You are on page 1of 23
Francisco de Aquino Janior Problemas de fronteira Dados Inter (Cimara Br “Aoi Jn, rancscode Fevlgine losis aul Pas 20 ISHN 9788535644517 1. Didlogo - Ate bsa9171 Votanda Rosi nais de Catalogacio na Publicao (C1py ‘sileira do Livro, SP, Brasil) “pms ftir! Prancisode Aquino Kino, ng ~{Teologi na universidade) cligiosos 2. FE. Filosofia rlgte Aspects sligio0s . sie Metin Til Se. cop210 indice para catdlogo sistemitico: 1. Filosofia teologia gues Biode- Bibiotedria~CRB-8/10014 210 Vedigdo - 2018 Diregio-a res responsiveis: Copidesque: Coordenagio de evisto: Revisto: Gerente de produgio: Projeto grifico: Capa diagramagao: eral Conselho editorial: Flavia Reginatto Dr. Antonio Francisco Lelo Dr. Jodo Décio Passos Maria Goretti de Oliveira Dr. Matthias Grenzer Dra, Vera Ivanise Bombonatto Yera Ivanise Bombonatto e Jodo Décio Passos Ménica Elaine GS, da Costa Marina Mendonca Sandra Sinzato Felicio Categaro Neto Manuel Rebelato Miramontes Tiago Filu Nenhume pare deste obra poderd ser reprodurida ou tansmil for gular forma ef quater mss (leno ov meen, ‘eclaino fowcpae eanago) ou arguivada em qualque sistema 90 taco de dhdos sem permsso exci da Eos, Direton reserva Pastis ua Doa nian, 2 sna aos ay Teams: Inne astnscombs- iru palin comse ____Teemaeinge SAC toe !PaSockde Fad Sto Pale Sto Pa, Digalizado.com Camscanner CAPITULO II Abordagens filos6ficas sobre Deus’ A filosofia sempre se confrontou com a problematica de Deus. Este é um dos seus temas centrais. Alias, a origem da filosofia esta estreitamente ligada & religiéo.? Seja na medida em que submetia os mitos religiosos a uma critica racional, constituindo-se em sentido estrito como mito-logia ou teo-logia, seja na medida em que se desenvolvia num contexto cultural profundamente marcado por uma visao religiosa do mundo que oferecia nao s6 problemas a serem pensados, mas, radicalmente, a inspirag4o e horizonte em que esses problemas poderiam ser pensados. A tal ponto que “no seu recurso critico a tradigao religiosa, a filosofia vinculou a legitimi dade do falar sobre Deus a demonstrabilidade da [sua] fun¢ao de arché”® da realidade. E nem poderia ser diferente, uma vez que o homem antigo era essencialmente religioso. Essa problematica de Deus atravessa toda a histéria da filosofia ocidental e est muito presente na atualidade.‘ E um tema tratado por praticamente todos 0s filésofos, ainda que a modo de negagao. E é um tema essencial e radical, na medida em que diz respeito, positiva ou negativamente, 4 ultimidade e a radicalidade da reflexao filosdfica. Nao vamos tratar, aqui, evidentemente, das diferentes compreensdes de Deus e das diferentes argumentagGes sobre Deus desenvolvidas ao longo da 1 Publicado em Teacomunicagdo 47 (2017) 103-116. 2 CE JAEGER, La teologia de los primeirosfilssofosgregos: LIMA VAZ, Teolagia medieval e cultura moderna, p.71-86; PANNENBERG, Filosofia telegia, p. 9-16 3. CLPANNENBERG, Filosofia feologia p12. 4. CECORETH, Deus no pensamento ilosfics JORDAN, Filosofia da religiao; PENZO; GIBELLINI, Deus na flossia do séeulo XX, OLIVEIRA; ALMEIDA, O Deus dos flésfos modernos, OLIVEIRA: ALMEIDA, 0 Deus dos fldsofos contemporaneos. rx Digalizado.com Camscanner Capitulo I historia da filosofia, Nem temos competéncia para isto, nem seria possivel fazé-lo num trabalho como este, Nossa pretensio é mais modesta e tem um carater didtico voltado para o ensino da filosofia. Queremos simplesmente esbogar o que consideramos as linhas ou vias fundamentais de abordagem, argumentagio ou justificagio filos6fica sobre Deus percorridas ou desenvol- vidas pela tradi¢io filoséfica ocidental, Na Critica da raz pura, depois de investigar os principios aprioristicos da sensibilidade: espaco e tempo (estética transcendental) e os elementos apriorstcos do entendimento: quantidade, qualidade, relagio e modali dade (analitica transcendental), Kant se confronta com a possibilidade do conhecimento metafisico: alma, universo e ser supremo (dialética trans- cendental).’ No que diz respeito ao conhecimento de Deus, Kant identifica e refuta na tradigao ocidental trés tipos de provas racionais da existéncia de Deus: “prova ontologica”, “prova cosmolégica” e “prova fisico-teoldgi- ca." A partir dai, tornou-se comum falar de trés vias, justificagdes, provas ou argumentos racionais da existencia de Deus: cosmoldgico, ontolégico, teleologico.’ No fundo, eles se reduzem a dois tipos de argumentos, uma vez que 0 argumento teleolégico diz respeito 4 ordem ou a finalidade do mundo natural e, assim, pode ser tomado como mais uma variante do ar- gumento cosmoldgico. J4 Antonio Gonzalez, influenciado por Zubiri e Ellacuria, fala de duas formas classicas de justilicagao racional de Deus na filosofia: “naturalista” e “subjetivista’. E, a partir das criticas feitas e desenvolvidas sobre essas for- mas de justificacio filosofica de Deus, indica uma terceira forma: justifica- gio “praxica* Esta ndo parte nem da natureza (justificagao naturalista) nem da consciéncia (justificagio subjetivista), mas da interagio do homem com 0 mundo ou da ago humana (justificagao prixica). Teriamos, assim, trés tipos fundamentais de abordagem filoséfica sobre Deus: abordagem cosmol6gica ou naturalista, abordagem antropalégico-subje- tivista (ja que existem varias formas de abordagem antropoldgica: inteligéncia, 5 CL KANT. Criteadarasio pu 8 CLKANT, Cite devas pur, p 368-393, 7 CLANZENBACHER Intro d filofaoadetl, p, 405s; WILKINSON; CAMPBELL, Filosofia da reign p. 136207: ROWE, Itredagio fla da veg, p 39-107, 8 CL GONZALEZ Invaductn ala prictica dea flosai, p. 353-400 Digalizado.com CamScanner Abordagens filoséficas sobre Deus vontade, sentimento etc.) ¢ abordagem prixica, Certamente, cada uma dessas abordagens tem uma variedade enorme de elaboracao e formulacéo que aqui no podemos sequer indicar, E¢ possivel que haja ou que se possa desenvolver outras abordagens que extrapolem essas formas indicadas, constituindo-se como novos tipos de abordagem filoséfica sobre Deus. Em todo caso, nao hi diivida de que a grande maioria das abordagens sobre Deus na historia da filosofia pode ser qualificada como abordagens naturalistas ou antropol6gi- cas ou priixicas. Sem falar no carater sistematico ¢ didatico-pedagogico dessa apresentagio da problematica de Deus na filosoia. E esta é a estrutura fundamental de nosso texto: abordagem cosmolégi- ca ou naturalista; abordagem antropolégico-subjetivista; abordagem praxica. Em cada uma dessas abordagens, comecaremos explicitando suas caracteris- ticas fundamentais, apresentaremos sua formulacao em um determinado fild- sofo e concluiremos com uma apreciagio critica dessa abordagem. Na escalha do filésofo para cada abordagem, levamos em conta sua importincia e re- presentatividade na referida abordagem, mas consideramos também diversos periodos da histéria da filosofia: medieval, moderno, contemporaneo. Assim, apresentaremos as formulagdes de Tomés de Aquino (abordagem cosmol6gi- ca ou naturalista), de Descartes (abordagem antropolégico-subjetivista) e de Xavier Zubiri (abordagem praxica). 1. Abordagem cosmoldgica ou naturalista A. Caracterizagao Trata-se da maneira mais clissica de formular o problema de Deus da fi- losofia, Remonta aos inicios mesmos da filosofia na Gréci filosofia aristotélica e retomada e reelaborada pela filosofia medieval. é radicalizada na Esta forma de abordagem filoséfica de Deus parte da estrutura do cosmos! universo ou, precisamente, de um conjunto de teses ou hipdteses sobre ele (movimento, causalidade, contingéncia, graus de ser, ordem/finalidade) para, a partir dai, demonstrar racionalmente a existéncia ou a necessidade da exis- téncia de Deus (motor imével, causa primeira, ser necessario, ser supremo, inteligéncia suprema). 43 Digalizado.com Camscanner Capitulo t Fala-se, aqui, de argumento cosmoldgico ou de justificagado naturalista porque toma como pontto de partida e como referencial tedrico-conceitual de sua reflexdo e argumentacio o cosmos ou a natureza ou um conjunto de hip. teses ou uma determinada compreensio do cosmos ou da natureza. Na formutagio de Kant na Critica da razdo pura: “A prova comeea propria. mente com a experiéncia, por conseguinte, nao procede totalmente a priori ou ontologicamente, visto que o abjeto de toda experiéncia possivel denomina- -se mundo, a prova é denominada cosmolégica”? Segundo Xavier Zubiri, “a filosofia ¢ sobretudo a teologia chissica parti ram da realidade considerada como isso que chamamos natureza [..J. Dai que tomaram como base de sua discussio a estrutura do cosmos; ¢ se propuse- ram [undamentar a existéncia de Deus com argumentos tomados de fatos césmicos”” Dentre as diversas formulagdes desse tipo de abordagem ou argumento, destacam-se as famosas “cinco vias" de prova ou demonstragao da existéncia de Deus de Tomas de Aquino, tedlogo-filésofo do século XIII." B. Formulacdo em Tomas de Aquino (1225-1274) Antes de tudo, é importante ter presente que as “cinco vias” para provar ou demonstrar a existéncia de Deus encontram-se na Suma Teoldgica (ST) e que, como adverte Coreth, “essas demonstracdes da existéncia de Deus ja esto de antemao dentro do horizonte da fé e pressupdem, por isso, uma compreensio “do que denominamos Deus” embora seja preciso ou conveniente demons- trila racionalmente. E importante também atentar para 0 modo como Tomés estrutura sua re- flexdo na ST ~ uma maneira tipica de seu tempo e bem distante da nossa. A ST esté dividida em trés partes. Cada parte & composta de varias questées. 9 KANT, Critica da rasio para, p. 374 10 ZUBIRI Elhombrey Dios, “No quese sabe desu vid. de seus estudos ede sua obra, nada autoriza a pensar que cle mesmo jamais s considerase um ilsofa nam queeleenha nutri a amigo de ter ama filosofa pessoal” (GILSON, ltto- Aug fils crt, p. 47) “oro teogo,o ico objetivo de sew esfrgo €0 de cansteuir uma teoogit, ‘no ums oso” (GILSON. Introd a floafia crea, 5), 12 CORETH, Deus no pensament flop. 162 eS Digalizado com Camscanner Abordagens filos6ficas sobre Deus E cada questo esté dividida em varios artigos. Cada artigo comeca indicando © problema a ser tratado em forma de questdo; apresenta as objegées a tese de- fendida e os argumentos contnirias a essas objecdes; desenvolve a posigao ou a resposia de Tomas ao problema em questao; ¢, a partir da resposta, replica as objecdes inicialmente indicadas.” O texto que nos interessa aqui, as chamadas “cinco vias", éa resposta do artigo 3 da questio 2 da parte I da ST, que trata da existéncia de Deus (STI, q. 2,a, 3, resp.), Ndo vamos fazer uma apresentagao geral do artigo, mas apenas dla resposta que Tomas de Aquino dé a esse problema ou, precisamente, da estrutura de seu argumento." Ele comeca afirmando que “pode-se provar a existéncia de Deus por cinco vias” ¢ passa, imediatamente, a apresentar essas cinco vias. A primeira via'* “parte do movimento”: “nossos sentidos atestam que neste mundo algumas coisas se movem”; “mover nada mais é do que levar algo da poténcia ao ato”; “é preciso que tudo que se move seja movido por outro”; “nao se pode continuar até o infinito, pois neste caso nao haveria um primeiro motor, por conseguinte, tampouco outros motores”; “é entao necessdrio che- gar a um primeiro motor, nao movido por nenhum outro, e um tal ser, todos entendem: é Deus”. ‘encontramos nas rea- lidades sensiveis uma ordem entre as causas eficientes”; “mas nao se encontra algo que seja a causa eficiente de si proprio, porque desse modo seria anterior a si proprio, o que é impossivel”; e nio se pode “continuar até o infinito” porque, “se ndo existisse a primeira entre as causas eficientes, nao haveria A segunda via' “parte da razio de causa eficiente 13 CL WILKINSON; CAMPBELL, Flosfa da religt,p. 160, 1 CL.CORETH, Deusno pnsamento flsfcp. 10-16; WILKINSON: CAMPBELL, Forfa da eligi. p. 160-68, 14s, 185 ROWE, todo losin da ego, p.40s,GONZALEZ nraducin ala pica dela fos. 388 Ese argument esti baseado em Aistts. "Taher a contnbuigio mis importante de Arse te ovis da existaca de Deus ses sua noi de Deus como primsro motor’ qu sei ttomas por Tomi, como primi de suas ‘ino vias” (WILKINSON; CAMPBELL Fils ula lia, p80) Também, agi, Tomisrecorte a Aisttles com storia das quatro casas. “Na qualidade de um obser: ‘dor ateto ao mundo [io de méico) Astle acrediara mas nogbes de caus eft, Desenlvew ‘©concelloarplament na Fic, masa idea central em todo su obra. Kenfco quate tipos de causa gue fazem algo ser que: casa material aqui de qe alo € fit) casa formal forma om formato que algo rece, causa ecient (aquiloaquele que fe alg) cause final nade) (WILKINSON: CAMP BELL, Filosofia rig, p. 739) 45 Digtalizado.com Camscanner Capitulo t a tltima nem a intermedia’ e, “supressa a causa, suprime-se também o feito’; “logo, ¢ necessirio afirmar uma causa eficiente primeira a que todos chamam Deus’. Alerceira via'™“6 tomada do possivel edo necessério”: “encontramos, entre as coisas, as que podem ser ou nio ser” (nascem e perecem); “o que pocle nio set nao & em algum momento’; “se tudo pode nao ser, houve um momento em que nada havia’y* “se isso € verdadeiro, ainda agora nada existiria, pois 0 que nio & s6 passa a ser por intermédio de algo que jé é”; “assim, nem todos cos enles sio possiveis, mas € preciso que algo seja necessario entre as coisas’ “aqui também nao se pode continuar até o infinito” e “é necessario afirmara existéncia de algo por si mesmo [..] que é a causa da necessidade para os ou- tros: 0 que todos chamam Deus”, ‘A quarta via “se toma dos graus que se encontram nas coisas’: “encon- tra-se nas coisas algo mais ou menos bom, verdadeiro, nobre etc.”; “mais ou menos se diz de coisas diversas conforme elas se aproximam diversamente daguilo que & em si o maximo’; “existe em grau supremo algo verdadeiro bom, nobre e, consequentemente, o ente em grau supremo’, pois “o que é em sumo grau verdadeiro, ¢ ente em supremo grau” e “o que se encontra no mais alto grau em determinado género é causa de tudo que é desse género”, “existe entio algo que é, para todos os entes, causa de ser, de bondade e de toda per- feigdo: nds o chamamos Deus’. 17 *Nesseargumentovemosclaramenteainléncia de Bocio[,}-Oargumentode'Tomis, em essénca, parce ser que todas oss em su experiénca so contngetes, mas nem todas as coisas podem se ol sents Dev have sum coisa nectssira,independentemente de qualquer oura cots da qual toss emis dependem” (WILKINSON; CAMPBELL, Filosofia darelgio . 168). “Bosco, em seu Comentiie ds caeyrnsdeAvisttles.argumentaqutodasas cosas que podemos pensar acontecemt emt umm ou mais das quatro categarios pode exists, pode nio exis, ndo pode exist, no pode mio existe" (WILKINSON: CAMPBELL, Filo da ela p10) 18 Essa passage de cosas contingents contingénca de tudo supa, sem divid,a fa eriago de todssas coisas por Deusouaféno Deas cridar de tds ols, 19 “O qurtocaminho de procedéncia platnicae mostra que i nas coisas degraus de perfeigio” (CORETH, Deus no persamcnto fos, p11), A propdsito do exemplo do fogo:"De manera tio condensads que seuproceimentopermanece obscura a acicinio eva o grande tema metaisco da partcipagio que siogrovem de Artes, masde Plato ue, profundamenteremodelado pela introdugo da causalidale fence dalintagio do at peta poténcia-stssim provenientes de Avsttels -,esté no centro da melt {sca deo. Tomas” (NICOLAS, O Deus ino p 168, nolaK). O argumento de Toms parte da “supose da Mein de Atte de que hi una conrdago entre a verdad mar e ser malot” (WILKINSON, CAMPBELL, Fla da regio, p. 198), No fund, essa via articula a teoria da partcipagio de tradiglo (velba com as tris artis dacausidadeefclentee da correlag entre verdade maior ese" malo ea verdade de da ring de todas as cisas por Deus Digalizado.com Camscanner ‘Abordagens filosdficas sobre Deus {A quinta via “é tomada do governo das coisas’: “vemos que algumas coi- sas que carecem de conhecimento agem em vista de um fim - sempre ou na maioria das vezes agem da mesma maneira a fim de alcangarem o que é dti- mo’; “nao é por acaso, mas em virtude de uma intensio que alcangam o fim’; “aquilo que nio tem conhecimento nao tende a um fim, a nao ser ditigido por algo que conhece e que ¢ inteligente, como a flecha pelo arqueiro’; “logo, existe algo inteligente pelo qual as coisas naturais sio ordenadas ao fim ea isso nds chamamos Deus’, No fundo, essas cinco vias tém a mesma estrutura argumentativa: partem do que se consideram fatos incontestaveis, atestados pelos sentidos, cuja ex- plicagéo racional exige ou leva necessariamente a afirmagiio da existéncia de Deus como explicagio tiltima desses supostos fatos. C. Apreciacao critica Sem diwvida, 0 raciocinio ou argumento de Tomas de Aquino nas “cinco vias” € muito ldgico e nisso reside sua forca e seu poder de convencimen- to, Mas ele repousa sobre determinados pressupostos que se tornaram pro- blematicos ou, pelo menos, deixaram de ser evidentes no mundo moderno. Pressupostos que, como sintetiza e indica Xavier Zubiri, dizem respeito tan- to ao ponto de partida (fatos césmicos?) quanto ao panto de chegada (Deus?) de sua argumentagio." Ble parte do que considera fatos atestados pelos sentidos. Mas 0 que ele considera fatos, na verdad, nao sio sendo uma interpretagao ou teoria fisi- co-metafisica da realidade sensivel, de cunho aristotélico, que deixou de ser evidente e se tornou problemitica sob muitos aspectos como se pode ver, inclusive, em comentarios um tanto “devotos” e apologéticos. Nao é nada 20. “Esse argumenio dle respi ao design em vist de um fn ~ as coisas esto dispostas juntas para trem ‘un Fungo. Aqui ves dtetamentea intact da nog aistilica de qu anaturean € tlolgiea, ‘onde as cosas ager em vist de um fim" (WILKINSON CAMPBELL, Flosofia da religio, p. 1988), Vale recordar oquna teria cause concrtamentea causa falc WILKINSON: CAMPBELL, Filosofia dared, pO), Para Kant sa pro, que ee denamin fico 1c, “merece sempre ser citada com respi, Tate dt massa maisclaraemaisconforme com arazio humana coun” (KANT, Cia draco para. 38), 21 CLZUIRL EThombne y ies. 18-23 22 Cl, ZUDIRI, Et homey Dies, p. 119-12. 23 CLNOUGUE, Apresemagt,p. 49-63 Digalizado com Camscanner Capitulo tt evidente, por exemplo, que movimento seja passagem de poténcia a ato, que se possa falar realmente de causalidade, que haja verdadeira finalidade no mundo natural, que o mundo seja contingente etc. A base de argumentacig de Tomés nao sio, como ele indica, fatos, mas a metafisica de Aristételes, por mais que seja reelaborada a partir e em fungio da doutrina crista. E “nag se deve ignorar uma certa unilateralidade nessas demonstracdes. A ligacdg estreita com Aristételes exclui um outro acesso a Deus mais derivado do ho- ‘mem, tal como é proprio do pensamento de Agostinho ¢ ainda desenvolvido por Boaventura’ ‘Também o ponto de chegada de seu argumento & bastante problemitico.* E num duplo sentido, como indica Zubiri, Antes de tudo, haveria que ver se “estas cinco ‘primariedades’ (motor imével, causa primeira, algo necessétio, algo supremo, algo inteligentg) se ientificam entre si em um mesmo ente”. E, mesmo que se provasse essa identificagio, “isto nao significa que se provou ‘sem mais que esse ente supremo seja formalmente Deus, 0 que entendemos. por Deus":* Hi, aqui, como que um salto nio justificado que identifica sem mais 0 ponto de chegada desses argumentos com 0 Deus cristo. E isso nao é nada evidente, como supde Toms de Aquino. 2. Abordagem antropolégico-subjetivista A. Caracterizagao Diferentemente da abordagem cosmoldgica ou naturalista, temos, aqui, uma abordagem que em certo sentido pode ser dita antropolégica, jé que par- te do homem como realidade distinta do cosmos. Mas, como o homem é uma realidade complexa, constituida por miltiplas dimensoes, esse tipo de abor- dagem recebeu diferentes configuracdes a partir de diferentes dimenses da vida humana. Por exemplo: inteligéncia (Agostinho), vontade (Kant), senti- mento (Schleiermacher).” CCORETH, Deus no pensament floc ps. (CE ZUBIRI ET hombre y inp. 121s CORETH, Des no pensanent fos, p. 162; ROWE, Introdudo ails da eli ps. GILSON, introduc a flsofin cris 42, 26 ZUBIRL Et hombre y Dis p12 2 CLZUBIRL El hombre Diop 123s, Digalizado com Camscanner Abordagens filos6ficas sobre Deus ‘Vamos tratar de uma dessas abordagens “antropoldgicas” da existéncia de Deus que parte da dimensio inteligente da vida humana ¢ que é nomeada de varias formas: argumento anselmiano, argumento a priori, argumento onto- logico, argumento subjetivista. Ela sera formulada, aqui, em termos de argu- mento antropologico-subjetivista. Sua caracteristica principal consiste em ser um argumento a priori, no qual “a definigio verdadeira de Deus necessaria- mente requer sua existéncia, exatamente como a definigio de um quadrado necessariamente requer que tenha quatro lados”?* Enquanto a abordagem cosmol6gico-naturalista partia da estrutura do cos- smos/universo ou dle um conjunto de teses ou hipéteses sobre ele para, a partir dai, demonstrar racionalmente a existéncia de Deus, a abordagem antropold- gico-subjelivista, prescindindo de toda experiéncia do mundo, busca demons- trar a existéncia de Deus a partir da ideia mesma de Deus como ser supremo elou ser perfeitissimo, Por isso mesmo, fala-se, aqui, de argumento ou justi- ficacao a priori: um “conhecimento que ndo depende da experiéncia sensivel, mas do significado das palavras”? Embora seja sempre referido a Anselmo (1033-1109) ow a sua definigao de Deus como o “ser acima do qual nada maior podemos pensar’, como adver- te Coreth, “a formulacio nao é novidade de Anselmo, encontra-se de forma semelhante em Cicero, Séneca, Agostinho e Boécio. Nova, no entanto, é a in- terpretagio de que ai a existéncia de Deus esta conceitualmente contida’.” Ela sera retomada por Descartes no contexto da crise da metafisica clissica e do nascimento da modernidade, B. Formulagao em Descartes (1596-1650) Nao se sabe ao certo se Descartes conhecia o argumento de Anselmo, em- bora seja muito provavel e ele mesmo parece ter dado a entender a amigos que sim. Em todo caso, seu argumento ¢ similar ao de Anselmo, tanto em seu cardter a priori quanto “em sua suposi¢o de que a existéncia é intrinseca definigio de Deus”. 28 WILKINSON:CAMPBELL Flos derelig, pi. 2 WILKINSON: CAMPBELL, Filo da eligi, p., 30. CLANSELMODECANTUARIA, Peli p47 3 CORETH, Deurna pensamenlo loco. p. Wel ANZERBACHER, Introd filesfaaident. 3 32 WILKINSON: CAMPBELL, Food relig,.W, 49 Digalizado.com Camscanner Capitulo ‘Mas 0 contexto € bem diferente. Descartes marca 0 inicio de uma grande virada na filosofia que, séculos depois, serd reconhecida e nomeada por Kant como uma verdadeira “revolucdo copernicana” no pensamento ocidental, 9 que significa que, em ver da “intuigio” ser regulada pela “natureza do objeto”, como acontecia na filosofia antiga e medieval, o “objeto” passa a ser regulado pela “natureza de nossa faculdade de intuigio”.” Néo por acaso Descartes ¢ considerado pai da filosofia moderna. “A consciéncia ¢ nao a natureza é 0 novo ponto de partida da filosofia”, neste contexto, claro, “as provas e demonstragdes da existéncia de Deus ja nao vio se fundar em uma descrigéo do universo natural, mas na consciéncia e na razio humana”, Noutras palavras: “a filosofia se torna subjetivista e, conse- quentemente, também se subjetivisa 0 problema de Deus”. No centro das preocupacdes de Descartes esta busca de um conhecimen- to certo e verdadeiro, do qual nao se possa duvidar. No Discurso do méto- do (1637) e nas Meditacées filosdficas (1641) ele expde 0 caminho/método e 0s principios desse conhecimento certo e verdadeiro. Comeca duvidando de tudo (diivida metédica) até chegar a algo do qual no se possa mais duvidar e no qual se possa fundar um conhecimento certo: posso duvidar de tudo (sen- tidos, ideas), mas nio posso duvidar de que, quando duvido, existo (cogito, ergo sum).* Partindo dessa certeza subjetiva, ele se esforca para demonstrar a existén- cia do mundo objetivo, Mas para iso tem que recorrer a Deus que, sendo verdadeiro e poderoso, nao permite que nos enganemos. Antes de demonstrar a existéncia de uma realidade objetiva, tem, portanto, que demonstra téncia de Deus. E nio pode fazer isso recorrendo & natur exemplo, Tomas de Aquino. Pelo contrério, Tem que demonstrat a existéncia alexis: como faz, por temos de Deus “prescindindo da realidade do mundo, da qual certeza vere " Para isto, “recorrert dadeira até que estejamos seguros da realidad de Deu a varias provas, dentre elas 0 chamado argumento anselmiano ou argumento ontol6gico” como aparece na Quinta Meditagio. 33 KANT, rfc da oa pu, p32 M_ GONZALEZ, Intealucibn ala pict dela fils, p36. 38. CL WILKINSON; CAMPUELL, Fs da reg, p. M4. Ess forma de argument f se encom em Agostnho lef SANTO AGOSTINHO, A Tendo, X 10, 3h GONZALEZ, Inraucln ala pric de a fils, p 36, 50 Digalizado.com Camscanner Abordagens filosdficas sobre Deus Em suas Medilagdes,” “Descartes tenta reconstruir todo o conhecimento a partir dos [seus] princfpios primeiros’,” ele tenta apresentar os principios ou os fundamentos de um conhecimento certo e verdadeiro: A primeira meditagio trata “das coisas que se podem colocar em diivida” (davida me- édica); a segunda trata “da natureza do espirito humano e de como ele é mais facil de conhecer do que o corpo” (cogito, ergo su)sa terceira trata “de Deus, que ele existe” (existéncia de Deus como realidade objetiva); a quarta trata “do verdadeiro e do falso” (possibilidade do erro); a quinta trata “da esséncia das coisas materiais e, novamente, de Deus e de sua existéncia” (ideias matematicas e argumento ontoldgico); ¢ a sexta trata “da existéncia das coisas materiais e da distingao real entre a alma ¢ o corpo do homem” (coisas materiais). Quanto & Quinta Meditagfo, onde aparece o chamado “argumento onto- légico”, comeca com o “exame das ideias das esséncias” (§§ 1-2), prossegue com a “validacio da verdade das esséncias matemiticas” (§§ 3-6), apresenta a “prova ontolégica” (§§ 7-10) e conclui indicando as “vantagens desta nova prova” (§§ 11-15)” 1 imateriais"; consideragaio prévia das “ide ‘Ver se nao é possivel conhecer nada de certo no tocante ds coisas \s" que se encontram no “pensamen- 10 distintas e quais sio contusas”. to” para ver “quais §§ 3-6; Ideia de “quantidade” (extensio, partes, duragio); “infinidade de particularidades” (adimen figuras, movimentos); nalurezas verdadeiras ¢ imutiveis ileias*possuem suas (por exemplo, em todo triingulo “os trés ngulos sio iguais a dots retos” e “o maior Angulo ¢ oposto wo maior lado”) infinidade de outras ideias claras e distintas da aritmética e da geometria que nio passam pelos sentidos, §9 7-10: Argumento/prova da existéncia de Deus: “ideia de um ser sobe- rano ¢ perfeito”, a cuja “natureza” pertence “uma existéncia atual e eterna” embora se possa “em todas as coisas fazer distingio entre a existéncia ea es- séncin’ “a existéncia nio pout ser separada da e cia de Deus’; “do simples falo dle ew nto poder conceber Deus sem existéncia, segue-se que a existéncia WP DESCARTES, Os nsalnes, 75402 MW WILKINSON; CAMPRLL, Flesfin de rely, p. WM, wy CLLENRU Profit nota p. 13h nota 130 51 EEE Digalizado.com Camscanner Capitulo Ihe ¢ inseparivel e, portanto, que existe verdadeiramente’; sempre que “pen- sarem um ser primeiro e soberano [.] énecessdrio que eu Ihe atribua todas as espécies de perfici [. esta necessidade € suficiente para me fazer concluir [.] que este ser primeiro e soberano existe verdadeiramente”; “esta ideia [. € a imagem de uma natureza verdadeira e imutavel”: s6 em Deus a existéncia pertenced esséncia, s6 & possivel conceber um Deus dessa maneira, nao posso diminuir nem mudar nada em Deus. §6 114 tém a forga de me persuadir inteiramente”: algumas “conhecidas de qual- quer” pessoa ¢ outras conhecidas apenas “por aqueles que as consideram mais de perto e que as examinam mais exatamente” (Lriingulo retangulo, 5: “Sio somente as coisas que concebo clara e distintamente que Deus}; “a certeza de todas as outras coisas depende tio absolutamente [da certeza de Deus} que, sem esse conhecimento, ¢ impossivel jamais conhecer algo perfeitamente’; “se eu ignorasse que ha um Deus [...] eu jamais teria uma ciéncia verdadeira e certa de qualquer coisa que seja, mas somente opi- nides vagas e inconstantes"; “a certeza e a verdade de toda ciéncia depende tio s6 do conhecimento do verdadeiro Deus [..] e, agora que 0 conheco, tenho o meio de adquirir uma ciéncia perfeita no tocante 4 uma infinidade de coisas”. A estrutura do argumento de Descartes é muito clara: parte de uma infi- nidade de ideias claras e distintas em seu pensamento; reconhece que esas ideias possuem suas naturezas verdadeiras e imutaveis; entre essas ideias esta a ideia de Deus como ser soberano e perfeito; a um ser perfeito pertencem todas as perfeigdes e, portanto, também a existéncia atual e eterna; logo, Deus existe necessariamente. C. Apreciagao critica Varios filésofos se confrontaram com esse tipo de abordagem que, espe- cialmentea partir de Anselmo, marca decisivamente o debate filoséfico sobre Deus. critica a esse tipo de argumento pode ser resumida em duas questées fundamentais:salto do ideal para o real eexisténcia como predicado. Uma primeira questo tem a ver com a passagem automatica do mun- do ideal para 0 mundo real. A critica jé aparece na reagio ao Proslégio de Anselmo feta pelo beneditino Gaunilo em seu Livro escrito a favor de unt 52 Digalizado.com Camscanner Abordagens filoséficas sobre Deus insonsato." E retomada por Toms de Aquino na ST, ao se perguntar “se a existéncia de Deus é evidente por si mesma”, por Kant, em sua critica a0 chamado “argumento antolégico’,® e por muitos outros. O cerne da critica, como indica Coreth, consiste na tese de que “a realidade (esse in re) contida ro pensamento do ser superior a tudo é mesmo assim somente uma realidade pensada (esse in intellectu), que nao se aproxima da existéncia real de Deus. Portanto, de fato, um salto do pensamento para o ser real”.”’ Nas palavras de Antonio Gonzzlez, “Descartes passa com demasiada rapidez.de uma dedugio ideal (a ideia de um ser perfeito inclui sua existéncia) a uma conclusio real: esse ser perfeito existe”, Isso s6 é possivel partindo do pressuposto racionalista de uma “correspondéncia perfeita” entre “a ordem ideal e a ordem real”, o que nio é tao evidente assim." ‘Uma segunda questao, formulada por Kant, tem a ver com a compreen- sio de existéncia como predicado: “Ser evidentemente nao é um predicado real, isto é, um conceito de qualquer coisa que possa ser acrescido ao con- ceito de outra coisa [...]. Portanto, quando penso uma coisa [...], 0 fato de eu ainda acrescentar que essa coisa é nao acrescenta nem um pouquinho 4 coisa”. Noutras palavras, uma prova ontoldgica nao é possivel porque “a existéncia nao é um predicado”, Na verdade, “quando dizemos que uma coisa existe, nio estamos dizendo nada de novo sobre os contetidos de sua realidade”, mas simplesmente que “minha descricao corresponde a um ob- jeto real”. Sem falar que inteligéncia nao se reduza consciéncia e nio existe nem pode ser compreendida independentemente das outras dimensbes da vida humana: vontade, sentimento etc. Nem a vida humana pode ser compreendida inde- pendentemente ow, pior, em oposigio a0 cosmos ou i natureza, Nao existe 0 homem enquanto tal nem muito menos a inteligéncia enquanto tal. E sempre 40 CEGAUNILO, Lio escrito a favor dem insensato, 7.8393 AL CLTOMAS DE AQUINO. Suma Telia. 2.0.1, 42 KANT, Celica da rte purap 368373 43 CORETH, Deus no pensament fils, p27 M_GONZALRZ, trou oa pita dea fils, p35. 45 KANT, Cicada razdo pur, p. 37 46 GONZALEZ, fnovucid a prictica dela lela. 388 Digalizado.com Camscanner Capitulo I a tentacao das chamadas vias antropolégicas: contrapor o homem a natureza solar e substantivar determinada dimensio da vida humana.” 3. Abordagem praxica A. Caracterizagao Este tipo de abordagem ¢ relativamente recente e esta ligada a descoberta da historicidade da vida e do pensamento, e, concretamente, ao desenvolvi- mento das filosofias da praxis em seu esforco de superagio dos reducionismos cosmolégicos e antropoldgicos que marcam a histéria da filosofia, Diferentemente da abordagem cosmolégico-naturalista que parte do cos- ‘mos ou da natureza como realidade distinta do homem e da abordagem an- tropoldgico-subjetivista que parte do homem ou, precisamente, da dimensio inteligente da vida humana em contraposi¢éo ao cosmos ou a natureza, a abordagem praxica parte da interagio do homem com 0 mundo. Seu ponto de partida, portanto, nem é 0 cosmos nem 0 homem, tomados isoladamente e/ou em contraposi¢do um ao outro, mas a agdo humana estru- turada por uma dupla dimensao: dimensao subjetiva e dimensio natural. Na praxis humana, a realidade intramundana aparece como um todo constitui- do por miltiplos aspectos ou dimensdes em relacdo uns aos outros; um todo coerente e sistematicamente estruturado, no qual as diversas dimensdes que 0 constituem nem existem isoladamente nem se reduzem umas as outras. A questio, aqui, consiste em saber se a aco humana ou a préxis enquanto interagio do homem com o mundo implica de alguma forma e em alguma ‘medida um problema de Deus enquanto fundamento iiltimo da realidade em seu todo, Noutras palavras, trata-se de ver se a praxis tem uma estrutura estri- tamente teologal, isto é, se em si mesma envolve e remete a Deus. Certamente, nem todas as filosofias da praxis apreenderam e explicitaram adequadamente a estrutura teologal da praxis. Muitas vezes, a praxis foi re- duzida a sua dimensao politica em oposigao ou mesmo em contraposigio as miltiplas dimensdes que a constituem, estruturam e dinamizam, particular- mente d sua dimensao teologal. 47 CEDUBIRL Eliombrey Disp 123127, 54 Digalizado.com Camscanner Abordagens filosoficas sobre Deus ‘Ao falarmos de abordagem praxica de Deus nos situamos na tradigao fi- loséfica de Xavier Zubiri e seu desenvolvimento por Ignacio Ellacuria’* ¢ An- tonio Gonzalez.” Nao se trata, aqui, de mais uma filosofia da praxis, como sea praxis fosse 0 assunto da filosofia, A filosofia trata de tudo, inclusive da prixis, do ponto de vista de seu “fundamento ultimo”. Mas esse “fundamen- to” s6 éacessivel ao homem na medida em que se enfrenta com as coisas como “ealidade” ou como alteridade radical, isto é, como algo que é o que é“en pro- pio” ou “de suyo”. Ora, na medida em que o “fundamento ultimo” (assunto e perspectiva da filosofia) emerge no modo humano de se enfrentar as coisas, a ago humana ou a praxis se constitui como ponto de partida e como referen- cial te6rico-conceitual mais adequado da reflexao filos6fica. E neste sentido preciso que falamos aqui de abordagem prixica. B. Formulagdo em Xavier Zubiri (1898-1983) Um dos pontos mais centrais e decisivos na filosofia de Xavier Zubiri diz respeito ao que ele chamou “problema de Deus na vida humana” ou “proble- ma teologal do homem’”. E a insisténcia em mostrar que existe na vida hu- mana um ambito ou uma dimensio que envolve e da acesso a realidade de Deus, enquanto fundamento ultimo do real. E independentemente do modo como esse fundamento seja inteligido (Deus, pura facicidade, realidade-des- conhecida) e da posigao que se tome diante desse problema (teismo, ateismo, agnosticismo). desenvolvimento e a exposicio desse problema estio divididos em trés partes que correspondem a trés grandes problemas: analisefilosfica do pro- blema de Deus na vida humana (Deus); estudo filosdfico da historia das re- ligides (religiio); e estudo filoséfico-teol6gico do cristianismo como religio de “deiformagio” (Cristianismo). Toda sua reflexio sobre esta problematica desenvolvida ao longo de sua atividade filosofica foi recolhida e publicada postumamente em trés tomos: O lomem e Deus}® O problema filosdfico da hist6ria das religides;* O problema teologal do homemt: Cristianismo:* 48 CLELLACURIA, Filosofia de la realidad histic 49. CLGONZALEZ,Inroduccién ate price dl fils p. 309-385 50 CE ZUBIRL El hombre y Dis. 51 CL-ZUBIRI El problema lasfco dea hisria de as religions. 52 CL ZUBIRI El prabema loa de hombre Cristini. 55 Digalizado.com Camscanner Capitulo t No que diz.respeito& andlise filosdfica do problema de Deus na vida huma- ‘a, uma questéo fundamental tem a ver com 0 pontto de partida dessa aborda- gem. Zubiri rechaga tanto a “via cosmolégica” quanto a “via antropoldgica’, desenvolvidas ao longo da tradigiofiloséfica ocidental. A primeira via Ihe pe- rece problemitica seja por seu “ponto de partida’ (“fatos césmicos”2),seja por seu “ponto de chegada” (“Deus enquanto Deus”). A segunda via também Ihe parece prablemitica em sew ponto de partida (abordagem parcial da vida hu. ‘mana, abordagem dualista de cada aspecto da vida humana, contraposigio do homem ao cosmos) e em seu ponto de chegada (um Deus mais ou menos se. gregado do mundo real).” A insuficiéncia e problemitica dessas vias impoem a “necessidade de empreender uma rota distinta”. E Zubiri o fard tomando como ponto de partida a realidade humana como uma realidade que tem que realizar a si mesma, portanto, como uma realidade fundamentalmente prixi- «a (praxis) ou accional (agio). Na apresentacio dessa via desenvolvida por Zubiri, tomaremos como re- feréncia a introdugio do curso que ele deu na Universidade Gregoriana de Roma, em 1973, sobre “O problema teologal do homem’, Embora nao seja a tiltima elaboragao de Zubiri sobre o tema, é um texto de sua tiltima etapa que tem a vantagem de apresentar de modo sistemitico, didatico e resumido sua reflexio sobre o problema teologal do homem e, além do mais, esta traduzido em portugues. Zubiri se propée a fazer “uma andlise da realidade humana enquanto tal, tomada em e por si mesma” para verse ha nesta realidade “alguma dimensio que de fato envolva, constitutiva e formalmente, um enfrentamento inexord- vel com a dimensio tiltima do real, isto é, com o que de uma maneira mera- mente nominal e proviséria podemos chamar Deus” (4). E desenvolve esta anélise em “trés passos” (15). a) Ele comega afirmando que “o homem é uma realidade nao feita de uma vez por todas, mas uma realidade que tem que ir realizando-se” (15). E que o homem, pelas notas que possui, particularmente pela inteligén- cia, “nao apenas tem realidade” (notas), mas “é uma realidade formalmente 53 CLLZUBIRL, Elhombrey Dios p. 18-127 $4 CL.ZUBIRL O problema recloal do homem, p. 13-20. A partir de agora, os nimeros entre parétes, set cutaindicagoremelem a piginas dest artigo, 56 Digalizado.com Camscanner Abordagens filoséficas sobre Deus ‘sua’ como realidade” (si mesmo), ou seja, é uma realidade pessoal. Enquanto tal, ele apreende as coisas ndo apenas como “estimulo de resposta”, como os demais animais, mas como “realidade’, isto é, como alteridade radical; tao radical que se impée na vida humana: toma “posse”, exerce um “poder”, “do- mina’, “move”, obrigando o homem a reagir de uma forma ou de outra. Isso faz.com que ele se experimente como uma realidade “absoluta” (desligada de qualquer outra realidade), embora “s6 relativamente absoluta” (em relacio as coisas diante das quais ou “ante as” quais ela se encontra). Experimenta-se, portanto, como des-ligado de todas as coisas e, a0 mesmo tempo, re-ligado ao “poder do real” que as coisas veiculam (15). Por isso, diz Zubiri, “o homem necessita de tudo aquilo com que vive, mas aquilo de que necessita é a realidade” (15). A expressio “realidade” designa, aqui, a tiltima determinagao metafisica das coisas enquanto apreendidas pelo homem: sao 0 que séo “de suyo”, “en propio” Enquanto tal, ela constitui aquilo que, em tltima instancia, “fundamenta’, ‘possibilita” e “impele” 0 ho- mem a realizar a si mesmo. $6 porque apreende as coisas como “realidade” que pode se apropriar delas como “possibilidades” para fazer a vida de uma forma ou de outra. Assim, 0 homem vai fazendo sua vida “com” as coisas “e-ligado” ao poder do real que elas veiculam. E, na medida em que “o poder do real nao se identifica com as coisas”, excedendo-as, o homem se vé langado “na direcio de” seu fundamento tltimo. Este langamento € uma “marcha": uma marcha “problematica” e uma marcha “real e fisica” (16). b) £ uma marcha ‘problemética” porque seu termo depende das “rotas em- preendidas”: teismo, ateismo, agnosticismo. Em todas elas, o homem acessa ao “fundamento do poder do real”, ainda que de “modo diferente”: Deus, pura facticidade, realidade indeterminada. Mas ele tem que justificar intelectual- mente a “via escolhida”e “essa justificagéo é, simultaneamente, o fundamento da opgdo mesma” (17). Para Zubiri, “a justificacao intelectiva do fundamento do poder do real 0 que nos lanca a nés mesmos por uma via que leva da pessoa humana 55 Segundo Pintor Ramos, term read design, na filosofia de Zubit, "a cater mais elementa tam ‘btm o mais decisivoa que qualquer problema termina cemetendo" Na lingua espanhola, diz el, este term encera sempre wn mati de ultimidae erotundidad,iclsive de coerivdade,propenso 3 conduti a expresses dogmiticas E, conclu: "Suspeito que a manutencio zubiriana do termo ‘eaidade deve mito 0s maties peculiar € forga que ese termo tem em espanbol mallzs qu os termos equivalents em ‘outraslinguas qu no refitam totalmente" (PINTOR RAMOS, Realidadywerdade, p. Ss). 57 Digalizado com Camscanner Capitulo tt (realidade relativamente absoluta] a uma realidade absolutamente absoluta: €o que entendemos por Deus”. E, assim, “o homem encontra Deus ao rea- lizar-se religadamente como pessoa”. O “poder do real” consiste em que “as coisas reais sem ser Deus nem um momento de Deus, sao, sem ditvida, reais ‘em’ Deus, quer dizer, sua realidade é Deus ad extra’. Noutras palavras, “o apoderar-se da pessoa humana pelo poder do real é, endo, um apoderar-se do homem por Deus. Neste apoderar-se acontece a intelecco de Deus. Daf que toda realizacio pessoal humana seja precisa e formalmente a configuragio optativa do ser humano a respeito de ‘Deus em minha pessoa” (17). ) Eé uma marcha “real e fsica” porque nao trata de um “processo mera- mente intelectivo, mas sim de um processo real” (16). Nessa marcha, o homem vai “tateando”, “averiguando’, “provando” esse fundamento. E nisso consiste, para Zubiri, portanto, de uma marcha 0 “fundamento” do “poder do real”, ‘a esséncia mesma do que chamamos experiéncia” (17). Trata-se, periencial em que o homem vai experimentando Quando o fundamento do “poder do real” é experimentado pela “via” que levaa Deus, essa experiéncia “é co ipso Deus experimentado como fundamen- to, & experiencia de Deus”, Enquanto fundamento ultimo da vida humana, Deus néo é algo meramente “justaposto” ao homem, mas algo que, de alguma forma, “pertence” & realidade mesma do homem: “nao se trata de que haja pessoa humana ‘e além disso’ Deus’; “Deus nao é a pessoa humana, mas @ pessoa humana é de alguma maneira Deus’; “Deus néo inclu o homem, mas ‘0 homem inclui Deus’, E, assim, 0 homem se constitui formalmente como “experiéncia de Deus' (18). Em sintese: 1) Zubiri parte de uma anilise da realidade humana como uma realidade radicalmente aberta que tem que se fazer a si mesma (abertu- ra); 2) mostra como esta abertura tem a ver com 0 fato de o homem apreen- der as coisas como “realidade” e como nesta apreensio ele se experimenta paradoxalmente como “desligado” de todas as coisas e “religado” ao “poder do real” queas coisas veiculam (religagao); 3) mostra ainda como, na medida em que fundamenta as coisas sem se identificar com elas, excedendo-as, 0 “poder do real” langa o homem na dire¢io de seu fundamento tiltimo ¢ esse fundamento ultimo pode ser apreendido e justificado por vias distintas: teis- ta, ateista ¢ agndstica (fundamento); 4) propée/justifica a via tefsta como a 58 Digalizado com Camscanner Abordagens filosoficas sobre Deus via que nos leva do homem como realidade “rlativamente absoluta” a Deus como realidade “absolutamente absoluta” (Deus); 5) e, assim, apreende e jus- tifica Deus como fundamento iiltimo de toda realidade; fundamento que possibilita e impele o homem a realizar a si mesmo (fumdamento, possbil dace, impeléncia) C. Apreciacao critica Em sua abordagem filoséfica sobre Deus, Zubiri nao parte nem do cosnios {abordagem cosmoldgica) nem de uma dimenséio da vida humana (aborda- gem antropol6gica), mas da religagfo como fato real, total e radical da vida humana em seu enfrentamento com as coisas (abordagem praxica).. Essa abordagem tem o mérito de superar os reducionismos cosmolégicos ¢ antropol6gicos, tomando a realidade em sua complexidade e unidade radical tal como aparece na vida humana (praxis) e partindo de um fato verificdvel 1a propria vida humana em seu processo de autorrealizacao historica (religa- io). Tem também o mérito de falar de Deus ndo apenas como fundamento do mundo natural, deixando de fora a realidade humana (abordagem cosmo- Logica), nem apenas como fundamento da realidade humana, segregada do mundo natural (abordagem antropoldgica), mas como fundamento ultimo da realidade em seu todo. & que “o Deus a quem todos nos referimos nao & apenas possibilitante e impelente (seja de um modo intelectual, volente ou sentimental), mas é também formalmente ¢ ao mesmo tempo a ultimidade do real”: “realidade absolutamente absoluta, realidade ultima, possibilitante eimpelente”.” Além do mais, essa abordagem permite levar a sério 0 dinamismo histdi co desencadeado pelas experiéncias concretas/particulares desse fundamento Ultimo nas mais diversas tradigdes religiosas (religido como “plasmagéo da religagio"), particularmente em seu potencial histérico-libertador (religito ¢ libertagio),** nio obstante o risco permanente de sua instrumentalizagao ideolbgica pelos grupos ¢ setores dominantes da sociedade, 56 ZUBIRL, El hombre y Disp. 127, 57 ZUDINL, El liombre y Dias, p. 132 58 CE.GONZALE?, Inraduccén ala prdccadelaflolap 39:38, Digalizado.com Camscanner Capitulo Bibliografia ANSELMO DE CANTUARIA. Prosligio, Porto Alegre: Concreta, 2016, ANZENBACHER, Arno. Jutrodugio d filosofia ocidental. Petrdpolis: Vozes, 2009, CORETH, Emerich, Deus no pensanientoflosdfico. Sao Paulo: Loyola, 2009, DESCARTES, René. Os Pensadores, Sao Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1973, ELLACURIA, Ignacio, Filosofia dela realidad histérica. San Salvador: UCA, 1999, GAUNILO. Livro escrito a favor de um insensato. In: ANSELMO DE CANTUARIA, Prosligi. Porto Alegre: Concreta, 2016. p. 83-93. GILSON, Etienne. introdugio d ilsofa cist, Santo André: Academia Cristi, 201, GONZALEZ, Antonio. Introduccidn a la prictica de la filosofta, Texto de iniciacién, San Salvador: UCA, 2008. JAEGER, Werner, La teologia de los primeras filisoos griegos. México: Fondo de Cultura Econémica, 1998, JORDAN, Jefftey (org), Filosofia da religido, Sio Paulo: Paulinas, 2015. KANT, Immanuel, Critice da razio pura, Sio Paulo: Nova Cultural, 1996. LEBRUN, Gérard. Preficio enotas In, DESCARTES, René, Os Pensadores. So Palo: Abril S.A. Cultural ¢ Industrial, 1973, LIMA VAZ, Henrique Claudio, Escritos de Filosofia: problemas de fronteira. Sio Paulo: Loyola, 1986, NICOLAS, Jean-Hervé, 0 Deus tinico:introdugio e notas, In: TOMAS DE AQUINO, T. Suma Teoldgica. Sio Paulo: Loyola, 2001, Parte I - Questées 1-43. Volume 1, p. 157-493. OLIVEIRA, Manfredo Araijo; ALMEIDA, Custédio (org). © Deus dos filésoos smodernos. Petropolis: Vores, 2002. NOUGUE, Carlos. Apresentacio. In: TOMAS DE AQUINO. Compéndio de Teologit. Porto Alegre: Concreta, 2015. p. 25-69. PANNENBERG, Wolfhar, Filosofia eeologia:tensdes e convergéncias de uma bust ‘comum. Sio Paulo: Paulinas, 2008, PENZO, Giorgio; GIBELLINI, Rosina, Deus na filosofia do século XX. Sio Paulo Loyola, 1998. PINTOR RAMOS, Antonio. Realidad y verdad: las bases de la filosofia de Zubiel Salamanca: Pontificia Universidad, 1994 ROWE, William. Introdugio a ilsofa da religio, Lisboa: Verbo, 2011. SANTO AGOSTINHO. A Trindade, Sio Paulo: Paulus, 1994 60 Aa Digalizado.com Camscanner _Abordagens filosdficas sobre Deus TOMAS DE AQUINO, Suma Teolégica. So Paulo: Loyola, 2001, Parte I~ Questées 1-43. Volume 1 WILKINSON, Michael CAMPBELL, 1 Sio Paulo: Paulinas, 2014, ZZUBIRL Xavier. El hombre y Dios, Madris Alianza Eitri, 208, _—EIproblemafilosjico de la historia dls 2006. . El problema teologal del hombre: Cristiani 1999, ugh, Filosofia da religio: uma inrodug, religiones, Madrid: Alianza Editorial, ismo, Madrid: Alianza Editorial, O problema teologal do homem, In: OLIVEIRA, M; ALMEIDA, C. (org).0 Deus dos filbsofos modernos Petrépolis: Vozes, 2002p. 13-20 Digalizado.com Camscanner

You might also like