado com nossas explicagies. Poderia mesmo dizer: *Percebo 0 que quer dizer; eu sou eu mesmo quando me sinto criativo e quando executo um gesto criativo; a busca esti termi nada. Na pritica, isso ndo acontece. Sabemos que nesse tipo de trabalho, mesmo a explicacio correta & ineficaz, A pessoa a quem estamos tentando ajudar necessita de. uma nova expe- iéncia, num ambiente especializado. A experiéncia é a de um estado nio-intencional, uma espécie de tiquetaquear, digamos ‘assim, da personalidade no integrada, Referi-me a isso como amorfia na deserigfo de um caso (Capitulo 11). E necessdirio levar em conta a fidedignidade ou a auséncia dela no ambiente em que o individuo esté operando. Somos le- vados de encontro a uma necessidade de diferenciagio entre atividade intencional e a alternativa de ser néo-intencional. Isso se relaciona a formulagdo de Balint (1968) da regressio benig- na e maligna (ver também Khan, 1969). Estou tentando referir-me aos elementos essenciais que tor nam possivel o relaxamento, Em termos de associagio livre, isso significa que se deve permitir ao paciente no divi, ou 20 paciente crianga entre os brinquedos no chao, que comuniquem uma sucessio de idéias, pensamentos, impulsos, sensagoes. sem ‘conexio aparente, exceto do ponto de vista neurolégico ot fisio~ T6gico, ou talvez ulém da detecgio, Isso equivale a dizer: & ali, onde ha intengao, ou onde hé ansiedade, ou onde hi falta de confianca baseada na necessidade de defesa que 0 analista po- era reconhecer ¢ apontar a conexéo (ou diversas conexdes) al © livre fente entre os virios componentes do material da associagao No relaxamento préprio & confianca e & accitagao da fide- dignidade profissional do ambiente terapéutico (seja ele an: tico, psicoterapéutico, de assisténcia social, ete.) hi lugar para a idéia de seqiiéncias de pensamento aparentemente desconexas, 48 quais o analista faré bem em accitar como tais, sem presumit a existéncia de um fio significante (cf, Milner, 1957, especial- mente 0 apéndice, pags. 148-163), © contraste entre essas duas condigées relacionadas talvez possa ser ilustrado ao se considerar um paciente capaz de re- pousar apis o trabalho, mas incapac de atingir o estado de repouso a partir do qual um alcance criativo pode acontecer. Segundo essa teoria, a associagao livre que revela um tema coe- Fente ja esti afetada pela ansiedade, e a coestio das idéias é uma organizagio defensiva. Talvez seja necessario aceitar que alguns acientes precisam as vezes que o terapeuta possa abservar 0 absurdo préprio ao estado mental do individuo em repouso, sem a necessidade, mesmo para o paciente, de comunicar esse absur- do, 0 que equivale a dizer, sem que 0 paciente tenha necessidade de organizar 0 absurd, O absurdo organizado jé constitui uma defesa, tal como 0 caos organizado é uma negagio do caos. O lerapeuta que nao consegue receber essa comunicagio, empe- nha-se numa tentativa vi de descobrir alguma organizagio no absurdo, em consegiiéncia de que o paciente abandona a area do absurdo, devido a desesperanea de comunicé-lo, Uma opor- tunidade de repouso foi perdida, devido A necessidade que 0 terapeuta teve de encontrar sentido onde este nio existe. O pa- ciente ndo pode repousar, devido a um fracasso das provisoes ambientais, que desfez 0 sentimento de confianga. © terapeuta, sem saber, abandonou o papel profissional, e o fez, desviando-se para pior, a fim de ser um analista arguto © encontrar ordem no ca0s. E possivel que esses temas se reflitam em dois tipos de so- no, as vezes denominados de REM e NREM (rapid exe move- ments [movimentos rapidos dos olhos] © no rapid eve mom vements [movimentos nao ripidos dos olhos]).. ‘Ao desenvolver q que tenho a dizer, teri seqiléncia: yecessidade da 82 (a) telaxamento em condigdes de confianga baseada na experiéncia; (b) atividade criativa, fisica e mental, manifestada na brincadeira; (c) a somagio dessas expe sentimento do eu (self). as formando a base do [A somagio ou reverberagio depende de que o indi possa ter refletida de volta a comunicagdo (indireta) feita ao erapeuta (ou amigo) em quem confia, Nessas condigdes alta~ mente especializadas, o individuo pode reunir-se ¢ existir como lunidade, no como defesa contra a ansiedade, mas como expres- ‘si0 do EU SOU, eu estou vivo, eu sou eu mesmo (Winnicott, 1962). Nesse posicionamento tudo € cri ASO ILUSTRATIVO Desejo utilizar material extrafdo do arquivo de uma pacien- te em tratamento comigo, cujas sessbes sto realizadas uma vez por semana, Ela jé fizera um longo tratamento numa base de finco sessdes por semana, durante scis anos, antes de vit pro- curar-me, mas descobriu que precisava de uma sessio de dura- ‘gio indefinida, 0 que eu s6 podia conseguir-Ihe uma vez. por Semana, Logo ficou combinada uma sessfio de trés horas, hori- rio reduzido posteriormente para duas horas. i ‘Se eu puder fornecer uma deserigao correta de uma sessio, 6 leitor observaré que durante longos periodos retenho interpre- tacdes e permaneco fregiientemente em siléncio, Bssa disciplina estrita tem dado bons resultados sempre. As anotagdes que tomei me foram de grande auxilio num caso com que entro em contac- {o apenas uma vez por semana; descobri que, nesse caso, tomar nolas nao prejudica o trabalho, Também com freqiéncia alivio ‘2 mente, anotando interpretagdes que, na realidade, retenho para mim, Minha recompensa por essa retengio surge quando 2 propria paciente faz a interpretagao, uma hora ou duas depois, talvez. Minha descrigio equivale a um pedido a todo terapeuta para que permita a manifestagio da capacidade que o paciente fem de brinear, isto é, de ser criativo no trabalho analitico. A criatividade do’ paciente pode ser facilmente frustrada por um 83, ferapeuta que saiba demais, Naturalmente, nfo importa, na rea- lidade, quanto 0 terapeuta saiba, desde que possa ocultar esse conhecimento ou abster-se de anunciar o que sabe, Permitam-me que eu tente transmitit 0 sentimento do que ¢ trabalhar com essa paciente, e pediria para isso a paciéncia do leitor, tanto quanto precisei ser paciente ao me empenbar nesse trabalho, EXEMPLO DE UMA SESSiO Em primeiro lugar, alguns pormenores sobre a vida da pe- ciente e disposigoes de natureza pritica: sobre o sono, que & es- ‘tragado quando fica excitada © precisa de livros para dormir, tum “bom” e um “de horror”; cansada, mas excitada, tio inquie- ta; taquicardia, como agora. Depois, certa dificuldade sobre co- mida: “Quero poder comer quando sinto jome'. (Comida ¢ livros parecem de certa forma igualados na substincia desse falar des- conexo). ‘Quando toquet a campainha, espero que vocé tenha percebido que cu estava alta (excitada). Respondi: — Sim, suponho que sim, Descrigtio de uma fase de melhora um tanto falsa: — Mas eu sabia que no estava bem, — Tudo parece 120 esperangoso, até que me dou conta disso. — Depressio ¢ sentimentos assassinos, isso sou eu, ¢ tam- bém sou eu quando estou alegre, (Meia hora se passou, A paciente tinha permanecido sen- tada numa cadeira baixa, ou no chao, ou caminhando pelo con- sultério.) Longa ¢ lenta deserigio dos aspectos positivos ¢ negativos de um passeio que fizera, — Parece que me sinto incapaz de SER inteiramente. Nio sou eu realmente a olhar, ., Uma tela, .. Olhando através de dculos. . . Olhar imaginativo, nio ha. E isso, apenas doutrina sobre 0 bebé a imaginar o seio? No tratamento anterior que fiz, quando cu voltava para casa, depois de uma sessio, havia um avizo, em yoo alto, Contei a0 analista, no dia seguinte como me imaginara, subitamente, sendo 0 avido, voando alto, Entio ele 84 ‘se espatifou no solo. O terapeuta disse: “Isso é 0 que Iie aconte- ce quando vocé se projeta nas coisas ¢ isso provoca um desastre imerno’ — Diticil de. lembrar. .. Nao sei se est certo... Real- mente no sei o que quero dizer, E como se s6 houvesse uma confusio dentro, um desastre. (Trés quartos de hora se passaram.) ‘Ocupava-se agora em olhar para fora da janela, ao lado da qual estava parada, observando um pardal bicar um pedago de pio, e repentinamente, ‘levando uma migalha para seu ninho — bu para outro lugar’. Depois: — Oh, de repente lembrei-me de um sonho. 0 Sonho ‘Uma estudante continuava a trazer-me quadros que dese- ‘nhara, Como podia dizer-Ihe que esses quadros no apresenta- vam methoras? Achara que deixando-me ficar sozinha e enfren- tando minha depressio... & melhor que deixe de olhar para aqueles pardais, Nao consigo pensar. (Estava agora no chio, com a cabeca apoiada numa almo- ada da cadeira.) — Nio sei... Contudo, veja vocé, tem de haver uma espé- cie de melhora, [Pormenores de sua vida, fornecidos como ilus- ttacdo.] E como se nao houvesse realmente um EU. Livro hor- rivel, do comeco da adolescéncia, chamado Devolvido Vazio. & como me sinto. (Wessa ocasido, wna hora se passara.) Continuou falando sobre o uso da poesia, Recitou um poe ma de Christina Rosetti: "A Expirar f — “Minha vida termina com um tumor em bot Depois, para mim: — Voce me tirou meu Deus! ‘Longa pausa.) 7 ceofMfon sb womitando em yore tudo 9 que aparece, NBo sei do que estive falando, Nao sei... Nao. (Longa pausa.) ‘isponho de _meivs de conferit a precikio desse relatos interpretagio do-analists anterior 85 (Olhando pela janela, de novo. Depois, cinco minutos de ‘quietude absoluta.) — $6 deixando-me levar, como as nuvens, (0 tempo passava; cerca de uma hora e meia.) — Sabe como Ihe disse que pratiquei pintura com os dedos rho assoalho © como fiquei assustada, No consigo pintar com 6 dedos, Estou vivendo numa confusio, Que devo fazer? Se me faro ler ou pintar, adianta alguma coisa? [Suspiros.] Nao sei... Mas, veja, de certa maneira nfo gosto da sujeira nas mios, na pintura’com 0s dedos, (Cabeca repousando na almofada, novamente.) — Repugna-me entrar nessa sala, -.. Sinto-me sem importincia. Pormenores dispares de meu modo de lidar com ela, como ‘uma implicago de que ela nao tinha importancia para mim. — Continuo pensando que podem ter sido apenas dez minutos que me custaram toda uma vida [referéncia ao trauma Original anda no espeificad, mas ase todo 0 tempo eabo- rado}. — Imagino que uma ferida tem de ser repetida com muita freqiléncia, para que seus efeitos possam atingir tao profunda- mente, Descrigio da visio que tinha sobre sua propria infaincia, em diversas idades; como ela sempre tentara sentir-se importante de alguma forma, ajustando-se ao que se esperava dela, tal como cla _pensava, Citagao apropriada do poeta Gerar Manley Hopkins, (Longa pausa.) —_E uma sensacio desesperada da nio-importincia das coisas, Nada me importa, .. Nio existe Deus e eu no me im= porto, Imagine s6, uma moga em férias mandou-me um cartio Postal. Nesse ponto, comentei — Como se'vocé importasse a ela. Ela, em resposta: — Talvez. Eu the disse: — Mas voeé nio se importa com cla nem com ninguém, — Acho que tenho de descobrir se existe tal pessoa [para 86 vem eu tenha importancia}, alguém que tenha importncia para Jia tguém que seja capaz de receber, de estabelecer contacto Com o que meus olhos viram ¢ meus cuvidas ouvitam, Melhor seria desistir; nfo vejo... Nao... (Solugando, no chao, curvada sobre a almofu deira.) Nesse ponto, recompés-se das virias formas que Ihe eram peculiares ¢ ajoelhou-se. i — Veja, de fato eu ainda nio estabeleci contacto algum com voek, hoje, : Murmurei uma resposta afirmativa, Faria a observagao de que, até agora, o material era da natureza de um brincar sens6 tho e motor, de natureza inorganizada e amorfa (cf. pig. 54, facima), do qual surgira a experiéncia da desesperanga e do solugar. Ela prosseguiu: , — Exatamente como duas pessoas que se encontram pela primeira vez. Conversa polida, sentadas numa cadeira de encos- to duro, (Na realidade, sento-me numa cadeira de encosto duro na sesso dessa paciente.) e (Odeio isso. Sinto néuseas, Mas n@o importa, porque sou 86 eu. : Novos exemplos de minha conduta, que indicavam: era apenas ela, de maneira que nao importava, ete. (Pausa, com suspiros, manifestando sentimento de deses- peranga ¢ insignificancia.) da ca A consecucio (isto é, apds quase duas horas) Efetuava-se agora uma mudanga clinica, Pela primeira vez, durante essa sesstio, a paciente parecia estar na sala comigo. ‘Tratava-se de uma sesso extraordindria que eu Ihe concedera, com 0 intuito de compensé-la porque ela tivera de perder suit hora habitual, é Como se fosse a primeira observacio que me dirigisse, ela comentou: : “— Fico contente por voce saber que eu precisava dessa sessiio, a7 (© material versava agora sobre ddios especificos, e ela co- megou a procurar certas canetas de feltro coloridas que eu tinha a sala. Depois, apanhou um pedaco de papel e a caneta preta de feltro e desenhou um cartio comemorativo de seu ani- versirio, Chamou-o de seu ‘Dia da Morte’.* Estava agora presente na sala comigo. Omito .. Omito pormenores, de um conjunto de observagies do presente, todas elas imprep-” nadas de édio, itr rants NG ee pte (Pausa.) Comecou, entdo, a rememorar a sesso. — O problema é que nao posso lembrar o que the disse — ou estava falando comigo mesma? Intervencao Interpretativa Nesse ponto, fiz uma interpretagio: ~, Todos, 08 sipos de coisas acontecem e definham, Sto essas as mirfades de mortes que voc€ morreu, Mas, se existir alguém através de quem vocé possa receber de volta o que acon- teceu, entio, qualquer detalhe ganha em importincia; dessa ma- neira, tornam-se parte de vocé e no morrem.! Ela perguntou se podia beber um copo de leite.? Respondi: — Beba, Ela diss — Ja Ihe contei,...2 [Aqui, relatou atividades € sentimen- tos positivos que constituiam, em si mesmos, provas de que ela era real e vivia no mundo concreto.] Acho que estabeleci uma espécie de contacto com essas pessoas... embora algo adi [retorno dos solucos, apoiada nas costas de uma cadeira]. Onde * Deathdax. Em contraste com birthday, “aniversiri’. (N, do T.) Isto é 0 sentimento do eu (elf) surge na base de um estado rio integrado que, contudo. por definigio, nio € observado recordaco pelo individuo. © que se perde, a menos que seja observado © cspethado e volta por alguém em quem se confia, que jusifica « conflanya, atende i dependéncia, 2 Nessa sestio de aniie, etio disponiveis uma chateira, um equeno fogarevo. this café « cetto lino ue’ bheaton 88 esté voce? Por que estou assim sozinha?.... Por que nfo tenho mais importincia? Significantes lembrancas de infincia surgiram aqui, rela- cionadas a presentes de aniversario ¢ a importancia deles, ¢ @ experiéncias de aniversério positivas negativas. Omito aqui uma boa parte, porque, para torné-la intel vel, precisaria fornecer novas informagdes concretas, desnecessi- rias a esse relato, Tudo isso conduzia a uma zona neutra, com cla propria aqui, mas numa atividade de resultado indeter- minado, — Nao acho que tenha.., Acho que desperdicei essa sessio. (Pausa.) —Sinto-me como se tivesse vindo para encontrar alguém ele nio tivesse vindo. Nesse ponto, descobri-me estabelecendo vinculos, em vista do seu esquecimento de momento a momento ¢ de sua necess dade de ter 0s pormenores refletidos de volta, com um fator temporal em aco, Refleti de volta o que cla estava dizendo, preferindo falar primeiro sobre ela ter nascido (por causa do aniversério-dia da morte) ¢, em segundo lugar, sobre meu com- portamento, que Ihe dava a impressdo, de tantas maneiras, de que cla nao tinha a menor importincia para mim, Ela continuou: — Tenho as vezes a sensagio de que nasci.., [colapso}. Se nio tivesse acontecido! Isso me vem; nao € como a de- ressio. Falei: — Se voct tivesse podido no ex sido bom. Ela — Mas 0 que é tao horrivel & a existéncia que é negad Nunca houve uma época em que eu pensasse: que coisa bow ter nascido! Tenho sempre presente que teria sido melhor se eu nlio fir de modo algum, teri tivesse nascido, mar quem sabe? Poderia ser, nao sei. E uma questio: quando nio se nasce, nada existe, também, ou hi uma almazinha esperando para aparecer num corpo? ‘Agora, uma mudanga de atitude, indicando 0 comeco de uma aceitagio de minha existéncia, 89) — Sempre 0 impego de falar! Respondi: — Vocé quer que eu fale agora, m jue ae es ygora, mas teme que eu possi Ela respondeu: — Estava pensando: ‘io me faga querer SER! Ew verso de um poeta de Gerard Maney Hopkin Ht Conversamos entio sobre poesia, sob: Sd Sobre como ela sempre fizera grande uso das poesias que trazia de meméria e de como vivera de poema em poema (como de cigarro em cigatro, os que fumam um cigarro apds outro), mas sem que o significado do pocma fosse compreendido, ou’ sentido, como agora com- preende e sente esse poema, (Suas citagdes sio sempre apro- priadas ©, geralmente, nao se di conta do significado.) Foi quando fiz referéncia a Deus como EU SOU, um conceito itil quando 0 individuo nfo pode suportar SER Ela disse: — As pessoas utilizam Deus como um analista: alguém que fique observando enquanto se esta brincando. : Respondi: — Para quem voc tem import F ela disse: — Nio poderia afirmar isso, porque no pod segura, ce i Repliquei: — Fstraguei algo quando falei isso? ( {er estragado uma sessio muito boa.) Mas ela respondeu: — Nio! E diferente se é voct quem o diz, porque se eu tenho importancia para voce... Quero fazer coisas que the agradem, .. Veja, esse é o inferno de ter recebido uma educacio religiosa. Malditas sejam as boas meninast Como uma auto-observagio, disse: — Isso supde que eu tenho Wdesejo de nao ficar bem. estar wei com receio de 1A itagio exata do poema ‘Consolo do Cader, seria ‘Nao, ew nio (--.) G2.) muito cansade, chorar ndo passe mais. Posto: posse algo, esperar, querer que o dia chegue, no escolher nia ser 90 ‘Temos aqui um exemplo de uma interpretacao elaborada pela paciente que lhe poderia ter sido roubada se eu a tivesse feito anteriormente, Indiquei como a versio atual de bom significava para ela estar bem, isto é, terminar a anélise, etc Finalmente, agora, eu podia trazer a baila o sonho, sobre as pinturas da’moga que nfo apresentavam melhoras”. Essa negativa tornava-se agora positiva, A afitmagio de que a pacien- te nao estava bem era verdadeira; no estar bem, signifieava nfo ser boa; que cla parecesse melhor era falso, tal como sua vida fora falsa, tentando ser boa no sentido de ajustar-se a0 cédigo moral familiar, Ela disse: — Sim, estou utilizando meus olhos, meus ouvidos e mi znhas mios como instrumentos; ew nunca SOU CEM POR CEN- ‘TO, Se deixasse minhas mos vaguearem, poderia encontrar um eu... entrar em contacto com um eu... Mas nao poderia. Pre- Cisaria vaguear por horas. Nao poderia permitir-me ir em frente Examinamos a maneira pela qual conversat consigo mes- ‘mo nfo trazia qualquer reflexo de volta, a menos que represen- tasse uma transposigao de que tal conversa tivesse sido refletida de volta por alguém que nao a prdpria pessoa. Ela disse: — Tentei mostrar-ihe eu sendo sozinha [as primeiras duas horas da sesso]; essa € a maneira pela qual avango quando estou sozinha, embora sem palavra alguma, uma vez que nio me permito comesar a falar comigo mesma [o que seria lou- cura]. ‘Prosseguiu, falando do uso que fazia de uma série de es- pelhos em seu quarto, a envolver, para o eu (self), uma busca de qualquer pessoa que pudesse ‘efletir de volta algo de seu. Mostrara-me, embora cu estivesse ali, que nenhuma pessoa re- flete de volta.) Assim, agora eu fal — Era a'si mesma que voce procurava.: Fiquei em difvida a respeito dessa interpretagio, que me TAs vezes, ela cita: “E Margaret quem vocé pranteia’ (do poema de Hopkins, ‘Primavera ¢ Outono') on pareceu tender para a trangililizagio, a0 contrario do que eu pretendia, Quis dizer que ela existia na procura,-antes que no ‘encontrar ou ser encontrada, Ela respondeu: — Gostaria de parar de procurar ¢ SER somente. Sim, a procura é a evidéncia de que existe um eu (self). Agora, finalmente, eu podia referir-me ao incidente do avid, que era ela, e como este se despedagara. Como um avido. ela podia SER, mas, depois, vinha o suicidio. Ela aceitou isso facilmente e acrescentou: — Mas eu preferiria ser © despedacar-me do que nun- ca SER. Pouco depois disso, cla jé estava apta a ir embora, O tra- balho da sessiio fora feito. Observe-se que, numa sesso de cingiienta minutos, nenhumy trabalho efetivo ‘teria possibilidade de ser feito, Tivéramos trés horas para gastar e ulilizar Se eu relatasse a sesso seguinte, descobrir-se-ia que leva- ‘mos duas horas para chegar novamente 20 ponto a que tinhamos cchegado nesse dia (que ela havia esquecido). Entio, a paciente empregou uma expresstio que tinha valor para 0 resumo do que estou tentando transmitir, Ela fizera uma pergunta e eu retru- cara que a resposta poderia levar-nos a uma longa e interessante iscussio, mas que era a pergunta que me interessava. Disse-Ihe: — Voce teve a idéia de fazer essa pergunta, Logo depois, ela pronunciava as proprias palavras de que cu precisava, © que expressavam 0 que eu queria dizer, Lenta- ‘mente, com profundo sentimento, ela disse: — Sim, compreendo; tal como a partir do buscar, a partir da pergunta se poderia postular a existéncia de um EU. Ela fizera agora a interpretacdo essencial de que a pergun- ta surgira de algo que s6 pode ser chamado de sua criatividade, € essa criatividade constituia uma reuniio apés o relaxamento, ‘que € 0 oposto ds integraciio. COMENTARIO buscar sé pode vir a partir do funcionamento amorfo e Aesconexo ou, talvez, do brincar rudimemtar, como se numa zona neutra. E apenas aqui, nesse estado nao integrado da personal 92 lade, ‘0 criative, tal coma o descrevemos, pode emergir. ees ide de salt, mas openar nese cso, tomacse pare da personalidade individual organizada ¢, no conjunto, acaba por Cara r de sensor Cecntrad,‘ sabe por permit Que postule a existéncia do cu (self) i iso nos Ul ndiagho pare o procedimento (rapt propiciar oportunidade para a experiéneia, amorfa © para oe ree ie ies ¢ accies, gue cousluen # mull ria-prima do brinear, E com base no brincar, que se constroi a aaa buena ciperenil do homen No somos ais introvertidos ou extrovertidos, Experimentamos a vida na area dos fenémenos transicionais, no excitante centrelagamento da subjetividade e da observagao objetiva, e numa rea intermedid- ria entre a realidade interna do individuo e a realidade compar- ada a mundo extern aos nave 93

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