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‘A Bolsa ea Vida (A usura na ldade Média Jacques Le Goff ‘A Idade Média: Nascimento do Ocidente Hilétio Franco Je Tojo a ois de obit « ds revoia Baringion Moore J (Os Intelectuais na Idade Média Jacques Le Goff Meretsizes ¢ Doutores O saber médico ea prostituigto ‘no Rio de Janciro (1840-1890) ‘Magali Gouveia Engel Mitologia Grega ieste Grimal MICHEL VOVELLE IDEOLOGIAS E MENTALIDADES Traducio: ‘Maria Julia Cottvasser 28 edicio ds hack on|sie ee easT editora brasiliense Primeira Parte A historia das mentalidades na encruzilhada das fontes Nao é unicamente pelo fato de sua novidade que a Iéria das mentalidades, mais que qualquer outra talvez, interrogue com abstinacdo sobre suas fontes e métodos. so se deve @ propria natureza de suas curiosidades que a yam, ora ao dominio do popular, aos siléncios ou aos pro- lemmas das fontes historicas raras e pobres, ora a proti lade dos testemunhos literdrios ou artisticos, ao terreno de ia historia da cultura ou das sensibilidades. Essa prospecedo em todas as direcdes, que supde da inte do pesquisador uma real inventividade e, no minimo, abertura que 0 habilite a tirar 0 melhor proveito das lontes menos convencionais, exige um contato interdiscipli- ir, ainda que a historia das mentalidades assumia ts ve- , aparentemente, um cardter invasor, para nao dizer bult- ico, pilkando sem timidez, nos territérios vizinhos. Ela tem, no entanto, o bastante a fazer, assumindo suas pré- prias escolhas internas(entre a abordagem quantitativa) a qual confia em indicadores para atingir as massas em suas titudes projundas, isto é, jontes demograficas, cartoriais, livrescas, iconogrdficas, organizadas em séries de longa du- so saicHe, vovELLE racao: ¢ a visit qualilativa’y gue explora todas 4s virtua lidades do estudo de caso. Em suas primeiras etapas, a historia das mentalidades {permanecex: muito “qudtlitativa”’, ainda prdxima da historia das idéias; em seguida, ela descobriu as vantagens da quar- fificagao. Tenko uma parte de responsabilidade nessa ten- déncia, por haver dado 0 exemplo anatisando, por meio de ‘mithares de testamentos, a passagem da sensibilidade pro- vencal do “barroco” para a laiciza¢ao. Quantas outras dreas de pesquisa se abriram, entao, a partir dat, desde o livro aos retdbulos até os ex-votos mais recentemente! Nesses stltimos anos, porém, se delineia uma reagao diante da pobreza do tratamento quantitativo da massa de dados e mais ainda contra uma certa nebulosidade raistfi- |cadora que o aulorizaria; a ele se contrapondo, 0 retorno ao estudo de caso, mais auténtico e, talvez, mais esclare- cedar. Um exemplo como 0 do moleiro Menocchio — herdi 40 mesmo tempo singular e tipico de Carlo Ginzburg em Le fromage et les vers (O queijo © os vermes)! ilustra essa nova exigéncia de modo perfeitamente convincente. dizer_que, em minha opiniao, esse debate, se & que debate existe, ¢ puramente académico, Semtrecairno_com- promisso burgués, me parece evidente gue é preciso desen- volver paralelamente as duas gers, tina esclarecendo aouira. Quando publiquei, ent 1975, meu pequeno ensaio, Virrésistible ascension de Joseph Sec, bourgeois d’Aix (A inresistivel ascensio de Joseph Sec, burgubs de Aix), a seeao francesa da “Repiblica das Letras” ainda nao se tinha trans- formado em estudo de caso... Mas em minha pesquisa pes- soul, tentar apreender, a partir do epitéfio incongruente de um cenotdfio jacobina e magonico mandado edificar em 1792 por um self-made man local, a maneira como a des- 4, Ginaburg, MU formageio ¢ i vermi. Ht cosmo di ut mugnaio e300 (0 queijo e as vermes: 0 cosmo de um moleiro do século XVI, Tarim, 1976. A jupTORIA DAs .SEHTTALIDADES NA ENCROZSLEADADAS FONTES 31 Janieacio do século das luzes era interiormente vivida, Gomno complemento natural — e ndo como cotitra~ vee uma contagem austera dos testamentos pro- ly, Do estudo de casos para 0 estudo seriado, uma rela- dlalética se tece, apoiando-se ¢ instigando-se mutua- He. E Do modo como se apresenta hoje, 0 reagrupamento que ponho, «partir de trés contribuicdes definidas, se ob fa com rds aspectos relacionados & problemdtica des us ¢ dos métados na hist6ria das mentalidades. No do- Inlo das sensibilidades religiosas — um perfeito terreno sorregadio — ela _cborda_o_problemado—canhecimen!o wyseado_em tracas”, inevitdvel a toda abordagem_em_s , desde que haja um esforgo para relacionar gestos @ ek Missdes exteriores com os segredos de atitudes interiores julogando, em seguida, com os historiadores da literatura, fontei analisar o testernunho individual em sua forma mais complexa e rica, porém profundamente ambigua, tal come se apresenta na literatura, relacionarude-o cont a histOria das mmentalidades. Tentando dar conta, enfim, de todo um com junto de pesquisas sobre iconografia — dado privilegiado ‘om nosso dominio —, procurei debrugar-me sobre as fontes “diferentes”, a fim de procurar compreender por que se pode, freqilenterente, inferir mais dessas abordagens apa pontemente obliquas do que dos escritos. Como exemplo, cntre outros possivels, pensamos na hist6ria aral, ent pleno desenvolvimento atualmente. £ no dominio da histéria religiosa, a qual tende em lultos aspectos a se fundir com a histéria das mentalidades para grande escandalo de alguns —, que essa questio isica se coloca com maior insisténcia: 0 que revelam os inais” “indicadores” de comportamentos comuns, além lo peso da pressio social e da convengdo de um determi- jado momento? Uma confissdo indiscreta, talvez, cujo al- nce & necessdrio avaliar. Mas niio foi por acaso que pre- clsamente nesse campo é que foi colocada a questo, ainda que 0 problema seja geral. O debate que pretendi abrir aqui, apesar das aparén- clas, nada tem de académico. Tem por fim conduzir a uma rellexdo, ou mais exatamente, ao estado atual de uma ques- hoje singularmente fluida: a dos métodos de abordagem ins atitudes das préticas religiosas. Dominio em total renovagio nos iiltimos decérios: obviamente, jé ndo se escreve hoje a hist6ria religiosa como ® Comunicagdo ao congresso internacional de historia religiosa Win- hnipeg. agosto de 1980. Publicada nas atas do congresso (1982). nn M2oHEL VOVELLE, antigamente. Porém, se é verdade que se multiplicam os temas nesse campo, nos encontramos longe de um consenso metodolégico, o que também se poderia argumentar no ser indispensivel. Porém, nessa abundancia de aberturas em todas as diregdes, somos obrigedos a perguntar: desapare- cerd a histéria religiosa, como o cristianismo de Jean Delu- meau? Isto é: se fundiré ela com a historia das mentalida- des ou mesmo com uma etnografia hist6rica, cujo expan- sionismo é evidente? Nao podemos nos esquivar dessa questo, como tela de fundo de uma interrogagao que, prudentemente, esperamos limitar aos métodos e técnicas de abordagem. Tudo, porém, esta interligada {A descoberta do quantitativo na historia reli Sem remontar 20 dilivio, é evidente que quando o abade Brémond, hé mais de cingiienta anos, investigava, como desbravador ousado, os dominios de uma Histoire lit- téraire du sentiment religieux (Historia literdria do senti- ‘mento religioso), 0 problema se colocava em termos inteira- mente diversos. Em testemunhos elaborados e acabados, e sinais freqiientemente infimos, que ele analisava, mes- mo que ja fosse grande a novidade metodolégica de se referir & massa andnima de escritos pouco ou mal conheci- dos da literatura religiosa do quotidieno. Um amplo corpo virtual, como dirfamos hoje, se delineia em filigrana, ainda que o tratamento, recusando a sistematizagao, permanecesse impressionista. Brémond havia descoberto um caminho, ¢ esse cami- nho nfo caiu inteiramente em desuso, conduzindo as pro- dugdes mais recentes da histéria da espiritualidade, atenta as aventuras individuais de um pequeno niimero de eleitos. A HISTORIA DAS MENTALIDADES NA ENCRUZILHADA DAS PONTES 55 Para introduzir nosso tema convém, porém, partir de na outra revolucdo metodolégica, prontos a aprecié-la, ela jesma, historicamente: a da(Sociologia religio’a, cujas tri- lus @ técnicas foram iniciadas por Bras-e Boulard. Em. 980, Frangois Isambert, auxiliado por Jean-Paul Terrenoi- publicou o Atlas de la pratique religicuse des catholi- jues en Prance (Atlas da pratica religiosa dos catdlicos na franca), a partir de escritos e documentos do conego Bou- lard. Um monumento, sem divida, que nfo cessou de ser {itil nem de provocar interrogacGes através de sua série de inapas de péscoa, missas e eucaristias, a respeito de homens mulheres, distribuidos entre cidade e campo, e entre status yoviais hierarquizados, Ao mesmo tempo, porém, que nos sentimos deslumbrados pela riqueza dessa seara cientifica, ‘itreitamente associada a uma etapa da pastoral — entre 1955 e 1970 grosso modo —, oferecendo uma visio da pritica religiosa francesa em um momento essencial de sua Histéria, também no podemos deixar de afirmar: eis um tipo de Histéria que nao se repetira jamais. Nao porque — se poderia acrescentar um tanto perversamente — ndo fe fazem mais contagens a porta de igrejas, ou porque a pastoral ativista dos anos cinglenta, desejosa de fazer um Inventério dos locais de missdes pelo interior, nao é mais mesma atualmente. Mas, se 0 monumento levantado por P, Isambert, do mesmo modo que a publicagdo em curso dos materiais de Boulard, parecem antes marcos comemo- rativos do que aberturas para o futuro e se também quei- ‘mamos hoje as antiqualhas de Gabriel Le Bras, sem men- cionar outras, resta-nos, todavia, a contribui¢do ainda revo- lucionéria dessa sociologia religiosa, que tanto esforco des- pendeu hé trinta anos para garantir o seu espago. Em primeiro lugar, coloca-se essa hipdtese de traba- Iho, ou essa fértil imprudéncia metodoldgica, que consiste em afirmar que, entre os gestos da prética ¢ a fidelidade religiosa, h4 uma correlagdo, grosseira € certo, mas positiva iscutivel. Eis ai uma primeira resposta, pelo menos 56 seicHRL vovEEL implfcita, ao problema central dessa reflexio. A partir des- sa base, torna-se legitimo computar os freqiientadores de missas, péscoas, eucaristias, tempos de batismo, casamento © ex€quias religiosas, taxas de ordenagao ¢ vocagées monds- ticas. Tantos “indices”, os quais tém em comum com aque- les que iro nos preocupar 0 fato enfim de serem pobres, brutos, mas ao mesmo tempo diretos, medidas sem desvios da participacao religiosa. Uma mudanga ocorreu na Franga, nos anos sessenta, na mesma época em que os métodos quantitativos da socio- logia religiosa conheciam uma espécie de apogeu no quadro da pastoral que os questionava, Essa mudanga implicou a contextualizagéo em uma perspectiva histérica mais larga daquilo que ficou essencialmente como uma técnica de pes- quisa na época contemporfinea. Nao que Gabriel Le Bras nao tenha sido o primeiro a conduzir 0s historiadores pelos caminhos da pesquisa regressiva, até a época moderna ou mesmo medieval, insistindo sobre as riquezas em potencial das visitas pastorais do Antigo Regime. Essa descoberta, porém, se fez por etapas. Para varios pesquisadores franceses, a Revolugdo Francesa reptesentava uma espécie de marco de referéncia, antes do qual se situa- va um estado da cristandade caracterizado pela unanimidade ou pela quase-unanimidade dos gestos significativos: gran- des sacramentos “‘sazonais”, comunhao pascal... Os pri- meitos a se arriscar nesse tipo de pesquisa, como L. Pe- rouas om sua tese sobre a diocese de La Rochelle, nos sé- culos XVII ¢ XVIII, esbarraram com uma proporgéo macica de 97% a 98% de praticantes da pascoa ou sazonais, o que parecia tirar-lhes quase toda significacao. A visdo regressiva na duracdo hist6rica expunha, assim, © historiador & necessidade de repor em questo a bateria de indicadores operatérios na época contemporfinea, ¢ da descoberta de outros indices apropriados: dificuldade insti [A IISTORIA DAS MENTALIDADES NA ENCRUZILHADA DAS FONTES 7 jante pois, demonstrando o caréter relative dos “sndins 5 Nios quais haviam confiado, forgava a busca de outros, Os dois outros tragos que me parecem caracterizar a mudanga dos anos sessenta se associam diretamente ao pri meiro. Um deles € a banulizagiio da técnica de computagio © medida, que comeca a deixar de espantar ou parecer ii congruente. A histdria religiosa se habitua A sociologia hi t6rica e comega a sair do quadro eleito das elites e da espi- ritualidade para se inclinar sobre as atitudes e comporta- mentos de massa, Nao sem surpresas, as vezes, como em ‘Toussaert, descobrindo entre os camponeses da Flandres francesa no século XV, uma forga de resisténcia insuspei- tada a cristianizagao. Nessa fase, todavia, as reticéncias que se produzirao diante da decomposigao dos gestos ainda nao esto em andamento, ¢ o que a computagio traz é uma descoberta confiante. Quem diz banalizagao desses méto- dos, diz igualmente mudanga no espirito da pesquisa, e ‘se posso usar 0 termo no seu sentido mais neutro, sua “des- clericalizagfio", A preocupaco pastoral subjacente, cons- ciente ou nao, na maioria das pesquisas sobre o presente ‘ou o passado imediato — que faziam dela uma meditacao inquieta sobre a descristianizacgo ¢ suas origens —, se dilui ‘A medida que se retroage no tempo. Ao lado disso, nesses tiltimos anos, a histéria das mentalidades, tornando-se mais agressiva e mais vida, tem anexado territérios tomados da histéria religiosa classica, isto é: as atitudes coletives diante da vida, a familia, o amor ou a morte. Quantas solicitagdes para outras tantas novas pistas. (© tempo das séries ¢ dos “indicadores”” A histéria das atitudes © das préticas religiosas se tor- how quantitativa, ou mais precisamente serial, organizando, na longa duragio, a evolucdo de “indicadores", tanto sele- 38 MICHEL VOVELLE cionados como encontrados. Nao pretendemos set exausti- vos — tarefa inttil — evocando alguns dos campos que tém sido explorados ha vinte anos. A contribuigéo da socio- logia religiosa da escola de Le Bras nfo foi rejeitada. Sim- plesmente, sofisticaram-se_e refinaram-se os métodos para mensurago_dos gestos da_prética, ainda que somente para ir além da impressdo de monolitismo que podem deixar os registros paroquiais anteriores 4 divisio laica nascida da Revolugdo Francesa. Outros textos mais indiretos so ento examinados: 0 zelo pelo batismo, o respeito pelos perfodos de proibigo ao casamento (quaresma e adyento) e depois ‘as solicitagdes de dispensa de proclamas. Em seguida, o fluxo das vocacdes religiosas ¢ sacerdo- tais, que, apesar de ter sido significativamente questionado quanto a sua pertinéncia como indicador do fervor ¢ do zelo religioso (Perouas), parece ter passado com sucesso nesse exame de admissio; dispomos atualmente de inime- ras curvas de ordenagdes e de titulos clericais relativos a mais da metade das dioceses francesas. Os acontecimentos vividos pelos clérigos sob a Revolugao — sisma, juramen- to constitucional, descristianizagao ¢ abdicacao do sacerdé- cio — oferecem, por sua ver, outros indices tabuldveis, que permitem freqiientemente antecipar em aproximadamente dois séculos as tabelas de pratica religiosa organizadas pelo cénego Boulard nos anos 1960, Isso ainda nao é mais que uma extrapolagiio regres: va sobre os métodos e problemas da sociologia da pritica religiosa: mas € importante sublinhar a diversidade de dados novos levados em conta, tanto no dominio das fontes ese tas como nos da arqueologia e da iconografia, Fontes escritas? Dei, ha uns dez anos, o mau exemplo, propondo uma abordagem da rede de devocdes “barrocas” em Provenca e de sua desestruturago no século XVIII, a partir dos dados brutos de varias dezenas de milhares de testamentos: contaminagio evidente e voluntéria dos méto- [A MISTORIA DAS MENTALIDADES NA ENCRUZILHADA DAS FONTS 39 dos de andlise da histéria religiosa pelos métodos de uma hist6ria social quantitativista, a qual, segundo a férmula de Simiand, “conta, mede e pesa’’. Essa quantificacdo nao foi iulmitida imediatamente sem reticéncias; perguntei-me antes sobre © significado do conjunto de indices que os testamen- los me permitiam levar em conta, desde escolha das sepul- luras até as pompas ftinebres, as missas de mortuis, as doa- ‘bes pias © beneficentes ¢ a filiagdo a confrarias. E ainda surgiu um historiador inglés sem humor que se indignou com a curva do peso médio dos cftios na Provenga que eu, como maliciosa provocagio, havia incluido em minha obra. Estamos, portanto, no centro de pesquisas de um novo (ilo, que valoriza um “indicador” pertinente para anali- sar, na longa duragao plurissecular, uma evolueo da sen- sibilidade ou do sentimento religioso. Por esse caminho, as possibilidades so miltiplas, e eu mesmo me embrenhei, no quadro de minhas pesquisas, pelas atitudes diante da mor- \e, explorando, certa vez, uma listagem de um milhar de epitafios americanos, de 1660 a 1813, compilados no século XIX por um clérigo erudito, Thomas Alden; e tratando, em outra ocasifo, de um repertério de centenas de comu- nicagdes de falecimento de aristocratas ¢ de notdveis fran- ceses desde 0 inicio do século XIX ao século XX. Tantos exemplos que nao visam mais que uma ilustra- go de uma conduta atualmente generalizade: onde os tes tamentos me permitiram seguir discurso coletivo sobre a. morte, 4 andlise serial dos pedidos de dispensa de procla- mas de casamento por consangtiinidade ou compadrio con- duziu um outro pesquisador (J. M. Gouesse) a reconstituir © discurso sobre o casal, 0 casamento ea familia, Parti- cularmente significative é ver em que termos ¢ mediante quais métodos pode-se retomar, atualmente, 0 acervo sobre 4 pequena literatura de devocio utilizado hi sessenta anos pelo abade Brémond: Daniel Koche, em um artigo notavel sobre a meméria da morte, substituiu a andlise tematica im- pressionista do historiador literério por um censo exaustivo 4] «0 MICHEL VOVELLE e sistemético, seguido pela andlise de um certo nimero de tragos pertinentes a esse acervo da literatura crista da idade clissica referente & morte. Nesse dominio, a importéncia das fontes escritas se acha relativizada por outros “indices” oferecidos pela ico- nografia ou pela arqueologia, por exemplo. ‘Tampouco pre- tendemos estar descobrindo a América: nio se esperaram 08 diltimos vinte anos para se comegar a estudar esses teste- munhos de sensibilidade religiosa, Mas foi 0 tipo de abor- dagem que mudou. Um pesquisador (B. Cousin), que reu- niu um impressionante acervo de cinco mil ex-votos pinta- dos na Proveniga, desde séeulo XVI ao século XIX, dele inferiu, de forma esclarecedora — @ mediante um estudo serial a partir do uma grade do tratamento claborado —, os ‘momentos e etapas da relagiio com 0 sagrado, do ponto de vista do milagre pedido e obtido, A partir de uma sérle compardyel, embora muito mais restrita, tentamos, Gaby Voyelle © eu, analisar as repre- sentagdes da morte ¢ do outro mundo segundo os altares e retibulos das almas do purget6rio, acompanhando a sua evolugao no Sul da Franga, do séeulo XV ao século XX. Recentemente, para dar outto exemplo ao mesmo tem- po préximo e diferente, dirigi, no mesmo quadro geogré- fico, uma pesquisa sobre a arquealogia dos cemitérios urba- nos, desde o século XIX a aiualidade, a fim de analisar os tragos do que se tem definido, algumas yezes — abusiva- mente talvez, mas com certa razio —) como 0 novo “culto dos mortos”, cujo local & 0 cemitério, A sintese que realizei desse estudo, sob o titulo La ville des morts (A cidade dos mortos), tenta alcangar esse ponto, a partir dessa floresta de sinais e simbolos de que s4o depositérias as grandes ne- crépoles mediterraneas. Por mais parcial que seja um inventério que reconhece © seu préprio caréter subjetivo, jé examinamos, talvez, um niimero suficiente de exemplos qué permitem analisar os | AUSCORIA DAS MENTALIDADES NA ENCRUZILHADA DAS FONTES 4) {ragos originais apresentados em comum por essas_novas bordagens, e entre as quais a quantificago ndo 6 mais Jo que um de seus elementos. ‘A um nivel mais profundo, 0 que me parece essencisl ip enfoque assumido por esses novos estudos € 0 projeto je alcangar, além, do discurso e da religiosidade das elites, smbém o conhecimento das massas anénimas — essas que flo puderam se dar a0 luxo de uma expressdo individual Iiterdria, por menor que fosse. E, portanto, nessa etapa ou hhosse nivel da religiéo média, tanto em suas praticas como fins representagdes coletivas que as sustentam, que se situa il pesquisa. Nesse aspecto ela reflete, provavelmente, essa evolu- lo, demonstrada alias pela obra de Philippe Ariés, a qual Privilegia, na histéria atual das mentalidades, mais do que © nivel do pensamento claro ¢ das expresses acabadas, aquilo que Aries denomina o “inconsciente coletivo”. E exa- mente nessa area que o intertogatério indireto ou a co io extorquide de nossas fontes se tornam mais rentavei Declaragio de intengdes: 0 quantitativo em questio E preciso tomar bem consciéncia dos limites, e a0 mes- mo tempo das cléusulas limitadoras que esse tipo de pesq) 1 implica. O primeiro limite seria a relativa pobreza dessas fontes macigas. Vejamos uma ilustragio: 0 ex-voto pintado, por exemplo, pode, & primeira vista, desencorajar, devido a sua repetigo aparente, ao carter estereotipado das atitu- des, ao reduzido niimero de cenéirios — isto 6, cenas de interior: “"jaz no leito enfermo”, e cenas de exterior como acidentes de morte violenta — que 0 ex-voto ilustra e co- menta, Poderia-se dizer 0 mesmo sobre a iconografia dos cemitérios € com mais razo ainda das comunicagées ftine- bres, Fontes repetidas, testemunhos elaborados somente para a finalidade a qual se destinam, Todo um trabalho de deci- 2 seicun. vovELLE fragao se impée a partir de indicios frageis. Escrutinizando os ex-votos, 0 pesquisador medir4 pacientemente superff- cie, respectivamente do espaco celeste de aparicio e da cena tertestre; analisaré, também, 0 gestual e 0 jogo dos olhares pelo qual se estabelece a ligacio entre os dois universos. ‘Analisando as representagdes do purgatério em sua evolu- cdo, sublinharé as mutacdes caracteristicas de wm pantedo de intercessores que, paulatinamente, se vai despovoando do século XVII ao século XVII ‘Além disso, as cléusulas desse contrato exigem do pes- quisador sma real engenhosidade, uma perspicécia sem fa- Ihas,, tanto na escolha como na interpretagao desses indica dores que 0 legado histérico colocou 2 sua disposigaio. Esses dados, tais como os testamentos cuja importancia e signifi- cago crescem do século XVI a idade cléssica, ao mesmo tempo em que st difunde a sua prética, perdem brutalmen- te a sua base estatistica e seu interesse intrinseco na Franca ¢ até na Europa pés-revoluciondria, quando 0 Cédigo Civil passou a sancionar a partilha laica, a0 mesmo tempo em que atuava irreversivelmente sobre as antigas préticas de transmissdo de bens. © conirato implica saber passar de uma base a outr seguir as expresses de sobrevivéncia individual da arte f nerétia, desde igrejes aos cemitérios,’e também & praca pi blica, quando os mortos deixam o lugar sagrado, entre 1770 e 1850, para se reagrupar em ouitros locais. Esses gravames e presses, que nfio admitem nem o erro nem a leitura pobre ou reducionista, explicam em parte as retic€ncias, ou melhor, a contestacdo radical de que foi objeto, as vezes, essa pesquisa sobre indicios, a medida mesmo que seus campos de estudo se multiplicavam. Essas criticas sao fortes © néo podem set menosprezadas. Esses indfcios, coletados com vistas a organizagio de séries, so por definicao 0 reflexo de praticas sociais, Eles passam por filteos ¢ mediagSes apropriados a alterar-Ihes o sett signifi- | AUISFOMIA DAS MENTALIDADES NA ENCRUZILHADA DAS FONTES 43 lo. Quem faz o testamento: o testador ou o notério? E os Yolos, freqiientemente semipreparados que o artesto pin- mn série para completé-los apenas sob encomenda. Me- yes, distorgSes, constrangimentos: esses documentos ma (08 ¢ pobres nao seriam, afinal, sengo o reflexo da pres: social, ou da convencao de um determinado momento? isso mesmo, a debilidade dessas pesquisas seriais em a de indices ndo seriam de tal natureza a nos deixar & 0 dos fates, limitados a um conhecimento ao mesmo tem- superficial e grosseiro, confinado as aparéncias? E, po- ose esperar, a partir daf, abordar um fendmeno como a £6? logo amistoso que travei com Philippe Aris so- bre a interpretaggo da mudanca espetacular da sensibilidade goletiva que ocorreu no século XVIII, entre 1730 € 1770, quando as cldusulas de devocdo © os discursos religiosos desapareceram dos testamentos franceses, & perfeitamente tepresentativo da dimensio do debate, Inicio de deseristia- hizagio: essa foi e continua mina hipdtese. Mu- danga de convengao, reflexo de uma sensibilidade modifi- vada, responde Ariés, para quem, na era rousseauniana de afetividade triuntante, 0 pai de familia nao tinha mais ne- cessidade de estipular egoisticamente as precauyes a tomar em relago a seus despojos, como também sua alma seguro de que seus herdeiros se ocupariam destes. Interio- izagdo mais que mudanga: hé sempre um foro interior, & quem pode se vangloriar de the ter desvendado o sogredo? Devo admitir que, em mais de vinte mil testamentos, néo encontrei nenhum que iniciasse com “alegria, alegria, pran- tos de alegria Em todas essas pesquisas, uma das maiores dificulda- | des reside precisamente na leisura e interpretaedo dos silén- | cios, tio densos de sentido porém. Quando a fonte de in- formecio se torna muda, o que se deve concluir? Nos tes- 46 McHEL vovELE tamentos provengais do século XVIII se encontrava assim um siléncio jansenista, como também um siléncio libertino, que se alargavam no siléncio de indiferenga generalizada da segunda metade do século Para essas fortes criticas, o historiador quantitativista ndo fica absolutamente sem resposta. Ele esté ciente da fra- gilidade de um indice tomado isoladamente e da imperiosa necessidade de correlacionar. Nao € diffcil responder a Ariés que a mudanga que se introduz na afetividade familiar nao explica por que as confrarias se esvaziam, nem por que a nebulosa de clérigos ¢ religiosas, parentes e amigos, impor- tante nos testamentos de fins do século XVII e infcio do séoulo XVII, se amesquinha em bens materiais ao final do século. Seria igualmente cOmodo interpretar, em termos de conjuntura histérica, esse retorno ao qualitative que carac- teriza, em parte, a histéria mais recente das mentalidades e, particularmente, a histéria religiosa. A tentagio quantitati- vista correspondeu na historiografia catdlica francesa ¢ eu- ropéia @ uma etapa da pastoral voluntarista, aceitando como hipétese de trabalho a adequagdo entre a vitalidade da {é ea regularidade dos gestos da pritica. Dai a importancia do momento representado pela sociologia religiosa de G. Le Bras e¢ seus sucessores. Hoje, porém, encarando como um ponto final o seu Atlas de la pratique religieuse des catho- liques en France, Frangois Isambert anuncia a formacéo da nova equipe que ele dirige, significativamente, sobre o tema “Ethiques et pratiques symboliques” (“Btica € préticas sim- bolicas”) Evidentemente, toda uma orientago mudou, € no so- mente porque a faléncia dos gestos formalizados da pratica do cristianismo pré-conciliar impunha essa revisio funda- mental | MISTORIA DAS MENTALIDADES NA ENCRUZILHADA DAS FONTES 45, weas de defensor Pesquisadores de indices, computadores de vestigios \Onimos, serfamos nds os retardatérios de uma outra guer- , de uma época extinta? Nao creio absolutamente nisso, 1s em uma possibilidade de utilizagao fecunda, no sentido josmo de uma nova historiografia religiosa, dessas enque- 1 partir de vestigios andnimos da histéria serial. Primeiramente, porque eles so portadores, quando jonvenientemente decifrados, de elementos que nada tém le pobres, véo mesmo muito além das questdes prelimi- fares formuladas a0 infeio da pesquisa. Retornando ainda uma vez aqueles testamentos, que foram meu primefro campo de experimentacao: partindo dle uma problemdtica inicial, que pode retrospectivamente parecer estreita, dirigida a uma interrogacfio sobre as ori fons da descristianizacZo no século das Luzes, encontrei mais do que esperava dessa fonte, isto é, os testemunhos de uma sensibilidade diante da morte, a teia de gestos que a cercam e as formas simbélicas que a acompanham, Nao poderiamos dizer 0 mesmo de todas essas fontes io diversas, que véo da dispensa dos proclamas ao cmpu- to da ilegitimidade, ou dos antincios finebres & arte fune- réria dos cemitérios, e que todos convergem em torno do tema da familia ¢ das atitudes diante da vida? Retorquirdo ser essa uma maneira ambfgua e, afinal, jscutivel de se encarar a histéria religiosa, que aparece aqui como que absorvida pela histéria das mentalidades. Admito, mas ao nivel propriamente das atitudes e mais pro- fundamente das atitudes religiosas, se € posstvel dissocié-la da precedente, parece-me que é toda uma série de resulta- dos inesperados que se encontram nese desvio ou nessa artimanha metodolégica. Assim, do ponto de vista da histéria dos comport mentos, das atitudes e das representacdes coletivas day massas, 0 primeiro € a difusto de idéias-forgas. A dialética 46 snore vovEtL que associa, em uma relagio complex, o surgimento de temas e nocdes novas entre as elites espirituais, e a sua difusdo junto ao povo cristo, nao pode ser percebida, nem em seus avangos nem em suas inércias, sendo através da comprovagio prética. E entre 1620 e 1640 que o abade Brémond situa o grande perfodo que ele denomina ‘a inva- sfio mistica”; mas & entre 1660 e 1680 que eu encontro suas miniicias nas cléusulas de devoco dos testamentos provengais. Essas formas de hiato ou de inércia podem ser analisadas com preciso através das fontes convergentes de que dispomos: se 0 movimento ascendente da literatura so- bre os fins ultimos, pega importante da pastoral pés-triden- tina, sofre uma queda ao infcio do século XVIII, pelas estatisticas de produggo livresca copiladas por Daniel Ro- che, fazendo do século das Luzes 0 século das reedig6es, no serd antes de 1750, ou no méximo 1730, que essa ten- déncia se registrard nas curvas de devogoes testamentérias. Uma demonstragio semethante a esta, cujos t6picos recordaremos aqui muito sucintamente, foi realizada na longa duracio, focalizando o dogma e as devogdes em torno do purgatério, antigamente vigentes entre os clérigos e, so- bretudo, os religiosos da Idade Média, mas nao comegando sua difusio junto as massas sendo a partir do século XIV © sobretudo do séeulo XV, vindo a culminar no periodo da reconquista pés-tridentina, Para aprender o fendmeno da difusdo, distorgio e também adaptago, parece que 0 uso das fontes escritas ou iconognificas a que acabamos de nos referir, representa um caminho indispensdvel: e foi isso que Gaby Vovelle e eu tentamos fazer, a partir dos altares das almas do purgatério. ‘Ainda vou mais longe: acredito que hé toda uma série de elementos nas representacoes coletivas que s6 podem ser apreendidos em suas estruturas e sua evolugao inconsciente por meio desse tipo de fonte. A psicologia do milagre, acom- panhada através do jogo de olhares nos ex-votos, evolucao que se regisira na seqiiéncia de quadros das almas no pur- | 1UTORIA DAS MENTALIDADES NA ENCRUZILHADA DAS FONTES 47 (rio, so confidéncias inesperadas sobre as representa- do terceiro lugar, iguais a tantas outras descobertas henhum texto escrito nos poderia mostrar. E isso néo juscar © paradoxo, apés ter falado do peso da inércia Wifusio das novidades, mas ao contrério, contrapor & bilidade de um discurso religioso cristalizado a partir Contra-Reforma, um paciente trabalho de adaptagio, de wio, € até de criagio que se opera nas massas. Para perceber essas evolugdes obscuras, freqiientemen- mal conhecidas pelos contemporineos — porque elas se iam aquém de uma tomada de consciéncia formaliza- —, 05 novos meios de pesquisa que acabamos de evocar Jo mais do que nunca necessérios. E ainda se encontrardo ros. Que ndo me fagam dizer que as verdades globais ¢ as jproximagtes as quais elas conduzem desvendam o grande sgredo e permitem — por ardil — sondar os rins © os oragdes. Porque essa é uma outra questao. Pertinéncia e ambigi do testemunho literario* Mais que uma variagio sobre 0 tema do dificil didlogo pluridisciplinar, eis uma interrogacdo sobre 0 problema do © testemunho, que sua unicidade torna, ao mesmo tempo, in- © 4 substituivel e inclassificdvel, e até mesmo suspeito: no polo © \ posto a histéria quantificada das atitudes coletivas, que | contribuigao nos traz a literature? No curso de uma inter- rogagiio que nada tem de académica surge tada uma série de questBes: qual a relagiio da historia das idéias com a historia das mentalidades, e, também mais profundamente, | qual o alcance desses testemunhos que, enfim, propoem a ( arte e a literatura? Dialética ambigua entre o unico e o coletivo. A histéria das mentalidades revela nesse campo, ao mesmo tempo, seu expansionismo... e seus escriipulos. © Pertinence et ambieilté du témoignage lttéraire: Pour une histo des attitudes devant la mort (Pertinéncia e ambigitidade do teste- munho literdrio: para uma histOria das atitudes diante da morte). Comunicagdo apresentada 20 coléquio de Histéria literdria sobre a Morte na literatura, Nancy, outubro 1980. Publicada nas atas do coldquio (1982). tere: | HISTORIA DAS MENTALIDADES NA ENCRUZILHAPA DAS FONTES — 49 ‘A histéria Jiteréria, em seus novos caminhos, assim como a histéria das mentalidades, de maneira como eu © outros a praticamos, somam hoje uma cumplicidade secreta ou declarada a muitos restos de incompreensées mtituas, herdadas de txadigGes diferentes. Creio que o tema da mor- le, tanto na historia literdria como na histéria das mentali- dades, oferece de modo privilegiado, nao o campo fechado para se travar uma disputa académica, mas o lugar para lima confrontagio de métodos, por sua vez, tanto mais fru- lifera quanto mais largamente ultrapassar 0 t6pico estrito que @ provocou. Isso porque ambas testemunham de mancira significati- ya na Franga essa redescoberta da morte que vem se operan- do ha quinze anos, justamente quando comegamos a nos fapropriar desse tema com o tabu que pesaria sobre ele nas sociedades liberais contemporaneas. Enquanto os anglo-sa- x6es, particularmente, assistiram médicos, socidlogos, psicd- Jogos ou ensafstas lancarem um tema que ganhou entre eles proporgdes considerdveis, o papel excepcional das discipli- has literdtias ¢ histéricas seria, ao que me parece, justamente uma das originalidades do caminho francés (ou italiano) para essa redescoberta. E ndo ha absolutamente necessidade de recordar os méritos a que j4 fazem jus os historiadores franceses, de F. Lebrun a P. Arits, P. Chaunu, D. Roche ou R. Chartier, para citar apenas alguns. No dominio da literatura, a impressio de ruptura ou de desvio é menos nitida, talvez devido ao fato de o tema ndo ter jamais sido de fato ocultado. Lucien Febyre lanca- va ainda recentemente uma provocagao aos historiadores: “Quem escreverd uma histéria da maldade, da morte ¢ do amor...?”. Mas em termos clissicos ou atuais, 0 motivo fdnebre, macabro mesmo, sempre teve set lugar nos estu- dos literdrios, © com mais forte azo ainda quando, em continuagZo a Mauzi, Ehrard ou Deprun, 0 estudo de te- mas — isto é, idéia de felicidade, idéia de natureza ou 30 ACHR, VOVELLE inquietude — yeio introduzir um novo campo na histéria literdria. A brithante sintese de Robert Favre, intitulada La mort au siécle des Lumidres (A morte no século das Luzes), se inscreve na seqiincia desses trabalhos, trazendo- thes, 20 gue me parece, toda uma dimenso nova. Mas, na fronteira movedica entre a histéria literéria e a histéria das idéias ou a histéria religiosa, que iriam deslizar para dentro da historia das mentalidades, Brémond apontou © caminho, tauito precocemente, reservando a literatura dos fins dlti- Mos, um capitulo no tomo IX de sua Histoire littéraire du sentiment religieux. E Tenenti, em sua obra pioneita Il senso della morte ¢ Vamore della vita nell Rinascimento (O sentido da morte e o amor pela vida no Renascimento), abria magistralmente, nos anos cinqienta, um campo que se pode considerar dentro do titulo conveniente de histéria das idéias, vista como territério comum & histéria literéria, a historia da arte ¢ & histéria das mentalidades. Uma longa £ tradig#o de compariheirismo existe assim, ainda que apenas l 2gora comecemos a tomar plena consciéncia dela, & luz de Nossas novas preocupagdes. Mas, ao mesmo tempo, parece- me que a recente evolugdo da histéria des mentalidades, tanto em seus métodos como em suas perspectivas, conduz @ colocat em tertmos renovados © problema da utilizacio do testemunho e da fonte literdria. Jé € bastante conhecido como, ha uns quinze anos, a [abordagem das mentalidades tem evoluido de uma histéria | que se conservava, em L. Febvre e mesmo em R. Mandrou, } proxima da histéria das culturas ov do pensamento mani- Festa, para o estudo dos comportamentos, dos gestos © das atitudes como tepresentagdes coletivas inconscientes dos homens. Das atitudes cofetivas diante da familia, da vida, do amor, ¢ da morte, os historiadores atuais tenderao a pes- quisar tragos que tém sido recentemente evocados a partir de fontes literdrias, compreendendo baterias de “‘indicado- res" novos, fontes escritas macicas e anénimas tais como A HUNTOMIN bas aewratoDADES 94 eNcRUZILAADA DAS FOWTES 5) Inlos, © Fontes iconograficas © arqueolégicas. .. Mes- undo nfo cedem a atragio do quantitative ou do ‘ps pesquisadores atuais parecem se afastar do apoio lunho literério tornado talvez. exageradamente cO- gm aparéneia. ura: fonte suspeita? Que me seja permitido, sem visar a uma exaustividade ia, ilustrar esse propésito a partir de alguns exemplos ificativos. Em sua rica sintese, L’homme desant fa mort Niomem diante da morte), Philippe Arits oferece uma straco da relago equivoca que une atualmente uma i historia nova das mentalidades ao testemunho Iiterd- | As referencias miltiples de uma cultura facetada per- lem ao autor extrair o méximo de todo um estoque de dos, coletados em todos os registros, desde a arqueologia iconografia aos escritos religiosos ow profanos, anénimos de autor conhecido. A morte “acrénica’” que P, Ariés (oloca a0 inicio de seu percurso — comp também se re- Hncontraré no fim —, morte sem idade das sociedades era- icionais, esté assim ilustrada, tanto pela morte dos herdis de La Chanson de Roland (A Cancao de Rolando), como pela do camponés de Tolstoi em Ivan Ilitch, que se volta para o muro para morrer quenda é chegada a hora, Mas, 20 mesmo tempo que Aris se utiliza igualmente de todas as boas fontes, seguinds a técnica impressionista que ele aprecia, pode-se dizer, por duiro tado, que rejeita 2 literacaca como tal. A sensibilidade barroca ou romantica 4 morte, por exemplo, niio figura devidamente em Aris, ¢ se ele nao recusa sistematicamente os dados recolhidos 1a “grande” literatura, por outro lado memérias, livros de ra- 70es ¢ narratives andnimas sfo um recurso muito mais para cle. Isso porque o autor — o que ele explica e justifica — pretende colocat-se ao nivel do que denomina, segundo um @ termo um tanto ambiguo, “o inconsciente coletivo”, ampu- tando em suas duas extremidades a Hist6ria total dos ho- mens diante da morte: de um lado, dos seus condiciona- mentos sociais, cconémicos ou demograficos, 0 que, no caso, no nos incomodaria muito; e, de outro, de_tudo que re- sulta da ideologia, seja ela religiosa, ofvical fisol6fica,) ou ao nivel da expressao literdria ou estética, para se colocar, ‘enfim, nessa regiao intermediéria onde as atitudes refletem ‘wm sistema inconsciente de representagdes coletivas. Tenho consciéncia de que esse enfoque que se encontra em Arits, me foi igualmente imputado, em bases diferentes. Escolhendo como base de um de meus estudos mais apro- fundados sobre a morte, os milhares de testamentos pro- vengais que informaram Piété baroque et dechristianisation, les attitudes devant la mort en Provence au XVIII" siecle, voluntariamente privilegiei 0 documento escrito em sua forma aparentemente mais neutra, mais maciga ¢ mais and nima, em uma palavra, a forma menos “literéria”. Formu- lando-a diversamente de Ari’s, minha justificaggo néo re- pousa menos sobre a preocupagao comum aos historiadores contemporaneos das mentalidades, de reabilitar as atitudes coletivas das massas, em detrimento da expresséo privile- giada de uns poucos. = Giltimo exemplo que apresentarei do ponto de vista diferente que se langa hoje sobre a abordagem literdria das atitudes diante da morte, talvez seja o mais nitido: trata-se da pesquisa realizada por Daniel Roche sob o titulo “La mémoire de la mort” (“A meméria da morte”), com base na literatura dos fins dltimos e da passagem final durante os sculos XVII e XVIIL. Trata-se de um levantamento exaustivo ao maximo, dessa literatura, a religiosa pelo me- nos, contextualizada no fluxo da produgao total, focalizan- do esse “esforgo global”, de que fala Pierre Chaunu, de investimento coletivo sobre a morte. Essa anélise autoriza igualmente, além de uma valiosa sociologia dos autores, snore vovEts [ASTORIA DAS MCEWPALIDADES Kh ENCRUZILHADA DAS FONTES 53 ‘ica a partir de titulos recenseados na Jonga duragao secular. Seguindo uma atitude que, em sua simplicidade inten clonal, nada tem de desconfortével para os atuais historia. dores da ratura, essa conduta no testemunha menos a ondéneia & reutilizagao da fonte literdria # servigo de uma historia diferente, isto é, a Hist6ria das mentalidades e das sensibilidades. Tomada cm massa, em uma anélise que ‘ssume sem timidez @ sua rusticidede, a curva das produ (goes sobre a morte revela como, entre i680 ¢ 1720, se Fompeu a tendéncia até entdo ascendente dos tratados sobre 0s fins diltimos, prenunciando a esterilidade do século XVIII com as reedigées de antigos manuais, Trés exemplos, ¢ apesar de seus contrastes, trés visoes, ihustrativas das novas abordagens da morte pela historia das mentalidades, Em cada uma, se insore de maneira di- versa, uma recusa a um tipo de Historia “que nao é mais 4 nossa”, como disse frontalmente Lucien Febvre, isto é, de uma abordagem literdria que resumirei de maneira ine- vitavelmente injusta como: sobre o tema da “morte em. ..”. Repestorio apaixonante, certamente, € com que interesse li as imfimeras teses ¢ ensaios sobre a morte em Martin du Gard, a morte em Simone de Beauvoir, sobre 0 anjo da morte de Winckelmann a Thomas Mann... Mas sempre se coivca, em sua simplicidade inevitdvel, a questo prelimi- nar para o historiador: quem testemunha e por qué? Exatamente quando a abordagem literéria sai do qua- dro de um estudo individual para se ampliar as dimensdes de um afresco da sensibilidade coletiva — como em Favre, para o século XVIII, ou, em termos mais ténues, em Dit- bruck para a poesia francesa dos séculos XV e XVI, somos levados a perguntar quel é 0 alcance e a significagio real dessa florescéncia do discurso literdrio em relacio a uma sensibilidade coletiva mais ampla. Philippe Arits, em um ensaio que retomou depois sobre “Huizinga et le théme “4 MicHEL vOVELLE macabre” (“Huizinga e 0 tema macabro”), no fim da Idade Média, tentou exorcizar essa presenga, que a iconografia ou 2 literatura amplificam de uma cetta maneira, porque ela certamente néo tem lugar dentro de seu modelo explicativo, fundade antes sobre deslizamentos progressivos do que so- bre as rupturas bruscas. Porém mais amplamente, porque ‘© macabro remete a esse “escombro patético” que Braudel havia desejado proscrever do campo da Histéria de longa duragio. A esse nivel, todavia, o historidor das mentali dades se sente desafiado por uma problemética essencial: apés ter cedido a tentagdo de deseartar 0 testemunho lite- rério, talvez soja ele levado a redescobrir a sua impoxtancia, Lo seu lugar central dentro de sua problemdtica. Foi esse o partido que julguei necessério tomar em minha obra La mort et l'Occident de 1500 a nos jours (A morte e 0 Ocidente, de 1300 a atualidade), adotando a con- cepeaio de uma histéria total vertical, apreendendo o fato da mortalidede em seu estado bruto, isto é, em seus aspeo- tos demogeéficos, para tentar analisé-la, ao longo do tempo, em todos os seus prolongamentos, até a complexidade das produgdes mais sofisticadas do imaginério, incluindo a reli- | gio, a literatura e a arte, em resumo, a ideologia sob suas formas elaboradas Essa imprudéncia, ou essa ambi¢ao desmesurada, pela gual em breve serei julgado, me foi como que imposta, no pereurso, pela onipresenga da morte, constante em toda manifestacdo literéria c, conseqiientemente, pela onipresen- ca de um testemunho literério que nao pode ser desdenhado, ‘Um testemunho ineontornével Essa ambigiio coloca uma série de dificuldades ou pro- blemas preliminares, alguns evidentes desde o inicio, outros menos, Se o recurso ao testemunho litertio se impée por si mesmo para os perfodos mais antigos,-quando as fontes A \Weronta DAS AGESTALIDADES NA ENCRUZILMADA DAS FONTES 55 juras e se faz fogo com qualquer lenha, na época mo- . porém, a proliferagéo de uma literatura auténoma yelagio ao contexto religioso, torna-se miiltipla, tanto Wins formas de expresso como nos discursos de que ntadora, conduzindo assim, desde o século XIX aos dias, ao labifinto inextrincavelmente enredado de mentos de mensagens, transmitidos também pelos fil- | pelas histérias em quadrinhos, pela cancao, pela tele- jo ¢ 08 diversos midia, sendo todos testemunhos que com ser levados em conta, em graus diversos. E nfio ppreenderia ninguém a0 confessar, como um modernista weiente de minha imprudéncia, que senti menos dificul- ules a0 me improvisar como medievalista — quaisquer je sejam as criticas que merecer por isso — do que 20 lar organizar uma sintese coerente para o perfodo con- poriineo, onde a Histéria das mentalidades, significati- mente, abre seu caminho com muito maior dificulda- em vista da profusio de testemunhos ainda desorga- iizados. E a partir dessas difiouldades que pretendo expor, lito simplesmente, como e em que termos vejo a utili- clio do testemunho literério para uma abordagem das itudes coletivas diante da morte. E itil a fteratura? De Imediato, © sem pretender absolutamente trazer grandes Fevelacdes, eu ditia que existem dois “meios curtos de fazer 4 oragdo”, isto é, de valorizar a contribuigdo de textos, em uum primeiro nivel. © primeiro meio é tomé-los bem ingenuamente como festemunhos elementares de uma realidade social vivide, de uma prética a respeito da qual eles nos trazem, inocen- lemente ou nao, dados que seria diffcil obter de outras fontes. Isso é Gbvio, dirdo. Mas essa forma de interrogar ‘os textos, onde a Histéria e a histéria literdria colaboram ‘em uma primeira etapa, ndo é to imediata que seja supér- fluo relembré-la. Quando li, em Roman de Renart (Roman- =D N a Mone. vovEnE ce de Renart), a descrigéo do cortejo fanebre de Goupil, com a mortalha “que deixava a cabega descoberta” — evo- cago de um estilo de exéquias cavaleirescas ou principes- cas, onde a ostentagio do cadéver com 0 rosto descoberto constitui a regra — vi esse dado estrito e aparentemente {til integrar-se ao seu tempo, dentro de toda uma rede de tragos escritos, arqueolégicos € iconograticos préprios a es- clarecer o delicado problema da relagio com 0 corpo morto. Alguns encerravam 0 cadaver rapidamente demais, em mi- noha opinigo, na clausura hermética da sepultura, enquanto as iluminuras dos livros de horas franeeses e flamengos, assim como os retdbulos dos altares itslianos, testemunham, a0 invés, a pertindcia de uma pratica de ostentacho pés- tuma que teve longa duragéio, e n@o somente no mundo mediterraneo Essa decodificagdo erudita nem sempre se impde de imediato: ela exige uma real prudéncia no uso das indica- {$6es concretas que oferece. Nao gostaria de dar a impressio de estar multiplicando as infimas disputas de detalhes em relagio a uma obra téo imponente e estimulante como a de Philippe Aris, mas Ihe tomarei de empréstimo mais um exemplo referente ao gestual da morte, tao densamente car- regado de sentido. Tratando da morte acrénica, isto é, da morte domesticada da Idade Média, Ariés extrai da cangao de gesta, a descrigo da postura em que se colocam os bravos como Roland no momento de morrer, ou seja, a commendatio animae. Essa 6 também a posicdo dos que ja- zem em paz, no século XII do Ocidente cristo. Sob a mesma tubtica, Aris classifica a morte do camponés de Tolstoi, que se yolta para o muro ao chegar 0 momento de aceitar a morte. Porém, € aqui que nos interrogamos: 0 gesto de voltar-se para o muro € freqiientemente evocado na literatura da Idade Média. Sem multiplicar os exemplos, assim € a morte de Marsilio em La Chanson de Roland, como também a de Tristio. Entre os dois, adivinha-se, existe um trago comum: € a morte mé e sem salvagéo, O que A HISTORIA DAS MENTALIDADES NA ENCRUSILHADA DAS FONTES 57 poderia parecer, em um universo camponés do século XIX, lima imagem de morte “natural”, se inscreve para mim na Hist6ria com outro valor, em termos precisos e jé com- plexos. Nao seria dificil mostrar outros exemplos — prometo que © farei com parciménia — saltando de um lugar para Otro ou de um século a outro. Pois, se esses dados sio particularmente raros e valiosos para os tempos que deno- ine’ como de ““fonte rara”, eles se tornam ricos €, &s vezes, Insubstiteéveis nos textos mais recentes. Assim, as ‘ltimas Paginas de L'ingénu (O ingénuo) de Voltaire — sobre a morte da bela Saint-Yves — podem ser perfeitamente lidas, hessa perspectiva, como um testemunho sobre a morte em Paris no primeiro tergo do século XVIII: relativa intimi- dade da agonia ¢ dos dltimos instantes, porém exposigaio do cadaver, ainda com 0 rosto descoberto, & porta da sua casa. . Certamente, & medida que se avanga no tempo, torna- se cada vez mais dificil estabelecer essa leitura elementar, que vé no texto fiterdrio 0 mero reflex da prética social do tempo, cabendo-nos antes decifrar as significagdes la- fentes de um discurso bem mais complex porque carre- gado de miltiplos pensamentos encobertos. Assim, nfo ¢ impossfvel analisar no romance curopeu, desde © século XIX a primeira metade do século XX, 0 cerimonial de morte burgués, taf como se elabora e se con- figura entdo, para culminar nas grandes sagas do final do século, em Thomas Mann ou Roger Martin du Gard. Essa seqiiéncia se entiquece no confronto com o discurso para- lelo, ou significativamente discordante, dos antincios fane- bres, nectol6gicos, epitéfios ou da estatuéria cemiterial, tal como proliferou, entre 1860 © 1920, em Génova, Milo e outros lugares. Percebe-se bem que, mesmo a época do realismo ou do yerismo, o romance representa muito mais do que um reflexo ou um depoimento inerte sobre a préitica social comum, e impée, por isso, uma leitura mais elaborada. e x MICHTE. VOELLE Referi-me a dois niveis de leitura direta do testemunho cerdrio; jé € tempo de passar ao segundo, que também nao pretende maior originalidade que o primeiro: & 0 dis- ‘curso yoluntério sobre a morte, exercicio de estilo do qual a literatura religiosa foi, durante longo tempo, o local pri vilegiado, ou melhor, exclusivo. Poder-se-ia acreditar que também nesse dominio a de- codificagio, para nao ser problemética, continue direta. Dispomos de um corpo macigo de dados, uma de cujas maiores vantagens 6, sem diivida, a continuidade na longa e até mesmo na muito longa duragao, constituido dessa literatura pequena ou grande (mas onde passa a fronteira que separa a literatura da nfo-literatura? Nao entraremos: nesse debate, a um s6 tempo essencial ¢ futil), de sermoes, tratados apologéticos, artes moriendi, oragées fiinebres ou + dos “témulos”... © por que nao os testamentos? Nesse ‘caso, 0 discurso sobre a morte se exibe sem véus, sendo sem desvios, deixando livre o historiador, como também 0 historiador da literatura, para traté-lo em conjunto ou em detalhes, e de organizé-lo em séries, como procedeu Daniel Roche com os manuais da idade cléssica, ou Roger Chartier com as artes moriendi, do século XV a0 século XVI. A dificuldade comeca quando se trata de abrir os li- vros para lhes analisar 0 contetido. Nés no nos achamos nesse dominio absoJutamente sem marcos canvincentes, pois a historia cléssica das idéias nos descortinou bem 0 caminho. Discursos oficiais das Tgrejas, discursos desviantes dos he- réticos aos libertinos, depois discursos distintos do huma- nismo ¢ da filosofia, para chegar as novas vulgatas do século XVIII ao século XIX: se ainda ha muito que fazer no trabalho de organizagao dessas expresses ideoldgicas, na longa duracdo, em todo caso, elas continuam a se apre- sentar para nds como aquilo que so, isto é, meditagées sobre a morte, sobre os fins iiltimos € 0 outro mundo. ‘A HISTORIA DAS MENTALIDADES NA ENCRUZILHADA DAS FONTES 59 Muite mais que um reflexo £ provével que se vatorizdssemos exclusivamente os lois niveis de leitura discutidos anteriormente — dois mo- los, enfim, de encarar a morte — ficarfamos visivelmente Iimitados a uma exploragio relativamente pobre das fontes literdrias, A hist6ria da morte 6 de fato a hist6ria de toda luma série de artimanhas, de mascaramentos, de evitagées, mas também de criagGes do imagindrio coletivo em relagio 4 uma passagem obrigatéria em toda existéacia humana. B nese nivel que a literatura oferece um testemu- nho elaborado e complexo, muito mais significativo do que um reflex direto da prética social vivida. Ela pode situar-se em contraste manifesto ¢ total com o sistema de eonvengdes do tempo: 0 que vivemos hoje, no século XX, no qual se difundiu, inexoravelmente talvez, por todo o Ocidente, mesmo catélico, a partir das sociedades anglo- saxdnicas, 0 modelo de tabu sobre a morte, que cons- {iui a nova categoria de obsceno no mundo atual, senéo, em contrapartida, a proliferagio de expresses, em maior ‘ou menor grau, “literdrlas” sobre a morte? Como com- pensacdo catértica conspiragao do siléncio, pode-se ana- lisar, como fez Potel em seu ensaio Mort @ voir, mort di vendre (Morte para ver, morte para vender), a onipre- senga de uma produgdo e de uma criagio fantasmagérica em torno da morte, difundida por todos os midia. De minha parte, se nfo cheguei a escandalizar, pelo menos causei surpresa por determe em um de meus artigos, na historia em quadrinhos. Potel © outros focalizam a cangao, o filme © a televisdo, meios saturadas da evocago de uma morte onipresente, desde 0 massacre automobilfstico de fim-de- semana até aquela outra morte, real mas longingva no Vietnam ou em outra regio, ou a morte imaginada em termos do apocalipse nuclear ou ecolégico. Uma autonomia nfo propriamente integral mas pelo menos relativa da expresso literéria se afirma a partir 0 nice vovELLE desse exemplo tirado da hist6ria imediata, cujo equivalente se poderia encontrar igualmente na Histéria. A tal ponto que se poderia perguntar se a morte, passagem obrigatéria a todos © constante em toda expresso literdria, poderia Jamais ter sido, de fato, objeto de um tabu verdadeiramente integral nesse dominio. A bela sintese de Robert Favre nos comprova que, no préprio Amago do exorcismo dessa ima- gem incongruente, tentado durante 0 século das Luzes, a morte sempre esteve presente no coragio da expressio lite- réria. | Sem forgar nenhum paradoxo eu diria que, nesse do- minio, 0 siléncio momenténeo é ele préprio um testemunho que provoca fortes interrogagdes. O que significa, conside- tando apenas alguns poucos exemplos, no dom{nio vizinho da expressao estética, o siléncio absoluto de Ingres sobre a morte, em todo o conjunto de uma obra considerdvel, quando se pensa na orgia sangrenta que se exp6e em Dela- croix? O que significa, mais ingenuamente ainda, a recusa total (da parte de Manet?) na pintura impressionista em representar a morte: sera simplesmente, como escrevia Odi- lon Redon, porque esses pintores eram “pouco inteligentes”? Nossa histria da morte é também uma histéria de si- léncios, mas esse outro ponto nos levaria bem longe. Con- tentemo-nos, por ora, em nos interrogar sobre essa presenga da morte a0 longo de todo o discurso literério. O malestar que o historiador sente em leyar em conta esses discursos decorre, obviamente, do que neles excede a evidéncia das realidades médias que ele procura, constan- temente, apreender através de baterias de fontes associadas com a normalidade. Nao haveria, em toda expressfo lite- réria, por mais controlada que fosse, uma parte de teatra- lizagao, de dramatizacao, fazendo-a participar do ‘‘inopor- tuno patético” que Braudel pretendera exorcizar? Daf a dificuldade de se levar em conta, no projeto atual de His- t6ria a longo prazo (até “‘imével” para alguns), a énfase no | MISTORIA DAS MENTALIDADES NA ENCRUZILHADA DAS FONTES 61 Ihueabro durante o século XV, 0 artepio do barroco entre 580 © 1650, 0 retorno as idéias negras no creptsculo das iZ08 Ou a impregnagio mérbida dos anos 1900, conhecida ln antifrase Belle Epoque. f férte @ tentacao para delimitar dentro de uma cate- ia de marginalidade, ¢ até mesmo de patologia indivi- ial, os criadores que se deixaram invadir pela presenga morte. P. Aris observou que a estatudtia macabra do joulo XV, de representagao de cadaveres e de cadaveres Jovorados pelos vermes, jamais representou mais do que 4% do conjunto de sepulturas, como também teve a impru- Itncia de escrever que, ao final do século XIX, © macabro fo cra cultivado senfo por alguns belgas e alemaes. Longe de mim a idéia de negar a importéncia da pato- logia individual do criador na sintese pessoal por ele pro- posta, Sade ou Goya ou Delacroix (mas também Ingres, & ula maneira) reagem em fungaio de uma aventura muito yessoal e que thes pertence exclusivamente. Reduzir a and- Tse dos fragmentos de bravura, que constituem em Thomas Mann ou em Roger Martin du Gard as grandes agonias familiares, a uma ilustragio achatada da morte burguesa “tos idos de 1900, sem levar em conta a dimenso pessoal dos autores — terem sido dominados pela angiistia da morte durante toda a vida —, seria nos limitarmos a uma visio inegavelmente muito pobre. Essas aventuras individuais, dentro do movimento yOwnian> que constitui a sensibilidade coletiva, aparecem fomo testemunhos privilegiados em um contexto mais am- plo. Elas adquirem um valor excepcional, parece-me, em contrasie com o cendtio das crises na sensibilidade coletiva que marcam a histria das mentalidades. Sei que, para mui- os, a nogio de crise nesse domfnio € fortemente contestada; ainda no terminamos completamente com as velharias de Paul Hazard, como também, as yezes, ainda hé quem se dedique engenhosamente a demonstrar que a Revolugao Frances no existiv. a MacHEL vovELLe: Seqiiéncias de longa duraglo e crises de sensibilidade coletiva Mas essas seqiiéncias existem bem e para elas os teste- ‘munhos literdrios se tornam um indicador privilegiado, onde se incha a imagem da morte, como aquelas que resumida- mente lembrei, desde 0 macabro de fins da Idade Média até nossos dias, passando pela sensibilidade barroca ¢ pela do romantismo europeu, ou pelos simbolistas ¢ decadentes do final do século. Esses marginais testemunham, em nome de muitos outros, um malestar muito mais amplo do que 0s cendculos que eles representam. Significa isso que eu como historiador, somente levaria em conta a contribuigao dessas expressdes nos perfodos de ruptura, de tensio ¢ de grandes reviravoltas nas sensibilidades coletivas? _— _Certamente nao, pois entre essas etapas de_questiona- mento, se elaboram e se estabelecem modelos — ou estru- ~ruras estéveis, se preferirem — que, a longo prazo geral- mente, condicionam as representagdes coletivas ¢ as atitu- ~ des, aliés, todo o ritual de uma época. Assim, entre fins do século XIV e meados do século XVII, sobre um pano de fundo apenas alterado pela crise da Reforma, se configurou © que denominarei, no sentido mais amplo do termo, 0 modelo de morte “barroca”: extetiorizagiio, apresentagio, investimento na profusfo de gestos multiplicados. O ceri- monial barroco do Grande Século cunha ¢ difunde a pré- ‘a das exéquias principescas desde 0 século XV ao séoulo XVI. Igualmente, 0 neoclassicismo ¢ 0 romantismo, em fins do século XVIII e no século XIX, refletem, ao mesmo tem- po em que contribuem para configuré-las, as novas regras segundo a8 quais se ir4 exprimir a morte burguesa no século pasado, Nessa dialética, é evidente que a literatura, assim como as demais expressdes da ideologia, 20 mesmo tempo | em quéa refletém, também contribuem para moldar a sen- sibilidade coletiva por intermédio de todos os suportes for- Lmais que elas the. oferecem. | MNSTORIA DAS MENTALIDADES a ENCRUZILIIADA DAS FONTES 63 ‘Ao fim dessa reflexfo, o testemunho literério me pa- © insubstituivel. Integrando os argumentos precedentes nitreabrindo algumas outras portas, parece-me que essa tiincia se insere j4 em varios niveis. Antes de tudo, pela relativa riqueza de dados que 0 Jomunho literério nos permite associar. As fontes seria- que comegamos a explorar — falo aliis como prati le convicto — so fontes pobres, freqiientemente uni- i, € exigindo ama decodificagao prudente; refiro-me Wimulos, aos Testamentos-€ a0s eX-VOWOS, A confissio yiria continua essencial para penetrar a face oculta do jimento de more. Cito apenas um exemplo, banalizado _provavelmente, um tanto explorado hoje em dia: 0 jogo ire Eros e Tanatos, que nao comeca absolutamente em dung Grien ou Cranach, ¢ que também ganharia em nao interpretado to exclusivamente & luz da Revolugao de inde. O ensaio de Mario-Praz La morte, la carne e il dia- ilo (A morte, a carne ¢ o diabo), mantém em parte seu lor como sugesto © provocacdo, mas se enriqueceria, ytamente, se retomado hoje dentro de uma perspectiva erdadeiramente histérica. Instrumento de andlise do oculto, Jo habitualmente nao dito, daquilo que a hegemonia de Im modelo recebido sufoca e esconde duramente, o teste- \unho literdrio me parece uma fonte preferencial em pelo monos dois niveis. A longo prazo, que muitos concordam em reconhecer gomo o tempo prdpric da histéria das mentalidades, a lite- aura veicula as imagens, os clichés, as lembrancas e as herangas, as producdes sem cessar distorcidas e veutilizadas do imagindrio coletivo. Nao chegamos a falar nem do conto em da lenda, mas é evidente que toda mitologia passa por uma expresso literdria. A propésito, poderiamos su- blinhar, no terreno da morte, a inércia ou resistencia de certas formas obstinadas, das quais o discurso reli seria o exemplo tipico, na forma como se cristalizou du- tante © século XVII, no curso das lutas da pastoral pos 64 MICHEL VOVELLE tridentina, para se transmitir quase sem variagao até... ontem, Prefiro, contudo, em aparente e paradoxal contradi¢ao (somente na aparéncia), primeiro reservar para a fonte lite- réria um outro privilégio: 0 da mobilidade, A literatura, instrumento eletroscépico, vibra e registra prontamente os frémitos da sensibilidade coletiva. A crispacao sobre a mor- te, expresso metaférica do mal de viver, torna-se um dos indicadores privilegiados da historia da sensibilidade atual. Refletindo sobre a questo, a0 mesmo tempo ingénua ¢ crucial — como e por que muda a imagem da morte? Pierre Chaunu, sensivel as grandes fases demogréficas, es. creveu que, em sua opiniao, o investimento coletivo sobre a morte era “um derivado da esperanga de vida”. Nao levarei esse paradoxo ao ponto de querer surpreender P. Chaunu em flagrante delito de reducionismo mecanicist Mas creio antes, sem cair em um lirismo elementar, que esse investimento é um derivado da esperanga de felicidade, © que explica que nossas sociedades, decadentes e enca. necidas — onde as mulheres americanas ultrapassaram a barreira dos oitenta anos de expectativa de vida — tenham hoje, com angtistia, redescoberto a morte. Par isso, 0 circuito pela literatura me parece, enquanto historiador das mentalidades, um meio no somente dtil, mas indispensdvel para reintroduzir no caminho do tempo curto, uma Historia que tem uma tendéncia forte demais para ceder as tentaces de uma Historia imével, mergu- Thando com enlevo em uma etnografia, histérica ou nao, justamente quando a dimensio do tempo curto corresponde ao da Histéria que se agita com frémitos de sensibilidade, que so muito mais que @ espuma fugidia dos dias. onografia e téria das mentalidades* Muito mais do que uma reflexdo individual, trata-se iui do estado atual de um problema conforme foi debatido elivamente, em um encontro associando historiadores, ioriadores da arte, etndlogos e semiélogos. O problema iscutido foi o do uso de fontes diferentes em uma Histéria lis. mentatidades, na qual a precedéncia do documento ito se encontra, seniio questionada, pelo menos podada. umbém, 0 porque do circuito pela imagindria, ou mais iniplamente pela expresstio figurativa, cuja importéncia é lestada por toda uma série de estudos paralelos. E ainda, kono tratar essa documentagio em fungdo das reflexdes ipectficas que Ihe sido dirigidas? * “tconographie et histoire des mencalités: problémes de méthode” (Iconografia e historia das mentalidades: problemas de método”), Revue d'ethnographie francaise (Revista de Etnografia francesa), 1978. Ipualmente publicada na introdugio as atas do coléquio “Leo: Hographic et histoire des mentalités” (“Iconografia © histéria das Mmentalidades"), realizado em Aix-en-Provence, em junho de 1978, sob 0 patroctnio do Centro Meridional de Histéria Social, das Men” {ilidades © das Culturas, apresentando sinteticamente suas comuni- cages. Ediges CNRS (Provenga-Cite d’Azut), 1979,

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