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AS ORIGENS DA CIENCIA MODERNA* UMA NOVA INTERPRETAGAO. Desde os tempos herdicos de Pierre Duhem, homem de energia e saber assombrosos, a quem devemos a revelagdo da ciéncia medieval, um grande numero de trabalhos foi dedicado ao estudo desse assunto, A publicagdo das grandes obras de Thorndike e de Sarton e, nestes Ultimos dez anos, a publicagdo das brilhantes pesquisas de Anneliese Maier e de Marshall Clagett, para ndo falar de uma multidao de outras monografias e estudos, alargou e enriqueceu extraordinariamente nosso conhecimento e nossa compreensao da ciéncia medieval e de suas relagdes com a filosofia medieval — cujo conhecimento e compreensao fizeram progressos ainda maiores —, bem como da cultura medieval em geral. Entretanto, o problema das origens da ciéncia moderna e de suas re- lag6es com a Idade Média continua a ser uma questio disputata muito viva- mente debatida. Os partidérios de uma evolucdo continua, bem como os partiddrios de uma revolucdo, firmam-se todos em suas posicSes e parecem incapazes de convencer uns aos outros’. Na minha opiniao, isso ocorre muito menos porque eles se acham em desacordo a respeito dos fatos do que pela circunstancia de nao concordarem no que diz respeito a propria esséncia da ciéncia moderna e, por conseguinte, no que se refere 4 importancia relativa de certos caracteres fundamentais desta ultima. Ademais, o que, a uns; -pa- * Artigo extraido de Diogéne, n° 16, 1956, Paris, Gallimard, pp. 14-42. 56 rece uma diferenga de grau, a outros se apresenta como uma oposigdo de natureza”. A concepeao da continuidade encontra em A. C. Crombie seu mais elogiiente e mais absoluto defensor. Com efeito, sua brilhante e erudita obra sobre Robert Grosseteste* — uma das contribuigdes mais importantes para o nosso conhecimento da historia e do pensamento medievais entre as publicagSes destes ultimos dez anos, obra que associa a uma excepcional tiqueza de informagao uma profundidade e uma sutilidade de interpreta- do igualmente notdveis — tende principalmente a demonstrar que a cién- cia moderna ndo s6 tem suas fontes profundas no solo medieval, mas tam- bém que — pelo menos em seus aspectos fundamentais e essenciais —, por sua inspiragdo metodolégica e filos6fica, é uma invengdo medieval. Ou, pa- ra retomar os proprios termos de Crombie (p. 1): “O traco distintivo do método cientifico do século XVII, se se o compara com o da Grécia antiga, era sua concepgao da maneira pela qual uma teoria devia estar ligada aos fatos ooservados que ela se propunha ex- plicar, a série de passos logicos que ele comportava para edificar teorias e submeté-las aos controles experimentais. A ciéncia moderna deve profun- damente seus éxitos ao uso desses métodos indutivos e experimentais, que constituem 0 que muitas vezes se chama 0 método experimental. A tese deste livro é a seguinte: a compreensdo sistemdtica, moderna, pelo menos dos aspectos qualitativos desse método, é devida aos filésofos ocidentais do século XII. Foram eles que transformaram a geometria dos gregos e dela fizeram a ciéncia experimental moderna”. Se o puderam fazer, entende Crombie, foi porque, contrariamente a seus predecessores gregos — e mesmo drabes —, foram capazes de utilizar o empirismo pratico das artes ¢ oficios, buscando ao mesmo tempo uma ex- plicagdo racional e, assim, de ultrapassar as limitagGes desse empirismo, e porque, ainda aqui ao contrario dos gregos, foram capazes de formar uma concepcdo muito mais unificada da existéncia. Em conseqliéncia, se os di- ferentes tipos e modos de conhecimento que os gregos distinguiram — fisi- co, matematico e metafisico — correspondiam, para eles, a tipos diferentes de existéncia, os filésofos cristdios do Ocidente, pelo contrario, “viram ne- Jes essencialmente diferencas de métodos” (p. 2). Os problemas metodoldgicos desempenham um importante papel durante os periodos criticos da ciéncia — como nés proprios vimos numa época recente. Portanto, nao é surpreendente que eles tenham ocupado um lugar de tanto relevo no século XIII, numa época em que, em conseqiiéncia do afluxo sempre crescente de tradugGes do drabe ¢ do grego, o mundo 57

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