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___Mario de Carvalho a S4 335 at [EGE de Abril A Colecgdo Caminho de Abril resulta de uma iniciativa da Editorial Caminho com vista a assinalar 0 25.° Anivers4rio do 25 de Abril. Para a materializar, convidou a editora um conjunto de autores, quase to- dos habitualmente publicados pela Caminho, a escre- ver um texto de ficgo que tivesse como tema, de forma directa ou indirecta, 0 25 de Abril de 1974. Trata-se de uma colecgio «fechada», isto €, encerra com os titulos publicados, todos apresentados ao piblico na mesma data, o més de Abril de 1999. resultado aqui esté, como se pode ver na lista- ‘gem a seguir apresentada. O piblico apreciaré a rique- za e diversidade com que os autores desenvolvem 0 tema, Resta & editora agradecer a todos os autores que para esta colecgéo nos entregaram os seus textos, ¢ tam- bém aqueles que, por razdes de circunsténcia, se viram. impossibilitados de colaborar ‘ALexaNDRE PINHEIRO TORRES Amor s6 Amor, Tudo Amor Auce Vieira Vine Cinco a Sete Vo Apuros we Cinco a Sete Voxes de Um Austin, Fania A Revivavlia Pessimista ‘Cantos Barro em Fuga Valea Pena ‘er Esperanga Germano ALMEIDA ‘Dona Pura ¢ 05 Camaradas de Abril MANUEL ALEGRE Uma Carga de Cavalaria Maa Isaaet. BARRENO As Vésperas Esquecidas ‘Mano DE CARVALHO Apuros de Um Pessimista em Fuga Mia Couto Vinte e Zinco StzasTiA0 SALGADO Um Fotégrafo em Abril ‘Urwawo Tavares Ropricus O Dia Ultimo e 0 Primeiro lr ey 135 2+ Mario de Carvalho Apuros de Um Pessimista em Fuga de Abril Wh €aanii ‘APUROS DE UM PESSIMISTA EM FUGA, ‘Autor: Mitio de Carvalho Design grfico dusragto da capa: Jost Seto © Editorial Caminho, SA, Lisbos — 1999 Impressdo acakamento: Tipografia Lousanense, Data de impresso: Margo de 1999 apésia legal n° 134 012099 ISBN 97221-1200 ‘wor editral-camiaho.pt O dor, 6 dor, o tempo manja a vida, concluso vate? Tem dias. O tempo hoje empata a vida, nao sei se 2 poupa, se a rejeita, eu a pasmar. Antes, hipnético, ma devorasse, como é vezeiro. Mas arrasta-se, 0 pastoso, animaleja sobre milhentos finfssimos pedinculos e no me consente adian- te, nem ver ao de 14. Com as suas alongadas escorréncias, trilho de mfseras poalhas, o rastejo lerdissimo dos instantes cerca-me no castelo da Madorna. E vai-me tendo, inerme, ao dispor, a descoberto ¢ sem saber. A preparar-me 0 qué? Pudera eu rasurar estas supérfluas horas que me faltam para a formula salvadora, 0 conforto duma ‘vor amiga, até mesmo a aspereza duma desiluséo. Ou para a consumagio resignada do pior firal to | MaR10 DE CARVALHO para este transe, entdo ainda mais indtil. Quem me dera deixar de viver o entretanto, apagando- -se agora o tempo para se reacender quando con- viesse. A vacuidade de o ir sofrendo. O desconfor- to do que pode ocorrer-me enquanto presencio a monotonia do inelutavel transcurso. Seco, des- cai o ponteiro luminoso do tablier e fica-se a vi- brar ainda. Sete horas, quatrocentos e vinte minutos, de permeio até. Reclino-me. Fecho os olhos. Nao ha dormir. Nao iludo o tempo. Vai- -se-me ele, indiferente, desenroscando, com va- gar, ao alcance dos sentidos. Com este cansago 08 inimigos cobram um dia de avango, no caso, provavel, de me levarem. Na minha contabili- dade prisional jé se averba mais um dia aos dias sem sono que vierem. O tempo aleijado, tempo limpen, tecedor de enredos, vagabundo falso, cémplice traigoeiro deles. Virei a sofrer aluci- nagées, como € de regra? Estou debaixo da asa de um hidroaviéo. Alguém me bate no vidro. Mau! APUROS OF UM PESsiMISTA EM FUGA|m O aniincio, no Didrio de Noticias, dizia: «Fiat quinhentos azul... Vende-se. Proprio. Estado ra- xodvel.» O manuscrito dizia: «P Essa cabina esta avariada?» «R. Hé um telégrafo nos correios.» Se- guia-se uma indicaco tola: «Trards 0 casaco do- brado no braco direito.» Acima, quatro fiadas de rntimeros miudinhos, de ler & lupa, muito chega- dos, quase apagados, 3; 12; 46..., referidos a uma pagina da Biblia. Marcavam dia, hora e local. Meia folha de bloco quadriculada. Tamanho duma carteira de f6sforos. Textura teimosa de almago. Resistente aos dentes quando foi masti- gada e engolida, a seco, instantes depois de to- car pela segunda vez a campainha da porta. Interruptor esquivo, dangando no fio, furtando- -se aos dedos. Luz. «Marilia, Marilia!», chamo. Que nao estava If, nem havia que estar. A col- cha lisa, daquele lado da cama, a almofada into- cada, a remanescente estranheza duma desolada auséncia. O despertador marcava seis ¢ trinta ¢ dois. Quem havia de ser? O papel amassado numa bola e mal deglutido, os molares a rilhar, sabor a podre, salgado, uma aspereza na gargan- ta, Répido, o atrapalho das meias, zune e estala © cinto, os botdes revoltam-se. Esperem, esperem, no por mim. Uma mao afastou o caixilho de alu- mfnio, a outra, desajeitada, procura uma manga rebelde do casaco. Frio, o ar Ainda a campainha a retinir ou jé a reminiscéncia disso, que, por si, alarma, incomoda e déi. Dois passos pelo ressalto do paredio, tantas vezes imaginados, nunca ten- tados. Pulo. Baque. Terra mole. As pegadas que ficam. A pista que Ihes deixo. Um jeito initil no cinto torcido. Marcha medida, pausada, no rel- vado, rés &s sombras. Os joelhos para cima como 0 indios. Maos de cego, adiante. Orvalhados os trevos impregnando-me os sapatos. Cabeca le- vantada, um pé, depois outro. Ruidos atrés, uma portada que se abria? © clario duma luz? Mais uns pasos, mais uns pasos. Uma massa de negru- me musguento mais préxima. As mios fincadas no muro. Aspereza de lixa. O esforco, o falhan- 0, novo impulso. O craveiro pisado, a terra acalcada, upa! Um olhar, j4 estendido na horizon- tal do muro. As luzes do meu quarto todas aber- tas. Relance dum vulto a passar pela quadricula da janela, para além das cortinas. Bi-los Ié. Agora corria pela rua de trés, golpes sono- ros atabalhoados dos sapatos no empedrado. © Taunus dormindo, coberto de goticulas, a luz tardia do candeeiro dispersada pela carrogaria em reflexos granulados, j4 mortigos pela concorrén- cia clara da manha, a manga do casaco molha- da, dos rogagos ao acaso, a chave a tremer ¢ a néo querer entrar na fechadura do carro. Caio sobre 0 assento, baque seco da porta, capaz de se ouvir em Faro. Ao contacto, estranho o plastico do volante, éspero da poeira e da humidade. Enfim, o as, todo! Relincho renitente da ignigio, estrondeio do motor. Sobressaltei o bairro. Toda a Lisboa ouviu, todas as janelas se absem, a es- c6ria da cidade acorre de todas as russ, berram sirenes, ribombam sinos, estridulam clarins nos quartéis. Sao aos milhares. Ululam, cercam. Cal- ma! Engatar a primeira, vA! Ao dobrar a esquina, num relance, pelo retrovisor, vejo um homem de pernas abertas no meio da rua, gestos afastados de mios. Calvo, novo, de fato completo, escuro, olhos para o alto, olhos para c4, olhos para 0 lado. Hite ficou, de mos esticadas para cada lado, como depois duma danga, nos trés derradeiros tempos dum sapa- teado. Que estaria ali a fazer, que gesticulagéo aquela, bailante? Ou imaginagao minha a com- por um transeunte hostil? ‘Vou, muito obediente, a0 sabor dos malditos sinais de sentido proibido. Frio, 0 motor tosse. Ruas, ruas, ruas. Afasto-me, circunvago, aproxi- mo-me, afasto-me. E 0 Ford preto que agora me vem no encalco, grelha reluzente, fardis de aros inox, a colar-se-me a retaguarda? E como se sen- tise um bafo atrés. Maligno. Descobriram-me? Vai bater? Virou, soturno, a direita. Da esquina, & minha frente abrando donai- roso desliza, na sua escura bicicleta pasteleira, o homem do pao. Camisa branca, aberta, calcas de sarja, curtas, sandélias de andarilho, olhar fito em frente, a cumprir o seu circuito. Na cabega, um quico militar camuflado, jé muito desbotado, de quem andou por 14. A cinta, a sebenta carteira de couro dos trocos. As mos tocam levemente © guiador, as pernas basculam, regulares, sem esforgo, como se estivessem articuladas & roda, com arames, A maneira dos brinquedos de pau, das feiras. Deixou-me um olhar répido, distraido mover de pélpebra, a medir as distincias, e pe- dala agora & minha frente, encoberto pelo enor- me cesto do piio, em forma de berco. O cesto oscila, & cadéncia dos pedais. Deve ranger, aquela verga entrangada, jé muito encardida. A minha urgéncia tem de se conformar com 0 andamen- to ao ritmo regular e repousado de quem faz a vidinha de todos os dias. Talvez ele assobie. Eu em panico, retido, ele a assobiar as cangonetas da moda. A rua € dele. Insinua-se uma pequena raiva contra os que, sem percalgos, cumprem 0 seu pequeno destino, empatando-me enquanto eu fujo, na luta por um destino em grande. ‘A meio do tablier, esbocarra-se um recténgu- lo negro e fundo, donde assomam fios eléctricos retorcidos, com brilhos de cobre descarnado, a vibrar Ocorre-me 0 furto do radio e desfaz-se 0 automatismo descontraido de premir teclas. Nao haverd miisica. Mais uma injusta contrariedade, na manhé das injustigas. Penugens de plastico erigam-se no rebordo violentado, enquadrando um negrume hostil que deixa entrever barras de ferro e rebites. Roubaram-me o rédio anteontem. Era um aparelho barato. Nem fiz queixa. Inc6- moda, sim, foi a sensagio de ver o meu espago devassado, 0 porta-luvas remexido e de sentir a presenca de estranhos a assenhorear-se dos meus ball eeaetot eerste lugares, impregnando-os das suas particulas pré- prias. O mesmo acontecia na minha casa, neste preciso momento. Profanagio. Turbuléncia de pa- péis, livros derribados, intimidades violadas, vo- zes, gracolas. Luz verde, af vai o padeiro, a recolher a san- dilia do asfalto ¢ a lancar-se para a direita, em mais esforgo, que é a subir. Ala, trabalhador, nunca na vida imaginards que neste velho carro, ¢ transido de medo, resiste, prestes a cair, um dos que se escandalizam com a tua quotidiana humi- Ihacéo, e te querem restituir, qualquer dia, uma dignidade que tu nem sabes que poderias tez Um dos teus procuradores, um dos teus representan- tes, que tu ndo escolheste, mas que te escolhe- ram, por isso merecedor de respeito, de uma saudagio amiga, de um sorriso discreto e ctimpli- ce. Vai, vai, trabalhador, que eu te contemplo e guardo, assim tu me guardasses a mim... Enfim, a Avenida Almirante Reis. Descer, descer para jé, até ao Tejo que lava a cidade de mégoas. Mas o Ford negro assoma outra vez, ago- ra & minha frente, e retarda-se, empata-me, na faixa da esquerda. Sem nenhuma razéo aparen- te, cintila, uma e duas vezes, o sinal de travagem. Apunos pe um pessimists EM PUGAl a Hé trés homens lé dentro. Um deles, o de trds, usa chapéu de aba larga. Nao se voltam, no me olham, é suspeito! Amanhece. J4 uma tira de sol abrasa em fulvo um vidro alto, num prédio. Ao passar a Alameda um Volkswagen verde faz fais- car os médios. Para qué? E um sinal, meu Deus, € um sinal! Virar & direita, virar 8 direita, no Chile. © Ford prosseguiu pela Almirante Reis, mas intimeros autom6veis aplicam-se a marcar- -me a posi¢ao e a vir no meu encalgo. Eu sou um pobre empregado de editora, 0 meu trabalho clandestino fica-se pelas coopera- tivas de consumo e pelos cineclubes, eu néo merego tudo isto. Por que € que aquele Renault branco inverteu a marcha, € 0 Fiat 600 despon- tou do estacionamento logo depois de eu passar? Um homem que vinha caminhando a pé, pelo Largo do Leo, consultou o relégio no instante em que eu cruzei. Na paragem de autocarro um, agente da Guarda Republicana saiu e olhou para mim, depois para baixo, decerto a fixar-me a matricula, Um camifo faz descarga na Rovisco Pais. Paro. Querem atardar-me. Se protesto, dir- -me-Go, «eu estou a trabalhar!». O Renault de- sapareceu, mas vem-me no encalgo um descapo- 18 [winso ve canvarwo tavel com trés jovens de cabelos compridos, de uma irrequietude suspeita. O inimigo tem mapas, microfones, comunicadores, contactos radio, nfo me deixa em paz, ndo me dé espago. Os trés jo- vens desaparecem no Arco do Cego, mas este senhor de 6culos que surge agora a conduzir um Citroén dois cavalos restabeleceu 0 contacto, nesta monstruosa malha que me confina. Semé- foros avariados. Um policia sinaleiro reordena 0 trnsito. Conheceu-me. Fitou olhos em mim, com um ar de caso, sem conseguir disfarcar. Estou localizado. Em qualquer lado, hé um mapa enor- me, esticado sobre uma mesa, numa enorme sala silenciosa, e alguém vai empurrando com um taco um simulacro de madeira do meu Tanenus, esquina apés esquina, Renault apés Renault, po- Iicia epés policia. Nao querem prender-me. Que- tem saber aonde € que eu os posso levar. Toda a Lisboa atrés do pobre de mim. O dinheiro que estiio a gastar comigo. E eu sou tao insignifican- te. Para a direita na Cinco de Outubro, pare a esquerda, va! Os pneus rechinam, Quem me dera na Avenida de Ceuta, na Marginal, onde corro agora, Ninguém? Estardo a seguir-me a distancia? Eia, o mar salgado! Caxias, com o Forte, alvadio, 14 em cima e a minha cela de isolamento, atrés de roligas grades ocas, Acelero. Eis que rodo de- safogado. Saf da malha? Na Parede transgrido. Inverséo de marcha, por cima do trago continuo. Espanto indignado dum pescador de linha. Nin- guém atrés? Deixo passar 0 camido de mudangas. Desaparece. Perderam-me? £ dia claro. E, por ora, eis-me talvez safo, as voltas pela Baixa, a tentar coordenar o espirito e os sentidos. ‘Transito. Buzinas. Magotes de gente. Desvario de olhares. Tropeada de passos. Toda a gente sabe para onde vai, menos eu. © bramido duma sirene qualquer. As lojas ainda nao abriram. Caixeiros esperam pelos patrées & porta dos pré-fabricados do Martim Moniz. Uma mulher, de lengo preto, varre 0 passeio, com uma lentidéo de ir fazendo. Turistas de roupa amarela e azul, frente ao Mun- dial, entram, divertidos e ruidosos, para 0 auto- carro que os hé-de levar aos quatro castelos. Camisas as florinhas, mui tropicais de palmeiras. Cambada de alarves. Nao sabem de nada. «Que- rem-me prender! Ouviram? Querem-me pren- der!» «Oh, yes, tipical.» Flash! Desco a Rua Augusta. Olé, arco triunfal, re- l6gio parado, sinal dos tempos, a estagnada vir- 9 tude dos nossos maiores, de costas. Comeco a pensar, atropelam-se os dilemas. Tanta policia atrés de mim, hé bocado, e deu em nada. Des- compassada imaginagao. Fora eu um heréi, dota- do de sangue-frio, nao delirava de egocentrismo. Insinua-se um ligeirissimo despeito ao verificar que afinal ninguém se deu ao trabalho de me perseguir. Eu considerei-me insignificante, néo foi? Leram-me o pensamento, deram-me razio. Estou por minha conta. O anonimato libertador do engarrafamento. O enleio claustrofébico do engarrafamento. Nao se pode ter tudo. Hé que definir uma tactica de sobrevivéncia, bem pen- sada. Primeiras disposigdes. Estacionar 0 carro, tomar um café e reflecti. Santa Apol6nia. Gaita! Aqui hé sempre Pide. Subo uma rampa, o Estado- -Maior do Exército, de garbosos lanceiros & porta. A esquerda, uma pequena tasca, num recanto gradeado. Estacionar, comprar o jornal, instalar- “me, para ja. Este vai ser por momentos o meu territério, o meu centro de operacées. Deixei 0 carro, sorvi um café e segui a pé, para Santa Clara. «Estés a ouvir?» Pergunta ociosa, ele estava a ouvir era de mais. Deixou a caneta suspensa no ax, entre dois dedos, e ficou a contemplar-me, de boca entreaberta e olhos assombrados. Voltou depois a cara para um e outro lado do balcao e Ievantou-se. Demasiado brusco, desabou sobre a cadeira. LA se endireitou. Com um gesto ataran- tado da caneta pediu-me siléncio. Estendeu a mo, o que parecia dizer, «espera!» e a mao tre- mia. Contomou o baledo, deixando, a cada pas- sagem, sorrisos pequeninos de desculpa e veio ter comigo. Afastou-me para a sombra dum cabide metélico que fazia lembrar um célebre secador de garrafas. «Nao fales alto, por favor, nao fales alto.» Eu apenas tinha sussurrado, comportando- -me como um vulgar cliente, com um impresso bancério entre os dedos: «Escuta: a policia foi a minha casa, hoje.» «Que espiga, ha?», segredava o meu primo Antunes, contristado, recolhido e cimplice e, Jogo, alto, para um sujeito que passava: «Bom dia, senhor doutor, é s6 um segundo e sou todo seu.» Saltaram as perguntas, em cachéo: «Tens a cer- teza?», «Como te safaste?», «Nao foste seguido?» Eu preferia que ele me tivesse dito: «Que é que aa |wirto ve CARVALHO eu posso fazer por ti?», mas o que ouvi, foi: «Nao devias ter vindo aqui! E perigoso!» «Nao tenho sitio para onde ir, preciso de me esconder, pelo menos até amanhi.» «Mas 0 que € que eu posso fazer? A tua prima desconfia logo. E os mitidos! Além disso conheces a minha casa, nao hé espa- 0. Os teus camaradas, nao te ajudam?> «Acho que est4 tudo preso.» Fui sincero, abusador e pouco diplomata. Antunes estava aterrorizado. Deu-lhe para breve e seco, inusual. «Clha, vai para uma pensio. Se € por pouco tempo. Tens dinheiro? Eu empresto-te dinheiro.» Apalpou, numa sarabanda, os bolsos. Estava em colete. Ao aperceber-se do burlesco do gesto, olhou em vol- ta, com medo de que alguém o observasse. «Es- tdo A minha espera», informou. «Adeus Antunes, passa bem», respondi. «Ts, sempre metido nessas merdas.» Deixei-o encostado ao cabide, reflexi- vo, a esfregar a cara com a esferografica. E vi-me na rua, de novo, ao desamparo, entre o chiar dos eléctricos, presa do ridiculo de ter feito figura de parvo. Inspiragao infeliz, a de recorrer aquele imbecil pela mera circunstancia de ele trabalhar num banco, na Rua da Graga, ali a mao. Em cir cunstncias normais, o primo Antunes até nem se mostrava mau tipo. Reproduzia boatos optimis- tas e contava anedotas contra o regime nas fes- tas de familia. Na hora da verdade, foi o que se viu, e era, afinal, de prever. No Cinema Royal o cartaz anunciava Niipcias Vermelhas, de Chabrol, com Michel Piccoli e Vina Lisi. As quinze e as vinte € uma e trinta, Nao dava jeito. Eu tinha trocado dinheiro na capelista da Rua da Verénica, frente ao Liceu de Gil Vicen- te. A mulher, rebugada num xaile de 14, habitua- da a tratar com os mocos pequenos, resmungou quando Ihe dei cem escudos para pagar o Digrio de Noticias. Teve de recorrer a um saquinho de plastico com moedas que trouxe da arrecadacao, muito querido, apertado ao peito vasto. Nao sei bem porqué, senti-me, por instantes, defendido, no meio dos rapazes que chegavam ao liceu, em grandes grupos, ¢ largavam agora em correrias, a0 som da campainha. Era como se aquela expan- sio de alegria, tumultuosa e desvairada, me pro- tegesse dos circuitos a cumprir, na desconfortavel indecisdo da escolha por dilemas. Logo ao cair das nove telefonei para a edi- tora, duma cabina na Rua da Senhora da Gloria. Atendeu-me a expedita Alda. «Sou eu!» Alda, que logo me conheceu a voz: «Ah, néo, ainda nao temos as provas, talvez amanhé, volte a te- lefonar, por favor!» «Alda, alguma novidade?» «Estamos cheios de movimento, bem vé!» O te- lefone brutalmente desligado, 0 traco continuo do sinal sonoro. Eles estavam la! Outra vez aque- la sensagao de frio fino a atravessar-me 0 corpo € a ctispar-me os miisculos. Depois ocorreu-me a triste ideia de ir procurar o meu primo, ideia que me pareceu, na altura, um ovo de Colombo. Era improvavel que a Policia vigiasse o primo Antunes que toda a sua vida se havia mostrado reverenciador e obrigado. Mas eles tinham boas raz6es para nao se incomodar com o Antunes. As mesmas que me levavam a arrepender-me agora. Fara que amigos havia de telefonar eu, que niio tivessem o telefone vigiado? Qualquer passo mal pensado, qualquer movimento mal previsto, da minha responsabilidade, poderia comprome- ter, ou, pelo menos, importunar outros. Neste momento, a tranquilidade e 0 sossego de algumas pessoas estavam por minha conta. Eu, afinal, nao tinha relagdes préximas com ninguém por quem. a policia ndo estivesse interessada. Ou pudesse interessar-se. Uma pensio, como o primo suge- riu? Ir para uma pensio podia ser eafiar-me na boca do lobo. Nao estariam 14 o meu nome e os meus sinais? Mais um telefonema, desta vez para aminha mie: «Entio que € feito, filho, que nun- ca apareces?» «Me, foi alguém 3 minha procura? Nao? De certeza?» Provoquei ansiedade, tive de inventar coisas, os seguros, um recibo, nao sei qué. Consegui mudar de assunto e distraf-la das inquietagées. Fui falando. Fui gastando moedas. E foi tao bom conversar longamente com a mi- nha mie, naquela altura, sobre coisas de nada. Apetecia continuar, continuar, conte, me, con- ta, mais, mais... Adeus, mae, até um dia. Nao foram 14 a casa, mas podiam ter a rua controlada. ‘Tenho horas e horas a minha frente. Porqué manter este hébito de cavalgar o espago, a gran- des pernadas? Vamos devagar, gozemos a Rua da Senhora da Gléria, a descer e a subir, 0s predio- zinhos pequeno-burgueses, de pequenos reforma- dos, opersrios especializados, pacatissima gente, que vai as compras de chinelos e lava o precioso automével'a porta de casa, aplicada, em pijama, com baldes de zinco e detergente. Olha a igreji- nha em barroco pobre, fechada para armazém, logo atrés da cabina, no largozito. Nao ha nada 28 26 |winto dE canvatno que ver, aqui. Nao posso fazer passos, para trds para diante, as velhas em frente do lugar da hortalica jé repararam em mim, o velho que pas- seia um rafeiro anafado, triste, a bambolear-se nas Patas cansadas, no tarda e mete conversa comi- 80. «A vida, amigo, jé nao est para a gente», ¢ gente era-the também o cio. Talvez duma jane- la qualquer, alguém tenha notado que aquele tipo alto, sem gravata, j4 passou trés vezes, sem des- tino, depois de virar sobre os préprios passos, 20 fundo da rua, e ao cimo da rampa. Hesito em voltar ao carro, Id para baixo. E se eles jé deram com ele? Andardo, de matricula anotada, & pro- cura do meu carro? Assusta-me a Passagem, de novo, pelo Largo de Santa Clara, varrida a feira, € eu tao exposto. «Enfiado por todos os azimu- tes», como dizem os da tropa. O estabelecimento, de abandonada montra de garrafas e porta férrea de correr com gancho, acabrunha-se na esquina do cruzamento da Rua da Senora da Gloria com a Rua das Beatas. Dentro, apresenta demasiados vidros e alum- APUROS DE UM PESsIMISTA EM FUGA|ay nios para tasca e demasiado vasilhame de pau encardido para leitaria. Progride de taberna (serradura no chéo) para o modernago (méqui- na de café), ou regride ao inverso. Carrega-se ali nos bagacos ¢ nos copos de trés, que podem ser animados pelo furor melédico da enorme caixa- -de-miisica, que faz lembrar a do filme O Gigante, coberta de luminérias marcianas, a piscar colori- dos. Uma mceda, dez tostées, os Beatles, Alfredo Marceneiro, Os Doors, Os Conchas (tchiribari- .) ou o mitido da Bica. -papa, tchiribari-papa. Vale a pena escorropichar a moeda s6 para obser- var o sortilégio dos maquinismos. O disco a des- lizar, a escorregar no prato, o brago do gira-discos a exibir-se ao alto, em sacudidelas medidas, an- tes de aplicar-se convictamente nas estrias para despiralar os ritmos. Tecnologia dos anos cin- quenta que eu imaginei manejada com desemba- rago, desencravada a poder de joelhémetto, pelos melémanos de esquina. O dono, arruivado, tem rugas de marinhei- 10, de sal e s6is, e ocupa-se a manter a cabeca pousada sobre a repousada mio, ponteada de sardas. Face grossa, vasto pescogame lasso. O ar desalentadamente enfadado desmente o compa- nheirismo do letreiro que oscila num caixilho envidragado, pendurado duma pipa alta, carinho- samente desenhado a letra gotica e bordado com florinhas, «Fregués nao tenhas medo/ de ficares com um grdo na asa/ que a gente guarda segre- do/e vai-te levar a casa». Quatro mesas de for- mica, e ferro, de um verde pouco convencido. Um cheiro a hiéimido, com pintas de azedo. Sen- tado junto & montra, onde se empilham garrafas de rétulos desbotados pelo sol, um sujeito cons- t16i um castelo distraido, com pedras de dominé que, na contraface, ostentam restos coloridos de beldades em bikini. Nao sei se interrompi uma paz de almas. Nenhum dos homens me prestow qualquer atengo quando entrei e me sentei junto A porta, de costas para o manipulador do dominé. ‘Nas minhas citcunstncias (vinham-me reminis- céncias de filmes sobre pistoleiros) convinha-me estar sempre de frente para a porta, ainda que isso pudesse magoar os sentimentos de cortesia dos bébedos de bairro. Pedi uma sanduiche de queijo. «Queijo nao temos. S6 se for de presunto.» Viesse a de pre- sunto. O homem foi remexer num saco de sera- pilheira, que continha o pao e, enquanto cortava © presunto, com uma faca de serrilha, comegou uma conversa, a substituir uma outra qualquer, que eu havia interrompido, com a minha entra- da importuna. «O tempo est fusco, esté de trovoada.» O outro: «Ti de trovoada, o qué? Em Abril? Voce com tanto ano de mar ainda nao sabe distinguir 0 céu de trovoada? Isto nao é nada, mano, isto vai limpar» «E de trovoada, sinto nos ossos!» «A ateimar» «Pronto, mano.» Um instante de silencio hémido, e ouvi atrés de mim ruir, num matraquear estralejado, 0 castelo de dominé. Uma pedra precipitou-se perto da minha mesa, embebeu-se de serradura. Assim a entreguei a0 possuidor e mereci um «obrigado, amigo» dele. E com a sanduiche, reclamei um copo de vinho porque tive vergonha de pedir leite ali, entre marinheiros. Tratavam-se por «manos» € nao ti- nham ar de irmaos. Linguagem de bairro? As coi- sas que eu nio sei. Abri o Didrio de Noticias, mais para nao ter de participar em conversas do que para me infor- mar. O caso que me interessava, quem teria sido preso nessa manhé, nao vinha no jomal. Abria com um editorial suculento, intitulado «Balas de Papel» que deixei para ler mais tarde, em tendo paciéncia. «Campanha eleitoral em Franga, Guer- ra sem quartel entre os dois candidatos principais da coligacio governamental.» Vou folheando, nada que me atraia, especialmente. Anunci se, para amanhé, a estreia, no Londres, de Hiroxima, Meu Amor, «obra admirével, diamante intacto», diz o reclame. JA nao terei oportunidade de ver. Em Mogambique, o governador da Beira garan- te que «perseguiremos 0 inimigo até ao seu com- pleto aniquilamento». Leio a tira de «A Ilha Negra» de Tim-Tim. E sou informado de que o Sporting se prepara para jogar contra o Magde- burgo, na Alemanha de Leste, «conhecida na giria politica e geografica por a repdblica de Pankov>. Os dois homens ainda teimaram molemente sobre a meteorologia que pareciam controlar ali, do fundo da baitica e depois passaram ao futebol, matéria em que se mostravam muito concordan- tes. Que o Sporting tinha obrigacdo de ganhar, porque os alemfes nao jogavam nada, dizia um. Mas eram atléticos e disciplinados, cheios de fi- sico, respondia o outro. Entao, os orientais ain- da mais disciplinados que os de cé. Mas tinham, um jogar esquemitico, pesado, sem imaginagao nenhuma, essa € que era essa. O pior era o érbi- tro ser um inglés € os ingleses sempre nos tive- ram azar. O do domins ia ver o jogo na televisao, As seis, a casa dum vizinho. E o tasqueiro disse: «Eu cé me arranjarei.» A conversa derivou para a perspectiva de o Benfica contratar para treina- dor um tal Pavic, jugoslavo. Espraiaram-se a far lar sobre bola. Usavam termos técnicos. Tinham opiniées. Exemplificavam com gestos lentos. Repetiam-se, arrastavam a palestra, com pausas enormes. Contemplei, num reflexo de vidros, 0 ho- mem na mesa, atrés de mim. Calvo e pesado ali- hava de novo as pecas do dominé em castelo, entre os dedos grossos, enquanto ia acudindo as deixas. Aquela conversa néo era a normal de dois marinheiros a tagarelar numa espelunca. Os ma- rinheiros deveriam contar do que aconteceu um dia ao largo de Singapura, mentindo, ou quan- do muito da sua corriqueira vida de agora, refor mada. As vozes soavam-me a falso, a dguas doces. Com a minha entrada, os homens deixaram de se sentir & vontade. Desconfiavam de mim. Um estranho, de fora do bairro, a fazer horas? Para 3a | Marto dE CARVALHO eles, eu devia ser um fiscal, um policia, um beleguim. O letreiro sujo que enfeitava agora uma prateleira, anunciando que as bebidas expostas se destinavam ao consumo da casa, estaria ali quan- do entrei? Nio sei qual o maior desconforto: se ser to- mado pelo transfuga que era, ou pelo polfcia de que eles suspeitavam. Nao sabia bem o que ha- via de fazer ao jornal, que muito extravasava da mesa. O presunto era rangoso, 0 pio eléstico, 0 vinho 4spero. Pagar e ala, deixé-los a murmurar E se a desconfianga fosse a certeira? Se estives- sem ali, por hipétese, dois legionérios? Era eu a levantar-me da mesa e 0 do balcio a pegar no telefone. De novo me interroguei sobre o dilema que nunca mais haveria de resolver: defendia-me melhor na multidao, ou nos reservados? «So horas, mano. Tenho compromissos.» O que estava sentado & mesa desfez com estron- do 0 castelo de dominé e espalhou meticulosa- mente as pedras, de maneira a nao ficar uma sobre outra. «Isto é que é um comerciante.» Eo do balcdo, aproximando-se de mim: «O amigo desculpe, nao leve a mal, tenho de fechar pera ir zo dentista. Nao hé ninguém que me tome APUROS DE UM PESSIMISTA EM FUGA conta da loja. Aquele ali bebia-me o vinho todo.» © outro protestou. E assim se viram livres de mim, ¢ eu deles Sérgio, Sérgio, velhissimo Sérgio, que abra- 0 forte e antigo, sonoro de fazer eco. Um recon- forto, reconhecer 0 jeito aéreo, olhos esverdeados de olhar para ontem, cabelo desalinhado, puléver da moda curtinho, as trés pancadas, os dedos esguios, amarelos dos cigarros, sempre irrequie- t05, hébito de passar a mao ossuda pela nuca e dizer «ora bom!». Sérgio, vé se me ajudas, pa! Sérgio olhou aplicadamente em volta, numa panoramica circunstanciada. Aquela hora, no alfarrabista, apenas um velho senhor, de éculos de vidro grosso, e sobretudo fora de estacio, fare- java pelas estantes. No baledo, quase encostado A montra, 0 outro empregado lia A Bola. A me- dida que me ia ouvindo segredar, a um canto da sala, Sérgio passava o indicador pela manga do puléver, insistentemente, como se quisesse apa- gar qualquer mancha obstinada. «Que chatice, pé, que chatice.» E 0 dedo abandonava, enfim, 33 eleanor a azéfama na manga do puldver para ir esgara- vatar, algures, atrés da cabega. Depois empurrou um Amnorial Lusizano e certificou-se de que fica va alinhado com os outros cartapcios da prate- leira. «Tens a certeza de que nfo foste seguido?», perguntou-me. Nao respondi, ele continuou: adsto aqui nao € sitio para conversarmos. Espe- ra-me lé fora, no café, daqui a, digamos...dez minutos.» E desepareceu pela porta que ia dar no sei aonde, presumo que ao escritério da loja. Mas ainda eu néo tinha avangado dois passos quando senti a mio de Sérgio fincada no meu brago. «No café, nao! E imprudente. Vamos pas- seando. Ts, que boa chumbada, pa!» Com um piparote, atirou fora o cigarro que acabara de acender. Eu tinha pedido a Sérgio, muito simplesmen- te, que me arranjasse um lugar para passar a noite. Sérgio queria conversagao. E reuniu forgas para manifestar duas coisas. A primeira foi dita de rompante, em tom seco e oficioso, com o ar mais alheado e autoritério de que era capaz. funcionério do Partido, j4 h4 meses, havia-o proibido de contactar comigo, fosse por que via fosse. RazGes conspirativas que tinham que ver com as tarefas desempenhadas e com as exigén- cias da compartimentagao. Ele bem protestara, que éramos muito amigos, que era absurdo, que as pessoas iam reparar. Mas o camarada mostra- ta-se empedernido, duma insensibilidade de pe- dra. Proibira. Pronto. Definitivo. Nem tinha podido ir ao funeral de Marilia. Nem um telefo- nema, nada. Pedia desculpa, mas... Respondi que compreendia a situagao, jé tinha passado por coisas parecidas. Mas tratava-se dum caso de emergéncia, absolutamente excepcional. Era s6 por uma noite. ‘Sérgio acelerou, em siléncio, passadas largas, inutilmente apressadas. Cigarro acendido, cigar- to atirado. Alcancei-o. Mordia os labios, a cara contrafra-se-lhe e envelhecera uns anos, de um momento para o outro. «Além disso. sacana do gato, o salto que ele deu!» «Além dis- 80, 0 qué, Sérgio?» Sérgio parou na esquina, bai- xou a cabega por instantes, para logo a levantar e fitar olhos em mim, com deciso: «Desliguei- -me do Partido, pa!» «Que € que tem?» «Ei pre- ciso que saibas!» Tinha pensado muito. Compe- netrara-se de que era, no fundo, um cagarolas, ih, p4, 0 um cobarde. Mal a policia lhe aparecesse, des- manchava-se, borrava-se todo, contava tudo. Tinha um medo insuperdvel da dor fisica, do sofrimento, nao era feito para aquilo. Depois, nao podia abandonar a mde, sozinha, com setenta anos. Ele fazia questo de por tudo em pratos lim- pos. Ele nao dava garantias. Ele ia-se abaixo. Ele trafa. «Mas, Sérgio, deixa Ié isso, agora. Eu s6 pre- ciso dum sitio para esta noite.» «Nao pode ser nada, amigo, niio pode ser nada.» Oh, Sérgio, ndo me fagas isso, no me cho- res agora, no meio da rua, pa. Tu és um mogo porreiro, Sérgio, tu tens um coragdo de ouro, Sérgio, tu nunca na vida serés capaz de fazer mal a alguém, nem capaz duma mesquinhice, duma sacanice, mesmo pequenina, mesmo por distrac- cdo. Es um tipo franco e leal, como tu nfo hé outro, Sérgio, Serjdo, meu amigo, meu irm4o, néo estejas tao em baixo, ndo chores, p4, os homens nao se medem assim, ndo te martirizes, ndo te mortifiques, se nao és capaz arreia, nao hé pro- blema, pé, olha os valenties, os atletas da tortura, 08 de peito feito, foram-se quase todos abaixo.. Fuma, sim, fuma, é 0 vento que te apaga os f6s- foros, protege o cigarro na mao, pal APUROS DE UM PESSIMISTA EM FUGA Eu sé te pedi um quarto, por uma noite, Sérgio, basta fazeres uns telefonemas, procurares uns contactos e néo € pelo Partido, é por mim, porque eu sou teu amigo e estou a rasca, Sérgio. Tanta vez me lembro de ti, Sérgio, na Veiga Beirdo, a animares-me, «Viva o Humberto Del- gado», a escreveres «liberdade» no tampo da carteira, com 0 bico do compasso, ¢ a dares so- cos no ar quando levémos os dois porrada de um magote de imbecis indignados. Fomos juntos & inspecgio militar, p4, com a morte na alma, e fi- cmos livres, Sérgio, a tua asma, 0 meu sopro no coragac, safmos do hospital militar, daqueles in- terminéveis exames no mesmo dia e fomos em- bebedar-nos n’Os Perus e trepamos de gatas as escadas das gémeas putas, em Arroios, num pré- dio que cheirava a mijo, pd, e fartémo-nos de rir, tir, p4. E no cineclube, Sérgio, tu eras um sorna, no fazias nenhum e todos te estimavam e acha- vam graga, Sérgio. E, muito rogado, nas festas, acabavas por cantar 0 Old Man River € eu quis convencer-te a ires para o coro do Lopes-Graca ‘mas tu, por modéstia ou por preguica encolhes- te-te, p4. E os panfletos fininhos que enfiévamos nos escapes dos automéveis e aquela porcaria 37 38 |winto ve caRvaLwo cafa, ploc, num rolo compacto, ¢ nao servia para nada, ¢ a bebedeira de cerveja que tu apanhaste quando a Diana cortou 0 namoro, e 0 que eu te aturei nessa noite, até as tantas... Eu lembro-me, Sérgio, lembro-me de tanta coisa... E que eu sou mesmo teu amigo, Sérgio, ¢ também ando aqui repassado de medo, pé, nao penses mais nisso, anda daf, € sempre bom ver- -te, quero Ié saber das ordens do outro, quero la saber que tenhas saido do Partido, é um tipo honrado, deixa, Sérgio, deixa, estamos no meio da rua, olha que te véem, disfarca, limpa-me es- sas Iégrimas, atira o cigarro molhado, venham esses ossos, p4, eu cd me arranjo, p4, e, sobretu- do, néo chores, nao chores, no chores. «Adeus, Sérgio.» «Nao, senhor guarda, vim para aqui ver se dormia um bocado» «Entéio vocé nao sabe que © pessoal néo pode dormir nas viaturas?» Eu, francamente, nfo estava ao corrente, embora tivesse obrigacdo de calcular, porque tudo & proibido nesta terra. «O senhor mora onde?» De- clinei a morada da minha mie que era a que constava da carta de conducao. Ele espreitou para dentro do carro, talvez a certificar-se de que ndo estava [4 mais ninguém. «Tem a chapa de identificagao?» Apontei-lhe o rectdngulo de plas- tico, com um competente S. Crist6vao a pratea- do, que estava colado 20 tablier. «Hum, isto ndo APUROS DEUMPESSIMISTA EM FUGA 65 me cheira nada bem», resmungou o guarda, a cogar 0 queixo. Nao sabia o que fazer de mim. Levar-me para a esquadra, preencher papeladas em triglicado, devia darlhe muito trabalho. Pre- feria, com certeza, que eu 0 convencesse de que estava dentro do terreno da boa-fé e da licizude, para boa consciéncia de ambos. Foi o que eu ten- tei. «Qual € a sua profissio?» «Empregado do comércio.» «E 0 que esté aqui a fazer? Anda as gatas?» «Bem vé, uma desavenca doméstica...» «Qué!» Vime obrigado a regular a pontaria da linguagem: «Chateei-me com a patroa. Saf de casa.» Caiu uma pausa, ponderosa, pejada de implicagdes. O policia estava a pensar. Isto jé Ihe puxava para o sentido social.

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