You are on page 1of 16
VOZ PROFISSI¢ ONAL: NOVAS PERSPECTIVAS DE ATUACAO Marta Assumpgdo de Andrada e Silva’* © trabalho com a voz profissional € algo recente na Fonoaudiologia. No Brasil, © conhecimento de quem sio os profissionais da voz, as diferentes pos- sibilidades de utilizagao vocal no contexto profissional e quais as estratégias fo- Noaudiol6gicas, que podem ser utilizadas para permitir a existéncia de um trabalho conjunto satisfat6rio, ainda s%0 questdes que estamos buscando respon- der. O trabalho com 0 profissional da voz, sob essa denominagio, iniciou-se nos Estados Unidos, onde atualmente existem vdrios pesquisadores voltados para as demandas dessa parcela da populacao. Em nossa realidade, a 4rea da voz profissional ¢ objeto de interven¢io nio somente de fonoaudidlogos. No teatro, por exemplo, muitas vezes 0 proprio di- retor desempenha esta tarefa, isto é, trabalha as técnicas vocais. Se este profis- * Texto apresentado na I Jornada Franga-Brasil de Fonoaudiologia, Faculdade de Fonoaudiclogia, PUC-SP, outubro de 1997. A claboraggo deste artigo contou com a colaboragéo de Maria Claudia Cunha. ** Fonoaudiloga clfaica da DERDIC-PUC-SP; Professora da Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP. Distiirbios da Comunicagao, Sao Paulo, 10(2): 177-192, jun., 1999 Marta Assumpgdo de Andradae Silva sional tem ou n&o formag&o para isto (se trabalha a voz de acordo com o que nés consideramos “correto”) é um assunto que nao pretendo discutir neste artigo. Vale ressaltar que, quando nao conhecemos profundamente as exigéncias de um contexto profissional especffico, ndo temos condigées de julgar qual o tipo de conhecimento ou de experiéncia é necess4rio para a realizag&o de um trabalho com a voz. Considerando esta hipétese, precisamos prestar atengao e ter muito cuidado quando iniciamos um trabalho com um grupo que jé possui uma outra experiéncia. Ao invés de pensarmos que estamos preenchendo uma lacuna, de- vemos pensar que estamos, na realidade, propondo uma forma diferente de tra- balhar a voz, que pode ou nio ser eficiente para determinado grupo ou individuo. O operador de telemarketing (TMK), por exemplo, n’o tem, na maioria dos casos, nenhum trabalho anterior relacionado 4 voz. No caso dos cantores, é muito comum trabalharem a voz cantada apenas com o professor de canto. Isto me parece pertinente se este for um trabalho apenas estético ou de aperfeicoa- mento, mas se o professor de canto se propuser a trabalhar a voz de um cantor que possui uma alteracdo vocal (por exemplo, nédulos vocais), como ficamos? Mais que julgar, cabe-nos, sim, refletir com certo grau de humildade sobre a perspectiva de estarmos adentrando uma 4rea onde jé existem outros profissionais atuando para que possamos conhecer este profissional. E, por fim, analisarmos se 0 trabalho que nés, fonoaudidlogos, temos para oferecer constitui-se uma in- tervengdo que possa ser Gtil, Quando entramos em uma nova drea de atuacio achando que temos vantagens porque conhecemos 0 funcionamento do aparato vocal (anatémica e fisiologicamente), temos de lembrar que isto é apenas um dos aspectos relacionados & fonag4o. Ser4 o mais importante, o fundamental? Por exemplo, pata alguns professores de canto 0 fato de 0 fonoaudiélogo “nomear demais” os misculos ¢ estruturas do aparato vocal pode prejudicar a propriocep- G40 das sensagdes que a voz cantada gera, Eles defendem o trabalho da voz cantada por meio de imagens: “a voz é um cord4o que vocé vai puxar do abddmen e levar para o alto da cabega”. Ndo podemos ter a convic¢4o de que apenas por dominarmos 0 funcionamento organico da produgao vocal teremos condigdes de trabalhar a voz cantada, Quando estamos trabalhando com voz, é fundamental considerarmos os fatores psicossociais, além dos organicos. Antigamente, a discussdo estava cen- 178 Voz profissional: novas perspectivas de atuagao tralizada em ser ou nio “organicisia” e/ou “tecnicista’’; hoje em dia, a clinica e a pesquisa na 4rea de voz mostraram que essa discussdo passou a ser, de fato, secund4ria, Saber como estiio as pregas vocais e 0 que acontece durante a cmissio da voz é um aspecto que sozinho no explica nada, 6 preciso sim contextualizar a voz do sujeito “dentro e fora” dele. E fundamental analisar a dinamica vocal do individuo no contexto efetivo do uso profissional da voz. Quando iniciei © trabalho com o profissional da voz, costumaya discutir com a professora Léslie Picollotto Ferreira como poderfamos pensar em um grupo composto por profissionais (fo diferentes. Como “juntar” um professor ¢ um cantor, ou um vendedor e um ator? Uns utilizam a voz como profiss’o ¢ os outros dependem da voz para exercé-la. E a questo do artistico, como fica? Seré que um professor ndo pode ministrar suas aulas de forma “teatral”, como se estivesse representando um papel? E aquele vendedor que 0 convence a comprar algo quando vocé esté sem dinheiro, quando absolutamente voce nao pretendia fazé-lo? Com certeza, ele tem algo de artfstico na voz, no discurso, no gesto. Um operador de TMK. tem que assumir um personagem quando € obrigado a ouvir uma “bronca” e responder calmamente, passivamente, sabendo que cle, na maioria das vezes, nao tem nenhuma responsabilidade sobre 0 desastre ocorrido. Atendi no meu consultério um ator de teatro que, questionado sobre como eram seus pensamentos em cena sobre o personagem, respondeu-me que depois de decorar 0 texto, em cena $6 pensava na pizza que iria comer depois do espeticulo (isto porque nao conseguia se alimentar antes da pega e costumava passar toda a encenacao sentindo o estémago “roncar de fome”). O fonoaudidlogo tem duas maneiras de trabalhar com 0 profissional da ‘voz: terapeuticamente ou na forma de assessoria/aperfeigoamento, O paciente que vocé atende no consult6rio pode ser também avaliado in loco (no bar onde ele canta, escola onde a professora dé aula), e mesmo assim vocé permanece reali- zando um trabalho clfnico, Em contrapartida, existe o trabalho, que na maioria das yezes ocorre em grupo, no qual o fonoaudidlogo € chamado por uma empresa para realizar cursos para operadores de TMK. Um curso de, por exemplo, dez horas, que visa preparar vozes para falar ao telefone, a0 meu ver nao 6 terap@utico. Esta separagdo do trabalho terapéutico e nao terapeutico nao é tarefa facil, pois freqiientemente confundimos os papéis e fazemos observacGes ou até intervencdes 179 Marta Assumpeiio de Andrada e Silva pessoais dentro de um grupo no qual estamos realizando um trabalho de orien- tagdo. Se neste grupo em que estou trabalhando ninguém est4 procurando uma terapia individual de voz, como fica minha postura profissional de apontar um ou outro problema, como por exemplo, perguntar ao indivfduo se ele reparou que sua voz tem uma alteragio? A partir da década de 80 iniciou-se, de fato, um trabalho na 4rea de pro- mogao da satide da voz profissional. Foi neste perfodo que comecamos a bater Na porta das emissoras de televiséo e de rédio para divulgar e oferecer nosso trabalho; procuramos estabelecer contato com grupos de teatro; iniciamos pes- quisas com grupos de professores correlacionando suas alteragdes vocais; ini- ciamos investigagGes sobre outros profissionais da voz como telefonistas, opera- dores de TMK, leiloeiros rurais e outros. Apesar de o projeto ter sido iniciado 4 quase duas décadas, ele ainda ¢ desconhecido por muitos profissionais da 4rea, Existem varios fonoaudidlogos que prestam assessoria para atores, radialistas ou locutores, mas nao sao contratados pelas emissoras de televisio e de rddio res- pons4veis. O trabalho ainda tem uma procura mais pessoal, individualizada, do que institucional. Segundo Ferreira (1995), a proposta de classificag4o das vozes profissionais — considerando aspectos relacionados as condigdes de produgdo do sujeito, da categoria profissional e do ambiente de trabalho tanto nas caracterfsticas fisicas quanto nas caracteristicas psicossociais — é a seguinte: Profissionais da Arte: — cantores: erudito, popular, coral ¢ religioso; — atores: teatro, circo € televisio; — dubladores, Profissionais da Comunicagio: — locutores e rep6rteres de radio e televisdo; — telefonistas, Profissionais da Educa¢io: — professores de diferentes 4reas e graus; 180 Voz profissional: novas perspectivas de atuagao ~ fonoandidlogos; = religiosos (padres, pastores, etc.). Profissionais de Marketing: ~ operadores; — vendedores; = leiloeiros (rurais e de arte); — feirantes, camelds; — politicos, Profissionais de Setores da Industria e Comércio; = diretores;, — gerentes; — encarregados de sessao; = supervisores. Profissionais do Judiciério: — advogados; ~ promotores; — jufzes. Vale levantar aqui uma questo ito caso dos profissionais da educagao e do judiciério: acho que deverfamos iniciar nossa atuagdo j4 durante a formacio académica deste profissional. Como podemos, por exemplo, pensar em didatica para um professor sem pensarmos na qualidade vocal ¢ na entonagao do discurso? De que forma podemos fornecer estratégias de preservagiio e durabilidade para uma voz que dé dez aulas por dia? Acredito ser papel do fonoaudidlogo divulgar seu trabalho e abrir espagos na formagao destes profissionais que utilizardo suas vozes exaustivamente no exercicio profissional. O trabalho com avoz profissional nao est4 restrito a laringe pois todo o sistemacorporal afeta a voz, (Satalloff, 1994) 18] Marta Assumpgao de Andrada e Silva Selecionei algumas profiss6es com as quais tenho maior experi@ncia, para discutir e apontar algumas caracteristicas comuns a cada grupo, assim como as dificuldades mais freqiientes presentes na realizagao de um trabalho nesses casos. Operadores de telemarketing (TMK) Esta é uma 4rea recente de atuag%o da Fonoaudiologia, o trabalho de fato iniciou-se hé quatro anos. Apesar de ser um campo novo de atuagio, j4 existem artigos, teses ¢ livros escritos por fonoaudidlogos sobre o assunto. Existe aqui um problema com 0 que 6 chamado de treinamento prévio. O fonoaudiélogo € chamado para dar um treinamento em um espago curto de tempo, com alguns critérios e recomendagdes estabelecidos pela empresa, que muitas vezes néo fazem parte do que consideramos como um trabalho da 4rea fonoau- diol6gica, Sendo assim, muitas vezes 0 fonoaudiGlogo solicita um tempo maior de curso e/ou treinamento posterior para uma reciclagem, mas a empresa nao concorda, alegando excesso de gastos com recursos humanos. Em muitos casos, acontece que, ap6s um treinamento prévio, o fonoaudidlogo termina com a sen- sagao de que forneceu uma quantidade enorme de informagdes, mas ndo sabe 0 quanto estes novos conhecimentos podem vir a auxiliar os profissionais no uso efetivo da voz no trabalho cotidiano. © treinamento prévio pode ser eficiente, mas no que se constitui ¢, principalmente, como é possfvel realizar um trabalho satisfat6rio tanto para funciondrios quanto para a empresa que contrata os seus servigos? Observa-se que 0 operador trabalha sob forte press%io emocional j4 que, se apresentar um problema de voz, ele pode vir a perder o emprego. O estresse no trabalho € muito grande, pois sua fala é vigiada praticamente todo o tempo por um supervisor e controlada por uma dicotomia entre fala decorada/programada ¢ fala natural. Além disso, imaginemos como deve ser exaustivo repetir durante seis horas praticamente a mesma fala, com a mesma entona¢do, qualidade vocal @ texto, Na maioria dos casos, encontramos ambientes de trabalho com condigdes inadequadas para uma produgao prolongada da voz (lugares muito ruidosos, com cadeiras desconfortaveis, ar condicionado muito forte, falta de 4gua potivel por Perto, etc.) Mas, apesar das limitacSes, 0 fato de a Fonoaudiologia ter entrado 182 Voz profissional: novas perspectivas de atuagdo nesse universo de trabalho e comecar a refletir sua a¢do nesse contexto jé é€ considerado como mérito significativo. Atores A meu ver, 0 fonoaudidlogo que pretende trabalhar com atores precisa estar inserido no meio teatral: ter contato com atores, entrar em sintonia com 0 tipo de trabalho do diretor e conhecer profundamente os textos nos quais os grupos esto trabalhando. Muitas vezes encontramos dificuldades em trabalhar a inter- pretagdo de determinados personagens, alguns papéis necessitam de uma “voz patol6gica” para sua composicdo. Em outros casos, encontramos dificuldades para perceber as vozes que o diretor est imaginando para determinada cena. Para a realizacdo de um trabalho efetivo com atores acredito ser necessério uma dedi- cago intensa € um conhecimento aprofundado da arte de representar. Existem dificuldades relacionadas & demanda de ensaios, que normalmente s40 muito estressantes ¢ vio se intensificando & medida que a estréia se aproxima. Nestes casos é, com certeza, na véspera ou no dia da esu¢ia que o ator poder “perder” a voz. Os ensaios tendem a ser concentrados num curto perfodo de tempo, sendo, portanto, longos se considerados um a um. Isso se deve a razies orgamentérias, j4 que raramente os atores de teatro tém ensaios remunerados. Nao existe ainda no Brasil uma preocupagio suficiente com a actistica dos teatros e, por essa razdo, existem algumas casas de espetéculo que no possibi- litam uma reverberagio satisfatéria, por mais que 0 ator tenha uma projegio adequada da voz. Nio existe uma cultura de investimento no aspecto acustico dos teatros, salvo em raros casos. O trabalho com respiragio, articulagao e conseqiientemente projegao da voz € 0 que norteia as intervengdes fonoaudiolégicas nessa 4rea. Cabe também sali- entar que os atores, normalmente, praticam habitos vocais inadequados: bebidas alcodlicas, fumo, alimentagao e sono irregulares s40 os exemplos mais comuns. Além disso, lembremos que 0 trabalho do preparador vocal deve levar em conta © diretor, isto €, aquele que concebe o espet4culo, inclusive em termos vocais, na composi¢do dos personagens. 183 Marta Assumpedo de Andrada e Silva Radialistas Quando vamos trabalhar com radialistas, precisamos considerar os diferen- tes estilos radiofOnicos, lembrando que cada emissora de rédio possui seu proprio estilo de transmissio da informacdo, que varia significativamente, por exemplo, do padrio AM para o padréo FM. Quando somos chamados para trabalhar com um locutor de rédio 6 comum que nos indiquem os parametros vocais desejados para a fungio. Porém, pode ocorrer que 0 padro vocal esperado nao seja com- pativel com as caracteristicas fonat6rias do profissional, cabendo a n6s sugerir ¢ possibilitar caminhos alternativos. Existem diferengas emrelagio 4 demanda vocal se compararmos um locutor a um rep6rter de rédio. Geralmente 0 locutor nao escreve o proprio texto, e, freqientemente, 0 redator no se preocupa com a produgio da fala, Ele escreve, por exemplo, uma frase muito longa ¢ mal pontuada, o que dificulta as pausas respiratérias do locutor. O repérter, por sua vez, pode trabalhar tanto na cabine silenciosa da emissora como na “rua”, dando boletins extemos e competindo com Q intenso rufdo urbano, E comum que os radialistas tenham um acimulo de fungdes dentro da emissora, ou que trabalhem em duas ou trés rAdios diferentes buscando aumentar o rendimento mensal. As dificuldades mais encontradas sao problemas relacio- nados A articulagio e ao uso excessivo da voz. Esses problemas articulat6rios podem estar relacionados a uma dificuldade individual de manter 0 padrio “im- posto” pela r4dio ou a alteragdes no sistema sensério-motor oral do indiv{duo. Politicos Este grupo tem procurado maior aproximac¢4o com o nosso trabalho hi mais ou menos trés anos, Antes, este profissional recorria aos cursos de oratéria para aperfeicoar e/ou corrigir alteragdes vocais. Atualmente considera-se que as técnicas de oratéria produzem discursos excessivamente formais, que soam como nao convincentes, nao “verdadeiros”. Assim, esses cursos tradicionais comegaram a nao satisfazer os politicos. A procura de um trabalho vocal fonoaudiolégico parece motivada pela necessidade de uma.voz e um discurso mais individualiza- 184 Voz profissional: novas perspectivas de atuagéo dos, mais auténticos. Do ponto de vista fonoaudiolégico, a meu ver, a atengio deve centrar-se na postura articulatéria, fonat6ria e corporal compativeis com o contetido discursive, em busca da “voz com credibilidade”. Locutores de televisio Postura corporal ¢ articulag4o devem ser os pilares do trabalho, lembrando que na televisdo nao precisamos de volume na voz gragas a utilizagfio do micro- fone; logo, 0 aspecto da projegao nao é prioridade neste caso. Lembremos também do “grande fantasma do Tbope”, em que a principal arma para manter ou aumentar os chamados “picos” de audiéncia é a harmonia entre voz € imagem. O padrao das emissoras caracteriza os textos escritos pelos seus redatores, determinando desta forma um padrao vocal especffico para cada canal. O estresse da voz no trabalho € muito intenso nesse ambiente profissional pautado pela concorréncia (dentro da emissora e entre elas) devido ao grande volume de in- vestimentos financeiros, Professores Os professores, estatisticamente, sao os profissionais da voz que mais pro- curam © atendimento fonoaudiolégico. Sera que este & o profissional que tem mais problemas vocais? A esse respeito 0 que podemos afirmar, com certeza, € que este grupo € 0 mais familiarizado com o trabalho fonoandiolégico na drea de voz, em relagio aos demais (cantores, leiloeiros, locutores, advogados, etc.). Vale ressaltar que a demanda dos professores, em relacdo ao mimero de horas de uso da voz, costuma ser imensa, O ambiente de trabalho tende a ser inadequado: salas de aulas com péssimas condigdes aciisticas, extremamente ruidosas, sem ventilagao e classes com niimero exagerado de alunos. © trabalho costuma ser mal remunerado, 0 que obriga o professor a trabalhar em varios lugares (pré-escolas, creches, colégios, faculdades, cursinhos, etc.) simultaneamente, € alguns chegam a utilizar a voz por até dez horas didrias no exercicio docente. Em sintese: 0 excesso do uso, a dificuldade na projeciio da voz, a falta de consciéncia corporal e a busca de melhor remu- 18S Marta Assumpedo de Andrada e Silva neragdo avolumam as queixas vocais. Para o atendimento é importante conhe- cermos detalhadamente a natureza das aulas ministradas, quantidade ¢ idade dos alunos, condigGes fisicas e actisticas das salas de aulas e questOes relacionadas A savide geral do professor. Sem deixarmos de lado as conseqii¢ncias (psicosso- ciais) advindas da nao valorizagdo deste profissional no contexto brasileiro. Apesar do professor ser 0, profissional que mais nos procura, ainda sinto que podemos oferecer relativamente pouco para solucionar alguns de seus pro- blemas, precisando demonstrar uma maior efetividade no nosso atendimento. O paciente/professor ¢ aquele que costuma ter crises recorrentes de disfonia, e, em alguns casos, recidiva até a alteragdo orgdnica em pregas vocais apés longo tempo de terapia ou cirurgia. Portanto, este é um campo aberto para mais estudos e acompanhamento desse profissional que tem pouca consciéncia de como preservar seu principal instrumento de trabalho: sua voz. Leiloeiros Existem dois tipos de leiloeiros: de arte e rurais, os tiltimos se dividem em leilociros de cavalos e de gado. Esses profissionais t¢m um total desconhecimento do trabalho fonoaudiolégico na drea de voz. Os leiloeiros de arte costumam ter ‘um uso menos intenso porque utilizam a voz com menos freqii¢ncia e em am- bientes mais adequados (silenciosos e com ventilagdo adequada). Quanto aos Icilociros rurais, a demanda € enorme: os leildes duram de oito a dez horas seguidas, j4 que acontecem em diferentes cidades, ¢ os participantes viajam, em alguns casos, grandes distancias, para participar do evento e, portanto, necessitam aproveitar bem o tempo. Estes leilées acontecem a céu aberto na maioria das vezes, exigindo, apesar da amplificagfo sonora, uma adequada projegdo de voz. A prioridade no trabalho com a postura e a articulag#o € comum aos dois tipos de profissionais, ambos necessitam de precisio articulat6ria e suporte res- piratério, uma vez que o ritmo da fala € sempre acelerado. A voz nesta atividade passa a ter um “valor de mercado” relacionado & quantidade de vendas obtidas em um leildo, gerando também muita competitividade no ambiente profissional. 186 Voz profissional: novas perspectivas de atuagéo Vendedores Esta é uma 4rea muito interessante de atuagio, mas com auséncia de pes- quisas e/ou trabalhos significativos na 4rea fonoaudiolégica. Existem varias for- mas de atuacao nesse campo: vendedores de lojas, camelds, feirantes, vendedores ambulantes e outros, Na minha prdtica clinica, observo que os feirantes sao os que menos procuram o trabalho fonoaudiolégico, ficando a diivida se isso se d4 por desconhecimento do nosso trabalho e/ou por auséncia de dificuldades vocais, Em geral, os vendedores fazem um uso excessivo da voz, que é afetada também por ambientes extremamente ruidosos. Este profissional necessita de uma voz “sedutora” para convencer 0 consumidor a comprar até 0 que ele no precisa ‘ou mesmo nao deseja. O trabalho fonoaudioldgico precisa criar estratégias para permitir que esta voz possa agradar, seduzir ¢ convencer consumidores especffi- cos. Padres e pastores Na formagdo desses profissionais, nfo existe uma atengao especial para a preparagéo vocal. Cada religiéo com seus respectivos tipos de cultos exige pe- culiaridades no uso da voz. Nas Igrejas Catélicas, as de construgées mais antigas, existe uma qualidade acistica mais adequada em relago as construgdes mais recentes das Igrejas Evangélicas, onde a acistica costuma ser muito ruim. Isso porque, nas tiltimas, enormes espacos como cinemas ou supermercados sao trans- formados em locais de culto, sem passar por nenhum tratamento actstico pré A questio do louvor e da fé deve ser compreendida individualmente e inserida em cada forma de crenga. & diffcil para um terapeuta lidar com um paciente/pastor que argumenta que para louvar € preciso usar a voz “com forga”, com muito volume, em um tom muito agudo. Nesses casos é preciso buscar estratégias possfveis para utilizagao da voz “com forga, mas sem esforgo”, Em varias religides, costuma-se cantar durante 0 culto, ¢ esta variagdo entre a vor falada (na reza) e a voz cantada pode trazer problemas se houver dificuldades nas mudangas de ajustes, além disso, este canto religioso costuma ser de alta intensidade, com pitch muito agudo e com pausas restritas para respiragao. 187 | | Marta Assumpgdo de Andrada e Silva Cantores religiosos Esses cantores costumam utilizar um excesso de /oudness e um pitch muito agudo, portanto, necessitam dominar a técnica da voz cantada para evitar pre- juizos ao aparato vocal, Porém, neste grupo observa-se falta de conhecimento vocal, corporal e musical, A aparelhagem de amplificagfo sonora das Igrejas geralmente ndo € adequada, e as questdes j4 citadas quanto ao papel do canto como louvor e f€ também devem fazer parte da reflexio. Existem variagdes no estilo de canto de acordo com as religides. No Brasil, as Igrejas Evangélicas sio as que mais utilizam o canto da forma a que me referi acima, Na Igreja Catélica, 0 canto, apenas atualmente, esté retomando um papel importante dentro do culto, Na religiao judaica, 0 canto masculino utiliza solistas com um coro b4sico de fiéis com volume elevado, mas com predominio em regio grave, Algo semelhante acontece nas Igrejas Protestantes americanas, onde existe uma base vocal na regifio grave, bem pr6xima da regido da fala, e um solista (que normalmente utiliza um microfone), que domina a voz cantada, per- corre seguramente as regides médias e agudas. Cantores Iiricos (eruditos) No Brasil, no h4 tradigao na prética desta forma de canto, Existem poucos cantores Ifricos brasileiros de express4o nacional e/ou internacional, a misica cléssica € pouco divulgada e pouco escutada, ficando restrita a uma pequena parcela da populagao. O tempo de formagao desse profissional tende a ser muito longo, sendo necess4rio um minimo de oito anos para que o cantor erudito se torne profissional, € os custos desta formagio costumam ser altos. O cantor lirico precisa ter uma vida social muito “regrada”, com restri¢des alimentares, freqiientes repousos vocais e restrigdes na utilizagao da voz falada, enfim, cuidados minuciosos com a satide geral (fisico ¢ mental). Este excesso de cuidados e preocupagdes com a voz pode gerar prejufzos na vida social e psfquica deste profissional. Considerando que esta modalidade de cantor tem um enorme conhecimento do seu processo de produgio vocal, cabe ao fonoaudiélogo dar explicagdes detalhadas e claras de tudo 0 que acontece durante o processo tera- 188 Voz profissional: novas perspectivas de atwagao péutico. Fago aqui um agradecimento especial aos cantores Ifricos, meus pacien- tes, que muito me ensinaram neste universo da voz cantada. Cantores de coral Esta forma de canto também nfo possui tradicdo em nosso pats. Existe uma dificuldade na classificagao vocal dos coralistas, uma vez que esta andlise € normalmente realizada quando 0 individuo chega com o desejo de participar do coro. Assim, ela é realizada com a pessoa geralmente ansiosa e sem preparo yocal anterior. Parece-me que o ideal seria que esta classificagio vocal inicial fosse revista mais ou menos a cada seis meses, Geralmente, 0 coral € dividido m quatro vozes: duas femininas (soprano ¢ contralto) e duas masculinas (tenor e baixo). As vozes intermedidrias como mezzo soprano e barfiono sao “encaixa- das” nos grupos acima citados, causando danos quando se canta fora da tessitura. Como so varias vozes cantando ao mesmo tempo, ocorre uma falta de feed-back auditivo, dificultando a percepgio individual do esforgo ou excesso de volume da voz. Na maioria dos grupos, ocorre também uma falta de conhecimento inusical, dificultando a leitura de partituras, Em alguns coros, néo chega a ser realizado 0 aquecimento vocal antes do canto, 0 que prejudica especialmente aqueles que exercem outra atividade fora do coral, na qual usam demasiadamente a voz falada, na medida em que iniciam o canto com a voz previamente cansada. Cantores da noite Normalmente os cantores da noite tém uma grande variedade de estilos Tusicais, 0 que pode dificultar 0 bom desempenho no canto. Determinados estilos musicais exigem uma maior adequagiio e demanda do aparato vocal; por exemplo, na primeira voz das duplas sertanejas o pitch é muito agudo, exigindo um apoio respirat6rtio superior ao que acontece na bossa nova, na qual o pitch esté bem préximo da regio da fala, exigindo menos poténcia do fole pulmonar. Os abusos yocais como: ingerir 4lcool, fumar, dormir pouco, ter uma alimentagio irregular, nio praticar atividades fisicas, ndo realizar aquecimento e desaquecimento vocal, etc., séo bem freqiientes neste grupo, ¢, na minha opinido, estes aspectos sio 189 Marta Assumpgdo de Andradae Silva fundamentais numa terapia de voz com estes profissionais. Quando estamos tra- balhando com um cantor lirico, é raro encontrarmos estes tipos de abusos, pois este cantor, tendo consciéncia que estes habitos prejudicam a voz, imediatamente para de faz@-los. No caso dos cantores da noite, é muito diferente; eles nao sabem, de fato, quais sio os abusos vocais, c, mesmo depois de conhecé-los, tém muita dificuldade em larg4-los, devido 4 dependéncia destes vicios e ao ambiente de trabalho (bares, casas noturnas, sales de danga, etc.) onde comumente as pessoas estio praticando varios destes h4bitos. A auséncia de conhecimento musical formal, na grande maioria dos casos, est associada a dificuldades financeiras para o investimento na formagao pro- fissional, Os ambientes de trabalho costumam ser inadequados, com péssimas condigies de actistica e salubridade, assim como de aparelhagem de amplificagdo sonora, Esta categoria de cantor tem desaparecido das grandes metr6poles, nao € uma profissao valorizada pela sociedade; para grande parcela das pessoas, 0 cantor da noite esté cantando no bar porque cle nao fez sucesso ¢, se nao o fez, € porque ele ndo é um “bom” cantor. Sabemos que existem muitos outros fatores responséveis pelo sucesso ou nio de um cantor, e sua qualidade é apenas um fator, nao 6 o mais importante nem o determinante. Cantores populares Os cantores populares trabalham guiados por um mercado fonogrifico de grandes investimentos, oscilagdes e cobrangas. O cantor estd atrelado a metas e grandes expectativas de vendagem por parte da gravadora. A agenda de shows € ensaios pode ser demasiadamente estressante com vistas a0 sucesso de mercado. Nem sempre, apesar de investimentos em divulgagao e propaganda, o sucesso est4 garantido, j4 que este é regido por alguns “modismos” que chegam a sur- preender as proprias gravadoras. A empresa “aposta” naquela voz, ¢ 0 mercado a recebe efusivamente. Nesse sentido, a mfdia (imprensa escrita e falada) costuma ter uma influéncia muito forte no desempenho vocal de um cantor. Quando no dia da estréia do show de um novo CD sai uma critica destrutiva do cantor, como ser4 que ficaré sua voz no momento da apresentagio? 190 Vor profissional: novas perspectivas de atuagéo A gravadora que emprega 0 artista possibilita a realizagio de seus projetos, mas, por outro lado, faz exigéncias em relagdo ao cumprimento de prazos € 4 escolha do repertério. Conciliar a vida pessoal e a vida artfstica € outra tarefa dificil para o cantor popular, parece-me ser esta a chave importante para uma emissao segura e estruturada desta forma de canto. Conclusio Concluindo este artigo, deixo claro que nZo proponho solugées para um trabalho vocal especifico para o profissional da voz, mas levanto dados vivencia. dos na minha experiéncia profissional. Procurei exemplificar algumas das difi- culdades que foram recorrentes durante este percurso, pontuando as caracteristicas significativas de cada grupo. Espero com isso possibilitar novas reflexdes, assim como possibilitar a criagdo de mais estudos e pesquisas sobre 0 assunto, Resumo Este texto é um relato pessoal da experiéncia clinica de dez anos na Grea da voz profissional. Através de uma escrita informal, levanto minhas ditvidas ¢ proponho alguns questionamenios que envolvem o trabalho com este variado grupo de profissionais. A subjetividade estd claramente presente neste relato, uma vez que a drea de voz, apesar de todos os avangos tecnoldgicos na tentativa de quantificar e objetivar os achados, continua contando principalmente com o “olhar” e 0 “onvido” do terapeuta. O meu objetivo era descrever a minha atuagao. Palavras-chave: voz profissional, abordagens fonoaudiolégicas. Abstract This text is a personal description of my ten-year practice in the professional voice segment. I raise doubts and I propose some questions about practising with this variety of professionals in an informal way. Subjectivity appears in this description because despite all the technological progress in this segment, the 191 Marta Assump¢do de Andrada e Silva therapist’s feeling/insight is still very important. My aim was to describe my way of practising. Key-words: professional voice, therapeutic approaches. Referéncias bil iograficas SATALOFF, R.T. (1997). Professional Voice, the science and art of clinical care. 2 ed. San Diego, Singular Publishing Group. Bibliografia sugerida BENNINGER, M.S.; JACOBSON, B. medicine, the care and prevention of professional voice disorders. New York, ‘Thieme Medical Publishers. COSTA, H.O. e ANDRADA E SILVA, M.A. (1998). Voz cantada, evolugao, avaliagdo e terapia fonoaudiolégica. S40 Paulo, Lovise. FERREIRA, L.P. ; OLIVEIRA, I.B. ; QUINTEIRO, E.A. ; MORATO, E.M. (orgs.) (1995). Voz profissional: o profissional da voz. Carapicuiba, Pr6 Fono. ; JOHNSON, AF. (org.) (1994). Vocal arts Recebido em mail98; aprovado em ago/98 192

You might also like