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agressividade para o exterior, e que, no decorrer da vida, isso gradativamente se alterava. Mas talvez isso possa nao ser correto’. E justo acrescentar que, em sua carta seguinte, Freud escrevia: ‘Pego-lhe para nfo dar muito valor as minhas observagdes sobre o instinto de destruigdo. Elas sé foram feitas fortuitamente e teriam de ser cuidadosamente pensadas antes de publicadas. Ademais, pouco hd de novo nelas.” E ébvio, portanto, que O Mal-Estar na Civilizag@o € uma obra cujo interesse ultrapassa bastante a sociologia. Partes considerdveis da primeira traducdo (1930) do presente trabalho foram incluidas em Civilization, War and Death: Selections from Three Works by Sigmund Freud (1939, 26- 81), da autoria de Rickman. O MAL-ESTAR NA CIVILIZACAO E impossivel fugir 4 impressao de que as pessoas comumente empregam falsos padroes de avaliagiio - isto ¢, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida. No entanto, ao formular qualquer juizo geral desse tipo, corremos o risco de esquecer quao variados séio 0 mundo humano e sua vida mental. Existem certos homens que nao contam com a admiragdo de seus contemporaneos, embora a grandeza deles repouse em atributos e realizagées completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da multidao. Facilmente, poder-se-ia ficar inclinado a supor que, no final das contas, apenas uma minoria aprecia esses grandes homens, ao passo que a maioria pouco se importa com eles. Contudo, devido nao sé as discrepancias existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas agdes, como também A diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente nao sao tio simples assim. Um desses seres excepcionais refere-se a si mesmo como meu amigo nas carlas que me remete. Enviei-lhe o meu pequeno livro que trata a religido como sendo uma ilusao, e ele me respondeu que concordava inteiramente com esse meu juizo, lamentando, porém, que eu nio tivesse apreciado corretamente a verdadeira fonte da religiosidade. Esta, diz ele, consiste num sentimento peculiar, que ele mesmo jamais deixou de ter presente em si, que encontra confirmado por muitos outros e que pode imaginar atuante em milhdes de pessoas. Trata-se de um sentimento que ele gostaria de designar como uma sensagio de ‘eternidade’, um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras - ‘oceanico’, por assim dizer. Esse sentimento, acrescenta, configura um fato puramente subjetivo, e nio um artigo de fé; no traz consigo qualquer garantia de imortalidade pessoal, mas constitui a fonte da energia religiosa de que se apoderam as diversas Igrejas e sistemas religiosos, ¢ por eles veiculado para canais especificos e, indubitavelmente, também por eles exaurido, Acredita ele que uma pessoa, embora rejeite toda crenga ¢ toda ilusdo, pode corretamente chamar-se a si mesma de religiosa com fundamento apenas nesse sentimento oceanico.As opinides expressas por esse amigo que tanto respeito, e que outrora jé louvara a magia da iluso num poema, causaram- me nao pequena dificuldade, Nao consigo descobrir em mim esse sentimento ‘ocednico’. Nao € facil lidar cientificamente com sentimentos. Pode-se tentar descrever os seus sinais fisiologicos. Onde isso nao ¢ possivel - ¢ temo que também o sentimento oceénico desafie esse tipo de caracterizagao -, nada resta senao cair no contetido ideacional que, de forma mais imediata, esta associado ao sentimento. Se compreendi corretamente o meu amigo, ele quer significar, com esse sentimento, a mesma coisa que o consolo oferecido por um dramaturgo original e um tanto excéntrico ao seu herdi que enfrenta uma morte auto-infligida: ‘Nao podemos pular para fora deste mundo.Isso equivale a dizer que se trata do sentimento de um vinculo indissoliivel, de ser uno com o mundo externo como um todo. Posso observar que, para mim, isto parece, antes, algo da natureza de uma percep¢do intelectual, que, na verdade, pode vir acompanhada de um tom de sentimento, embora apenas da forma como este se acharia presente em qualquer outro ato de pensamento de igual aleance. Segundo minha propria experiéncia, n&o consegui convencer-me da natureza priméria desse sentimento; isso, porém, no me da o direito de negar que ele de fato ocorra em outras pessoas. A tinica questo consiste em verificar se est4 sendo corretamente interpretado e se deve ser encarado como a fons et origo de toda a necessidade de religiao. Nada tenho a sugerir que possa exercer influéncia decisiva na solugaio desse problema. A idéia de os homens receberem uma indicagdo de sua vinculagao com o mundo que os cerca por meio de um sentimento imediato que, desde o inicio, é dirigido para esse fim, soa de modo t&o estranho e se ajusta tio mal ao contexto de nossa psicologia, que se torna justificdvel a tentativa de descobrir uma explicagdo psicanalitica - isto ¢, genética - para esse sentimento. A linha de pensamento que se segue, sugere isso por si mesma. Normalmente, néo nada de que possamos estar mais certos do que do sentimento de nosso cu, do nosso proprio ego. O ego nos aparece como algo auténomo e unitdrio, distintamente demarcado de tudo o mais. Ser essa aparéncia enganadora - apesar de que, pelo contrério, 0 ego seja continuado para dentro, sem qualquer delimitagao nitida, por uma entidade mental inconsciente que designamos como id, 4 qual 0 ego serve como uma espécie de fachada -, configurou uma descoberta efetuada pela primeira vez através da pesquisa psicanalitica, que, de resto, ainda deve ter muito mais a nos dizer sobre o relacionamento do ego como id. No sentido do exterior, porém, o ego de qualquer modo, parece manter linhas de demarcagao bem e claras € nitidas. Ha somente um estado - indiscutivelmente fora o comum, embora nao possa estigmatizado como patolégico - em que ele nao se apresenta assim. No auge do sentimento de amor, a fronteira entre ego e objeto ameaga desaparecer.Contra todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache enamorado declara que ‘eu’ e ‘tu’ séo um 86, ¢ esta preparado para se conduzir como se isso constituisse um fato. Aquilo que pode ser temporariamente climinado por uma fungdo fisiolégica [isto é, normal] deve também, naturalmente, estar sujeito a perturbagdes causadas por processos patolégicos. A patologia nos familiarizou com grande nimero de estados em que as linhas fronteirigas entre 0 ego e 0 mundo externo se tornam incertas, ou nos quais, na realidade, elas se acham incorretamente tragadas. HA casos em que partes do proprio corpo de uma pessoa, inclusive partes de sua propria vida mental - suas percepgdes, pensamentos e sentimentos -, Ihe parecem estranhas e como nao pertencentes a seu ego; ha outros casos em que a pessoa atribui ao mundo externo coisas que claramente se originam em seu proprio ego e que por este deveriam ser reconhecidas. Assim, até mesmo o sentimento de nosso préprio ego esta sujeito a distirbios, cas fronteiras do ego ndo sao permanentes. Uma reflexdo mais apurada nos diz que 0 sentimento do ego do adulto nao pode ter sido 0 mesmo desde 0 inicio. Deve ter passado por um processo de desenvolvimento, que, se nio pode ser demonstrado, pode ser construido com um razoavel grau de probabilidade. Uma crianga recém-nascida ainda nao distingue 0 seu ego do mundo externo como fonte das sensagées que fluem sobre ela. Aprende gradativamente a fazé-lo, reagindo a diversos estimulos. Ela deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas fontes de excitag’o, que posteriormente identificaré como sendo os seus proprios érgaos corporais, poderem prové-la de sensagdes a qualquer momento, ao passo que, de tempos em tempos, outras fontes Ihe fogem - entre as quais se destaca a mais desejada de todas, 0 seio da mie -, sé reaparecendo como resultado de seus gritos de socorro. Desse modo, pela primeira vez, 0 ego é contrastado por um ‘objeto’, sob a forma de algo que existe ‘exteriormente’ e que 36 é forcado a surgir através de uma ago especial. Um outro incentivo para o desengajamento do ego com relagdo 4 massa geral de sensagdes - isto é, para o reconhecimento de um ‘exterior’, de um mundo externo - € proporcionado pelas freqiientes, miltiplas e inevitaveis sensagdes de sofrimento ¢ desprazer, cujo afastamento e cuja fuga so impostos pelo principio do prazer, no exercicio de seu irrestrito dominio. Surge, entéio, uma tendéncia a isolar do ego tudo que pode tornar-se fonte de tal desprazer, a langé-lo para fora e a criar um puro ego em busca de prazer, que sofre o confronto de um ‘exterior’ estranho ¢ ameagador. As fronteiras desse primitive ego em busca de prazer nao podem fugir a uma retificagéo através da experiéncia. Entretanto, algumas das coisas dificeis de serem abandonadas, por proporcionarem prazer, s4o, nao ego, mas objeto, ¢ certos softimentos que se procura extirpar mostram-se inseparaveis do ego, por causa de sua origem interna. Assim, acaba-se por aprender um processo através do qual, por meio de uma direcao deliberada das proprias atividades sensérias ¢ de uma agdo muscular apropriada, se pode diferenciar entre o que é interno - ou seja, que pertence ao ego - e 0 que é externo - ou seja, que emana do mundo externo. Desse modo, da-se 0 primeiro passo no sentido da introdugao do principio da realidade, que deve dominar o desenvolvimento futuro. Essa diferenciagio, naturalmente, serve a finalidade pratica de nos capacitar para a defesa contra sensagdes de desprazer que realmente sentimos ou pelas quais somos ameagados. A fim de desviar certas excitagdes desagradaveis que surgem do interior, 0 ego nao pode utilizar sendo os métodos que utiliza contra o desprazer oriundo do exterior, ¢ este ¢ 0 ponto de partida de importantes distirbios patolégicos.Desse modo, ent&o, 0 ego se separa do mundo externo. Ou, numa expressdio mais correta, originalmente o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo. Nosso presente sentimento do ego nao passa, portanto, de apenas um mirrado residuo de um sentimento muito mais inclusivo - na verdade, totalmente abrangente -, que corresponde a um vinculo mais intimo entre 0 ego eo mundo que o cerca. Supondo que hd muitas pessoas em cuja vida mental esse sentimento primario do ego persistiu em maior ou menor grau, ele existiria nelas ao lado do sentimento do ego mais estrito e mais nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu. Nesse caso, © contetido ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e 0 de um vinculo com o universo - as mesmas idéias com que meu amigo elucidou o sentimento ‘oceanico’. Contudo, terei eu o direito de presumir a sobrevivéncia de algo que j4 se encontrava originalmente 14, lado a lado com o que posteriormente dele se derivou? Sem divida, sim. Nada existe de estranho em tal fenémeno, tanto no campo mental como em qualquer outro. No reino animal, atemo-nos & opiniao de que as espécies mais altamente desenvolvidas se originaram das mais baixas; no entanto, ainda hoje, encontramos em existéncia todas as formas simples. A raga dos grandes sdurios se extinguiu e abriu caminho para os mamiferos; 0 crocodilo, porém, legitimo representante dos sdurios, ainda vive entre nés. Essa analogia pode ser excessivamente remota, além de debilitada pela circunstancia de as espécies inferiores sobreviventes nao serem, em sua maioria, os verdadeiros ancestrais das espécies mais altamente desenvolvidas dos dias atuais, Via de regra, os elos intermedidrios extinguiram-se, ¢ s6 os conhecemos através de reconstrugdes. No dominio da mente, por sua vez, 0 elemento primitivo se mostra téo comumente preservado, ao lado da versio transformada que dele surgiu, que se faz desnecessério fornecer exemplos como prova. Quando isso ocorre, é geralmente em conseqiiéncia de uma divergéncia no desenvolvimento: determinada parte (no sentido quantitativo) de uma atitude ou de um impulso instintivo permaneceu inalterada, ao passo que outra sofreu um desenvolvimento ulterior. Esse fato nos conduz ao problema mais geral da preservagao na esfera da mente. O assunto mal foi estudado ainda, mas tio atraente e importante, que nos ser permitido voltarmos um pouco nossa atengao para ele, ainda que nossa desculpa seja insuficiente. Desde que superamos o erro de supor que o esquecimento com que nos achamos familiarizados significava a destruigao do residuo mnémico - isto é, a sua aniquilacao -, ficamos inclinados a assumir o ponto de vista oposto, ou seja, o de que, na vida mental, nada do que uma vez se formou pode perecer - 0 de que tudo é, de alguma maneira, preservado que, em circunstancias apropriadas (quando, por exemplo, a regressao volta suficientemente atrds), pode ser trazido de novo a luz. Tentemos aprender 0 que essa suposigao envolve, estabelecendo uma analogia com outro campo, Escolheremos como exemplo a historia da Cidade Eterna. Os historiadores nos dizem que a Roma mais antiga foi a Roma Quadrata, uma povoagao sediada sobre o Palatino. Seguiu-se a fase dos Septimontium, uma federagao das povoagées das diferentes colinas; depois, veio a cidade limitada pelo Muro de Sérvio e, mais tarde ainda, apés todas as transformagdes ocorridas durante os periodos da reptblica e dos primeiros césares, a cidade que o imperador Aureliano cercou com as suas muralhas. Nao acompanharemos mais as modificagdes por que a cidade passou; perguntar-nos-emos, porém, © quanto um visitante, que imaginaremos munido do mais completo conhecimento histérico e topogréfico, ainda pode encontrar, na Roma de hoje, de tudo que restou dessas primeiras etapas. A exceg’o de umas poucas brechas, veré o Muro de Aureliano quase intacto. Em certas partes, poderd encontrar segdes do Muro de Sérvio que foram escavadas € trazidas a luz. Se souber bastante - mais do que a arqueologia atual conhece -, talvez possa tracar na planta da cidade todo o perimetro desse muro ¢ 0 contorno da Roma Quadrata. Dos prédios que outrora ocuparam essa antiga 4rea, nada encontrard, ou, quando muito, restos escassos, j4 que ndo existem mais. No maximo, as melhores informagdes sobre a Roma da era republicana capacitariam-no apenas a indicar os locais em que os templos e edificios publicos daquele periodo se erguiam. Seu sitio acha-se hoje tomado por ruinas, nao pelas ruinas deles proprios, mas pelas de restauragées posteriores, efetuadas apés incéndios ou outros tipos de destruigao. Também faz-se necessario observar que todos esses remanescentes da Roma antiga esto mesclados com a confusdo de uma grande metrépole, que se desenvolveu muito nos tiltimos séculos, a partir da Renascenga. Sem ditvida, jA ndo ha nada que seja antigo, enterrado no solo da cidade ou sob os edificios modernos. Este ¢ 0 modo como se preserva 0 passado em sitios histéricos como Roma. Permitam-nos agora, num véo da imaginagdo, supor que Roma nao é uma habitac¢ao humana, mas uma entidade psiquica, com um passado semelhantemente longo e abundante - isto ¢, uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente wltima. Isso significaria que, em Roma, os palacios dos césares ¢ as Septizonium de Sétimo Severo ainda se estariam erguendo em sua antiga altura sobre 0 Palatino e que o castelo de Santo Angelo ainda apresentaria em suas ameias as belas estdtuas que o adornavam até a época do cerco pelos godos, e assim por diante. Mais do que isso: no local ocupado pelo Palazzo Cafarelli, mais uma vez se ergueria - sem que o Palazzo tivesse de ser removido - 0 Templo de Jupiter Capitolino, néo apenas em sua tltima forma, como os romanos do Império o viam, mas também na primitiva, quando apresentava formas etruscas ¢ era ornamentado por antefixas de terracota. Ao mesmo tempo, onde hoje se ergue © Coliseu, poderiamos admirar a desaparecida Casa Dourada, de Nero. Na Praga do Panteao encontrariamos nao apenas 0 atual, tal como legado por Adriano, mas, ai mesmo, 0 edificio original levantado por Agripa; na verdade, 0 mesmo trecho de terreno estaria sustentando a Igreja de Santa Maria sobre Minerva e o antigo templo sobre o qual ela foi construida. E talvez o observador tivesse apenas de mudar a dire¢do do olhar ou a sua posigdio para invocar uma visdo ou a outra. A essa altura nao faz sentido prolongarmos nossa fantasia, de uma vez que ela conduz a coisas inimaginaveis e mesmo absurdas. Se quisermos representar a seqiiéncia historica em termos espaciais, 6 conseguiremos fazé-lo pela justaposigdo no espago: 0 mesmo espago nao pode ter dois contetidos diferentes. Nossa tentativa parece ser um jogo ocioso. Ela conta com apenas uma justificativa. Mostra qudo longe estamos de dominar as caracteristicas da vida mental através de sua representagdo em termos pictdricos. Hé outra objegio a ser considerada. Pode-se levantar a questo da razio por que escolhemos precisamente 0 passado de uma cidade para compard-lo com o passado da mente. A suposigo de que tudo o que passou é preservado se aplica, mesmo na vida mental, s6 com a condigao de que 0 érgio da mente tenha permanecido intacto ¢ que seus tecidos no tenham sido danificados por trauma ou inflamagdo. Mas influéncias destrutivas que possam ser comparadas a causas de enfermidade como as citadas acima nunca faltam na histéria de uma cidade, ainda que tenha tido um passado menos diversificado que 0 de Roma, ¢ ainda que, como Londres, mal tenha sofrido com as visitas de um inimigo. Demoligdes e substituigdes de prédios ocorrem no decorrer do mais pacifico desenvolvimento de uma cidade. Uma cidade é, portant, a priori, inapropriada para uma comparagao desse tipo com um organismo mental. Curvamo-nos ante essa objegaio e, abandonando nossa tentativa de esbocar um contraste impressivo, nos voltaremos para o que, afinal de contas, constitui um objeto de comparagdo mais estreitamente relacionado: 0 corpo de um animal ou o de um ser humano. Aqui também, no entanto, encontramos a mesma coisa. As primeiras fases do desenvolvimento jé ndo se acham, em sentido algum, preservadas; foram absorvidas pelas fases posteriores, as quais forneceram material. O embridio nao pode ser descoberto no adulto. A glndula do timo da infancia, sendo substituida, apés a puberdade, por tecidos de ligagao, ndo mais se apresenta como tal; nas medulas dsseas do homem adulto posso, sem diivida, tragar o contorno do osso infantil, embora este tenha desaparecido, alongando-se ¢ espessando-se até atingir sua forma definitiva. Permanecem o fato de que sé na mente & possivel a preservacao de todas as etapas anteriores, lado a lado com a forma final, ¢ 0 de que niio estamos em condigdes de representar esse fenémeno em termos pictéricos. Talvez estejamos levando longe demais essa reflexdo. Talvez devéssemos contentar-nos em afirmar que o que se passou na vida mental pode ser preservado, nao sendo, necessariamente, destruido. E sempre possivel que, mesmo na mente, algo do que é antigo seja apagado ou absorvido - quer no curso normal das coisas, quer como excegio - a tal ponto, que nao possa ser restaurado nem revivescido por meio algum, ou que a preservacao em geral dependa de certas condigdes favoraveis. E possivel, mas nada sabemos a esse respeito. Podemos apenas prender-nos ao fato de ser antes regra, e néio excegdo, 0 passado achar-se preservado na vida mental. Assim, estamos perfeitamente dispostos a reconhecer que o sentimento ‘oceanico’ existe em muitas pessoas, ¢ nos inclinamos a fazer sua origem remontar a uma fase primitiva do sentimento do ego. Surge eno uma nova questo: que dircito tem esse sentimento de ser considerado como a fonte das necessidades religiosas. Esse direito no me parece obrigatério. Afinal de contas, um sentimento sé poderd ser fonte de energia se ele proprio for expresso de uma necessidade intensa, A derivagiio das necessidades religiosas, a partir do desamparo do bebé e do anseio pelo pai que aquela necessidade desperta, parece-me incontrovertivel, desde que, em particular, o sentimento nao seja simplesmente prolongado a partir dos dias da infincia, mas permanentemente sustentado pelo medo do poder superior do Destino, Nao consigo pensar em nenhuma necessidade da infincia to intensa quanto a da protegao de um pai. Dessa maneira, o papel desempenhado pelo sentimento ocednico, que poderia buscar algo como a restauragao do narcisismo ilimitado, ¢ deslocado de um lugar em primeiro plano. A origem da atitude religiosa pode ser remontada, em linhas muito claras, até o sentimento de desamparo infantil. Pode haver algo mais por tras disso, mas, presentemente, ainda esta envolto em obscuridade. Posso imaginar que o sentimento ocednico se tenha vinculado a religido posteriormente. A ‘unidade com o universo’, que constitui seu contedo ideacional, soa como uma primeira tentativa de consolagdo religiosa, como se configurasse uma outra maneira de rejeitar 0 perigo que o ego reconhece a ameagé-lo a partir do mundo externo. Permitam-me admitir mais uma vez que para mim é muito dificil trabalhar com essas quantidades quase intangiveis. Outro amigo meu, cuja insaciavel vontade de saber o levou a realizar as experiéncias mais inusitadas, acabando por lhe dar um conhecimento enciclopédico, assegurou-me que, através das praticas de ioga, pelo afastamento do mundo, pela fixacdo da atengdo nas fungdes corporais e por métodos peculiares de respiragdo, uma pessoa pode de fato evocar em si mesma novas sensagdes e cenestesias, consideradas estas como regressdes a estados primordiais da mente que ha muito tempo foram recobertos. Ele vé nesses estados uma base, por assim dizer fisiolégica, de grande parte da sabedoria do misticismo. Nao seria dificil descobrir aqui vinculagdes com certo numero de obscuras modificagdes da vida mental, tais como os transes ¢ os éxtases. Contudo, sou levado a exclamar, como nas palavras do mergulhador de Schiller: ‘...Es freue sich, Wer da atmet im rosigten Licht.” I Em meu trabalho O Futuro de uma Ilusdo [1927c], estava muito menos interessado nas fontes mais profundas do sentimento religioso do que naquilo que o homem comum entende como sua religido - o sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, Ihe explicam os enigmas deste mundo com perfeigio invejavel, ¢ que, por outro, Ihe garantem que uma Providéneia cuidadosa velaré por sua vida e 0 compensard, numa existéncia futura, de quaisquer frustragdes que tenha experimentado aqui. O homem comum s6 pode imaginar essa Providéncia sob a figura de um pai ilimitadamente engrandecido. Apenas um ser desse tipo

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