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“ pOLTICAS =»=»CHRISTIA e DOSOFRIMENTO © DUNKER tse aaa COTIDIANO CHRISTIAN POLITICAS DUNKER . SS C 4 R [ ST | A N nin CHRISTI AN DUNKER = 1 CHRISTIAN i DUNKER vith REINVENCAO a nA wa DADE N a DA INTIMIDADE POLITICAS 0 SOFRIMENTO wn COTIDIANO COTIDIANO ChalSTIAN mEWNED CHRIS DUNKER fz OR eo chen CMe n Omni Ce Metal AteCMe\ OCT Rote RC m LORE een Rot eso E rer ares Beeler eee (Beas heron: (Chuo ele ome COR CRE oem CoN eee ren Coe meio CRS reinvengao. A obrigacao de mantermos uma imagem de Donen e aE Cede Reon ra ha EY Crete ett Reon engenharias da aparéncia nos colocam fora de nds mesmos, TMC U COP BRT e TCR Ch neo quae toner Rel CRC ae Thg coe oR e Ieee Ne MRO Y ET -MeC Or minicar ect ear le CS tutare ta ceacent rtaelorvievas tol (ony Keele Remon acon aie) Sea Te ROE RETO AS OBE CORO tae Christian Dunker mobiliza sua experiéncia de trés décadas de clinica e de reflexao para descrever um con- junto de sintomas outro. O sofrimento nos predispoe a dividir nossa intimi- dade e, por isso, ele ¢ também parente do amor. Poderia- mos ler os destinos do sofrimento como uma espécie de Peace Me Haier Cole Come C re eee psicopatologia do dia a dia, feita de pequenas escolhas e de grandes conflitos. Solidao ou solitude, luto ou melancolia, panico ou citime, paixao, ressentimento ou depressao. Onde esta a STH SE Mere R eur Re UT Tew CNB OETA Ree ened patologias sintomaticas? Onde esta a fronteira de sofri- mento que nos fara escolher aceita-lo ou transforma-lo e, ReTeVal Cae ave MmneuersComstbmom satus OR METRO Em uma linguagem bem-humorada e acessivel, Dunker, ao abordar situacgées banais da vida - encontrar EVA ca cc MCL eC LeMRCE DAC OPM MereyeLeceMeCeoreCosta eS came be mais de estimacao, suportar hipoteses de fidelidade ou de traic¢ao, criar filhos e se despedir de pais e de avés -, nos REINVENCAO DA INTIMIDADE POLITICAS DO SOFRIMENTO COTIDIANO CHRISTIAN DUNKER ABUSCA DA BICICLETA PERDIDA 7 INTRODUGAO 12 SOLIDAO: MODO DE USAR 1. Solidao e solitude 19 2. Preciso de um tempo sé para mim 38 3. Amelancolia de Ozymandias 42 4. Comegare terminar 45 5. Sobre a morte eo morrer 48 AFETOS COMPARTILHADOS 6. A traicaio e seus horrores 57 7. Ocitime e as formas paranoicas do amor 62 8. A fungao transformativa do édio 71 9. Conformacées daintimidade 77 10. Desmascarar as imposturas do amor 87 ut. O amor pelos animais ¢ seus limites 93 12. A vergonha como denuncia da fantasia 95 JUNTOS E SEPARADOS 13. Fundamentalismo conjugal 102 14. O casamento como perversao consentida 107 15. O verdadeiro amor faz excecao a lei 109 16. O dinheiro do casal 112 17. Amulher telepata eo homem das cavernas 114 ACRIANGA QUE NOS UNE E NOS SEPARA 18. A arte deimbecilizar criangas 117 19. Loucura materna 120 20. Oprimindo mulheres e desautorizando maes 122 21. O dever de afeto e 0 direito de verdade 129 22. Acoreaforma do cuidado 132 23. Sindrome da alienac4o parental 135 24. Intoxicagao digital infantil 138 SOFRENDO DO OUTRO 25. A geografia imaginaria da segregacao real 148 26. Cercas, murose siléncios 155 27. Paranoia sistémica 158 28. Somos todos vandalos? 161 29. Cuidar ou controlar? 172 30. A felicidade como fator politico 182 31. Aalma revolucionaria 186 SOFRENDO COM 0 OUTRO 32. O sofrimento entre a verdade eo real 195 33. A paixio progndstica e a invencao de novos diagnésticos 203 34. A paixio diagnéstica 205 35. Neurose em estrutura de ficcao 207 36. Depressao do urso polar 220 37. Perversao ordinaria 229 38. Sindrome pés-natalina 236 39. Que fim levaram os maniacos? 239 PATOLOGIAS DO INDIVIDUALISM A BRASILEIRA 40. Novas formas de sofrer no Brasil daretomada 242 41. O paradoxo moral do batalhador brasileiro 249 42. Acultura da indiferenca 251 43. Crimes da palavra e cultura da demtincia 254 44. A querela do consumo 260 45. Solidariedade sem transcendéncia? 263 46. Narcisismo digital 265 POLITICAS DE TRATAMENTO 47. Doenga mental na politica 277 48. O neoliberalismoe seus normalopatas 284 49. Reinvencao daintimidade 293 INDICE REMISSIVO 303 FONTES DOS TEXTOS 315 AOE ese occu (ou CEC CCbeLe LE OSS Wonca ten Ce Ete (Come ECC. JACQUES LACAN gem Le RT ane COCR ROT TONS ABUSCA DABICICLETA PERDIDA Em 9 de maio de 1945, os alemaes renderam-se aos soviéticos e aliados pondo fim 4 Segunda Guerra Mundial. Nesse dia, mi- nha avé, com seus dois filhos, um deles meu pai, encontrava-se em algum lugar entre Dresden e Chemnitz, comprimida entre oavanco dos dois exércitos do leste e do oeste. A vida durante a guerra havia sido perigosa, mas organizada. O medo é oafeto da ordem, do egoismo e da covardia moral. Quando as grandes ci- dades alemas comecaram a ser bombardeadas, minha av6 fugiu para vilas cada vez menores até chegar a uma pequena aldeia costeira, no atual territério da Polénia. Foram mudancas rela- tivamente calculadas pela estimativa do perigo, apoiadas nos restos da familia e da civilizacao. Costumamos temer a guerra como o palco primario da violéncia e do medo. Segundo minha av6, o pior nao é a guerra, mas o que vem depois dela. A vin- ganca em meio a anomia leva exércitos a desrespeitar regras elementares de ocupacao. Estupros em massa, tanto por parte de soviéticos quanto de americanos, tornaram-se a regra con- sentida, se nao estimulada pela estratégia militar. Assassinatos exemplares e punicdes simbdlicas ocorriam lado alado de modo a fazer a populacao sair da frente. Ajustes de conta eram pratica- dos contra colaboracionistas e aproveitadores do regime: justica com as préprias maos. Finda a guerra, uniformes sao depostos. Nao se discerne mais amigos e inimigos. Comeca o tempo de pinico no qual vi- gora outro tipo de busca por reftigio. Uma busca que mistura ati- tudes opostas. Aparece a errancia, o sentimento de que é preciso sair de onde se esta, mas sem que se saiba muito bem para onde ir, Nessa hora, nos agarramos a uma espécie de ideia fixa, um ponto de retorno que nos diga, ainda que imaginaria- 7 mente, onde fica nossa casa. Como se, no meio da tempestade de desorientagdes, nos apoidssemos em uma tinica intui¢ao fulgu- rante, uma imagem de plena convic¢ao sobre o que fazer. No caso de minha avé, isso criou um plano inexplicavel: voltar para sua casa em Hamburg e reencontrar seus pertences que, por algum motivo magico, teriam sobrevivido aos bombardeios que trans- formaram a cidade em um tapete de ruinas. Mesmo advertida da falta de senso em deixar dois filhos nas maos de conhecidos, do risco de abandonar seu ponto de referéncia para o marido desapa- recido na frente russa e da tolice de desguarnecer-se da ajuda da Cruz Vermelha, ela erraticamente insistiu em buscar a bicicleta deixada para tras em sua casa. E fazer o que depois? Pedalar até o Brasil? Com duas criangas na garupa? Depois de duas semanas vagando pelos escombros de Ham- burg, pois nao havia mais placas ou ruas, ela finalmente desco- briu a tal bicicleta pendurada na parede remanescente de um prédio destruido. Foi quando caiu em si e se deu conta de que iria morrer de fome. Nao sabia como sair dali. Nao havia per- cebido, até entao, que estava perdida. E sozinha. Deixaria os fi- lhos, o marido ea tal bicicleta ao léu para o inferno. Chorando de desespero, ela foi tocada no ombro por uma velha senhora, provavelmente tao errante e louca quanto ela. A tal senhora es- cutou sua histéria, tirou da sacola seu ultimo pio e Ihe apontou um caminho para sair dali. Como se vé, estar “perdido” e estar “encontrado” nem sempre sao opostos perfeitos. Este livro poderia se chamar Amor em tempos de errancia ou O que sobrou do amor na época do refuigio? . Ruinas asperas fei- tas de justi¢a com as préprias mios, de pressa e urgéncia, ainda que de felicidade. Sobras de cidades destruidas e atos inexpli- caveis de separacio, reencontro, generosidade. Tudo isso 8 — convivendo com as antigas e conhecidas maneiras tragicas de defender-se do amor, de torna-lo ainda mais improvavel: a neurose, a psicose e a perversao. E o que sobrou foi uma bicicleta. Acho que com ela toda a cosmologia amorosa pode ser reconstruida. Sem esse evento unico, improvavel e contingente, em meio ao sofrimento torna- do obstinagio, o leitor nao estaria lendo estas linhas agora. Por isso dedico este livro, que é uma investigacao sobre as formas de amor, sobre suas interveniéncias politicas e sobre a possibilida- de de ficar junto e separado, 4 minha querida avo. INTRODUCAO Este livro segue a intuicao antropoldgica e psicanalitica exami- nando como formas fundamentais de nossos sintomas rela- cionam-se com processos de individualizacao préprios da vida contemporanea, particularmente com uma das figuras mais as- cendentes da individualizacao hoje: experiéncia de sofrimento. Sofrer é algo que depende essencialmente de trés condi- Ges: a narrativa na qual esta inserido; os atos de reconheci- mento que fixam sua causa ¢ a transitividade que o torna uma experiéncia coletiva e indeterminada. O transitivismo é um fenémeno tipico da infancia, relacionado ao complexo de in- trusdo, momento no qual a crianca elabora a entrada de rela- Ges triadicas, particularmente com outras criancas da mesma idade. Nessa situacao, frequentemente ela experimenta, por exemplo, se colocar como agente de uma acao na qual, na ver- dade, ela é paciente da ago do outro. Tipicamente, ela bate na outra crianca e chora porque sente efetivamente que foi a outra crianga que bateu nela. Ou entio ela toma um brinquedo, mas sente e interpreta que foi a outra crianca que tomou o brinque- do dela. Em adultos, a situagao de transitivismo retorna, por exemplo, em desavengas e conflitos nos quais nao se consegue dirimir quem esta agindo, provocando ou causando um deter- minado estado de coisas e quem esta reagindo, “devolvendo” ou respondendo ao ato iniciado pelo outro. Essa confusao entre quem age e quem sofre a acao aparece também em casos mais graves, notadamente em formacées delirantes e alucinatérias nas quais um pensamento efetivamente experienciado pelo su- jeito é sentido como causado ou imposto pelo Outro. Essas trés condigées - narrativa, reconhecimento e transitivismo - combinam-se com uma hipétese: 0 so- I frimento requer e propaga uma politica. Isso quer dizer que a forma como contamos, justificamos e partilhamos nosso so- frimento esta sujeita a uma dindmica de poder. O poder dos opressores, o poder das vitimas, o poder dos indiferentes e até mesmo 0 poder da indiferenca ao poder. O poder gerado por quem pode reconhecer o sofrimento e de quem esperamos le- gitimidade, dignidade ou atencao, seja esse alguém o Estado ou 0 ordenamento juridico e suas politicas publicas, sejam as ima- gos do médico, do padre, do doutor ou do policial, sejam ainda aqueles com quem compartilhamos a vida cotidiana e, mais ainda, aqueles a quem amamos. A ex-sisténcia (existir fora de si) compreende uma par- cela de sofrimento que nao é¢ eliminavel. Nosso corpo se de- grada, nossas leis s4o repetitivamente imperfeitas, a natureza nos impée reveses de toda sorte. As trés Parcas continuam a tecer e cortar impiedosamente nosso destino. A isso Freud chamou de mal-estar (Unbehagen) e Lacan, de Real. Contu- do, nem tudo no mal-estar é aceitavel e requer nossa resigna- ao. Por isso, diante do sofrimento ha sempre uma escolha a fazer, transformar o mundo ou transformar a nés mesmos. Essa transformagao depende, portanto, de como reconhece- mos 0 sofrimento que nos acomete. Frequentemente nos re- cusamos a admitir, e até mesmo a perceber, que estamos so- frendo. Algumas vezes isso se apoia na interpretacao de que sofrer e, principalmente, coletivizar ou externalizar essa ex- periéncia é uma fraqueza moral. Ha, portanto, uma micropo- litica envolvida no reconhecimento: culpa, responsabilidade ou implica¢ao acerca das causas, das razées e dos motivos do sofrimento. Aqui acontece também uma espécie de conflito ou de concorréncia entre as narrativas que sancionam ou 12 derrogam, visibilizam ou invisibilizam o sofrimento. In- dividualizar ou coletivizar, culpar ou responsabilizar, incluir ou excluir, construir ou desconstruir afetos correspondentes a tais narrativas, tudo isso faz parte das politicas do sofrimen- to cotidiano. Compartilhar nosso sofrimento tornou-se uma tarefa ainda mais complexa depois do neologismo proposto por Lacan: extimidade. Encontrar a intimidade fora e 0 estra- nhamento dentro, sem que eles sejam equivalentes. Em vez de uma politica sem partido, seria melhor falar aqui, com Ca- zuza, em uma politica do coracdo partido. Déficits e excessos de individualizacao revelam-se na pré- pria experiéncia de sofrimento e na forma de fugir e nega-la. Isso aparece, por exemplo, na tendéncia a hipersocializa¢ao, a disposi¢ao a ficar permanentemente ligado, ocupado ou dispo- nivel, como na impoténcia para constituir situagGes e percur- sos de real solidao ou intimidade. Como toda politica, ela faz um corpo, ela cria unidades de discurso, ela define um coletivo identificado por um mesmo tra¢go ou uma mesma suposi¢ao de desejo ou de demanda. Cada experiéncia de sofrimento é uma histdria que se transforma na medida em que é contada. Uma historia ruim pede uma pior; a luta feroz por qualificar seu sofrimento como legitimo tornou-se uma das gramaticas morais mais importantes de nossa época. Sofrer com 0 outro ou sofrer do outro sao os dois polos dessa gramatica contagiosa. O sofri- mento solitario e 0 sofrimento coletivo chocam-se nesse pon- to, em que a escrita de uma histéria transforma o seu autor. A situagao em que se esta lonely, em inglés, ou allein, em ale- mio, é diferente da situacdo em que se esta consigo mesmo, selbstdndig, ou se esta sd, einsam. O sofrimento que se sofre sozinho as vezes se transforma em outra coisa quando narrado. Ha no alemao e no inglés uma expressao para 13 essa diferenca entre solidao e solitude, que se apresenta no verso de Alexander Pope, em “Ode a solidao”: Deixe-me viver, sem ser visto, desconhecido Deixe-me morrer sem lamento; Roubado do mundo, sem uma pedra A dizer onde estou.’ Se o amor é este pequeno estado de loucura proviséria, ele in- clui tanto as pequenas comédias de erros quanto as grandes tragédias que compéem a psicopatologia da vida cotidiana. A Psicopathologie des Jedestag ou Psicopatologia da vida cotidiana, segundo livro homénimo de Freud, pode ser lida como patolo- gia social de nossa experiéncia cotidiana, experimentada como pobre, tediosa, acelerada, demasiadamente previsivel ou im- previsivel. Mas a expresséo também pode nos remeter a uma psicopatologia a partir da vida cotidiana, ou seja, como a vida cotidiana pode nos fazer sofrer, produzindo estados aflitivos ou conflitivos continuados, que terminam por formar sintomas. Pensar nossa individualizacao a partir da forma como estruturamos o sofrimento na linguagem é um capitulo de- cisivo de nossa politica de subjetivagao. A maneira como in- terpretamos ou codificamos, nomeamos ou metaforizamos, descrevemos ou narramos nossa experiéncia de sofrimento transforma sua natureza, extensao e intensidade. Tal politica pode se centrar sobre o que ha de ipsei- | a dade (somos tinicos em nosso sofrer), de _ seen, unknown;/Thus mesmidade (somos como outros em nos- ee af so sofrimento) ou de nossa identidade (so- and nota stone/Tell mos como nds mesmos e nos desco- Wh«rellye" Alexander Pope, Ode on Solitude 14 brimos como outros e até mesmo [1700]. Tradugao do autor. nos reencontramos como outros nés mesmos ao sofrer). Pode- riamos falar ainda nessa estranha condi¢éo contemporanea pela qual tornamos nosso sofrimento uma propriedade, capi- talizando-a discursivamente ao produzir o que Lacan chamou de um a mais de gozo. Tal propriedade do sofrimento aparece também nas duas cartas de Rimbaud nas quais ele afirma que oeué umoutro: Eu é um outro. Azar da madeira que se descobre violino, e danem-se os inconscientes que discutem sobre o que ignoram completamente! [Carta a Georges Izambard] Pois Eu é um outro. Se o cobre desperta clarim, nao é por sua culpa. Isso me é evidente: assisto 4 eclosio de meu pensamen- to; contemplo-o; escuto-o; fago um movimento com 0 arco: a sinfonia faz seu movimento no abismo, ou de um salto surge na cena. [Carta a Paul Demeny|? Percebe-se que o sofrimento do eu é 0 sofrimento do outro em varios sentidos, cada qual com sua politica, cada qual com sua logica propria de reconhecimento. Entre a madeira e 0 violino, ou entre o cobre e o clarim, ha uma continuidade da mesma matéria e uma diferenga de forma. A madeira que infortuna- damente se descobre violino indica a possibilidade de sofrermos com mudangas de forma. Entre os que discu- Teenie aya tem sobre o que ignoram, ha uma referéncia de Moraes[urRy]. a0 sofrimento como aliena¢ao e desconheci- Alea, v.8,n.1, Rio de Janeiro, jan.jun.2006. OOutrocom quem discutem. Finalmente, 15 mento, nao sé de si, mas na relagéo com na imagem da sinfonia e do salto no abismo ha o sofrimento com a vertigem do futuro, o vir-a-ser, vinico e singular, ainda que incerto ou indeterminado. Os textos aqui reunidos cobrem 26 anos de intervengées ¢ reflexdes praticas sobre este nosso ganha-pao como psicanalis- tas: o sofrimento. A forma desses escritos, alguns deles curtos, nao responde apenas a agregacdo de colunas, entrevistas e arti- gos, mas tenta preservar no ensaio a matéria-prima do cotidia- no, feito de unidades descontinuas ainda que em estrutura de repetic¢ao. Uma vida compreende hiatos e parénteses, retoma- das e reticéncias, aceleracdes e descompressoes, liquidos e sdli- dos, oposi¢des que mobilizamos para caracterizar 0 sofrimento neste inicio de século xxt. Por isso, em vez de disciplinas enci- clopédicas e principios gerais de cura, o leitor encontrara aqui casos, situacdes ou regularidades clinicas que reconstituem o caleidoscépio incerto que é o problema deste livro. “Sofrer juntos” ou “sofrer separados” formam assim as ba- ses de nosso problema, que é saber como formamos conjuntos e séries de conjuntos neste espaco que chamamos de cotidiano. Entender processos de individualizaciéo como formacées his- téricas implica politicas de reconhecimento ou de denega¢ao de reconhecimento. Determinar os limites entre a experiéncia produtiva ea experiéncia improdutiva de sofrimento, no curso desta gramatica de contrarios, requer a apreciacao das transfor- macoes pelas quais 0 Brasil passou em seus tltimos vinte anos, particularmente no que concerne a seus modos de subjetivacio e de individualizacao, uma vez que 0 sofrimento parece ser co- variante de seus afetos hegeménicos. Nesse sentido, a politica discursiva e institucional afeta nossas formas de sofrer, por exemplo, regulando a rela- 16 cao entre lei e sofrimento. Por outro lado, a experiéncia de sofrimento é muito mais extensa do que as formas sociais de seu reconhecimento; por isso sao criadas novas demandas de reconhecimento, praticando assim uma forma de politica. Isso acontece tanto porque nds aprendemos a sofrer, quanto porque o sofrimento nao ¢ indiferente ao poder: seja ele pensado como impoténcia melancélica, seja como impossibilidade represen- tada pelo incuravel da experiéncia humana. W Solidao: URRY SOLIDAO E SOLITUDE: A DIMENSAO TRAGICA DO SOFRIMENTO Muitas tragédias contemporaneas se assemelham ao que aconteceu no bairro carioca de Realengo em 7 de abril de 2011, quando doze criangas foram mortas dentro da Escola Municipal Tasso da Silveira por um ex-aluno que se sentia rejeitado pelos antigos colegas e professores. Um homem que vivia isolado e retornou para se vingar dos colegas e da esco- la que o teria repudiado, para depois se suicidar. Posteriormente, varios servicos de satide receberam dentincias contra solitarios contumazes. A razao diagndstica adora devorar tragédias. Entendo que as tragédias nos convidam a reconhecer algo que esta suprimido em uma determinada configuracao social. Nao sao, portanto, espécies que se incluem em classes pré-consti- tuidas, mas desafios para nossa imaginacio politica e psicolégica. Georg Lukacs, em seu classico A teoria do romance, mos- trou que o herdi moderno situa-se necessariamente entre 0 cri- me ea loucura, pois essas sio as duas formas fundamentais de desterro. O heréi é alguém que vive radicalmente a distancia com relacao a si e ao outro, seja como tensio entre o ser e 0 de- ver ser, seja como cisao interna, seja como oposic¢ao entre vida real e ideal. Lembremos que Dom Quixote, Hamlet, Don Juan ou Fausto sao figuras do desterro e do autoexilio, personagens que escolhem nio ter lugar. Dai que a solidao seja o sentimento essencial da tragédia, assim como 0 isolamento seria a experién- cia central da epopeia e a confianga, 0 tema-chave do romance. Aconclusao cristalina vale tanto para a literatura quanto para a psicanilise: sem a experiéncia da prépria solidao, a vida nos pa- recera postica, artificial ou vulgar. A verdadeira e produtiva via- gem solitaria pode ser feita a dois, em grupo e até mesmo em meio a dissolugao do individuo na massa, mas 0 pior mesmo é quando tentamos evita-la. A solidao é uma das faces do que 19 os psicanalistas chamam de separacao ou de castra¢io. Nela, 0 ob- jeto com o qual nos identificamos para cobrir nossa falta e nossa falta no Outro é finalmente deslocado de sua funcao encobridora. Experiéncia simbélica por exceléncia, ela traz consigo nao apenas a Separacao para com 0s outros, mas a distancia e o estranhamento com relacao a si mesmo. Solidao nao é apenas introspec¢ao ou in- troversio, mas dissolucao da propria solidez do ser. Ocorre que ha certas situacdes de exclusio social, precon- ceito, segregacao e supressao da diferenca que promovem uma espécie de falsa solidao. Elas parecem dar corpo imaginario ao fracasso de estar com o outro. Assim, a solidao é substituida por outra coisa: indiferenca, vazio ocupacional ou ressentimento. Por meio desses subterftigios, nunca estamos sozinhos. O pre- juizo psiquico causado pela impossibilidade de estar sozinho é incalculavel. Interpretamos a auséncia do outro como recusa de reconhecimento, reduzimos a experiéncia produtiva de solidao ao desamor, abandono ou devastagio. Instilamos a luta imagi- naria para provar quem precisa menos do outro. E por ser a solidao tao rara e tao dificil de construir que surgem tais patologias, maneiras de se defender, de mimetizar ou de exagerar um processo benéfico a ponto de sua finalidade tornar-se irreconhecivel ao proprio sujeito. Tipicamente isso se expressa em sentimentos aparentados da solidao: 0 vazio, a ir- relevancia, a inadequacio e a menos-valia. O que vem depois de uma maratona social de consumo, do inicio de férias, da in- s6nia crénica, do final de namoro que nao termina nunca: a re- cusa do fato tragico da solidao. Os protagonistas dos grandes ro- mances do século x1x tinham na ironia um recurso formal para retratar o trabalho da solidao, uma forma de tornar produtiva a experiéncia de desencontro com si mesmo. E 0 caso de 20 personagens machadianos como Bras Cubas ou Bentinho. Nada menos tragico do que aquele que se leva a sério demais em sua prépria falsa solidao. Por isso, antes de suspeitar da norma- lidade do vizinho solitario, vejamos se ele nao esta a nos fazer lembrar nossa prépria solidéo maltratada. Se entendermos que os transtornos psicoldgicos definem-se pela introducgao de uma coer¢ao ou de uma restri¢ao na vida rela- cional das pessoas, é coerente pensar que o sofrimento frequen- temente trara efeitos de isolamento, afastamento ou ruptura das relagdes. Ocorre que esse movimento, que pode ser uma rea¢io util e desejavel em uma série de circunstancias geralmente pe- nosas, torna-se ele mesmo uma fonte de outros problemas de- rivados da privagao de experiéncias compartilhadas com outros. A solidao e 0 esvaziamento, ao lado do tédio e da apatia, foram os primeiros diagnésticos de época entabulados por Hegel, ainda no século x1x. Em outras palavras, 0 isolamento, a introversio ou a introspeccao sao respostas subjetivas que nem sempre sao uma opgio ou se iniciam como uma “escolha livre”, mas que gra- dualmente podem assumir 0 feitio de um processo incontrolavel, no interior do qual isolamento gera mais isolamento. A dificil manobra psiquica da separagao pode se transformar dessa ma- neira em algo que aparenta ser uma separacio, mas efetivamen- te nao é. Como ocorre com 0 sujeito isolado, mas que na verdade esta profundamente oprimido por falas, presencas e experién- cias das quais ele nao consegue se separar subjetivamente. E 0 caso, por exemplo, do ressentimento. O ressentido pode estar so- zinho e isolado; geralmente ele procura isso, mas nao esta de fato sd e separado. Na verdade, ele nao consegue se desligar de certos sentimentos anteriores e passa entao a ressenti-los na solidao de seu quarto ou na antessala do sono. Poderia-se pensar entao que a boa solidao é a solidao escolhida, intencional e deliberada. Essa ideia da opcao pelo 21 isolamento é bastante traicoeira, porque ela assume que certos jeitos de ser ou estilos de vida sao aplicacées livres que alguém realiza sobre a matéria-prima indefinidamente elastica e sem forma chamada vida. Também nao gosto muito da palavra transtorno, apesar de ser o arremedo mais usual para nao falar em doenga, pois transtorno é a tradugio do inglés disorder, ou seja, desordem. Como nossa cultura nao é assim tao fanatica pela “ordem’, a ponto de achar que ela exprime a esséncia e a na- tureza ultima da normalidade, optamos por “transtorno”. Mas transtorno sugere algo como uma pedra no meio do caminho, que a gente remove como um obstaculo contingente. A solidao torna-se um transtorno quando assume a dimensao de um tem que ou de um nao pode com. O sujeito que est solitario, mas “pode” perfeitamente ir a uma festa, frequentar a escola ou ver os amigos, esta aquém da linha. Aquele que apenas “acha que pode”, mas quando exposto a uma prova direta recorre ao autoenganoso Mas quando eu quiser eu consigo, irmio do similar alcoolista Quando eu quiser eu paro, deve se preocupar. Estao aqui todas as depressées, as distimias, as obsessGes e as estratégias de dizer nao para o Outro. Muitas pes- soas acabam desistindo de amigos que se isolam, pois acreditam na declaracao nominal de que “ele nao quer”, entao o que vamos fazer, sendo respeitar a “opcao”. A coisa nao é bem assim, ja dizia Kant, pois até que ponto 0 sujeito é livre para querer ser livre? Até que ponto a vontade é livre para ter vontade de vontade? O segundo critério diagndstico ¢ a coer¢ao, mas esse é mais facil de ser identificado. Trata-se daquela pessoa que diz direta ou indiretamente que ela tem que ficar sozinha, e ai entra a segunda parte da frase, tem que... sendo. Nesse senGo esto incluidas as fo- bias sociais, as agorafobias, os transtornos do panico, as 22 personalidades esquivas, ou seja, todas aquela situagées nas quais a rua ou o Outro inspiram medo ou angistia insupor- taveis. Assim, fico sozinho porque estou seguro e distante daqui- lo que é conflitivo ou ameacador. Nesse caso, 0 sujeito nao esta dizendo algo como Nao preciso de vocé ou Vocé me abandonou, por isso eu te abandono também. Aqui a gramatica do sofrimento esta baseada em No consigo estar diante do olhar do Outro que me cri- tica, mas em relacao ao qual eu desejo estar incluido. O caso extremo do primeiro tipo é 0 sujeito que se retira do mundo para remoer sua raiva até o momento que sai de la para se vingar. O caso paradigmatico do segundo tipo é o sujeito que nao consegue estar com o Outro porque este é muito e in- trinsecamente ameagador, como no autismo e na Sindrome de Asperger. Haveria, é claro, formas combinadas, como aquelas que se retiram traumaticamente do mundo, a exemplo do per- sonagem do filme argentino Medianeras: Buenos Aires da era do amor virtual [Gustavo Taretto, 2011]. Nesse caso, trata-se simul- taneamente de dizer nao ao mundo e de dizer nao para si mesmo. Chegamos entao ao que se pode chamar de solitude, a soli- dao boa e necessaria, cuja impossibilidade anuncia 0 patoldgico. A solidao desse tipo e nessa qualidade intensifica certas expe- riéncias perceptivas e imaginativas. Ela é condicao para 0 reco- nhecimento de grandes questées. Com 0 outro, nosso préximo e vizinho, frequentemente nos esquecemos de nds mesmos, 0 que reaparece nas experiéncias de angustia, separa¢ao e luto. Mui- tas separacdes objetivas mostram-se retrospectivamente apenas uma a¢io para reintroduzir parénteses de solidio em uma vida poluida por ocupacoes e tormentos. Quando a crianga descobre a possibilidade de ficar sozinha, toda sua relacao com 0 Outro se modifica. Ela aprende que sua presenca é contingente e nao necessaria e, portanto, que ela pode querer e ser querida. Essa separacdo é fundamental para a constituicéo de nossa 23 capacidade de amar e a inclusao da contingéncia que lhe é ne- cessdria. E impossivel criar sem amor e anglistia, e essas duas experiéncias dependem da capacidade de estar sd. Nao se trata apenas de quietude, isolamento e esvaziamento, mas de um conjunto de sentimentos altamente necessarios para a saude mental, sumariamente: estranhar a si mesmo, espantar-se com. o mundo, perceber-se contraditério, fragmentado, miltiplo, di- ferente de si mesmo, fragil, vulneravel, capaz de sobreviver e de “suportar-se”. Durante boa parte de nossa histéria cultivamos a solidao como experiéncia enriquecedora: a) Na filosofia: a meditacdo grega (premeditacao dos males), o retiro monastico, a meditacio investigativa (como em Descartes), a introspec¢ao psicoldgica. b) Na arquitetura: os intimeros dispositivos para favorecer 0 cultivo da solidao, como os jardins ingleses (feitos em for- ma de labirinto para que a pessoa possa se perder e, por- tanto, se reencontrar), os claustros, os Atrios, as criptas, os escuros do barroco. c) Na pintura: o tema da paisagem e seu correlato, 0 retrato. d) Na poesia: o tema da saudade, do desterro, da perda e do amor inconcluido. e) Na literatura: quase todos nossos herdis sao solitarios (de forma voluntaria ou involuntaria), Dom Quixote, Hamlet, Don Juan, Robinson Crusoé, Fausto, o flaneur de Baudelai- re, nosso Bras Cubas e assim por diante. A ligacao entre ideias obsessivas e compulsées com uma estra- tégia subjetiva baseada no isolamento ja havia sido descrita por Freud. Talvez nao seja um acaso que as primeiras ocorrén- 24 cias historicas da palavra obsessdo liguem-se ao periodo de emergéncia do cristianismo como pratica de auto-observacao e controle de si. E preciso ver como a classificacio, a escrupu- losidade e 0 gosto pela ordem e pela discriminacao sao atitudes subjetivas que nos permitem reduzir o desprazer e enfrentar conflitos. Todos nés temos que separar as coisas, seja entre o que acontece em casa e 0 que acontece no trabalho, o que acontece entre amigos e o que acontece entre namorados, seja nossa vida publica e nossa vida privada, sejam ainda separagées que impo- mos a nés mesmos, como a vida adulta ¢ a infancia, o passado € 0 presente, 0 conjunto de relagdes que tivemos com uma pes- soa do conjunto de relagdes que teremos com outra pessoa (que por vezes vird a ocupar funcio ou posicao similar diante de nds). Ora, uma vida sem a clareza de que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa seria uma vida insuportavel. Ocorre que essa defesa subjetiva normalmente se apoia em estratégias de objetivagéo, que concorrem para produzir uma forma de vida na qual as “separacdes externas” so uma espécie de garantia e de confirmacao para “separacoes internas’. O Japao e, especialmente, a vida nas grandes cidades japonesas sao um exemplo maior da combina¢ao de forgas que geram o isolamento. Uma cultura na qual tradicionalmente o valor do grupo de ori- gem ou da comunidade de trabalho é fundamental, onde a ver- gonha de se mostrar abaixo das expectativas desse grupo superaa culpa por decepcionar a realizacao do proprio desejo, vai oferecer poucas alternativas para as formas de vida que se separam desse ideal comunitario. O isolamento que se sucede entre adolescentes costuma ser uma espécie de consagracio da jA superindividuali- zada vida social. Lembro ainda: nao é porque “grupo” é 0 valor de referéncia que os individuos nao sejam, eles mesmos, isolados dentro desse grupo. Basta que aparecam certas experiéncias que o grupo nao reconhece como suas. Assim, aquilo que 25 é considerado “desviante” ou “fracassado’ pode ser simplesmente excluido por um grupo que se define pelo sucesso e pela norma. Um exemplo de como o préprio grupo, inclusive o grupo familiar, pode se submeter a uma experiéncia de isolamento se encontra em filmes como Capitdo Fantastico [Captain Fantastic, Matt Ross, 2016] e Ninguém pode saber [Dare mo shiranai, Hiro- kazu Kore-eda, 2004]. Desde a narrativa fundacional de Daniel Defoe e seu Robinson Crusoé temos esse fascinio por uma vida em estado de autonomia radical, um dos tragos primeiros do individualismo moderno. No filme de Kore-eda, inspirado em fatos reais, um grupo de irmaos decide viver sozinho depois que sua mae os abandona no apartamento em que vivem. Em vez de procurar uma instituicao que os separard, eles desenvolvem uma forma de vida relativamente vidvel. Nesse caso, 0 sucesso pessoal deve ser pensado como um sucesso grupal. Ocorre que, em certas circunstancias, que a cultura japonesa destaca, mas que exprimem processo amplamente em curso no Ocidente, a percepcao da “regra do jogo social” se empobrece a tal ponto que a inadequacao em relagéo a imagem que representa 0 sucesso torna-se segregatoria. Retrair-se e isolar-se é uma maneira de tentar criar uma comunidade alternativa, no interior da qual se pode obter algum sucesso. Note que o fendmeno dos hikikomori, ou seja, os que estao “solitarios em casa”, pertence a uma familia que inclui os herbs, que nao se interessam pelo casamento e pelo sexo, e os nem- -nem, que nem trabalham nem estudam (também conhecidos como neets: Not currently Engaged in Employment, Education or Training). Tudo indica que teremos cada vez mais espaco para esse tipo de subjetividade definida por uma espécie de errancia do desejo, de descompasso com 0 mundo (como no curta 26 Descompasso, de Jasmin Tenucci, 2011), de desencontro SS, athe a ce permanente com o Outro (como em Encontros e desencontros [Lost in Translation, Sofia Coppola, 2003]), de desagregacao das relacdes familiares (como nos filmes de Lucrecia Martel). Em muitas dessas situagGes ocorre uma espécie de degradacao da narrativa do sofrimento, algo contrario a narrativa do desajus- tamento e da inadaptagao que vigorava até aos anos 1990. Como sugeri anteriormente, ha um isolamento que é uma demanda que recusa 0 Outro e hd um isolamento que é uma demanda que recusa a si mesmo. Contudo, esta nova forma de isolamento, va- mos chaméa-la de isolamento oriental, é uma espécie de suspen- sao da demanda, que nao pede nada e que nio oferece nada, e se concentra apenas na constru¢ao de muros. O que caracteriza os hikikomori, os herbs e os neets é que eles fazem uma critica so- cial eficaz ao nosso modo de vida. Ao elevar a “vontade livre” ao paroxismo, podemos ver, através de sua forma de vida, até que ponto nossa forma de vida é invidvel, orientada pelo binémio bipolar producao-consumo. Os hikikomori japoneses, apesar de conhecidos por evitar 0 contato com outras pessoas, comunicam-se por redes sociais. Nesse ponto, muitos levantariam a questao em torno das redes sociais ¢ de como a vida digital substituiu o encontro real. E de Darwin a seguinte observacao: ao chegar em uma ilha afastada no oceano Pacifico, ele podia ver imediatamente sinais da colo- nizacio local, nao apenas porque surgia uma igreja e uma pre- feitura, mas porque havia pelo menos um presidio e um bordel. O bordel e 0 presidio sao nossas duas estratégias elementares de enfrentar o espaco indeterminado, ou seja, definindo-o de fora para dentro pelos muros e de dentro para fora pelo que, desde nossa fantasia, nao se inscreve no espaco puiblico, o que deve ser posto entre quatro paredes e o que nao pode sair de quatro paredes. Ha um equivalente desse processo quan- 27 do pensamos nesse novo espaco que é o da vida digital. Rapida- mente, a oferta de poder se contactar com qualquer um gerou fenémenos de sexualizacao e de condominizagao. E claro que os presidios sio os grupos mais ou menos abertos, as comuni- dades definidas por gosto ou afinidade. Ou seja, microlugares, sites ou equivalentes, nos quais nos instalamos e depois de al- guns meses nao saimos mais. As redes sociais podem aprofun- dar o isolamento de alguém quando olhamos para a tirania do sucesso que elas impdem como fenémeno discursivo. Boa parte disso decorre de uma estratégia um pouco defensiva, uma vez que os perigos e as facilidades do anonimato deram ensejo a todo tipo de cyberstalking. Passada essa fase, preferimos nos defender com 0 proprio nome em vez de um nickname ou um avatar. Isso nao muda e na verdade amplia a poténcia destruidora da vida a céu aberto, basta ver os headhunters e as entrevistas que incluem uma vistoria virtual antes de admitir alguém em um emprego. A complexidade e 0 risco social representado pela conversa “vir- tual” atacarao quem nao tem nada a perder e os que temem por sua imagem. Essa busca de alguma “celebridade obtida com o sangue de celebridades” afasta aqueles que precisam e buscam um pouco de autenticidade na relacdo com outros, mesmo que mediada virtualmente. Ocorre que, ao final, as coisas se repli- cam. Assim como no mundo real, a introspeccao e 0 isolamento so vencidos a custa de muito trabalho “hermenéutico’, ou seja, a custa de muita decifragio de cédigos, discursos, esquemas de relacao e formas de intercambio que se dispersam em ambien- tes muito diversos. Por exemplo, da muito, mas muito trabalho encontrar alguém por meio de sites de relacionamento do tipo Par Perfeito, mas a graca talvez esteja justamente nesse esfor¢o. Podemos dizer que tanto a impossibilidade de ficar 28 — sozinho, traduzindo essa experiéncia em isolamento e fra- casso social, quanto a impossibilidade de ficar junto com outros, sentindo essa presen¢a como intrusio e perda de autonomia, sio modalidades de sofrimento. Mas é possivel ainda que as duas ocorram ao mesmo tempo. Nao é por termos nos tornado mais individualistas, egoistas e narcisicos, mas porque nossa tole- rancia a desvios e inadequacées de imagem ficou mais sensivel medida que gramaticas do espaco publico avancam sobre 0 espa- ¢0 privado e, assim, reciprocamente. O que os outros acham de nds tornou-se mais e mais importante quando generalizamos 0 principio geral da distingio em termos de linguagem, trabalho e desejo. Contentamo-nos cada vez menos em ser uma coisa no trabalho e outra em casa, em desejar de uma maneira na fami- lia e de outra na carreira, em nos expressar de uma forma com os amigos e de outra com os colegas. Forgamos assim os limites para a sustentacio de identidades segundo critérios cada vez mais exigentes de autocoeréncia e autenticidade. Contar-se ape- nas como mais um, sentir-se irrelevante, perceber-se consumin- do e opinando como todo mundo gera cada vez mais dissonancia. Ha cada vez menos conforto em se perceber como parte de uma comunidade de semelhantes indiferenciados. Dito isso, poderia- mos agrupar os sofrimentos narcisicos em dois conjuntos: a) Os que procedem da experiéncia de esvaziamento, no qual nos sentimos como um tubo ou como uma imagem trans- parente, pelo qual as coisas passam, mas nada de relevan- te fica e é realmente digno de ser vivido. Na literatura é 0 tema de Frankenstein, o monstro formado por pedacos de outros corpos, que sofre de uma insaciavel vontade de en- contrar 0 outro. Como os replicantes do filme Blade Run- ner, o cacador de androides, de Ridley Scott [1982], su- jeitos oprimidos pelo sentimento de inautenticidade. 29 30 Como zumbis, autématos ou vampiros, que precisam da pre- senca do outro para se sentirem vivos. O esvaziamento de si, sob certas circunstncias, pode levar a uma penetrante capacidade de enxergar o mundo desprovido de ideais, ilu- sdes e desejos. O protétipo aqui é a melancolia grega, his- toricamente associada com a alta capacidade criativa e de pensamento. Estar vazio envolve uma interpretacao do es- tado de nossos lacgos de reconhecimento quando a énfase recai sobre si mesmo; basicamente, quando sinto que nao mereco ser reconhecido por aqueles que eu gostaria de ser reconhecido. 'b) Os que procedem da experiéncia de “isolamento”, no qual nos sentimos apartados do outro, seja ele nossa comuni- dade de origem, nossa familia ou nosso niicleo central de reconhecimento. Na literatura é 0 tema do desterro, do exilio ou daquele que se sente solitario em meio 4 multidao. Nao é que ele se sinta vazio, mas ele nao sabe mais quem ele é as vezes nao se preocupa com isso. No cinema, sao bem representados pelos personagens de Humphrey Bogart, ti- picamente densos por dentro, mas isolados ou esquecidos se consideramos sua situagao social. O isolamento com re- lac4o ao outro pode levar a uma impressionante capacidade de auto-observacao, a apatia ou ao desespero e incerteza. O protétipo aqui é a acidia medieval, ou seja, uma espécie de desolacao ou inseguranca da fé que atacava os monges enclausurados (na origem, era um dos sete pecados capitais, posteriormente substituido pela preguica). Estar isolado envolve uma interpretacao do estado de nossos lacos de re- conhecimento no qual 0 acento recai sobre 0 outro; basica- mente quando nao sinto que estou sendo reconhecido por aqueles por quem eu gostaria de ser reconhecido. O temor da solidao é 0 temor do deserto e o temor do desterro. A maneira mais simples de reencontrar a propria solidao é a viagem solitaria: a leitura ea musica em primeiro lugar, mas a via- gem real também, como em Comer, rezar, amar (Eat, pray, love, Ryan Murphy, 2010]. A maior parte das pessoas pensa que 0 amor é uma experiéncia comunitaria. Em grande medida, ele é uma experiéncia de solidao. Os infinitos espacos de tempo, que nao passam nunca, entre um encontro e outro, as interminaveis es- peculagées de citime, os temores da perda, os didlogos que faze- mos e refazemos com a cabeca no travesseiro sao todos efeitos da impossibilidade de ficar s6, que a experiéncia de amar convidaa fazer de modo radical. E por isso também que a pior e a melhor forma de solidao é aquela que se vive a dois; a segunda pior expe- riéncia de soliddo é aquela que se vive quando nos sentimos an6- nimos em meio 4 massa, quando sentimos que todos os outros pensam, agem e vivem de uma maneira diferente da nossa e que a nossa diferenga é uma diferenca que nao faz diferenga. A solidao benéfica nunca se estrutura em torno de Eu nao preciso do outro. E justamente quando me dou conta de que pre- ciso do outro, mas nao absolutamente, que a solidao se torna um espaco criativo. Ou seja, nesse momento ela deixa de ser senti- da como experiéncia deficitaria. A solidao patoldgica é sentida como humilhagao social, 0 que costuma ser resolvido por meio de mais e maiores praticas de isolamento, distancia e controle so- bre a presenga do outro ou por meio de préteses na qual mimetizo estados de compartilhamento com o outro, que na verdade sao divisdes de falsa solidao. Solidao benéfica é solidao reconhecida. Cultivo da solidao é cultivo do Outro que nos habita. Ha pessoas que jamais vio sozinhas ao cinema ou a restau- rantes, pois elas tém certeza de que todos a sua volta estio olhando e dizendo (ou pensando): Veja aquele solitério, um 31 fracassado que ndo conseguiu granjear respeito, amizade ou amor de ninguém. Esse é um exemplo da solidao patoldgica, ou seja, aquela que é sentida como deficitaria. O truque aqui, natural- mente, é que de fato a pessoa estd as voltas com um fracasso (e, no mais das vezes, ela sabe disso), mas nao é o fracasso de conquistar o outro, mas 0 fracasso de ficar sozinha. Se alguém nfo é capaz de inventar uma vida interessan- te sozinho, se a coisa mais interessante que pode acontecer na sua vida é encontrar alguém que te diga que vocé é interessan- te, isso ocorre porque... vocé nao é interessante. Muitas vezes a presenga dos outros é sentida como fonte de irritacao, invasao ou perda de intimidade, justamente porque ela nos priva deste bem maior que é a solidao. Bem que pode, sob condicées muito especiais, ser partilhado com o outro. O inicio do tratamento psicanalitico é precedido por um periodo de entrevistas no qual analista e analisante travam os primeiros contatos, ganham confianga ¢ preparam-se para a grande viagem. Muitas discus- sdes técnicas intrincadas ocorreram para definir exatamente quais seriam os critérios que separam tais entrevistas de ensaio do inicio do tratamento propriamente dito. Ha um critério que me parece sempre o melhor, por ser pragmatico e eficaz em sua simplicidade: esse momento acontece quando paciente e ana- lista podem ficar em siléncio, ou seja, nao é que devam nem se conduz as coisas para que isso ocorra. Mas quando isso acontece, sem que nenhum dos dois tenha que cobrir 0 abismo da solidao com alguma palavra vazia, come¢a a anilise. Estar cercado de gente nao é o mesmo que estar fazendo sua parte no teatro do mundo, cultivando e aprimorando seu per- sonagem, ganhando alguns gramas a mais de reconhecimento e atencao. Estamos cercados de gente quando vemos uma 32 dpera ou quando vamos a um show de rock, mas naquele momento parece que ha uma tinica conversa entre a solidio do cantor e a nossa. Sabemos que precisamos de solidao quando nos sentimos vazios ou isolados. As patologias da solidao apontam que esta- mos em falta com a verdadeira solidio. A coisa se torna vene- nosa, porque nossa primeira reacao é combater esses estados de isolamento e 0 vazio com “falsas experiéncias de solidao” ou com. “proteses de experiéncias de reconhecimento’”, as vezes com fes- tas, outras pelo engajamento em conversas ou relacdes “vazias’. Dessa maneira construimos um modo de vida no qual a so- lidao sé vem mesmo na forma de insénia. De repente, a benéfica e importante solidao sazonal virou um modo de vida, baseado na fuga ao vazio e na luta contra o isolamento. Ou, pior ainda, a fase terminal, quando a solidio desdobrada em vazio e isola- mento nem mais é sentida como tal, identificando-se de tal for- ma com a vida em geral ressentida, empobrecida e desvitalizada. Um bom teste pratico para isso é 0 seguinte: Toda vez que nao ha nada te ocupando, vocé pega um cigarro, pensa numa garrafa ou tenta abrir 0 Facebook? Toda vez que comegam as férias ou chega domingo a noite, ou os filhos saem de casa, vocé sente um vazio composto de dolorosa tristeza? Esta na hora de tentar ur- gentemente uma solidao de verdade. Os momentos de real importancia na transformacio ou passagem de um momento para outro ao longo da vida sao pre- cedidos por pequenos periodos de autoisolamento e esvaziamen- to de si. E comum que jovens mies clamem por alguns minu- tos de trégua e nao é apenas pela dureza da tarefa exigida pelos cuidados com os filhos, é porque a nova condicao de mae exige solidao, o que as circunstancias desfavorecem. Autoisolar-se é uma maneira de deixar a voz e o olhar do outro esvaziar- -se do Outro, de ver nossa propria situacao “de longe” ou 33 inversamente “em uma proximidade inexplorada’. Por isso ela é considerada uma condi¢io para o desenvolvimento da autono- mia, da independéncia e da emancipacao. Nao porque isso gera uma individualidade que prescinde do coletivo social, mas por- que isso permite reconhecer melhor o tipo de posicao na qual nos encontramos em rela¢ao ao Outro. Em vez de isolamento, prefiro a palavra separacdo. Ou seja, separar-se do Outro é um movimento, um tempo, que é absolutamente necessario para poder estar com o outro. Mas geralmente sé nos damos conta disso quando ja é tarde demais. Os bons vendedores intuitivamente sabem disso. Depois de invadir e seduzir 0 potencial comprador com vantagens e infor- magées sobre o produto, eles sabem propiciar aquele momento de intervalo, esse tempo de decisdo, o instante que torna 0 movi- mento auténtico e seguro para o proprio sujeito. A nogao de isolamento é um pouco descritiva demais. O que é alguém isolado? Alguém que nao vé pessoas ou que nao se interessa por elas? Alguém que pode estar préximo do outro de forma asfixiante, mas que é incapaz de se colocar em seu lu- gar, esse alguém pode estar vivendo um isolamento imaginario agudo. Ou seja, 0 autoisolamento é uma experiéncia simbédlica, e nao uma exclusio fisica. Pense no castigo que ¢ a prisdo e veja se ha ali algum isolamento ou privacidade. Por outro lado, ha o isolamento, que é a interpretacao de que se esta sendo afastado ou segregado pelo outro. Aqui entra um dos principais fatos in- dutores da solidao patoldgica, ou seja, a indiferenca como recu- sa de reconhecimento simbélico do outro. Ou seja, a solidao é tao fortemente repudiada pelo indivi- duo, mesmo em estados de isolamento e esvaziamento, porque ela se associa fortemente aos estados de desprotecao e inse- 34 guranca. Dessa maneira ela se torna rara, ainda mais rara se pensamos que o consumo é sua protese espontinea. Estar fa- zendo alguma coisa pode se tornar um antidoto venenoso con- tra a solidao, isso porque o trabalho da solidao é um trabalho de suspensio de si. Nada mais distante da verdadeira solidao do que aquele que a identifica com o conhecimento de si, pois afinal isso nao é solidao, mas ocupar-se consigo mesmo, como aquele que se inspeciona diante do espelho. Aconstrugio da solidéo aproxima-se mais do recolhimento e da procura de certas experiéncias produtivas de indetermina- cao. Experiéncias de perda de si, de suspensdo de si, de incerteza de si. Nao se trata de descaso, afinal ja se mostrou que a solidao patoldgica, como corrupgao de lacos sociais, é muito prejudicial a satide. Isso é simples de entender: cuidamos de nds mesmos através dos outros; aquele que se demite dos outros, geralmen- te corta os laos e os meios para cuidar de si mesmo. Experién- cias de indetermina¢ao podem envolver, por exemplo, a atragao por situacdes de risco, como se observa em certas adolescéncias. Elas podem envolver a produgio calculada, ainda que incons- ciente, de desequilibrios relacionais. Podem aparecer em expe- riéncias de transformacao, reversivel ou irreversivel do corpo. Podem vir por meio da investiga¢ao de estados alterados da cons- ciéncia, quimica ou experiencialmente induzidos. Podem envol- ver 0 cultivo e a valorizacao de experiéncias de estranhamento, calculadas ou involuntarias, como as que produzimos quando viajamos ou nos langamos em um novo universo. E possivel que a solidao tenha uma relacdo com um fené- meno conhecido como resiliéncia, ou seja, a capacidade de recuperar-se e de reconstituir lagos rompidos ou precarios. O conceito de resiliéncia tornou-se popular na psicologia da vi- rada do século xx ao denotar principalmente nossa capa- cidade de recomposicao. Na fisica, o fenémeno descrevea 35 propriedade que um material possui de voltar as suas condi¢ées iniciais depois de passar por deformagées. Sofrer fortes emo¢ies ou afetos disruptivos nao é um grande problema desde que nao se espraiem tomando conta da vida do sujeito, reproduzindo-se indefinidamente em contextos distantes daqueles que origina- ram transformagées iniciais. Foi assim, alids, que Nietzsche chegou a este grande diagnéstico da modernidade, ou seja, 0 ressentimento. Sentir de novo, re-sentir, propagar e fixar-se ao que foi sentido uma vez, eis um critério negativo de resiliéncia. Também os impulsos, nossos e dos outros, sao condicgdes que nos atravessam o caminho frequentemente, mas para alguns isso se torna contagioso, o que leva a ciclos fechados de impul- sividade ou a repeti¢ao entrépica sob a forma de impulsividade e reatividade permanentes. Acredita-se que pessoas resilientes mantém uma perspectiva de que é possivel transformar sua pr6- pria situacdo e que a sua varia¢ao é esperada e por isso estariam mais sensiveis as alteracdes do meio ambiente e aos outros, com os quais conseguem partilhar sentimento e emogées (empatia). Observemos que a emergéncia do conceito de resiliéncia e 0 declinio relativo de seu conceito antecessor, 0 stress, pode ser entendido em um contexto ideolégico de expansao do neolibe- ralismo. Aprender a gerenciar suas emogées, principalmente a raiva e o citime, retornar rapidamente a um estado subjetivo an- terior, reduzindo a capacidade de permanecer afetado por uma transformacio, manter o otimismo e expandir a rede de rela- Ges sociais compéem um perfil de funcionamento compativel com trabalhos em horarios flexiveis, excesso de interveniéncia micropolitica nas empresas e, sobretudo, uma autoimagem de sicomo empreendedor. O fenémeno é muito curioso, pois pessoas altamente 36 munidas de bens simbélicos e relacionais podem ser mui- to menos resilientes do que aquelas que enfrentaram sérias ad- versidades na vida, sem aparentemente nenhum recurso para atravessd-las. Afinal, basta reconhecer a forca do dito popular que encontramos nas mais intimas aspiracdes que pais e maes tém para com seus filhos: Espero que vocé cresca firme e forte, ca- paz de se virar sozinho. a7 PRECISO DEUM TEMPO SO PARAMIM Esta mulher que apare- ce em meu sonho, veja bem, ela nao é minha mae. Diante de esforcos espontaneos para negar algo, Freud argu- mentava tratar-se de uma nega¢ao, também conheci- da como denegacao (Verneinung), ou seja, uma manei- ra de dizer a verdade ali onde se mente, uma maneira de se colocar ali mesmo onde dizemos que nao estamos, uma for- ma de dizer 0 contrario do que se quer dizer. Existe uma politica das negacdes em psicanilise que nos ensina a levantar suspeitas sempre que alguém coloca intensidade ou veeméncia demasia- da na negacao de algo. E por isso que um Nao quero te ofender, mas... prenuncia uma ofensa vindoura e que aquele que exagera em dizer que seus comentarios sao pessoais geralmente trai sua ambicio de conquistar as massas. Um analogo contemporaneo da denegacao classica pode ser encontrado nesta formula cada vez mais insistente no interior das relacdes amorosas: Preciso de um tempo sé para mim. Cada vez que escuto tal formula me prepa- ro para descobrir uma denegacio. Ela pode selar 0 encerramento de um casamento, anunciar uma pausa estratégica na relacao ou aliviar o brutal Nao te amo mais. HA trés situacdes diagndsticas que costumam produzir tal declaragao, correspondendo a trés maneiras distintas de negar o tempo: depressivos, neuréticos obsessivos e jovens maes com filhos pequenos. Na depressao, esse apelo por mais tempo tem o sabor tipico daquele que quer se curar ingerindo mais veneno. Mais tempo para desperdicar, mais tempo para ser entregue ao grande deus do vazio ingestor de noites insones e fins de sema- na desérticos. Assim como o anoréxico come “nada”, o depres- sivo come tempo. Mas ele nao esta completamente equivocado em sua demanda. Ele pede mais tempo, no sentido de certa 38 qualidade temporal que permite concluir sua inser¢ao no desejo do Outro, ou seja, para que ele tenha certeza de que real- mente quer o que esta pedindo. Aqui a traducao deveria ser: pre- ciso de um tempo, de um certo tipo de tempo, ainda que nao saiba bem do que esse tempo ¢ feito. E 0 tempo de separacao do tempo do Outro. Na neurose obsessiva, que tio comumente confundimos com o discurso masculino, trata-se de outra coisa. Aqui, um tem- po s6 para mim opée-se a um tempo para o outro. Amar é oferecer sua presenca. Como 0 obsessivo estima que o outro lhe pedira amor infinito, quanto mais ele da, mais ele se sente obrigado a dar, terminando por sufocar-se, sozinho, com sua propria espe- culacdo. Essa é a raiz do movimento pendular pelo qual é impos- sivel estar junto de quem se ama, mas é também impossivel fi- car separado. Como a demanda do outro é sentida como infinita ea presenga do sujeito, como finita, a situa¢ao sé pode terminar na insustentavel e angustiante posicdo deficitaria baseada na solidao a dois. Contudo, a separacao, igualmente vivida como so- lidao, também é impossivel, porque ela gera distancia e a dis- tancia gera a falta que, por sua vez, causa o desejo. Portanto, de longe te desejo; de perto sou consumido por sua demanda. Solu- ¢40? Eu preciso de um tempo, sé para mim, todo meu, no qual vocé ndo se intrometa em palavras, atos ou pensamentos. Dele emergi- rei senhor de meu proprio tempo e soberano de minha propria falta, compreendendo o que quero. Esse tempo da dominacao do tempo do Outro vai dar errado (quase) sempre. Finalmente, entre as jovens mies acossadas por filhos pe- quenos, 0 tempo para mim é o tempo para lembrarmos que um dia nao fomos maternas, que nem sempre a vida resumiu-se a trocar, lavar, mamar e cuidar. Nao é sé 0 intervalo de tempo no qual nao é preciso fazer nada, mas também nfo é necessario ser nada. Deixar de ser imprescindivel, deixar de ser para, deixarde 39 ser em um tempo que nao nos pertence mais. Ele pode evoluir para o tempo morto do Candy Crush ou para a anestesia alcodlica ou televisiva, mas no principio era apenas um instante. O instante salvador de um tempo no qual a negacao incide sobre o precisar. O tempo indefinido do depressivo esta apaixonado por sua propria conclusividade e por isso ele precisa de mais lentiddo e de menos extensao. Nada ha de mais depressivizante do que 0 apressamento da demanda do Outro, antes que o proprio sujei- to se reconhega nesse processo. Por isso o depressivo pede, com toda pertinéncia, por mais tempo. Um tempo de hiato, de férias, de parénteses na vida, a partir do qual ele podera finalmente se engajar em seu desejo entao redescoberto. A demanda é ver- dadeira e falsa porque, quando damos esse tempo em solidao, geralmente o que emerge sao novos empuxos de juizo critico, auto-observacao e comparacao tao venenosos para o depressivo. Portanto, é preciso acompanhar o tempo exato do depressivo em. toda a sua lentidao prépria, mas nao sancionar a realizacio de seu sonho de suspensao do tempo, que alias ele ja esta vivendo em seu pesadelo de uma vida onde o sol nunca se pée. A sincro- nizacao com a lentiddo na experiéncia subjetiva da temporalida- de é frequentemente confundida com aumento do tempo deso- cupado, tempo jogado fora, tempo morto. Quando o depressivo pede descompressao, relaxamento e trégua na demanda diaria e se contenta com isso, trata-se de uma mudanga qualitativa e nao quantitativa na experiéncia do tempo, que geralmente os que o cercam nao conseguem ler. O tempo infinito da compreensio obsessiva é servo de sua propria alternancia e por isso ele requer mais risco de perda, ne- cessdrio para fazer antes de pensar. Assim como o depressivo esta sempre concluindo, preso no jd antecipatério, o obses- 40 — sivo est sempre pedindo adiamento. Sua procrastina¢io nao é um pedido de lentificacao, mas de aderéncia as condigées desejantes. Ele precisa saber mais, ponderar melhor, apropriar- -se do tempo do processo. Quando tais condigées forem realiza- das, ai sim comegara 0 jogo da vida. Antes disso, ele esta em uma espécie de limbo, observando as faganhas que ele deve realizar ou lamentando as possibilidades perdidas. No fundo trata-se de uma espécie de luta imaginaria para saber quem é 0 senhor do tempo: eu ou 0 outro? Tratando o tempo como dinheiro que se pode possuir, trocar ou emprestar, este tempo so para mim é um. apelo de exclusividade. Em torno disso ele desenvolve seu apelo pela compreensio infinita. O mais dificil no tratamento desse sintoma é mostrar como ele ja perdeu o que imagina possuir. O tempo das jovens maes, que também dizem Onde esta meu tempo?, nao se trata com mais lentidao experiencial nem com a realizacao da perda, mas coma abertura para o fato de que neste instante esta o infinito. E isso basta. Enquanto o depressi- vo quer fazer do tempo uma unidade da qual ele estaria de fora 0 obsessivo procura fazer do tempo um reino sé para si, as jo- vens mies inventam um tempo reduzido ao instante eterno en- quanto dure. Por isso, tipicamente é uma demanda por algum tempo, ndo muito, nem exagerado, como que para confirmar ou lembrar, para si mesmas, que é possivel e que ja existiu em suas vidas outra temporalidade. E um instante autodidatico que confirma, a cada ocorréncia, que a maratona de cuidados e de devogio 4 causa materna nao consumiu todo o ser do sujeito. Quando esse instante nao acontece, quando a mie nao conse- gue se desligar subjetivamente de sua crianga, corremos todos os riscos de uma depressao ou de uma psicose pés-natal. Porque aquilo que nao se pode fazer simbolicamente come¢a a se impor como ago na realidade. Al AMELANCOLIA DE OZYMANDIAS Para a psicanilise, o luto nao é apenas a experiéncia da perda e o trabalho de sua recomposi¢ao, mas um modelo e protétipo dos processos de simbolizacao sobre os quais se erige a cultura. O tema é vasto e nobre desde que Montaigne nos ensinou que escrever é aprender a morrer e Hegel insistiu que o espirito é 0 osso ea cultura, suas ruinas. Também para Freud a sequéncia histérica dos fracassos esquecidos e in- vertidos em sucessos monumentais regula a génese da cultura como sistema de transmissao simbdlica da experiéncia. E a his- toria dos desejos desejados, para retomar a expressao de Kojéve. Recentemente Slavoj Zizek' retomou o problema reinter- pretando nosso fracasso em fazer o luto como causa do empo- brecimento de nossa imaginacao politica. E ele chega a detalhar o impasse recorrendo aos cinco tempos do luto descritos por Elisabeth Kiibler-Ross: negacao, raiva, negociacao, depressio e aceitacdo. Fazer o luto, como qualquer psicanalista advogara, nao é meramente esquecer ou desligar-se de um ente ou obje- to querido. Implica reconstruir relagées que se revelam apenas apés a perda; é descobrir do que eram feitas tais relagdes para, em seguida, ativamente, deixar que o Outro nos deixe. Contu- do, o grande drama é que nao sabemos de saida 0 que foi per- dido. Momento tragico no qual o melancélico se fixa. Assim, 0 processo comeca pelo inventario marcado pela lembranga com- partilhada daquilo que nao sabemos ainda a extensao nem a es- séncia. Diante do luto nos sentimos solitarios como os ultimos homens de Nietzsche. Contra esta concepcio “ressurrecional” em *_* 2itek, Vivendo no fim teoria da cultura, devemos lembrar que 0 mo- dostempos. mento de luto mais dificil e mais controverso S#?Paulo: Boitempo 42 de ser descrito clinicamente é a quinta fase: _ Editorial, 2012. a aceitagao. Para Hegel, o problema remonta ao fato de que o luto é infinito, a conversa da cultura é intermindavel, para voltar ao Blanchot piorado. Essa outra maneira de abordar o problema comeca com 0 poema “Ozymandias”, escrito por Percy Shelley em 1818, retra- tando a imensa estatua de Ramsés 11, que termina enterrada nas areias do deserto, esquecida e fragmentada. E no pedestal estaria escrito: “Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:/ Contemplem as minhas obras 6 poderosos e desesperai-vos’/ Nada mais resta. Ao redor a decadéncia/ daquele destroco colossal sem limite e vazio./ As areias solitarias e planas/ espalham-se para longe”. Na década de 1970, o desenhista Alan Moore criou 0 perso- nagem da série Watchmen chamado Trovejante (Ozymandias no original), alguém de rara inteligéncia e dominio corporal que envelhecia muito lentamente. E 0 tema reaparece no rock do Sisters of Mercy e no cinema de Woody Allen, finalmente eleva- do a categoria de “melancolia de Ozymandias”, mencionada por varios de seus personagens. Trata-se agora de uma espécie de de- sespero narcisico do criador quando se depara com 0 fato de que, por mais perfeita que seja sua obra, ela e, consequentemente, ele desaparecerao. E é uma “desaparecéncia” no presente. Uma perda da qual ele esta convicto da extensao e da esséncia. Vi- ver para uma obra, viver para o trabalho, viver para os filhos, viver para contar, torna-se assim um falso destino. Nao se trata apenas da licao de humildade diante do futuro infinito, mas do enterro da linguagem no presente. E 0 sonho recorrente de Primo Levi. A guerra acabou, ele escapou dos campos de concentra¢ao, regressando para casa com a familia. Mas, ao tentar contar o que viu, todos 4 sua volta comegam a bo- cejar e, um a um, deixam a mesa, até que ele fica sozinho. O mesmo acontece com as vitimas de estupros na guerra 43 da Bésnia, que se suicidam quando voltam para casa e desco- brem que nao ha ninguém interessado em ouvir sua historia. Tudo se passa como se o trauma adquirisse uma nova forca a medida que ele nao é reconhecido. E como se ele se realizasse uma segunda vez, primeiro na experiéncia do mau-encontro, segun- do na impossibilidade de compartilha-lo narrativamente. Para Freud, o trauma nao é apenas o encontro com uma experiéncia intrusiva, hostil ou sexual, que pode acontecer de forma mais ou menos empirica na vida de uma pessoa. O trauma é um dispositi- vo de subjetivacao, ou seja, por meio dele nos constituimos como sujeitos. Por isso nao importam os cuidados ou o esmero educati- vo; seremos traumatizados em alguma medida. Isso significa que os traumas se acumulam, se reinterpretam, se remetem uns aos outros em uma estrutura semelhante a de um acontecimento que nunca termina de terminar. Por isso traumas vém com figuras como fantasmas, zumbis e vampiros que nos reenviam ao passa- do que nao passa, o passado que volta dominando nosso presente. Esse, no fundo, é um dos modelos freudianos para nossos pro- cessos de socializagao ou mesmo de culturalizacao. Entramos em. uma existéncia com supostos e determinagées que desconhece- mos, por exemplo, o fato de nossa mortalidade, da desagregacio de nossos corpos ou da insuficiéncia de nossas leis para nos ga- rantir a felicidade. A descoberta desse tipo de condicao é sempre e inevitavelmente traumatica. Por isso a cultura se transmite como o trauma. Isso nao justifica nem reduz o papel dos traumas es- pecificos e seus efeitos deletérios, que, todavia, podem ser expli- cados por esse processo maior. A intuicéo de Ozymandias tenta tratar o traumatico da finitude com uma espécie de permanéncia em forma de pedra, ou seja, de simbolo. E Ozymandias tornou- -se ele mesmo um simbolo da evitacao do luto, inclusive do 44 — luto da perda de si, pela nossa integracao a cultura. COMECARETERMINAR Um clique e anos de fotografias, marcas de uma histéria de amor, desaparecem para sempre. Dois cliques e todos os ntimeros dela sao desintegrados para sempre do telefone celular. Trés cliques e o Facebook altera o estatuto de uma relacao, adicionalmente apagando todos os contatos, a partir de entio, indesejaveis. Quatro cliques e os e-mails dele vao para o cemitério infinito, sem lugar e sem rastro. Aquele cujo nome nio deve mais ser pronunciado foi devidamente excluido de sua vida. Vocé esta pronto para comegar de novo. A verdadeira rela- cao liquida deve corresponder ao que alguns analistas de consu- mo chamam de geracao teflon, ou seja, feita para que nada grude. Tida como inodora, insipida e transltcida, essa forma de vida inspira duas dificuldades que tém merecido vasto esforco inter- pretativo dos psicanalistas: a separacao e 0 compromisso. Boa parte da literatura sobre luto, perda e separacao trata também, indiretamente, de outro tema infiltrado: o dificil tra- balho de comegar de novo. Certos clinicos argumentam que um grande amor sé acaba quando conseguimos outro. De fato, mes- mo sozinhos continuamos amando. Cedo ou tarde, os amantes comecam a dar os bracos uns aos outros, como em um anel de benzeno que se fecha em si mesmo. Reconstruimos histérias imediatas ou antigas, reforgamos os lacos colaterais de amizade, reinvestimos nas ligag6es primarias, criamos amores possiveis com a literatura e 0 cinema. Reinventamos amores impossi- veis com nossa meméria e fantasia. Freud dizia que a neurose ataca nossa capacidade de amar, substituindo-a pela fuga da rea- lidade, quando nosso objeto se esvai, ou pela fuga para a realidade, quando é nosso “aparelho de amar” que se vé danificado. Na década de 1990, cardiologistas japoneses descreve- rama sindrome do cora¢io partido (sindrome de Takotsubo) 45 como um quadro em tudo similar a um ataque cardiaco, com testagem positiva para enzimas e alteracao do funcionamento do ventriculo esquerdo, mas sem obstrugao coronariana. Con- tudo, o quadro é reversivel em pouco tempo e nao deixa seque- las, afetando caracteristicamente mulheres em pré-menopausa que passaram por grandes perdas ou desilusGes amorosas. A sin- drome esta associada ao estilo de vida moderno, que vem trans- ferindo para 0 universo das relacdes amorosas os principios de desempenho, avaliacao de resultados, analise de risco e seguran- ga juridica que presidem as relagées de trabalho e produgio. A descoberta faz lembrar um experimento classico realiza- do por Martin Seligman.* Comparam-se dois ratos que nadam. em um tanque de 4gua. O primeiro nada livremente até morrer apés duas ou trés horas. O segundo é retirado da dgua um pouco antes do momento critico e recolocado na mesma situa¢ao apds um periodo de descanso. O rato que passou pela experiéncia de ter sido salvo “no ultimo instante” parece ter aprendido algo muito poderoso. Ele é capaz de nadar por um tempo dez vezes maior que 0 outro. Examinando-se 0 cora¢ao do primeiro rato, nota-se que ele parou em bradicardia, ou seja, lentamente dei- xando de funcionar, como que derrotado pela tarefa sem sentido de nadar sem saber onde aquilo ia dar. Mas 0 coragao do segun- do rato estava em taquicardia pois ele lutou até colapsar. Também na clinica, algumas separagdes que nao termi- nam nunca talvez nao sejam casos de dificuldade em aceitar a perda, mas de recusa a comecar de novo. Aquilo que é sentido como insubstituivel no amor que se foi talvez seja o correlato de uma boa experiéncia ante- * ange rior de “salvamento no ultimo segundo”. De _ On Depression, Devel- acordo com Bauman, nossas relacdes pment and Death. San Francisco: W.H. 46 amorosas tornam-se cada vez mais liqui- Freeman, 1975. das, ou seja, desprovidas de lacos de compromisso e de fidelida- de, moldadas pelas condigdes do encontro, fluidas em relacao 4 efemeridade de nossos desejos e de seus fluxos de gozo. Essa ima- gem de como gostariamos de nos sentir torna mais penetrante 0 sofrimento imposto pela incapacidade de esquecer e passar para o proximo. Ser incapaz de reagir com indiferenga ao amor fugaz, que insiste em retornar em nossa memoria ou a nos perturbar com as noticias de sua felicidade (sem nés), aponta que a vida liquida pode estar negando um fragmento do lodo que a tornou possivel. Como se, além da agua transluicida dos tanques no ex- perimento de Seligman e sua expectativa de salvamento antide- pressivo, devéssemos contar com 0 fato de que as vezes somos capturados pelo lodo que obstrui nossa visio enquanto nadamos em desespero. A permanéncia irresistivel e insidiosa em algo que nos possui, com toda a sua sujeira, turvacio e amargura, talvez seja uma espécie de retorno do que a vida liquida recalca, uma vinganca de nosso desejo de permanecer para sempre, sem ter que comecar de novo. A sindrome do coracdo partido ataca na primavera e, de fato, essa sempre foi considerada a estacao dos comecos. Na vida em. formato de videogame aprendemos muito sobre como deletar pessoas, mas pouco sobre a arte de desistir, despedir e guardar as fotos de recordacao, com carinho e gratidao. 41 SOBRE A MORTE EO MORRER Entendo por concepcio pes- soal de morte a forma particular como alguém inter- preta e constrdi algum sentido para a finitude de si. Mas a concep¢io pessoal sobre a morte contém ou- tro aspecto, talvez mais importante, a saber, a forma como alguém lida ou elabora com a ideia da falta, da separacéo ou da auséncia de sentido que acompanha o temae a realizacao da ideia de morte. Esses trés angulos do problema de- vem ser conjugados no entendimento de como essa questao, ines- capavel ao homem, se cruza com as formagées psicopatoldgicas. Por exemplo, sabe-se que a depressao se caracteriza pela presenca de ideias de morte. Ideacao que pode variar desde a aparicao subita e intrusiva de imagens de morte (acidentes) até a lembranca de situagao em torno da morte (funerais), a evoca- cao e o sentimento da presenga de entes perdidos e ainda, nos casos mais graves, ideaco suicida. Tais experiéncias incidem de modo diverso em alguém que acredita na vida apés a morte - de modo mais ou menos ligado a uma religiio codificada, a uma metafisica pessoal ou a um culto comunitario - e em alguém que é ateu. Elas podem ser sentidas como “premonitérias’, ¢ dai adquirirem uma tonalidade persecutéria; ou como “puni- tivas”, e dai adquirirem uma conotacéo masoquista, ou ainda ao modo da aparicao de ideias “irracionais’, e dai adquirirem a conotacao de perda de controle. A psicopatologia moderna comega quando a experiéncia da “perda de si” deixa de ser remetida a intrusao de uma enti- dade magico-religiosa para ser associada aos conflitos da pré- pria condicao de vida do sujeito diante de sua historia e de suas relagdes com seus semelhantes. Na Antiguidade encontramos duas narrativas fundamentais sobre a origem do sofrimen- 48 to esua relacao com a loucura. A narrativa grega postula que sofremos em estado de possessao, quando os deuses se apo- deram de nosso destino, deliberam sobre nossa vontade e nos conduzem a decisées que nos tiram da “linha”. Delirar é basica- mente perder a linha que conduza aragem da terra onde se quer semear algo, deixar de sulcar 0 solo de modo paralelo, como as cordas deste instrumento musical que é a lira. Ao contrario dos herdis gregos, que sofrem porque estao sobredeterminados pe- los deuses, os herdis judaico-cristaos sofrem porque perderam sua relacao com a fé. Eles esto perturbados pela ira de Deus, como Isaias ou J6, estao a servi¢o do povo eleito, como Ruth ou Judith, ou cumprem um destino prometido, como Moisés ou Josué. Em todos os casos, sua fé é posta a prova, ea perda, a du- vida ouo descaminho na fé est na origem dos piores e melhores sofrimentos. Por isso podemos dizer que a experiéncia antiga da loucura concentra-se em torno da experiéncia de uma perda: a perda da propria vontade para os greco-romanos, a perda da fé para a cultura judaico-crista. A modernidade assimilou essa sa- bedoria antiga ao escolher a melancolia como grande paradigma de sofrimento, notadamente a partir do século xvr. Na melan- colia temos esse sentimento da perda de si, nao mais remetido a interveniéncia dos deuses e suas paixdes, nem a perturbacao da crenca, mas ao descaminho das experiéncias que nos fizeram. ser 0 que somos. Surge assim a conexo entre a maneira moder- na de sofrer e certa filosofia da histéria que nos fara entender que nosso sofrimento se insere em uma série de desejos dese- jados que nos precederam em nossa cultura, em nossa familia, em nossa histéria pessoal. Encontraremos uma segunda chave para a estrutura narrativa de nossas modalidades de sofrimento em nossas relagées com o que negamos, nossas alteridades mais ou menos fixas como a morte, a filiacao, nossas alienagoes compulsérias e as leis da troca social e desejantes que nos 49 s4o impostas. Aqui, herdamos dos antigos 0 sentimento de que no possuimos nossos préprios desejos porque no fundo eles sao desejos sobre 0 desejo do Outro, sio desejos que sé existem e sé se realizam na medida em que se vinculam ao desejo dos outros. Tanto nessa vertente do reconhecimento quanto na perspectiva da histéria, a loucura moderna se torna nao apenas experién- cia da perda, mas perda da experiéncia. Sentimento de uma vida que nao nos pertence, que nao é auténtica nem suficientemente livre ou justa. Ora, estar fora de si (estar fora da casinha), conforme a mais banal das metdforas para a loucura, é facilmente remetido a nar- rativas laicas ou religiosas sobre a propria natureza do sentido. Na experiéncia do panico ou de angustia extrema, ao lado dos sinais tipicos de taquicardia, opressao peitoral, desarranjos gas- trointestinais, dores de cabeca, formigamentos e vertigens, ha uma repentina apari¢ao de sentimentos invasivos com a caracte- ristica “sensagao de morte iminente” ou ainda, como muitos pa- cientes, desde os descritos por Freud em 1893, dizem: “sensagaio de enlouquecimento”. Ora, uma crenga pessoal, religiosa ou me- tafisica na sobrevivéncia da alma da pouco espa¢o ou admite com dificuldade a “auséncia de sentido” no interior da experiéncia hu- mana. Frequentemente o que entendemos como falta de sentido neste mundo representa outra forma de sentido em outro mundo. Tais pacientes podem entao interpretar sua propria experiéncia de “iminéncia de morte” como algo dotado de sentido, ainda que desconhecido para 0 sujeito, de tal forma que o sobreinvestimen- to dessa cren¢a poderia controlar melhor as crises. Ora, 0 que se nota muitas vezes é 0 contrario: a repeticao das crises de panico, apesar dos procedimentos protetores (oracdes, peregrinacoes, re- tiros etc.), pode colocar em cheque a propria vinculagao re- 50 _ ligiosa do sujeito, tornando o problema ainda mais extenso do que era em seu inicio. Por outro lado, aquele que esta mais acostumado a habitar um universo com falhas de sentido pode so- breviver melhor a essa experiéncia. Note-se que, se 0 critério é a auséncia ou presenca de sentido, aquele que confia na ciéncia ou que acha sua prdpria forma de vida sem falhas de sentido estara mais exposto a dificuldade de lidar com as crises de panico, ainda que subsidie sua crenca em um saber laico. No geral, pode-se dizer que a concepc¢ao pessoal sobre a mor- te interfere indiretamente nos processos psicopatoldgicos. Ou melhor, pode torna-los mais penosos ou aumentar a resiliéncia do sujeito. Sabe-se, por exemplo, que pacientes que possuem uma crenga religiosa possuem um progndstico de sobrevida mais fa- voravel diante de doengas graves ou terminais. F possivel que o ponto aqui seja a funcao “protetora” da crenga e de sua capacidade para tratar e tramitar as experiéncias catastroficas ou traumati- cas. Por outro lado, a concep¢ao mais vitalista ou espiritual da morte é estranhamente indiferente ao processo de adoecer anoré- xico ou bulimico. Ou seja, 0 sujeito sabe que seu emagrecimento pode levar 4 morte e tem um entendimento de que a morte possui conotacao magica, metafisica ou religiosa, mas isso nao interfere em suas praticas objetivas relativas 4 alimentagio. Da mesma maneira nas toxicomanias ou nos procedimen- tos de cutting e de autoagressao, a crenca pessoal em torno da morte estranhamente interfere pouco nas praticas sintomaticas ou impulsivas. O cutting é uma pratica cada vez mais frequente em mulheres, particularmente adolescentes, que diante de um sentimento insidioso de inadequagao ao préprio corpo ou dian- te da extrema dificuldade de reconhecer e fazer reconhecer seu lugar no Outro, realizam cortes em seu proprio corpo. Usando giletes, compassos, escarificam o préprio corpo (arrancan- do, mordendo ou beliscando) como forma de transformar 51 a angtistia flutuante em uma experiéncia de dor, muitas vezes associada com tonalidades eréticas. Trago marcante de tal sin- toma éa dimensiao dissociativa na qual ele é praticado: como se fosse uma “coisa” 4 parte na vida. Como se nao tivesse conse- quéncias em termos de cicatrizes ou marcas. De fato, tudo se passa como se fossem compartimentos psiquicos separados, agir dessa maneira e... morrer. A concepcao de morte comega a ser substituida por uma concep¢ao e um temor do processo de morrer. A dor, aimpotén- cia, a dependéncia, o desamparo que cercam o morrer tornam- ~se assim 0 concentrado de temores que nossa época define em associacao coma perda de si. Diante da morte, este mestre absoluto, é preciso ter algo que dizer. Nao algo a dizer para ela, mais habituada que esta aos atos, mas algo para dizer. O cavaleiro medieval que joga xadrez com a morte em O sétimo selo [Det sjunde inseglet, Ingmar Berg- man, 1957] nao quer dizer nada para a morte, mas dizer algo no tempo que resta. A morte é uma coisa, 0 morrer, outra. Morrer é saber que a morte existe e ainda assim viver. Muita gente faz essa distincao pratica ao dizer: Nao tenho medo da morte, tenho medo de sofrer, tenho receio de deixar as coisas em aberto, ou seja, tenho medo do processo de morrer. E isso que Lacan chamou de segunda morte, por contraste a primeira morte, que seria o final da vida. Como mencionado no capitulo 3, acima, Elisabeth Kiibler- Ross, em Sobre a morte eo morrer,3 descreve cinco fases regulares do morrer: 1) nega¢ao ou isolamento, 2) cdlera ou raiva, 3) nego- ciacao ou barganha, 4) depressao ou tristeza 2k Ribas. e, finalmente, 5) aceitacdo. Essa sequéncia foi Sobre amorteeo morrer (1969), 4% ed. Sio Paulo: Martins 52 para dissolugio amorosa, destruigio fa- Fontes, 1998. confirmada para perdas em geral. Vale miliar, bancarrota fmanceira, desastre ecoldgico, degradacao moral, perda de partes de nosso corpo. Inclui até mesmo a subs- tituicdo da imagem que temos de nds mesmos e que temos que deixar para tras a cada vez: da infancia para a adolescéncia, desta para a adultez e finalmente para a velhice. A cada mudanga de emprego, cada casa ou rela¢ao que abandonamos hd um luto por ser feito. As cinco fases foram descritas com base em pacientes terminais e um dos motivos para a controvérsia em torno da quinta fase é que, até entio, o processo parece ocorrer de forma simétrica naquele que se vai e naqueles que ficam. Na ultima fase ocorre uma dissimetria. Os que ficam tém que se haver com a culpa de sobreviver ea raiva de ser deixado, com o lento pro- cesso de despedir-se de quem se despediu de nds. Processo que terminara coma incorpora¢ao simbdlica daquele que se foi e que passara a fazer parte de nds. Nao apenas em nossa lembranga ou saudade, mas a fazer parte de nés ali onde nem mesmo sabemos que ele esta. Parte esquecida de nés, talvez a mais importante. No filme Biutiful (2010), dirigido por Alejandro Ifarritu, encontramos um homem, a quem restam dois meses de vida, que tem que colocar as coisas em ordem. Isso nao é lidar com os assuntos praticos, como se a vida fosse se resolver ao modo de uma equacao com suas variaveis. Essa dimensiao, alias, ¢ ma- gicamente resolvida quando ele se dedica a dar os poucos pas- sos que faltam em sua relacio com a prépria vida. Também no filme Além da vida (Hereafter, Clint Eastwood, 2010], encontra- Mos essa quase morte, que ¢ a vida como ela vem sendo; assim como em Amor [Amour, Michael Hanecke, 2012], a quase morte aparece na figura da esposa amada, vitima de Alzheimer. Qua- se morte por um tsunami, quase morte que rege a pergunta do irmio gémeo sobrevivente, quase morte daquele que vive nas imediagées dos que se foram. E essa quase morte que 53 aparece também no filme A janela [La ventana, Carlos Sorin, 2008], no qual um anciao aguarda a chegada do filho. Preso & sua cama, refaz um sonho inconcluso de infancia. A ascensao de filmes sobre a “quase morte” parece tematizar, em nossa cultura, a importancia crescente que reconhecemos na estrutura irénica da vida, ou seja, o interesse na falta de sentido. Eo que eugostaria de chamar de fase zero do morrer, fazendo um acréscimo a Kliiber-Ross e combinando isso com a nogao de “se- gunda morte” proposta por Lacan.‘ A segunda morte diferencia- -se da primeira e conhecida cessacao da vida que habita um cor- po porque ela ocorre como suspensao da “cadeia significante”. Ou seja, quando se da a experiéncia radical de que a existéncia pos- sui estrutura de intervalo e de que nossa esséncia vazia é com- posta pelo tempo. Nesse ponto ele pode considerar sua prépria falta no mundo, permitindo-se um novo inicio radical. Por isso poderiamos pensar que a segunda morte aproxima-se do luto de simesmo (a quinta fase de Kliiber-Ross), mas também da “quase morte”, como fase zero na qual nos destituimos como sujeitos. Seria preciso relativizar nosso mito neurdtico de que, sea vida é uma historia, os ultimos capitulos decidem tudo, ilusao de que o final de um processo contém toda a sua verdade. Uma das versées mais importantes desse mito tem Sécrates como personagem. Depois de beber a cicuta, o velho mestre esta ro- deado por seus discipulos, que aguardam uma palavra final de sabedoria, o momento sintético no qual a vida seria pondera- da contra seu prério limite e finitude. E nesse momento que Sécrates, o inventor da ironia filoséfica, teria dito: “Nao podemos esquecer que devemos um 4 J#edues Lacan, Osemindrio, livro galoa Asclépio”. vit: a ética da psica- Asclépio, fundador da medicina, era "#lisel1959-1960). Rio de Janeiro: 54 filho de Apolo e da mortal Corénis. Nasci- Jorge Zahar, 1988. do de cesariana, apds a morte de sua mie ele foi levado pelo cen- tauro Quiron, que lhe ensinou a arte da cura. Adquiriu tama- nho dominio das ervas e da cirurgia que podia trazer os mortos de volta a vida. Por isso Zeus o puniu, matando-o com um raio. Portanto, quando Sdcrates faz a mencao ao sacrificio de um galo a Asclépio, ele ironiza as possibilidades da medicina de cura-lo do veneno que havia tomado e ao mesmo tempo alude 4 possi- bilidade de sua imortalidade. De toda forma, nesse momento de quase morte ele tanto suspende a verdade de sua existéncia quanto anuncia sua subtracao, fazendo o luto de sua segunda morte logo antes da chegada da primeira. 55 VGC compartilhados A TRAICAO E SEUS HORRORES H4 um conto de Nelson Rodrigues que mostra um noivo hesitando diante do casamento a partir do dilema: E se ela me trair? E uma obsessao. Por mais que a apaixonada lhe ga- ranta fidelidade e amor eterno, a posicao do noivo é de suspeita radical e antecipada: E daqui a vinte anos? Nunca se sabe.... O dilema se resolve de forma tragica. O corpo da suicida jaz na cama ao lado da inscri¢do na parede: As mortas ndo traem. A logica da trai¢ao envolve a violacao de um pacto do qual se deduzem expectativas de fidelidade e lealdade. Nao ha traigao sem 0 rompimento de um contrato, mesmo que tacito. O con- trato é, por assim dizer, a promessa de eternizagio do desejo, sua garantia ao longo do tempo. A jura de amor, por exemplo, anun- cia que aquele sentimento nao cabe no tempo ao qual pertence, que se pode confiar no seu futuro. Ora, sem essa confianga, que estrutura a fidelidade, seria terrivel estar com 0 outro. Porém, mais terrivel ainda é quando essa confianga é total. Quando o outro é todo confiavel, os movimentos do seu desejo sao inte- gralmente antecipaveis, ele nao nos surpreende mais. E 0 tédio, verdadeiro contrario do amor. Se pudéssemos ser radicalmente fiéis, como queria o personagem de Nelson Rodrigues, nos con- gelariamos numa unica relacao amorosa. A fidelidade, nesse sentido, é uma espécie de ficco para suspender a morte e que paradoxalmente nos mortifica quando diz: Serei sempre idéntico a este que agora enuncia que te ama. O tragico humano é que seu desejo ¢ irredutivel 4 garantia prometida pelo contrato con-trai- do. Como saber que nao seremos jamais “seduzidos’? O desejo é prisioneiro de sua propria enunciagao, ele é seu proprio aconte- cimento. As mortas nao traem simplesmente porque nao desejam; elas sao absolutamente fiéis. 57 Considerar a questao nesses termos nao reduz o problema da traicao ao da relacao sexual fora do casamento, mas conju- ga o seu sentido a traicao realizada pelo herege, pelo delator ou pelo espiao. A traicio ronda o desejo, o que se modifica é 0 tipo de contrato. Se o “nao pecaras em atos, palavras e pensamen- tos” é tao impossivel de ser realizado, por que nao cessamos de enuncia-lo e pedi-lo 0 tempo todo? Trata-se de um efeito para- doxal, como se a forca de enuncia¢ao da lei incitasse o desejo de transgredi-la. As campanhas conservadoras contra 0 uso de dro- gas tradicionalmente ignoram esse efeito. As pessoas tomadas pelo citime também, Nada mais frequente que o citime doentio empurrando, convidando o outro 4 trai¢ao. O ciime, ao mes- mo tempo que exige reafirmagio do amor, aponta para 0 objeto proibido, enfeiticando-o. Por outro lado, ao assinalar a concor- réncia, o citime da oportunidade para a reafirmagio da escolha. Teu desejo por mim sera téo maior quanto maior for tua capacidade de nao me traires. Isso esta dito no citime. Historicamente, homem e mulher ocupam lugares distin- tos na trama da trai¢ao. Cabe ao primeiro enunciar e guardar a lei e a segunda transgredi-la pelo desejo. Na ideologia medieval, a mulher ¢ intrinsecamente perigosa pois incita o desejo, até en- tao inexistente, no homem servo burocratico da lei. Feminino, fé minus, aquela que tem féa menos, interpreta Tomas de Aquino. Até 0 inicio do nosso século a trai¢ao era tipicamente um perigo feminino. Do lado do homem ela era quase institucionalizada, e a trai¢do quando instituida nao é traicdo propriamente dita, mas um novo contrato, como no caso do sujeito que tem duas esposas, endo uma esposa e uma amante. Os bordéis, por exemplo, até o fim do século xrx eram casas abertas com alvara proprio expedi- do pelo governo, que impunha regras ao seu funcionamen- 58 to, o bairro, a presenca de uma lanterna vermelha, a visita regular de um médico do Estado etc. Era publicamente claro que do homem se esperava separacao entre sexo e amor e da mulher, a sobreposicao. Dai a tolerancia e as casas de tolerancia, dirigidas a traicao masculina, bem como o rigor com que se considerava sua eventual impoténcia. A virilidade machista, comumente as- sociada a homossexualidade, diz respeito ao lugar ondeo homem se encontra imaginariamente como causador do pacto. O homem institui a lei, a mulher a perturba. E claro que para institui-la ele deve dispor do que a antecede, o potencial de violéncia. Nisso se- guimos as teorias classicas do direito. Cria-se assim a figura do macho supremo em poténcia. A traigio se adere a ele como parte de seu personagem. A traicao obrigatéria deixa de ser traicao, 60 colapso do desejo que ocorre toda vez que ele se transforma em lei. A partir de entio, a saida é trair a obrigacao de trai¢ao. Com o declinio dos grandes lastros para pactos simbdli- cos, como o Estado, a Igreja e a familia, o contrato se privati- zou ecom ele a traicao. Ela passa a ser essencialmente amorosa; estar com 0 outro sem amé-lo é a suprema traicao. O vizinho é mera contingéncia. Ser traido ¢ muito menos uma humilha- cao publica, um sinal de falta de virilidade ou de beleza e mui- to mais uma denuincia de que nao se é amavel. Menos que de- sonra, trata-se de um ataque ao narcisismo. Esse deslocamento modifica as praticas de vigilancia. Se antes estavamos as voltas com técnicas de domesticac4o do corpo, interessa-nos agora a suspeita sobre o movimento do desejo. Capitu traiu Bentinho? A pergunta exerce atracao sobre nds porque o romance inteiro é construido com base na suspeita e nos reconhecemos como sus- peitadores e suspeitos por exceléncia. Nao confie em ninguém que confie em vocé, essa é a maxima cinica dos nossos tempos. Tragicas sao ainda as condicées do contrato contem- poraneo, quando a jura de amor se vé tomadacomouma 59 fala suspeita, quando o eu te amo se torna peca retérica da sedu- ¢40, quando ele nao promete sua eternizacao mas se conforma em sua efemeridade. Nesses termos é impossivel trair, mas é igualmente impossivel lembrar. Quando os contratos se endu- recem, sabemos demais quem somos e traimos para nos desco- brir mais além de nés mesmos. Quando os contratos sao suspei- tos, ndo sabemos mais quem somos e esperamos que 0 outro nos diga isso a qualquer custo. Que nos diga o tempo todo que somos objetos dignos de amor. A traicao é aqui a traicao de si mesmo, a queda e a transparéncia desse pedido amoroso. Trair é deixar transparecer que ingenuamente acreditamos em algo além de nds mesmos. Trair é ser um pouco menos cinicos e suspeitos do que pensamos. Infiel é aquele que perdeu a fé na promessa, e nao 0 que se esqueceu dela. Parece que inventamos um modo de trair sem sermos infiéis. A mulher que trai o marido com ele mesmo, quando imagina outro em seu lugar durante a relacao sexual, nao se esquece do pacto firmado, apesar de nao mais acreditar nele. Nesse contexto, a traicao esta associada a saudade. A sau- dade é um risco que o traidor contemporaneo nao ousa correr. Don Juan possui todas porque nao trai nenhuma. Quantas aventuras fracassam quando enfim o bom marido se separa da esposa chorosa e fica com a amante. Quando se apaga a satisfa- gao do engano, perde-se o desejo que a mantinha. Descobre-se que traia por amor a esposa. A saudade, em um mundo pautado pelo ideal da independéncia subjetiva, esta na antecamara de horrores da traicéo. Indica que se estava mais comprometido do que se devia. Por outro lado, a saudade, que alguns autores atestam ser a melhor traducao para desiderium (desejo, em la- tim), é uma espécie de memédria desejante capaz de manter 60 alguém fiel mesmo depois do fim do contrato. A saudade é o artifice dessa trai¢ao solitaria, muito mais escondida que os passeios furtivos pelo outro lado do muro do vizinho. A sauda- de pode ser apenas o desejo de comegar de novo, as vezes com a mesma pessoa, ou com seu substituto simbélico. Nesse caso nao seria também uma homenagem? Pode-se trair alguém que nunca se viu antes, que nem mesmo sabe estar envolvido nesta trama imaginaria? A questao é como ser perdoado pela trai¢ao, como nos absolvermos de nosso préprio desejo? O inconsciente implica uma rede de pactos, varios deles sem um sujeito que se tenha comprometido. O inconsciente subverte a ordem do con- trato entre individuos, ele articula uma espécie de responsabili- dade que nio gravita entre a obrigacao e a proibicao, mas uma relagio de comprometimento com o desejo, a contingéncia ea impossibilidade que o caracteriza. Nesse sentido, nem toda trai- ¢&o é violacéo de uma ordem a ser recuperada; pode ser também a fundac&o de uma nova ordem, mesmo que sua lei nao tenha sido totalmente escrita. OCIUME E AS FORMAS PARANOICAS DO AMOR “Assim a debi- lidade dos membros infantis é inocente, mas nao a alma das criangas. Vi e observei uma, cheia de inve- ja, que ainda nao falava e ja olhava, palida, de rosto colérico, para o irmiozinho no colo da mie.” O olhar clinico de Santo Agostinho detecta nesse trecho 0 que talvez seja a mais interessante vicissitude do amor: o citime. Sé- culos depois, ao isolar o complexo de Edipo como encruzilhada fundamental do psiquismo, Freud nao estava as voltas com ou- tra coisa. O citime é um sentimento demasiadamente humano, pois ele traduz a tragédia da inclusao de um terceiro em um es- paco antes supostamente habitado apenas pelo par amoroso. Por outro lado, essa intrusao de um terceiro representa a exclusao interna do préprio sujeito. Preterido, desamado e separado em relacao a sua experiéncia anterior, 4 qual ele permanece incluido, o citime torna-se parte da experiéncia de simbolizacao do amor. A partir dele, aprendemos que todo amor pode ser perdido, que ha sempre a ameaga de um terceiro, mesmo que esse terceiro seja a morte de um dos amantes. A existéncia simbdlica de um ter- ceiro pode ser vivida como paranoia da perda iminente, mas ela evoca também a necessidade simbélica de que para se fazer amar é preciso fazer algo, fazer por merecer, e nao apenas ser. O citme envolve esta dimensaio eminentemente simbd- lica tanto porque triadica quanto pelo fato de que ele presume uma alternancia entre presenga e auséncia dos envolvidos e ain- da porque ele convida ao trabalho de suposicao e elaboracao de saber. Nesse trabalho especulamos: O que serd que o outro tem que eu nao tenho? Mas também interrogamos 0 desejo de quem amamos querendo saber mais sobre sua gramatica, seus termos econdigées. O citime permite organizar relacées de trocaa 62 — trés termos, fato fundamental para entendermos a familia, os grupos e a sociedade. E nesse espaco triddico que todos nds um dia viemos a perguntar: Qual a causa do amor? O que este terceiro possui e que me falta para ser amado? A pergunta, como todas as perguntas essenciais, nao admite resposta. Se entender o fendmeno do citime é enfrentar a questao das causas e desra- zées do amor, seria mais honesto de saida decretar nossa falén- cia diante do assunto. No entanto, a poesia nao fez o suficiente ou nao lemos poesia suficiente, de modo que historicamente se produziu esta estranha figura, o psicdlogo, especialista em tur- vacGes amorosas, convocado a apresentar sua tediosa versao so- bre o tema. Até segunda ordem, o discurso amoroso é sem fim, como um delirio, sempre prestes a dizer a palavra final que esca- pa. Ha que se escolher uma versao e, no nosso caso, ela remonta a Platao. O fildsofo argumenta que, ao contrario do que se pode pensar, amamos nfo 0 que 0 outro possui mas o que lhe falta. Amamos um vazio (0 termo técnico é agalma), que tem a estra- nha capacidade de se deslocar entre os homens. Ou, como diz Carlos Drummond de Andrade, “porque 0 amor é amor a nada”. E uma angulacao pessimista do problema, mas que nao deixa de ser romantica. Prossigamos. Quais as consequéncias dessa tese para o entendimento do cittme? Diriamos que é nesse vazio, causa do amor, que o ciume fabricara imagens, tracos, signos para ocupa-lo e assim responder ao enigma. Quando aagalma se preenche nao ha mais pergunta, logo nio ha mais amor. O citime, portanto, supde algo onde nao ha nada, onde ha falta de algo. Essa suposicao e a forma como se da revelam o que aquele sujeito pensa que ama quando ama alguém. O ciu- mento faz interpretagdes em busca do objeto do amor: ele é antes de tudo um pensador meticuloso. Pequenos detalhes, um tom de voz, uma palavra e esta armada a conjectura. Inicia- -se 0 proceso: certificagées, vigilancia, suspeitas. Flagrar 63 0 ato criminoso torna-se uma obsessio. A confissao do traidor é esperada e temida, mas de toda forma obrigatéria. Quanto mais citime, mais método, mais rigor, mais engenhosa a reflexao. Podemos avaliar a posigao daquele que é tomado pelo cit- me com base em duas vertentes. De um lado, o que Freud cha- mou de cittme projetado, de outro, o cittme delirante. No caso do citime projetado, o desejo de trair é transferido para 0 outro; é ele que olha para outros e outras, ndo eu mesmo que tenho que recalcar esse desejo em mim. Assim chegamos a uma das montagens mais infelizes do ciime, aquela que projeta no outro para recalcar seu préprio desejo. Trata-se de conter nele 0 que 0 sujeito nao reconhece em si, ou que reconhece e atualiza na forma de infidelidade e culpa. O equivoco desse tipo de cittme é a suposicao de que ha simetria do desejo ou da correspondéncia amorosa. Alguns chegam mesmo a se sentir denunciados pelo cittme - como posso sentir citimes se afinal nao preciso dele? Deixar o outro com citime é uma estratégia classica de sedugao; torna inevitavel a confissio amorosa. O citime delirante, por sua vez, evolui de um complexo sistema de negacoes que parte de uma frase simples: Eu (um ho- mem) amo ele (outro homem) [e nao admito isso]. A primeira ne- gacio substitui o “eu” por “ela”; dessa forma engana-se afirman- do: Nao sou eu que o ama, é ela que 0 ama, e por isso ela me trai. Isso cria verdadeiros infernos na terra, tipicamente formados por maridos que controlam e agridem suas esposas baseados na conviccao delirante, formada pelo recalque de sua fantasia ho- mossexual de desejo. Quanto mais a mulher apresenta provas, silencia ou tolera a violéncia, mais a convic¢io delirante ganha forga, como se o sujeito ficasse ainda mais ofendido porque ela nao é capaz de reconhecer que seu verdadeiro objeto de 64 amor é outro e esta em outro lugar. Nos dois casos 0 citime entra para propor o objeto, sugerir que ali se encontrar o preenchimento da falta. No entanto, é uma perspectiva antiplaténica esta do completamento no an- drogino (ironizado no texto de Platao, O banquete). Na sua mo- dalidade moderna, fala-se das duas metades da laranja. O amor a equivaléncia ou ao ajuste das necessidades subjetivas dos que nele se envolvem é aqui a raiz do citime, consequéncia necessi- ria da hipotese de que ha um objeto que nos faca Um. Citime por asfixia, pela falta da falta. Quando dois se completam demais, o desejo se vinga. E talvez um ponto de liberdade para um novo movimento. Tal interpretacao tem o mérito, a nosso ver, de ex- plicar 0 juizo do senso comum que diz que um pouco de citime é benéfico para todo relacionamento. Benéfico, pois faz intervir, mesmo que apenas como uma possibilidade virtual, o terceiro ea falta. Ele acusa, nesse caso, certa insatisfacao que funciona como motor para novos engajamentos subjetivos. Nada mais propicio ao aparecimento do citime do que o clas- sico marido cuja vida se resume a satisfazer as demandas da espo- sa. No filme O processo do desejo (La condanna, Marco Bellocchio, 1991), tal figura aparece exemplarmente descrita: um juiz que da tudo para a esposa e é exatamente por isso que ela o rejeita. Nao fal- tanada para amar. Uma fabrica de automéveis americana fez uma pesquisa para saber qual era o carro que correspondia ao sonho dos americanos. O carro que fosse tudo 0 que todo americano queria ~ ocarro-objeto. Produziu-se entao o automével e ele se demonstrou um fracasso completo de vendas. Légico, nao queremos tudo 0 que queremos, amamos quando surge algo além do que imaginamos. Os fabricantes de automéveis americanos definitivamente nio le- ram Platao. Tudo indica que eram propensos ao cittme. Dar tudo, isso faz o ciumento traduzir o que sente num ato amoroso. Se te vigio, se te amedronto, sete mato... 65 é porque te amo. Talvez nao tenha existido pior mal nas agdes humanas do que aqueles cometidos em nome do bem e do amor. Talvez a ética do ciumento seja a ética do tudo dizer, dai a pri- mazia da confissio. A auséncia de segredo inventa uma ficcéo para realizar a totalidade amorosa. Mas é também uma ética masoquista onde nao se consegue interromper a realimentagao do sofrimento. “Eu me mordo de citime/ eu me mordo, eu me acabo,/ Eu falo bobagem, eu faco bobagem’, diz a musica do grupo Ultraje a Rigor. Que estranha satisfacao é essa a do ciu- mento cronico? Que paixao irrefreavel o empurra para 0 todo dizer da verdade amorosa? O citime é a persegui¢ao do amor verdadeiro, garantido. De fato a ilusao do amor verdadeiro é to enganosa quanto a que faz significar os fracassos de uma telagao, depois que ela se interrompe, a partir do dito - era um falso amor. Amar é dar 0 que nfo se tem, dizia Lacan. Ao ciumento a formula aparece ao contrario: possuir, reter, ter, nado perder de modo algum o outro. Garantir que todo o seu desejo tenha um unico endere¢o. Nao ha terceiro. No entanto, ele mesmo sabe das dificuldades para controlar o incontrolavel, por isso 0 ciumento, nesse caso, varre a sujeira para baixo do tapete... do outro. O segundo tipo de citime nio esta as voltas com o preenchi- mento do que falta ao outro mas com uma imagem fixa: a cena de traicdo. Sua preocupacio maior nao reside na suspeita insi- diosa e sim numa certeza antecipada. Nao est4 em jogo a reali- dade, se bem que pareca, mas uma convic¢ao que atravessa sua fala: houve, ha e haverd traicao. Os argumentos, nesse caso, sé Server Para atestar que o citime é justificado. O citime impul- siona ao ato violento. O pensamento se aproxima da ldgica dos inquisidores medievais, como aponta 0 texto basico dos 66 queimadores de bruxas: Tortura-se 0 acusado que vacilar nas respostas, afirmando ora uma coisa ora outra, sempre negando a acusacio. Nestes casos, presume-se que esconde a verdade. Se negar uma vez, depois confessar sob tortura, nio sera visto como vacilante e sim como herege penitente, sendo condenado.’ Enfim, trata-se de um pseudojulgamento, uma vez que a cul- pa esta dada de antemao. Note-se como também nesse caso 0 outro é reduzido ao que se sabe dele. Afirmando ou negando, as consequéncias sao as mesmas. Em formas mais abreviadas, esse tipo de citime costuma se caracterizar pela pergunta insis- tente: Quem é ele (ou ela)? A atracao pela cena da infidelidade se assenta na figura do terceiro. Ora considerado aquele que seduziu, corrompeu a inocéncia de quem foi embriagado pelo feitico, ora tomado por um fascinio, este terceiro é a chave da questo. Se nao 0 fosse, o que levaria 4 continuidade da investi- gaciio do outro, uma vez que ja se sabe que ele é culpado? Nesse caso, a ligacao do ciumento inclui certa inveja em relacao ao seu parceiro. A hipdtese evidentemente recorre 4 no¢io de in- consciente. Nos termos de Freud, inveja-se o fato, por exemplo, de esta mulher ser possuida por outro homem; a recusa deste desejo homossexual promove o fascinio por este outro homem eo ddio pela mulher. Um odio cuja aparéncia é de irracionali- dade. O citime paranoico reclama, dessa forma, de uma indi- ferenca 4 sua demanda amorosa. Indiferenca pertinente, uma vez que o endereco dessa demanda no é aquele de quem se diz sentir citime. eae Montaigne dizia que na ordem das rela- Sprenger, Omar- ¢Oes humanas a realidade conta pouco. Nos ape- telodafeiticcira amos a ficcdes. Preferimos a ilusio praze- [0487]. Sao Paulo: Editora Trés, 1994. TOSa ao desgosto da palida realidade. Ofato 67 notavel do citime é que ele parece comandado por ficgdes que adquirem o estatuto de realidade. Mas ento qual é 0 modo de ser do eu? [...] Conhecer-se é to- mar consciéncia de sua prépria inanidade, de sua deficiéncia de ser. Reconhecer e assumir 0 vazio que habita no mais profundo de si. Mais profundamente o eu é uma usurpacao que procede de uma ficcao? A mentalidade juridica do ciumento 0 pée assim num beco sem saida ao encontrar no fundo de si nao o vazio, mas 0 reflexo do outro. Um julgamento sem fim onde 0 veredicto é 0 que menos importa. Alguns apaixonam-se pelo estado de diivida, cultuan- do-a como uma obsesso. Outros tragicamente “empurram’ seu objeto de amor para os bra¢os do amante. Bentinho é um exem- plo do primeiro tipo. Os herdis lascivos de Nelson Rodrigues sao casos do segundo tipo. O citime é ai um pedido de retomada da relacao amorosa, um teste dos seus limites. Um pedido para que 0 outro reaja ao preenchimento da agalma, que faca diferenga onde encontra simetria em excesso. Ao contrdrio do citime pa- ranoico, é um pedido de saber menos. Quando Afrodite é tomada por citime no momento em que vé os mortais adorando a mortal Psiqué, o citime convida Psi- qué 4 morte. Salva por Eros, 0 citime das irmis convida Psiqué a solidao. Salva da solidao, o citime de Afrodite convida entao Psiqué a provar seu amor. Lembremo-nos desta parte menos conhe- 2 Michel Mon- cida do mito, que funciona como uma espécie sete droog de alegoria da cura do citime como seu afeto _ bond ‘las95}, trad. Sergio Milliet, in Ensaios. Sao Paulo: 68 qué erra pelo mundo, até encontrar 0 _ Eiitora 34, 2016. fundamental. Abandonada por Eros, Psi- templo de Afrodite. A deusa, ciente de que fora enganada e mae protetora de Eros, impée uma série de tarefas, supostamente infinitas, durante as quais Psiqué certamente perderia sua bele- za e esqueceria seu amor por Eros. Os quatro desafios de Psiqué consistem em: 1) separar graos de diferentes tipos no prazo de uma noite; Ela cai no sono, mas as formigas a ajudam a realizar a tarefa; 2) trazer a 1a do velocino de ouro. Ajudada pelos jun- cos, ela consegue enganar ferozes animais e cumprir a tarefa; 3) trazer agua do rio Estige, que nascia em uma montanha in- greme, impossivel de escalar. Surgem entio as Aguias de Zeus para ampara-la; 4) trazer um pouco da beleza de Perséfone para reparar parte da beleza de Afrodite, perdida quando ela precisou curar os ferimentos de seu filho Eros. Temos aqui o desafio mais dificil, que ilustra 0 processo de reparacdo em curso no ciume. Psiqué deve trabalhar para recompor esse elemento que esta na raiz de seu citime. Mas nesse desafio ela nao conta com a aju- da dos animais ou dos enviados dos deuses. Ela vai ao Inferno e convence Perséfone a ajuda-la, mas, no caminho de volta, per- cebe que sua propria beleza havia se desgastado depois de tantos trabalhos, ou seja, ela percebe em si a mesma fragilidade que levou Afrodite a constituir sua vingan¢a, mas também sua pos- sibilidade de reparagao. Aberta a caixa em que transportava a beleza faltante, Psiqué cai em sono profundo. Aqui Eros inter- vém e pede a Zeus que interfira em sua causa. E assim que, atra- vés de um quarto elemento, Psiqué se torna imortal, casando-se com Eros e dai nascendo a filha Hedoné (Prazer). Temos aqui os elementos estruturais dos cittmes: 0 julga- mento perpétuo, a vinganca e o trabalho de restauracao. Nesse sentido, o sono de Psiqué é a marca da interrup¢ao da fase de julgamento e vinganga e do inicio de uma reconstru¢io. Seu trabalho, ao final e decisivamente, nao éumesforgode 69 persuasao ou prova de amor, mas uma reafirmacao de seu dese- jo transgressivo, que uma vez a fez perder Eros por curiosidade e que uma segunda vez a ameaca de perdé-lo ao abrir acaixa que portava, destinada a Afrodite. No fundo, foi ao sair da posi¢ao daquela que apenas atende a demanda do outro, neste caso a ciu- menta Afrodite, que Psiqué consegue recuperar 0 amor de Eros. 70 AFUNCAO TRANSFORMATIVA DO ODIO Séneca, o antigo fi- Iésofo estoico, dizia que a célera, ira ou raiva é 0 afe- to dos impotentes, ou seja, daqueles que acham que tém mais poder do que de fato tem. E assim que nés Trepresentamos os tiranos e seus tiranetes, sempre impacientes, insatisfeitos e coléricos. Mas isso nao quer dizer que o ddio é um afeto do qual deveriamos nos ver li- vres. Ademais a célera, assim como a indigna¢ao e 0 respeito sao sentimentos que modulam nosso ddio, substituindo sua orienta- ¢ao destrutiva por ideais simbdlicos de regulacao social. Quando vejo o ddio ser elevado a condicdo de um sentimento social in- toleravel, nessa cultura da animosidade e do desentendimento generalizado que tomou conta do Brasil entre 2013 e 2017, penso que hd certa injustica sendo cometida contra esse afeto. O édio é um afeto muito importante. Diariamente encon- tramos pacientes que se queixam de injusticas cometidas contra si, de maus-tratos ou de desprezos sofridos. Frequentemente percebemos um personagem ausente: a raiva. Aquele marido violento, que chega em casa, chuta o cachorro e resmunga com os filhos, mas cuja esposa sd consegue dizer Nao é culpa dele, é da bebida ou No fundo ele é uma pessoa boa, sofre com uma patologia do édio. Nenhum afeto deve ser considerado um vilao do ponto de vista clinico, nem mesmo o citime ou a inveja, mas a impos- sibilidade de experimenta-lo ou, ao contrario, a sua perseveran- ¢a, deslocamento e intensificacao, sim. E cada afeto possui uma espécie de matriz funcional, um cliché experiencial, segundo a expresso de Freud, que explica a sua génese e determina a sua série histérica. Ou seja, os afetos nao ttm uma meméria, por isso se diz que nao existem afetos inconscientes, mas eles tém um tra¢ado, uma recorréncia que une suas diferentes situa- ges de incidéncia. E por isso que cada experiéncia de amor 71 recapitula todas as anteriores, e cada experiéncia de perda nos chama para todas as perdas anteriores. Lacan dizia que todos os sentimentos séo mentirosos, com exce¢ao da anguistia, porque eles nos levam a criar contextos semelhantes para acontecimen- tos diferentes. Os afetos sao reciprocos porque eles tendem a efe- tuar uma reproducio performativa de si mesmos no outro, agin- do por um tipo de contagio, por meio do qual atribuimos a nés mesmos a causa das paixdes daqueles que nos cercam. Por exem- plo, seme encontro com 0 outro de quem gosto e ele se apresenta tomado pela alegria, essa alegria se transmite transitivamente para mim, a menos que eu esteja tomado por um afeto mais for- te que o dele e este se imponha ao outro como afeto dominante na situacao. Essa capacidade de transposicao dos afetos, mesmos que eles procedam de causas que nao se relacionam diretamente com 0 sujeito, explica por que sao mentirosos. A angustia, por sua vez, resiste a essa transformagio, uma vez que sua causa é precisamente a “falta da falta”, ou seja, a auséncia de causalidade discernivel para o afeto. A angustia nao mente porque ao final ela nos separa do outro imaginario ao mesmo tempo que nos confronta com 0 Outro simbdlico. Entende-se que o édio emerja em uma situagio na qual 0 espaco ptibico e o espaco privado estao sujeitos a uma indetermi- nagio progressiva de fronteiras: sejam elas corruptiveis ou incor- ruptiveis. Isso é pontuado pelas telas de televisio que mostram, irénica, cinica ou pornograficamente, o que deveria ficar escon- dido: as coxias, os bastidores, o atras do palco. Quando a alter- nancia entre publico e privado se dissolve, temos um ingrediente explosivo para a emergéncia de formagGes paranoicas. O aspecto mais interessante da gramatica do ddio é sua fun- ¢&o erética. O édio incita o excesso, permitindo que, em 72 doses pequenas e calculadas, ele separe a ternura da sexua- lidade, gerando um incremento de excitacao. E por isso que exis- tem casais que adoram brigar, apenas para poder se reconciliar. Se o amor terno, infantil e familiar pode tornar as relacdes mais calmas e pacificas, € comum também que essa calmaria se trans- forme na fraternidade tumular do sexo. O antidoto para isso é um grama e meio de dédio. A funcio dominadora e afrodisiaca do poder, bem-vinda entre quatro paredes e destruidora quando se torna regra para o laco social, depende do édio assim como o amor depende do respeito. Muitos homens sao impotentes porque nao conseguem fantasiar serem desonestos, injuriosos e agressivos com suas mulheres. Atencio: fantasiar, nesse caso, é exatamente 0 oposto de praticar isso na vida social, ademais muita violéncia doméstica se origina na inversao dessa regra. Mas ha um tipo de ddio que nao esta baseado na concor- réncia em torno do “ter”, da inveja e do citime, mas em torno do “ser”. Esse é 0 édio por tras da homofobia, da agressividade de género e da violéncia disruptiva. Nesse caso, ¢ antes 0 édio ao que se “é”, do que nao se consegue admitir em si, que é pro- jetado no outro a quem se agride. A mera existéncia do outro é sentida como um decréscimo de felicidade, um rapto de gozo ao sujeito, uma ofensa 4 sua forma de vida. Basta que sua for- ma de vida seja baseada na uniao orientada para a exclusio, 0 que chamei, em meu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma,} de légica de condominio. Esse ddio percebe 0 outro como um objeto intrusivo. E de fato ele é. Um intruso feito da mesma matéria que excluimos, em nossa fantasia inconsciente, para constituir 3. ChristianI. L. nosso ddio. Aqui 0 sujeito age como se um Dunker, Mal-estar, acto imaginario tivesse sido rompido. E de sofrimento e sintoma: uma psicopatologia fato ele foi. do Brasil entre muros. io Paulo: Boitempo Biitorial, 2015. os processos de separacdo. Sem ele, 0 so- 73 O édio é um afeto fundamental para frimento pode ser infinito, e mesmo assim nenhuma transforma- cao é ensejada. Sem uma pitada de ddio, nenhum luto termina. Freud descreve o trabalho de luto dividindo-o em trés momen- tos.* No primeiro, 0 sujeito coloca diante de si o estatuto de reali- dade da perda. Ele pergunta o que foi perdido naquilo ou naquele que se foi. No segundo momento, ele estabelece uma identifica- Ao alternante com 0 objeto perdido cujo nticleo é 0 amor. Oscila- -se entio entre a hipdtese de que, se eu tivesse amado um pouco mais 0 outro, ele nao teria me deixado, e a conjectura de que, se ele tivesse me amado um pouco mais, nao teria me abandonado. Essa soberania do amor pode tornar o luto um processo infinito de inversées que realimenta 0 luto com o sentimento de impotén- cia, abandono e ressentimento. O terceiro momento determina o encerramento do luto e a incorporagao final do objeto perdido, com toda a sua indeterminacao e ambivaléncia, é o gesto de dei- xar que 0 outro nos deixe. Esse movimento envolve experimentar, ainda que em baixas doses, o sentimento de ddio pelo fato de que 0 outro nao nos amou tanto quanto gostariamos, e reconhecer que nosso amor nfo é assim tao onipotente a ponto de garantir que nossa presenca, dedica¢ao e cuidado sejam suficientes para proteger o outro de sua propria finitude. Talvez seja por isso que Lacan tenha argumentado que o édio é um afeto que envolve a transicdo entre o imaginario eo real, enquanto o amor é um afe- to que se faz na intersec¢ao entre o simbélico e o imaginario. Ou seja, 0 ddio é o sinal de que reconhecemos a presenca de um frag- mento de real que atravessa a estrutura de ficcio na qual 0 amor se desenvolve. Nenhuma separacao é realmente possivel sem esse fragmento de real. Sem um grama de odio muitos casais se 4S. Freud, Luto e melancolia [1917]. Sio Paulo: Cosac ™ — falamos de uma pitada ou de um grama,e _naify, 202. tornam apenas irmios e bons amigos. Mas nao de uma libra nem uma tonelada. Na tragédia de Shakespeare Omercador de Veneza, 0 velho e invejoso Shylock tem direito, por contrato, a uma libra de carne de seu devedor Anténio. E ele es- colhe pedir o coracao de seu oponente como ressarcimento da di- vida. Os juizes decidem entao que ele podera extrair 0 coracao do réu, desde que nao derrame uma gota de sangue. E exatamente assim que deve funcionar 0 ddio. Como afeto que nos convida & separagio e ao ajuste de contas, mas que nao se confunde com a utilizagdo da justig¢a como pretexto para praticar a vingan¢a. O ddio deve ser separado do a mais de gozo que ele carrega poten- cialmente consigo. Nesse caso, é como se o momento separador, sinalizado pela aparicao desse grama de ddio, nao fosse admitido. Sem ele, torna-se impossivel terminar o trabalho de reparagio ou de reconstrucao simbdlica do que foi perdido, levando o odio a se tornar um estado permanente e nao um sinal que reatuali- za nossa agressividade e nossa hostilidade apenas para que pos- samos nos reapropriar dela em outro nivel. A funcao positiva e necessaria do ddio nos remete a essa experiéncia, tantas vezes valorizada por Winnicott, por meio da qual aprendemos que o objeto sobrevive a nossa agressividade, que podemos odiar 0 ou- tro por um momento e depois reconstituir nossa relacio com ele. A possibilidade de perdoar, voltar atras e renegociar guarda uma relacao intima e profunda com os destinos que podemos encon- trar para o édio, em nds mesmos e no outro. Mas em muitos casos 0 ddio nao esta a servico da separacao ede um processo transformativo, mas da manutencao de uma unidade ainda mais poderosa, ainda mais odiosa. Um édio que nio se vive sozinho, mas que covardemente cria grupos imagi- narios contra inimigos imagindrios é tipicamente dirigido ao poder que se tem a mais ou a menos que o outro (inferio- ridade ou superioridade). E assim que ele deixa de estara 75 servico da circulacdo e da distribuigdo e passa a se dirigir ao que 0 outro é, ou ao que nao se suporta ser. Esse ddio no esta a ser- vico de um trabalho de transformagao. Ele nao quer redefinir 0 contrato nem fazé-lo valer; tudo o que ele quer é transformar uma libra de carne em um infinito, para que tudo continue como antes, no quartel de Abrantes. 16 CONFORMACGES DA INTIMIDADE Hi alguns anos vem apa- recendo nos consultérios uma nova forma de sofri- mento psiquico. Sao Pessoas que se declaram inca- pazes de formar um lago de intimidade com o outro. Cumpridoras dos rituais que cercam os relacionamen- tos familiares, as amizades profissionais e extraprofis- sionais, sentem que agem como todo mundo. No entanto, perdu- ra uma estranha sensa¢ao de que esto a olhar o mundo como se estivessem fora dele. Isso aparece por vezes em sonhos onde estao sobrevoando lugares, apreciando a paisagem, olhando tudo mas jamais interagindo. Também esta presente num persistente sen- timento de deslocamento em relagao aos outros. E como se algo lhes estivesse sempre a escapar. Paradoxalmente muitas dessas pessoas mostram-se bastante habeis no contato social, exercendo profissdes em que isso é um atributo importante. Perspicazes na exposico de ideias e na conducao de seus interesses, nao ha trago de timidez ou de inibicao. Aparentemente tudo esta a contento, a no ser por este incdmodo pormenor: raramente esto de fato com 0 outro numa relacao intima. Quando isso se insinua, abate- -se também um desconforto difuso que geralmente é resolvido pelo engajamento em uma forma qualquer de ocupacao. Algumas vezes nomeiam esse desconforto como se estivessem sendo impro- dutivos, intiteis ou sem fungao. Estar na presenga de alguém, na iminéncia de uma situacao intima, parece algo sem sentido, per- da de tempo, pois nao se estabelece nenhuma finalidade para isso. Intimidade neste caso nao quer dizer a constru¢ao de um contexto sexual, de confianca ou de amizade, mas é mais bem adjetivado em palavras como cumplicidade, segredo e confidéncia. Ao lado da falta de intimidade surgem um desagradavel sentimento de solidao a dois e a insistente sensacao de va- zio. E como se a vida se passasse num de cenario de filme B, 77 onde a cena da representac4o prossegue com os atores cientes da sua propria condi¢ao mal disfargada. Quando tentam rom- per essa sensacao de inautenticidade, geralmente o produto lhes soa mecAnico e artificial, o que acentua ainda mais a convic¢do de que h algo fora do lugar. Outra caracteristica nao deixa de atrair a atencao do clinico: geralmente sao pessoas nascidas e criadas em grandes centros urbanos mas que tém suas familias de origem em outros paises ou em outras cidades do pais. Trata- -se assim de uma segunda geracao de migrantes ou imigran- tes em que se pode observar um contraste significativo entre o modo de vida dos avés e dos pais e aquele a que sao submetidos os filhos. Esse é um indicio de que talvez o problema em questao tenha alguma rela¢io com as fortes transformagGes culturais geradas com o estilo de vida contemporaneo. O espaco da intimidade, tal como 0 conhecemos hoje, se originou de certas transformagées sociais ocorridas ao longo do século xrx. Uma das mais importantes foi a conformagio da familia como um lugar de refiigio e de isolamento. No mesmo periodo podemos datar a aparicao do chamado ideal de amor romAntico, acompanhado pelo desenvolvimento de uma nova sensibilidade que duvida de si mesma, que precisa por 4 prova a verdade de seus acontecimentos. Precisa distinguir uma falsa paixao de um amor verdadeiro, uma seducio interessada de uma ternura ambivalente, uma alianca fortuita de um compromisso confiavel. Pois foi essa sensibilidade que deslocou a verdade para a esfera da subjetividade. Somos 0 que somos, nao na superficie, nas representacées e apresentacées publicas e coletivas de nossas imagens, mas nas profundezas associadas agora ao essencial, pe- rene e verdadeiro. Essa sensibilidade prescrevia o intimo como condi¢ao crucial para dar garantias aos relacionamentos 78 privados e encontrar a certeza subjetiva que faltava. Isso se explica porque a vida publica, o teatro do mundo, tornara-se um lugar crescentemente complexo e perigoso. A industrializacdo associada aos processos culturais fez emergir um mundo padronizado. A forma de vestir, comer, comprar, trabalhar e se divertir é cada vez mais homogénea. O poder se torna invisivel, o sistema, e nao pessoas identificaveis, torna-se protagonista. Podemos imaginar 0 que se passou se pensarmos numa pe- quena cidade do interior, onde todos se conhecem eas relages sio pessoalizadas e diretas. Ha um forte controle coletivo das decisées individuais; um namoro, um casamento, mesmo uma nova ini- ciativa econdmica sio acontecimentos discutidos e julgados no quadro de uma complexa trama de amizades, aliancas familiares e compromissos subentendidos. Esse estado de coisas pode gerar certo desconforto pela auséncia de privacidade, mas, ao mesmo tempo, produz seguranca pela elaboracio coletiva dos problemas. Suponhamos entao que esse pequeno vilarejo cresca, que afluam para la muitos estrangeiros, que se construam fabricas, aparegam costumes diferentes e um novo tipo de interacao social passe a ser predominante. As pessoas tornam-se relativamente anénimas. Nao se sabe mais quem é quem. O espaco publico passa a ser enig- miatico, atraente mas ao mesmo tempo perigoso. O antigo cerimo- nial de compras na mercearia, acompanhado de uma longa con- versa pessoal sobre os ultimos acontecimentos, é substituido pelo rapido e impessoal som eletrénico do cédigo de barras. O ato de compra torna-se silencioso e rigorosamente administrado. E as- sim se sucederia com a ida ao velho cinema, o footing na praca central, a quermesse na paréquia, o funeral comentado por meses a fio, aquele objeto de “status” adquirido pelo vizinho, todos eles acontecimentos que tém seu sentido enfraquecido pelo no- vo protagonista do espaco ptblico: a massa indiferenciada. 79 Mas, se essa descri¢ao funciona de modo aproximado para os processos de subjetivacao até a segunda metade do século xx, a partir de um dado momento a prépria nogao de massa e de in- timidade passa por uma transformacao radical. A introducao da felicidade como fator de satide e de realizacdo econémica, a mu- tagao da experiéncia privada, notadamente da familia, em uma série de novas modalidades de reconhecimento e de autorreali- zacao, a entrada de novas tecnologias biopoliticas, mediada por redes sociais e por outras formas de experiéncia pés-humana, criam outras figuras hegeménicas de sofrimento: pessoas que nao conseguem narrativizar sua infelicidade, subjetividades pos-traumiaticas, que nao reconhecem nenhuma hermenéutica nem nenhuma historicidade em suas modalidades de sofrimen- to, ampliacao generalizada das modalidades narcisicas de ina- daptagao, de inconformidade corporal, de déficit de intimidade ou de massivo isolamento individual nao problematizado. Lembremos que uma situacio similar aquela passada por nossa cidade imaginaria foi responsavel pelo surgimento da in- timidade moderna. Espago intermediario entre o familiar e 0 es- tranho, sua fungao é propiciar a interpretacao e a elaboracao da- quilo que a familia por si mesma nfo alcanca mais e que o teatro do mundo, formado por atores anénimos, nao pode resolver. Os romances eas novelas, primeiras formas de literatura produzida para a massa, so ao mesmo tempo consumidos na intimidade da leitura e reelaborados na esfera da intimidade relacional. Eles fornecem um rico material narrativo e vocabular para lidar com a experiéncia subjetiva. Sao assim um instrumento para o cul- tivo da intimidade como espaco de interpretagao e de traducao dos signos ambiguos que passam a circular nas trocas huma- nas. Mas agora a funcio social da literatura se alterou na 80 medida em que todos se tornam autores, partilhando suas biografias em redes sociais ou aspirando 4 sua generalizacao em novas modalidades de distingao acessiveis, em tese, a qualquer um: celebridades, subcelebridades, fama e distingéo tornaram-se assim um ideal razoavel, cujo preco torna-se um méddico sacrifi- cio, que, uma vez nao recompensado, estimula a criacao de uma cultura da depressao ou da bipolaridade ordindria. Muitos dos que se queixam direta ou indiretamente da difi- culdade em sustentar ou propiciar espacos de intimidade mostram igualmente certa impericia para lidar com narrativas e signos do- tados de ambiguidade. A ironia, as entrelinhas, o duplo sentido de um pequeno gesto ou de uma troca de olhares sao experimentados como situag6es perigosas. O valor de uma mensagem no espa¢o publico e no espaco familiar nao é o mesmo. A intimidade procura reparar essa dist4ncia. Sua auséncia lan¢a o individuo diretamen- te nessa cisio. A consequéncia se manifesta num tipo particular de solidao: aquela que se vive a dois ou aquela que se experimenta ao andar no meio de uma multidao. Solidao mais terrivel, pois tes- temunha o desenraizamento de quem a experimenta. A solucao, muitas vezes pretendida pelos que atravessam. os impasses da intimidade, costuma ser expressa nos mesmos termos que sao parte ativa do problema. Trataria-se de obter uma técnica, uma ordem regular de comportamentos que se deveria seguir para produzir a intimidade. Uma técnica é um sistema de procedimentos que objetiva alcangar o maior bene- ficio possivel com 0 menor custo no menor tempo e que é ca- paz de ser aplicada no maior numero de ocasiées. A intimidade parece negar cada ponto dessa definicao. Quando se pretende extrair qualquer beneficio da relagao de intimidade, isso acaba por interrompé-la. A dentincia de um interesse, a revelacao de uma intencao, além da propria andlise da narrativa da in- timidade, acabam por dissolvé-la. al

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