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ALEXANDRE JOSE GONCALVES COSTA FRADES NA CIDADE DE PAPEL A ACAO SOCIAL CATOLICA EM SAO JOAO DEL REI: 1905 — 1925 Dissertagéo de Mestrado apresentada 20 Departamento de Historia do Instituto de Filosofia © Cigncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientagao da Prof* Dr? Izabel ‘Andrade Marson Este exemplar corresponde a redagio final da dissertagao defendida e aprovada pela Banca Examinadora em W400 QUABAD Prof. Dr. Roberto Romano Silva Campinas/2000 CM-O0142721-9 FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO DFCH - UNICAMP Costa, Alexandre José Gongalves Frades na cidade de papel: a ago social catélica em Sao Joao del Ret: 1905-1925 / Alexandre José Gonsalves Costa. - - Campinas SP : {s.n., 2000. Orientador: Izabel Andrade Marson. Dissertagdo (mestrado ) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia ¢ Ciéneias Humanas. 1. Igreja catélica. 2. Catolicismo. 3. Pensamento religioso. 4. Catélicos, 5. Ago Catélica. 6, Religiio e sociedade. I. Marson, Izabel Andrade. [1. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas. I.Titulo, AGRADECIMENTOS Minha gratidio a Prof” Dr* Adalgisa Arantes Campos, que me sugeriu a cidade; a0 amigo Adalberto Batista Sobrinho, pela orientagZo quando da feitura do anteprojeto, e pelo prazer dos encontros; ao pesquisador Sebastido de Oliveira Cintra, por permitir-me 0 acesso ao seu arquivo singular; 4 generosidade de Frei Feliciano van Sambeek, por ceder-me temporariamente os documentos atinentes a pesquisa constantes no arquivo do Convento de NN. Sra. de Lourdes, em Sa Jo&o del Rei; ao Pe. Jamil N. Abib, por faculter-me a investigagao do material relativo 4 Uniao Popular no seu arquivo em Rio Claro; a solicitude das funcionarias e fancionarios da Biblioteca Municipal Caetano Baptista d’ Almeida e do ‘Museu Regional de S. Jodo del Rei, na pessoa do historiador Jairo Braga Machado; 4 minha orientadora Prof, Dr’ Izabel Andrade Marson, por ter acreditado no trabalho, assegurado condiges para sua realizao e apontado caminhos; a Prof" Dr* Eliane Moura da Silva e a0 Prof. Dr. Roberto Romano Silva, que compuseram a banca de qualificagdo, pelas indicagdes bibliogréficas e observagdes acerca da abordagem do tema. Meu reconhecimento as instituigdes CAPES, CNPq e FAEP, que financiaram o trabalho. ‘Minha gratidio ao Emerson Merry ¢ & Erminia Silva, pela atengio e apoio quando de minha chegada a Campinas; aos amigos Ademilson Paco Soares, Conrado Moraes Prado ¢ Eclison Tito Silva, pela amizade prazer dos encontros; 4s amigas Katia Benatti, pelo afeto, Daisy Turrer, irma de alma, Christianni Cardoso Morais ¢ Iracema Vicentina de Souza, pelo aurxilio na pesquisa e imagens da cidade; ao Kleber do Sacramento Adio, pelo didlogo sobre o luger; a Sra. Idegalda Faccion, por contar-me um tanto de histéria de sua familia, aos amigos do Senhor dos Montes, Dona Manuelina Candida de Jesus, Iracema V. de Souza, Triene de Souza Silva e Vainer Moreira da Silva, pela convivéncia, aprendizado amizade, a Irma Leopoldina Inés de Castro Perdigio, pela amizade, carinho, ajuda, humor ¢ afeigao. Minha gratidao 4 minha familia, por muito; Katia Toledo, por existir. SUMARIO I~ Introdugao. TIA cidade de papel neces ttntnnntcnestnnteeesie 14 TI - Os acélitos de Roma. 45 IV— As seletas falanges de Cristo... V ~ Catecismo 80a ..ecccseseesenienr nate vsesctnenennsne senses 134 VI - Catdlicos ¢..... 189 Anexos. Fontes....... em memoria de meu pai Geraldo Nicias da Costa para minha mie Terezinha Gongalves Costa Léo e Ménica para André, Beatriz, Helena e Henrique para, Katia Toledo I-Introdugao. A idéia inicial era trabathar 0 tema do progresso na década de 1920, em cidades de Porte médio, Pattia-se do pressuposto que nesses espagos daquela época - periodo consagrado pela historiografia como de efervescéncia do moderno -, a emergéncia de setores médios, ainda que vinculados as forcas politicas tradicionais, secia responsével pela difusdo no interior, da confianga na ciéncia como elemento chave para a superagio do atraso ¢ realizagdo dos emergentes como forga social determinante dos ramos de cidades servidas por linhas de ferro, por duas ou wés fabricas de tecidos e de calgados, por curtumes, por dois ou trés jomais, por um coméreio e uma populagao que cresciam, que se viam as voltas com o problema da mendicdncia, do abastecimento de agua, do saneamento...argumentos todos de uma situagio nova a embasar o discurso daqueles setores €m oposigao ao antigo da comunidade - pasado manipulado para prover sua identidade, So Jodo det Rei foi a escolhida por abrigar, mais acentuadamente em Minas Gerais, © encontro do passado com o modemo ~ ¢ néo estranha ter sido inicialmente eleita para acolher 2 nova capital em substituiggo a velha Ouro Preto; também o fato de ter sido Preterida por uma cidade inexistente, para além dos citimes e concorréncia regionais, diz. de uma opgdo da elite republicana mineira em fixar um marco/rompimento com o curral del rei, reinvemtado em horizonte promissor -, continuidade de um espago urbano que se fundou e continuou 2 se manter - superando a crise da minerag%io - como entreposto comercial. Muito mais do que as propostas de rupturas espetaculares, pretendia-se examinar 05 discursos da conciliagiio, da harmonia do baixo continuo da meméria com a melodia do moderno, daquilo que os trilhos levavam do Rio de Janeiro até ela com aquilo que ela tinha a oferecer a caravana modernista que a visitou em 1924. Da busca de sintese entre sua identidade construida e as exigéncias da civilizagao, emergiria um sentido no qual os letrados daquela comunidade propugnariam que ela obrasse seu vir a ser. Através de seus Jomais, seria possivel obter ~ para além das filiagdes politicas locais - pareceres que, se Possivelmente em suas nuangas diferenciados, apontassom um certo consenso acerca daqueles encontros e das sendas a abrir. O encomtro no Arquivo Piiblico Mineiro com o jomal Acgiio Social, orgam da Unido Popular, semanario cujo alvo ¢ trabathar na realisacao dos principios da sociologia christ e na defeza das classes operarias, provocou a reformulago dos objetivos da pesquisa, motivada por um certo espanto seguido da curiosidade em saber sobre 0 significado dos dizeres do seu cabegalho, ¢ do seu editorial - A Quesiéio Social -; entender daquela wrido popular proposta por catdlicos em 1908; enfim, 0 significado de um discurso sobre 0 modemo no registro da religido, que sai a campo no Brasil da primeira década do séoulo XX e se estende até inicios dos anos vinte. ‘A desooberta que a linha de ferro também conduziu 4 Catélica frades holandeses que, junto a outros mensageiros de Roma que aportavam no Brasil da época, pretendiam no 6 0 engrandecimento de sua congregagio, a reorganizagdo e recomposigéo do clero nativo na obediéneia & sé romana - reforma interna, romanizagio, segundo expressdes utilizadas pela historiografia sobre a Tereja no Brasil -, mas também, particularmente redentoristas e franciscanos, traziam uma mensagem, um chamado ao Iaicato para se organizar, para constituir um movimento que servisse de suporte - resisténcia/pressio - a reconstrugéo de um lugar de destaque para a Igreja catdlica na sociedade brasileira, que vivenciava o aprofundamento da laicizagio promovido pela Republica, permitiu vistumbrar a primeira tentativa no Brasil de um catolicismo social articulado. ‘A constatagio que a Unio Popular de Séo Joio del Rei foi “considerada & vanguarda do Exército Catélico Mineiro” pelo 2°. Congreso Catélico Mineiro’, que 0 seu diretor foi o primeiro assistente eclesiastico do Centro da Unido Popular de Minas Gerais & um dos principais mentores de seu projeto de organizagao social catélica, colocou o desafio de, através de um estudo de caso exemplar, contribuir para o entendimento da agao social catélica no Brasil do primeiro quartel do século XX, e, particularmente, sobre a amagéo de uma associaggo fundada em varias cidades do pais. “Uma pergunta fica no ar: por qué (a ‘Unido Popular) nfo conseguiu executar o seu programa de articulagdo nacional? Por qué desaparece, silenciosamente, sem deixar rastros? ou onde estio os rastros e as motivagdes de uma organizacdo, que na Alemanha e na Itélia, se mostrou to eficiente para a politica de apostolado da Igreja?”* 126%, Assembléia Geral da Uniio Popular de S, Jato del Rei, 08/10/1911. Caderno de Atas 1. ? Boletim do CEPEHTB. So Paulo, Ano VUL, abr/jun 1986, n. 28 (2), p. 9. Com efeito, os estudos tém eleito a década de 1920 como o periodo em que a ago cat6lica no Brasil inicia sua arrancada no sentido de reencontrar 0 espago perdido com a laicizago do Estado desde 1891. Destacam, nacionalmente, as figuras de D. Scbastifio Leme ¢ de Jackson de Figueiredo, e, regionalmente, de D. Anténio dos Santos Cabral ¢ de D. Helvécio Gomes de Oliveira. Esses estudos, quando nfio desqualificam a experiéncia das iniciativas anteriores - “os varios, dispersos e insignificantes grupos que ja existiam hé ‘tempos, ou que tinham sido criados mais recentemente por padres estrangeiros segundo 0 modelo europeu” -, encampando o siléncio dos protagonistas da década de 1920 acerca do que se realizou antes, apenas citam de passagem ou, quando muito, reproduzem intengdes presentes nos discursos de lideres em congressos catélicos, “Em geral se desconhece o que, a pritica, apareceu nos campos catélicos no nivel da agio sécio-operiria, O que, normalmente, mais se destaca, sto os discursos em que so férteis os militantes™. Em outra perspectiva, inscreve-se 0 trabalho de Buclides Marchi. Tendo por tema A Igreja e a Questito Social: 0 discurso e a prixis do catolicismo no Brasil (1850-19150), sea estudo traga - aprofundando a discussiio da romanizagdio - um amplo quadro das “propostas € praticas pastorais” do catolicismo no Brasil, “tanto sob 0 ponto de vista institucional, quanto como forca politica atuante na realidade social”’, na busca de “reconstruir a trajetoria da Igreja dentro de um corte temporal e espacial, interligada a sociedade onde se encontra historicamente situada”®. O corte, é um tempo em que, o que ele chama de reforma da instituigéo no Brasil - colocando seu inicio em meados do século XIX, representado pela obra de Dom Anténio Ferreira Vigoso, em Minas Gerais, e de Dom Anténio Joaquim de Melo, em Séo Paulo, ¢ seu término representado pela Pastoral Coletiva dos Arcebispos ¢ Bispos das Provincias Eclesitsticas do Centro-Sul, de 1915, com o contraponto da anélise dos resultados da reforma pela Carta Pastoral de Dom Sebastiio Leme, de 1916 - dialoga com os influxos da civilizagdo industrial, que aportavam no litoral € se faziam mais presentes no Centro-Sul do pais. Seo presente trabalho compartilha com esse outro a preocupagdo em langar alguma Juz acerca das iniciativas catélicas em diélogo com a sociedade de um periodo em que elas. ? Bruneau, Thomas. Q catolicismo brasileiro em época de transigAo, So Paulo, Loyola, 1974, p. 87. * Boletim do CEPEHIB. Sao Paulo, Ano VIL, jawmar 1986, n. 27 (1), p. 5. * Marchi, Euctides. A igrejae a Questiio Social: 0 discurso ¢ a prézis do catolicismo no Brasil (1850-1915). ‘Sao Paulo, tese de doutorado/USP, 1989, p. 30. "Idem, p24. mereceram poucos estudos, opta pelo quadro na pequena eseala, por priorizar uma daquelas associagdes que se pretendia centro de todas elas, das antigas e das mais recentes, no firme Propésito de engajé-las na tarefa imensa de reintroduzir Cristo de ponta a ponta na soviedade, de solucionar a quesido social, através da formagio de um laicato de vanguarda, “seletas falanges de catélicos”, de apologetas educados na sociologia crista, esbogo de uma doutrina social da Igreja, concepgao que os militantes catdlicos do inicio do século XX elaboraram do seu tempo, tributéria de quase meio século de priticas e reflexdes - ancoradas nos textos da tradigfo -, que acabaram por engendrar @ que ficou conhecide como catolicismo social, movimento que, em 1891, recebia 0 reconhecimento da Sé romana, na sintese proposta pela enciclica Rerum novarum, Essa sintese pode ser entendida também como tentativa de conciliar as divergéncias internas a0 catolicismo social, entendimento este que explicaria “os varios matizes ¢ “surdinas” da enciclica, suas “hesitagdes” e “reticéncias”*. Se a Rerum novarum é “solida nos prineipios ¢ nas orientagdes, ¢ prudente ¢ aberta as aplicagdes c as solugées das quais, ela ndo impée nenhuma”, 0 que propiciava a militéncia catélica uma maior margem de interpretag&o do texto papal, tendo como parimetro néo sé a produgao da corrente de pensamento a qual se filiavam esses militantes como também as peculiaridades do meio onde obravam'”. Necessério ressaltar que essa apropriag&o - em busca da legitimidade conferida s ages pela palavre da autoridade maxima da Igreja - no se limitava a Rerum Novarum, mas, particularmente, no campo das enciclicas papais, estendia-se as leoninas Immortale Dei (sobre a Constituigéto Cristé dos Estados), Diuturnum Iiud (sobre a Origem do Poder Civil), Graves de Communi (sobre a Democracia Crista), Humanun Genus (sobre a Maconaria), Libertas Praestantissimun (sobre a Liberdade Humana), Quod Apostoloci Muneris (sobre o Socialisimo e Comunismo); e, de Pio X, Motu Proprio (sobre a Agdo Popular Catélica) e I! Fermo Proposito (sobre os Fundamentos da Agito Catélica) Pio X. 1 fermo proposito, documentos pontificios 38, Petropolis, Vozes, 1959, IH ediao, (7). * anbert, Roger. A Igreja na sociedade liberal e no mundo moderno. In: Rogier, Aubert & Knowles orgs.) Nowa Historia da Igrefa. Petropolis, Vazes. 1975, vol. V,T. Lp. 147. * Mayeur, Jean-Marie. Catholicisme Social et’ Démocratie Chrétienne - Principes romains, expériences frangaises. Pais, CERF, 1986, p. 65. “Com estas palavras o Papa nfo quis proibir as greves, pelo contrario, reconhece as raz6es que sc podem dar para realizar uma greve: trabalho demasiadamente prolongado, retribuigdo mesquinha / Por sso 0 Estado ‘io temo direto de proibi-tas porque em certos cas0s € 0 tinico meio justo de defesa que possui o operdtio.” ‘A cbrigagio do Estado. Agdo Soctal 16/04/1916, ano TL, num 57. p. 1 ‘Também os textos dos principais representantes do catolicismo social - desde os fundadores de sua raiz antiliberal -, mesmo de correntes opostas, eram apropriados, 0 que no impede o estabolecimento de sua filiagdo a uma daquelas correntes. Se Le Play era citado, 0 era para reforgar © compromisso do cristo com a caridade ¢ nfo para negar a0 Estado o direito de intervir nas relagdes entre patrio e operdrio, A partir dessas observagdes toma-se problematico compreender a agéo do clero regular estrangeiro nos primeiros tempos do regime republicano no Brasil no sentido estrito de mensageiros de Roma, pois ‘que os mensageiros ressaltavam alguns matizes, introduziam outras surdinas, superavam algumas hesitagdes, adotavam novas reticéncias, tanto em razio das filiagSes, quanto - certamente mais - em fungio das “vicissitudes contingentes e acidentais dos tempos” e da “indole de cada povoado”" Trata-se aqui um aspecto, um dos elementos da reforma uliramontana, da romanizacdo da Igreja no Brasil, estudo de uma associagio que surge para dar ordem, para unificar as iniciativas no campo social, para obter “a devida coesto das diversas obras que a ‘compdem (...) concérdia esta que jamais se h4 de conseguir, se em todos no houver unidade de intengGes””, obra justificada pela disperstio das forgas, pela desorganizagio do exército cristdo, na contrepartida da unio dos inimigos na magonaria, Ha uma guerra em andamento, ¢ os catélicos, apesar de serem a maioria, estilo sendo derrotados, por muitos desconhecerem que a guerra existe, pela desuniio dos poucos que nela pelejam, avaliagdo posta em varios momentos para dar suporte ao enquadramento das iniciativas leigas nas diretrizes do episcopado; que os comandantes fossem “catélicos a toda prova, convictos de sua $8, solidamente instruidos nas coisas da religiio, sinceros seguidores da Igreja particularmente desta Suprema Catedra Apostélica e do Vigario de Cristo na terra”_ E a imagem da coesiio do inimigo/desuniao dos catdlicos que sustenta o discurso da ordem nas fileiras da Igreja. Ordem imprescindivel a0 combate a “civilizagao anticristd; reparar, a todo modo, as desordens que dela provém”"’. Promover guerra ao liberalismo, impio, que se nutre do mecanismo material do lucro, prosélito de uma liberdade que s6 serve para dar live campo a violéncia da acumulacg&o capitalista, desenfreada, ™ Pio X. Ii fermo proposito...(9;19). 2 Idem, (13), ‘dem, (10), "dem, (7) inescrupulosa, mie do proletariado miseravel, terreno propicio & propagago do erro reyolucionario, 4 guerra entre irmaos; esse sistema, que proclama aos quatro ventos, através de sua ciéncia arrogante, o struggle for life como ideal de vida em sociedade, “deve ser rejeitado como imoral e contrério 4 natureza humana” No fundo, empreende-se uma batalha — de uma guerra longa, de movimento — contra o liberalismo, filho dileto da Reforma, como antes se empreenderam batalhas contra © paganismo, contra as pretens6es do Império, todas elas embates de uma luta perene contra mal, que instiga o erro, sempre renomeado, atualizado no século, lugar do pecado. Nessa guerra se sabe a vit6ria definitiva, o sonho, invidvel agora, pois ele s6 se realiza para além do mundo num tempo sem marcha; agore, como antes, resiste-se a tentago, posta por Deus como prova de £8 aos homens no combate ininterrupto que eles devem travar como o filho Dele feito homem travou. Em marcha, variam os terrenos, mimetiza-se 0 inimigo, deslocamento interminavel nesse mundo, que s0 a crenga dos milicianos no refrigério pode suportar, no descanso que encontra apoio na face do Criador, erénica de um encontro sempre adiado a legitimar a continvidade de ecclesia, sempre por se realizar, acossada, incompletude que ¢ a condigdo do possivel de sua permanéncia no século. Perspectiva da pequena escala por situar essa ago no microcosmo de uma terra de negociantes “cognominada A Cat6lica, pela majestade de seus templos, indole de seu povo, magnificéncia de suas festas ¢ respeito as tradigdes”"®, detectando as resisténcias e os apoios, ¢ as motivagies destes e daquelas, sempre referidas 4 comunidade ¢ & época vivenciada por ela, desafio - reencontro com a idéia inicial - de montar o palco daquela ago, de dizer de uma cidade daqueles tempos, construida hoje dos fragmentos de seu ideal que dela deixaram sous jomais, ideal que em substancia é inereute a toda comunidade capitalista, a zelar por seu “estado de ordem”. “O que seria o ‘estado de ordem’? Em primeiro lugar um estado ideal, caracterizado pela auséncia de conflitos capazes de por em isco a seguranga pessoal e de propriedade do cidadio, ¢ de conturbar a tranqitilidade piblica. Manter a ordem significa efiminar ou prevenir quaisquer problemas que possam ameagar a pessoa ou a propriedade dos cidadiios””. 25 Liberalismo. Acdo Social 30/05/1913 ano 1, mum 12, pL. 16D, Silverio”. A Tribuna 15/08/1915, ano H, mum 58, p. 1. 1 Marson, Lzabel Andrade. Movimento Praieiro: 1847-1849: Imprensa, Ideologia e Poder Politico. Sio Paulo, Moderna, 1980, p. 74. 7 © que difere em cada sociedade, afvita as leis de mercado, é o suporte sobre o qual © discurso da ordem é construido, sua justificativa. Os letrados de Séo Jodo del Rei erigem. uma comunidade onde os conflitos sio contingenciais, acidentes, perturbagdes de uma normalidade do desde sempre - “Ovorreu (...), nesta cidade, um fato Jamentavel ¢ talvez virgem na histéria de S. Joo del Rei”"* - alicergada na indole ordeira do povo, porque catdlico, devoto, povo bom’; ¢ essa indole catdlica que embasa o “viver amistoso e pacifico sempre passado em So Joo", o sempre passado da perenidade da tradi¢ao. A chegada dos franciscanos ameaga esse discurso por eles portarem outro, que diz que aquela ordem - ¢, portanto, aquele catolicismo - é na verdade desordem - é ultrapassado, velho como as ruas estreitas, ¢ acanhado como as drvores raquiticas -, que 08 conflitos 180 so acidentais, “mas do século XIX para cé, as comogies sociais tém sido substanciais, ¢ tio profundas, que no tem havido poderes humanos capazes de as conter € acalmar™*, que assegura que “a caridade € 0 amor ao proximo no é sé dar ao mendigo./ Justiga e caridade em tudo e com todos, nunca praticar 0 egoismo on o individualisma”™. A ago social catélica em S. Jodo teria de se haver com a vigilincia daqueles que zelavam por aquela cidade, orgulhosa de seu espirito progressista, pressurosa em acolher as sempre Tenovadas exigéncias da civilizagao, adepta de uma ideologia que vincula o reconhecimento do estatuto civilizado de um povo & sua capacidade de comprar o ininterrupto fluxo de mercadorias novas, alimentado pelo sistema ¢ seu alimento: o telégrafo, a ferrovia, 0 decote, o cinema, o fondgrafo, o automovel, o jazz, a melindrosa, o almofadinha up to date. Também seu semanario cujo alvo é a realisagiio dos principios da soctologia Christa e a defeza das classes operarias teria de se haver com a contradigao de set 0 jomal “o espago privilegiado onde as mercadorias se demonstram ¢ se negociam (...) Mais que isso, 0 jomal ¢ também, ele mesmo, uma mercadoria, (...)” e “enquanto mercadoria, dinamiza e ordena 0 mercado de coisas e idéias e ao mesmo tempo disciplina, educa as forgas sociais, universalizando 0s projetos comprometidos com a propriedade e com o ** Lamentivel. A Opinio 18/11/1909, ano HM, num 36, p.1 '° “No se pode negar que nosso povo ¢ bom, que nele perduma arraigado 0 sentimento religioso”. Max Scorpio (Severiano de Rezende), Culto Divino. O Reporter 19/12/1907, ano I, mumn 65, p. 1. ® Naso rumo € outro. Reforma 04/05/1913, ano I, mura 5, p.1. ® Individualismo. Agdo Social 27/06/1915, ano I, mum 16, p. 1 Individualisme, Agdo Socta! 2006/1915, ano I, mum 15, p.1. universo das mercadorias, moldando o conceito de cidadania e de nagdo””. Muito provavelmente 0 cidadéio sanjoanense devolveria 0 jornal ¢ nao mais nele anunciaria; muito provavelmente 0 semanétio sofferia “na propria pele as leis do mercado” e ficaria sem assinantes e anunciantes suficientes para sustenté-lo. Ai reside a razdo da desconfianga, Para nao dizer hostilidade, dos militantes catdlicos diante dos “ditos jornais neutros”; mas sua “boa imprensa” teria de se haver com a contradigao, 2TI0B/I916. “A respeito deste jomal, o imico de programa catélico, nesta catstica cidade, temos ouvido varias apreciagées pouco lisonjeiras. Qualificam-nos alguns de pouco noticiosos, outros de acimulos de artigos religiosos; ndo quero discordar in- imine, até posso Thes dizer que thes existe uma boa soma de razdes, mas uma reflexio que escapa 2 quase todos, é que sio inimeras as dificuldades que encontram os que trabalham em um jomal catdlico, que este jomal vai a cidades, a lugarejos onde talvez no conhesam outro, que esté com suas colunas abertas pata a defesa de nossa santa causa ¢ que & um soldado da boa imprensa, Deixemos portanto. que nossos inimigos nos descubram defeitos e inventem até se quiserem os que no tiverrmos, mas nés, catblicos, tratemos de ampari-lo para que possa progredir © melhorar para o futuro em todos os pontos’™. Esperanga va de contar com o auxilio dos catélicos de uma comunidade em que boa parte deles comunga em outro catolicismo. A melhora em todos os pontos niio se fez esperar. Na assembléia geral da Unido Popular sanjoanese, de 19/11/1916, é ressaltada a necessidade de “dar um certo impulso que seria muito desejivel, niio s6 para tornar o jornal mais atraente ¢ mais lido, como também pera se obterem os lucros que uma geréncia poder (Glegivel) da nossa tipografia™*, Impde-se a urgéncia de melhorar o produto, tornd-lo mais palatavel ao gosto do cidadéo sanjoamense, mais noticioso, publicar folhetins edificantes ~ ilusio da eficdcia de um conteido que se quer descomprometido com a forma -, particularmente atrair um piblico que demonstrava menos resisténcia & ago social: as mulheres, ¢ escapar da dependéncia dos grandes anunciantes, alargando seu bale&o; por ® Mason, Lzabel Andrade. Imprensa ¢ Histria em Pernambuco, na Primeira Melade do Século XIX, in: Cadems intercom. Sie Paulo, ano 2, n. 6, outubro/1983, pp. 31-32. 7 dem, p31. 5 Boa Causa, Aedo Social 27/08/1916, ano I, mum 76, p. 1 Caderno de Atas 1. uma assinatura, 0 direito de ter um aviso no circuito “agilizador da produgao e do comércio de idéias e de coisas””_ O jornal entra em “nova fase”. 24/12/1916, “Grandes melhoramentos nas oficinas - novos colaboradores - venturoso porvir... (...) Vimos agradecer do fundo d’alma aos bons catélicos, acionistas, assinantes, colaboradores...e outros, tio desprendidos, to generosos. (...) 1°. A comegar 0 novo ano tornar o hebdomadario 0 mais noticioso possivel/ 2°. Publicar um folhetim, to ao agrado das senhoras e senhoritas.../ 3°, Estabelecer uma segdo feminina, nos moldes da ji posta em pritica pela Unido do Rio, a disposigao do sexo ferninino que pode publicar artigos nao sé de literatura como de assunto de vida doméstica (culinaria Etc.)./ 4°. Conceder a todo assinante de 1 ano, com assinatura paga, uma bela folhinha com cromo, cheia de noticias e cousas interessantes./ 5°. Aes mesmos, © direito de publicar em nosso jomal, de cada vez, qualquer aviso, exceto anicio permanente, até nove linhas”™, Essa rendig&o ao mercado néo ¢ incondicional. A. identidade do jornal teria de ser resguardada, afinal, era sua razdo de existir. Para garantir sua responsabilidade, vigilancia, censura prévia a tudo que se destinasse & publicagio. O jornal se rende as leis do mercado, ‘mas quer o direito de veto a algumas mercadorias. Acreditou na possibilidade de um ajuste finissimo que permitisse que a mensagem fosse vendida sem se comprometer com a propriedade 20 modo liberal. Melhor, acreditou poder separar a forma do conteido, acreditou no discurso liberal da técnica neutra, da divisio do trabalho purgada de ideologia - O caderno de atas da associagdo registra uma sucessio de gerentes comerciais, que pouco tempo ficam na “Ago Social” 24/01/1917; “para maior regularidade do movimento intemo, no preparo do jomal, a Diretoria resolve que ao Gerente cumpre a diregaio comercial da tipografia, ¢ a organizaglo téenica do jomal, devendo todo artigo, noticia, transcrigdo, animcios, sessdo paga, et., serem aprovados ou fomecidos (ou aprovados) pelos encarregados da parte redatorial do jomal. Também resolveu a Diretoria para maior garantir a responsabilidade que pesa sobre um jomal de programa inteiramente catélico, que 0 jomal antes de ser definitivamente impresso, soja lido e aprovado pelo Rev™. Frei ‘Candido. Ficou resolvido se propor ao Gerente do jomal, sero seu ordenado elevado ® Marson, Insprensa e Histéri.. p. 31. * Nova fase da “Aco Social”. Apdo Soctal 24/12/1916, ano Il, num 94, p 1. a Rs, 508000 mensais ¢ dando-se 20 mesmo um interesse que cofresposda a uma porcentagem de 20% sobre 0 lucro Kiguido de cada semestre, devendo somente 0 Gerente receber porcentagem sobre pagamentos; todos os outros empregados tero ordenado fixo"™. Sio dificuldades e contradigdes que perpassam toda a trajetoria da associagao ¢ de suas obras; 0 Albergue, 0 Club Dramitico, o Liceu, em todos se adotou um modelo de gestio dentro dos parametros de uma empresa privada, 0 que nfo sO absorvia boa parte das energias do grupo engajado na agdo social, como implicava um embaralhamento/embarago dos objetivos iniciais pelos da luta pela sobrevivéncia da empresa; s6 faltou colocar uma placa na porta do Albergue, e um antincio no jomnal: Precisa-se de mendigos. Procurar jrei Candido. ‘Uma titima palavra acerca do jornal como fonte de pesquisa historica. “Como se escreve a Histéria/ Publica o Paiz / ‘Barbacena, 24 - O Dr. Wenceslau Braz, ao passar por esta estagio e pela do distrito de Carandai, no municipio de Barbacena, onde o eleitorado 6 undnime a favor das candidaturas da Convengio de Maio, teve calorosa recepgo/ Houve miisica, vivas, foges © discursos entusidsticos..."/ Publica O Sericultor, que é militarista, de Barbacena: ‘Em razio da hora adiantada da noite por que passou aqui o especial que conduzia S. Exc,, nfo puderam seus amigos prestar-Ihe, como desejavam, as homenagens devidas,’ Quem falou a verdade °° Os dois orgios noticiosos so hermistas; 0 que fez a diferenga foi 0 comprometimento da folha de Barbacena com o acontecido na cidade, compromisso que a folha do Rio de Janeiro demonstra no possuir. O redator d’O Sericultor tinha consciéneia que nao poderia descolar a noticia totalmente do real, do contririo, seria seu deserédito perante uma comunidade que sabia que as manifestagbes ndo haviam ocorrido, Utilizar esse tipo de fonte na pequena escala assegura esse minimo bisico de verossimilhanga, impede @ ficgdo da normalidade de encobrislacobestar acidentes que so do conhecimento da maioria; do contririo, certa sensagéo... de indiferenga, anincio do desaparecimento do jornal, porque impagdvel. Também necessétio ressaltar que 0 piblico atingido pelos jomais ® Sesstio particular da Unido Popular de S. Jodo del Rei. Cademno de Atas J. u niio se restringe aos alfabetizados; seu impresso é traduzido em fala que o reslabora ¢ 0 divulga em sintonia com aqueles que dele se apropriam; os trombetas sio convocados”. E claro que nos jornais locais as omissdes so muites, exagera-se ou subestima-se eventos, fragmentam-nos, varios os siléncios de que teremos conhecimento em nimeros de anos posteriores ou em outros jomnais, referéncias diretas ou indiretas, siléncios justificados por uma pretensa eqiidistancia das polémicas - “Guardamos siléncio durante 0 longo debate que se travou (...)" -, pela necessidade de preservar os seus e/ou seus interesses - “por consideragbes, por simpatia, por intervengdes amistosas ou por qualquer outro motivo, a imprensa calou sempre e as autoridades arquivaram os inquéritos nos casos em que estes foram iniciados (...)"*"-, comenta-se abstrata ¢ geneticamente causas ¢ conseqiéncias de conflitos que nio ficamos sabendo quais por serem “do conhecimento geral”, as cartas dos leitores amide traduzem pensamentos dos redatores que no podem ser assinados... Mas essa precariedade, se por um lado, impossibilita um grau maior de certezas, por outro, faz legivel um real militante em busca de adeptos, de partidarios da conservagaio de uma ordem que se apresenta sempre inacabada, ideal jé realizado que se nutre dessa incompletude, sociedade/projeto levada adiante pelos letrados liberais catdlicos sanjoanenses do principio do século XX", um real a ser vendido no s6 aos coevos, mas também a posteridade. Afinal, eles sabem muito bem como se escreve a Historia, como se faz um jornal. Mas, no caso das noticias deles, 0 telégrafo nao pode dispensar 0 fio da comunidade, que paga pela credibilidade da empresa. Por maior que fosse o interesse de um jornal de Sao Joao del Rei de exaltar as comemoragées, longamente preparadas, do 200°. aniversirio da cidade, ele nio se atreveria a fazer como os jornais do Rio, a noticiar o efc.. Mas, silencia; também nio discute as razBes do malogro do investimento, preserva a comissio ilustre; s6 anos depois encontraremos referéncia ao elefante branco do pavilhdo construido para a ocasiZo. “Muito imeressante, impagavel por que a imprensa dagui (Rio) neticiou 0 bicentenario de $, Jodo del Rei, passado a 8 deste, como se sabe, sem os festejos que ‘ai se projetavam./ A Noite disse que a cidade toda embandeirada, regurgitava de ‘gente; que o presidente do Estado e todos os presidentes das cdmaras circunvizinhas © Como se escreve a Historia. O Reporter OA/OV/I910, ano V, mun 86, pL ® Que mania..d Tribuna 07/09/1922 ano VIL, nun 434, p2. % © Reporter 1103/1906, ano I, num 6, p. 1 * Distirbio, Reforma 13/04/1913, ano 1, num 2, p.2. 12 compareceram 4 festa; que a cidade estava fecricamente iluminada, etc., ote/ A Imprensa ¢ outros jomais daqui disseram mais ou menos a mesma coisa/ A Gazeta de Noticias cortou do meu ‘Album’ uma vista geral de S. Joo e escreveu por baixo: “A bela avenida Hermillo Alves de S. Jodo del Rei’,/ Um jomal da tarde, que eu no ito o nome receoso de ofender uns bons amigos que nele labutam, estampou o seguinte telegrama, vindo naturakmento dai pelo telégrafo sem fio: / ‘So Jodo del Rei, 8 - A cidade vibra de festas. Nao ha exemplo, em época alguma, de solenidade to animada/ Girindolas espocam no ar. Varias bandas musicais, executando dobrados alegres, percorrem a cidade,/ Caicula-se em cerca de 12.000 o niimero de pessoas que aqui vieram assistir as festas do bicentendrio’/ Eu, confesso, ndo me impressionei absolutamente com estas coisas; sei muito bom como se faz um jornal / Ai, entre 0 povo alhcio as lides de imprensa, essas noticias deviam ter causado certa sensagfo... T. B. Rio, dezembro de 1913.” A dissertagao esté estrumrada em cinco partes. A primeira busca matizar a cidade construida pelos jorais locais, cujos donos colaboradores claboram continuamente a tenséo entre a identidade do lugar e as vicissitudes do tempo, no norte da ordem, que ¢ propalada deslocando os conflitos para a esfera do contingente ¢ do pessoal, , ¢ encobrindo suas manifestagdes via discurso da tolerdincia, do respeito as crengas alheias, vélido até limite da tranquilidade pablica. Seus donos so negociantes, seus colaboradores, profissionais liberais e/ou funcionarios piblicos, dos quais um ou outro coloca em xeque 0 espirito liberal catblico anunciado, seja radicalizando as exigéncias da tolerincia, seja exigindo a expulsio dos representantes ultramontanos , reivindicagdes de um novo esteio para a ordem. Da autoridade piblica exigem a realizagao da comunidade ideal erigida por eles, no minimo, 0 trabalho pela sua aparéncia, vista de uma cidade postal. Mesma expectativa com que recebem e sustentam algumas das priticas dos franciscanos ‘A segunda parte trata da chegada do projeto de romanizagao na cidade com os frades holandeses. Se estes conseguem aglutinar elementos do limitado meio social sanjoanense em um partido incondicional, por vezes serio vistos com desconfiangas, serio ** 0 “marastao administrative” marcou 0 governo municipal dos jovens turcos, de 1912 a 1922, Ver Cintra, Scbastido de Oliveira. Galeria das Personalidades Notiveis de S. Jodo del Rei. So JaBo del Rei, 1994, p. 57. °° 7B, (Tancredo Braga). Linhas répidas. O Reporter 24/12/1913, ano IX, num 91, p. 1. 13 alvo de repreensdes naquilo que ameagar um catolicismo estruturado na pritica leiga das irmandades, das festas que produzem um efeito benéfico 4 cidade de papel. A terceira parte estabelece as conexdes da ago social catdlica em So Jodo del Rei 10 inicio do século XX, com a ineorporagio do catolicismo social no papel de magistério da Igreja, e sua filiagio a um Centro que pretendia articular e mobilizar as associagdes catdlicas em sintonia com aquela extensio preconizada por Roma. A convocagio ao engajamento do laicato na obra da recristianizagio recebeu resposta no Brasil, Particularmente em Minas Gerais, onde o Centro da Unio Popular foi estruturado para realizar a coesio das forgas catdlicas. Algumas razdes de seu fracasso sfo sugeridas. A quarta sintetiza o discurso social catélico divulgado pelo jomal da Unido Popular na cidade, buscando identificar suas filiagdes e seus pressupostos fundamentais. A ultima parte retoma a cidade para examinar, partindo dos principios da sociologia cristd, como 08 instrumentos vistos como pertinentes - “todos os meios justos ¢ legais”™ - pela agdo social catélica para a realizago de seus intemtos se inseriu em um ambiente de devogdo religiosa de timbre barroco © aprego pelos negécios, que recebia os influxos da modemizagio; os limites que encontrou ¢ se colocou, sua base de sustentagio, os caminhos que forjou ¢ os ajustes que foram necessirios & sua sobrevivencia; enfim, a viabilidade/inviabilidade da sua lida na comunidade sanjoanense daquela época. * Pio X. Il fermo propostto (7). 4 Tl- A cidade de papel No dia 28 de agosto do ano de 1881, com presenga de S.M. D. Pedro Il e numerosa comitiva, concluido 0 trecho de Sitio - proximo a Barbacena - a So Jodo del Rei, inaugurou-se a estago ¢ oficina sanjoanenses da Estrada de Ferro Oeste de Minas. Motivo de comemoragées que empolgaram a populagdo durante alguns dias, os trilhos que a levavam @ cidade do Rio de Janeiro, obra do Império, certamente contribuiram para fortalecer a maioria monarquista ¢ para a memorvel arruaga de 23 de abril de 1889, quando 0 Dr. Silva Jardim, em propaganda pela Repiblica, foi enxotado da cidade, Do acontecimento de 1881, os cronistas registraram de lamentavel apenas a morte do ministro da agricultura, Buarque de Macedo, vitima de um fulminante ataque cardiaco. A ferrovia abriu caminho para a cidade se por ao corrente, mais ligeira, das novas da civilizago, via sua ligagdo direta com a capital do Império. Ancorada na tradigdo barroca, Sao Joo del Rei foi engolfada pela maré modemizadora que atingia o litoral, A ferrovia vieram se juntar o telégrafo, a casa bancéria de Custédio de Almeida Magalhies & Cia, a ihuminagdo elétrica, o ringue de patinagdo, 0 cinema, 0 primeiro automével, 0 telefone, 0 primeiro time de futebol, o habito dos cafés como espago de lazer, 0 teatro municipal, o atelier fotografico...’”. Num periodo relativamente curto - virada do século XIX e primeiras décadas do XX -, Séo Jodo del Rei parecia ser uma cidade que, no dizer abusado de um de seus cronistas, no olhava para tras, A linha de ferro trouxe novos prédios, como o escritério, a garagem, os armazéns, as lojas, a gare, cenério para a circulagéo de muita gente. Gente vinda de Bolonha, Ferrara, ‘Verona... em busca de vida nova™; turistas e intelectuais interessados em suas festas € * Para os dados sobre So Joio no final do século XIX ¢ inicio do XX, ver Barbosa, José Victor. Sae Jodo d'ELRey atravez suas Ephemerides. So Jolo El Rey, Typografia Assis, 1930; Viegas, Augusto. Noticia de ‘Sto Jodo det Rei. Belo Horizonte, imprensa Oticial, 1969; Maia, Tom, Maia, Thereza Regina C. e lolésias, Francisco. Sto Jodo del Rei na Histéria de Minas ¢ do Brasil. Rio de Janeiro, EXPED, 1986, Cintra, Sebastio de Oliveira Efemérides de Séo Jodo del rei. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1982; Senna, N. Anuério Esttistico Mustrado do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, Imprensa oficial, 1906-1907, Vols. Tell Santos, José Bellini des. So Jodo d'EI Rey: a cidade que niio olhou para trés, $80 Todo del-Rey, Grifica iio do Comeércio, 1949. ® Sobre a presenca italiana em S, Jodo del Rei, ver Guimardes, Fibio Nelson. Imigraclo de colonos italianos fem Sao Joo del Rei. Revista Vertentes, série 1, FUNREI 1989; Lopes, Jost da Paz. Imigrantes italianos em So Jollo det Rei: passeata, policia ¢ dispersdo, In De Boni, Luis A.A presenca italiana no Brasil Torine/Fosto Alegre, Fondazione Giovanni Agnell/Escola Superior de Teologia, 1990, Vol. I 15 construgdes barrocas; mendigos; politicos em constantes idas ¢ vindas, comerciantes, namorados que se reencontravam; biscates, engraxates; artistas em temporada no teatro municipal; caixeiros-viajantes, prostitutas; soldados do 28° Batalhio de Infantaria; vadios; guias turisticos, senhoras respeitaveis e até familias inteiras em primeira viagem ao Rio de Janeiro; engenheiros; ferroviérios da Oeste de Minas que iriam constituir-se no primeiro micleo operirio da cidade; teceldes e tecels da Companhia Industrial Sanjoanense ¢ da Fabrica de Tecidos Brasil Esses trabalhadores - meioria italianos - se alojaram proximos as fabricas, num terreno brejoso e distante uns dois quilémetros dos casardes coloniais, num espago que passou a ser denominado de bairro das fabricas; nos sobrados € casas do centro viviam advogados, negociantes, médicos, capitalistas, professores, industriais, farmacéuticos, funciondrios do escritério da Oeste ¢ de outras repartigGes piblicas, proprietarios, jomalistas, alguns com quintas no aprazivel subirbio de Matosinhos; enfim, uma clite letrada e com rendimentos oscilando entre 0 remediado e 0 abastado, grupo social que se via como representante das “almas progressistas”” do povo sanjoanense e fazia-se arauto de sua opiniao; a essa elite juntavam-se o juiz de direito da Comarca, o diretor da estrada de ferro, 0 promotor piiblico, 0 comandante do quartel, o juiz municipal, os gerentes das fabricas, o vigério, os maestros - geralmente negros. Uma terra de negociantes, de outros também, mas principalmente de comércio de géneros do pais, de papéis, armarinhos, relogios, gados e aves de raga, latas, brinquedos, artigos dentérios pelos pregos do Rio, tintas, modas, joias, chapéus de sol e de cabeca, queljos, éculos, fogdes, impressos, doces, fumos, calgados walk-over, manteiga, pince-nez, molhados finos, café, livros em branco ou no, poemas, banhos, fazendas, ferragens, instrumentos de misica ¢ pertences, selas, seguros, armas de fogo, maquinas de costura, tijolos, drogas e preparados, arados, bengalas, desnatadeiras, folha de flandres, cerveja bock-alé, debulhadores, filtros, enxadas marca sete, maquinas de gelo, biscoitos ¢ bolachas, logo contra caspa keéne-ké, presunto morton... coisas anunciadas, Por trés das coisas os homens - rarissimas as mulheres, quando sim, geralmente vitivas - com patentes da guarda nacional, titulos de doutor na faculdade de direito de Sao Paulo ou Belo Horizonte, na escola de medicina ¢ odontologia do Rio de Janeiro, de “© O albergue - apelo ao comércio. A Tribuna 06/06/1915,an0 TI, num 47, p.1. Mariana, para a vida militar - raros - na escola do Realengo, para o bacharelado em ciéncias ‘matemiticas e fisicas e engenharia na escola central do Rio de Janeiro, para os negécios com os pais ¢ tios, batizados na pia batismal da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar, frequentavam a sala do juiri, os concertos ¢ bailes no saldo do Hotel Oeste , as igrejas ¢ os cafés, representavam em clubs dramaticos no Teatro Municipal, clinicavam em suas casas © operavam na Santa Casa de Misericordia, enviavam representagdes 4 Camara contra os vendedores ambulantes, faziam pic-nic na aprazivel chacara British farm do importador Charles Causer, praticavam na linha de tiro do 28° Batalho de Infantaria, participavam de palestras ¢ de soirée dangante no Eden-Club, faziam sua fé no macaco, ministravam aulas no Instituto de Humanidades $40 Francisco, rectiminavam os libertos da cidade por niio comemorarem 0 treze de maio, jogavam bilbar na Confeitaria do Falleiro, planejavam abrir as primeizas avenidas e nivelar algumas ruas, empregavam atras dos seus baledes, nas suas tipografias ou escritorios, pessoas que sabiam ler e contar, disputavam corridas de bicicleta ©. pé no Velo Club, cram mesérios das Irmandades - o que néo impedia que alguns fossem irmaos também na loja Charitas -, no Club X festejavam Momo, se enfrentavam nas disputas eleitorais entre 0 partido de Leite de Castro ¢ 0 partido do Comércio, Tecompunham-se nas Aguas Santas, escreviam nos 6rgios comerciais, noticiosos e literarios, “neutros” ou n&o em politica, publicagdes bi-semanais, impressas em méquinas alauzet “express”, Preferiam o solo para pastagem, que significava leite para as fabricas de laticinios, couro para os trés curtumes localizados no subirbio de Mattosinhos e care verde decepada no matadouro piblico nauseabundo, logo transportada em carrogas para os acougues. Brindavam 4 oficialidade briosa do 28°B.L, elogiavam o estimado diretor da Oeste, testemunhavam a ponderagéo do juiz de direito, pediam providéncias ao delegado de olicia quanto gatunagem, ao jogo, aos ciganos e a mendicdincia.. exortavant-no a “Zelar 0s nossos interesses”", lembrando-Ihe que “o fim da policia no ¢ s6 manter a ordem no teatro, reprimir vagabundos e enclausurar, por 24 horas, embriagados ou dar caga a Joucos...A sua agto vai além - garantir a propriedade alheia, as casas comerciais, Principalmente com 0 grande auxilio que possui, como seja a melhor ituminagao publica do © Queixas e reclamagSes. O Reporter 29/08/1907, ano IT, num 33, p. 1. W estado"™*; louvavam os esforcos do virtuoso vigério ¢ o parabenizavam por, “interpretando bem os sentimentos catélicos desta cidade”, promover preces publicas pelo fim da seca prolongada que atingia a regido”; enaiteciam o espirito empreendedor da familia Mascarenhas ¢ do conterrineo Dalle, execravam 0 Virgilio de tal, tipo sem profissio © que vivie do jogo, a Maria Felicia, do Sohe-Desce, que alcoolizada transava as ruas em afronta 4 moral eo Femando Anténio de Oliveira, “crioulo mal encarado, tipo lombrosiano”, elogiavam Giovana Cannavez, “interessante ctianga”, pequena filha operaria do honrado operario Cannavez, menina com “natural pendor para o trabalho". ‘Com freqdéncia embarcavam na estado da Estrada de Ferro Oeste de Minas para, na capital da repiblica, renovar seus estoques. Suas filhas estudavam no Colégio Nossa Senhora das Dores ¢ - seguindo suas virtuosas esposas - deveriam tornar-se um dos comamentos do magistério mineiro”. Nem todas; talvez alguma de inteligéncia viva ¢ personalidade forte, poderia partir sozinha em viagem de estudos para a Europa e na volta escandalizar a cidade andando de bicicleta* Esse cidadao médio do “limitado meio social” sanjoanense freqientemente caminhava pela rua Monicipal - “nossa rua do Ouvidor* - embora, por vezes, inconformado, tivesse de pular fora do passeio para no ser atropelado pelo cesto enorme do verdurciro ou pelo trambolho carregado pelo empregado do comércio™; se fosse sébado, consciencioso, prevenido pelo dever da caridade, j4 saia de casa com quinhentos réis trocados, para distribuir 4 “leva enorme de pobres, da cidade ¢ de fora, atropelando o comércio, e incomodando os particulares”*", mal disfarcando a irritagio com todos ¢ a repugndncia para com as feridas expostas de alguns” - ¢ me vem o Dr. Ribeiro da Silva dizer que eles esto no direito deles, exercicio da liberdade de ficar onde bem entender na © Com a policia. O Reporter 05/03/1908, ano TV, num 19, p. 1. ® A seca. O Reporter 04/09/1910, ano VI, num 131, p.2. 40 Reporter 27/01/1907, ano TT, num 53, p.2. A Opinido 21/12/1907, ano I, num 49, p2. Bm 1969, um Canavez, Murilo Valeotim Canavez, foi escollhido Operitio-Padrfo do Brasil e, em 1984, virou nome de rua em S. Joo. Ver Cintra, Galeria... p. 225-227, © Sobre as coisas amunciadas, lugares declarados, atitudes manifestadas ¢ titulos almejades pela elite sanjoanense, ver “O Reporter” , de 29/01/1905 a 03/12/1908. * Sobre Alexina de Magalhies Pinto ver Cintra, Sebastifo Oliveira. Galerie das Personalidades Notiveis de ‘Sao Joao det Ret © 0 Reporter 13/10/1907, ano TT, numa 46, p2. * Scapin (Dr. Cactano Wemeck). Mexericos. 4 Opiniao 07/09/1907, ano T, num 19, p.. 4 Tribuna 24/12/1914, ano 1, num 23, p.. ® syivio Célio (Dr. Paulo Teixeira), A smo. O Reporter 06/08/1908, ano IV, num 62, p.1. % A mendicidade, A Opiniao 17/06/1908, ano I, num 99, p.1.

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