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19 Educacao em direitos humanos: de que se trata? Maria Victoria Benevides A educagio em direitos humanos parte de trés pontos essenciais: pri- meiro, é uma educagdo de natureza permanente, continuada e global; segun- do, & uma educagio necessariamente voltada para a mudanga; ¢ terceiro, ¢ uma inculcagdo de valores, para atingir coragdes e mentes, e no apenas ins- trugdo, meramente transmissora de conhecimentos. Acrescente-se, ainda, de nfo menos importéncia, que ou essa educagtio € compartilhada por aqueles que esto envolvidos no proceso educacional - os educadores e os educandos - ou ela ndo ser educagdo, e muito menos educago em direitos humanos. so premissas: a educagdo continuada, a educagdo para a mudan- io compreensiva, no sentido de ser compartilhada e de atingir tanto a razdo quanto a emogao. © que significa dizer que queremos trabalhar com educasio em direitos humanos? A educagdo em direitos humanos é essencialmente a formagao de uma cultura de respeito 4 dignidade humana mediante a promogio e a vivéncia dos valores da liberdade, da justiga, da igualdade, da solidariedade, da coope- ragdo, da tolerdncia e da paz. Portanto, a formagio dessa cultura significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitu- 309 des, hAbitos e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores es- senciais citados - os quais devem se transformar em praticas. estamos Quando falamos em cultura, & importante deixar claro que nos limitando a uma visio tradicional de cultura como conservagio: dos cos- tumes, das tradiges, das crengas e dos valores. Pelo contrério, quando fala- mos em formagdo de uma cultura de respeito aos direitos humanos, & digni- dade humana, estamos enfatizando, sobretudo no caso brasileiro, uma ne- cessidade radical de mudanga. Assim, falamos em cultura nos termos da mudanga cultural, uma mudanga que possa realmente mexer com 0 que est4 mais enraizado nas mentalidades, muitas vezes marcadas por preconceitos, por discriminagio, pela nio aceitagio dos direitos de todos, pela no aceita- o da diferenga. Trata-se, portanto, de uma mudanga cultural especialmente importante no Brasil, pois implica a derrocada de valores ¢ costumes arraigados entre nés, decorrentes de vatios fatores historicamente definidos: nosso longo pe- riodo de escravidio, que significou exatamente a violago de todos os prinei- pios de respeito & dignidade da pessoa humana, a comegar pelo direito a vida; nossa politica oligarquica e patrimonial; nosso sistema de ensino autoritirio, clitista, e com uma preocupagiio muito mais voltada para a moral privada do que para a ética pablica; nossa complacéncia com a corrupgao, dos governante e das elites, assim como em relagdo aos privilégios cidadaios ditos de primeira classe ou acima de qualquer suspeita; nosso descaso com a violéncia, quando ela & exercida exclusivamente contra os pobres e os social- mente discriminados; nossas priticas religiosas essencialmente ligadas ao valor da caridade em detrimento do valor da justiga; nosso sistema familiar patriarcal e machista; nossa sociedade racista e preconceituosa contra todos 0s considerados diferentes; nosso desinteresse pela participagao cidada e pelo associativismo solidario; nosso individualismo consumista, decorrente de uma falsa idéia de "modernidade". concedidos ao A mudanga cultural necessaria deve levar ao enfrentamento de tal he- ranga e ainda ser instrumento de reagio a duas grandes deturpagdes que fermentam em nosso meio social - como parte de uma certa "cultura politi- ca" - em relagGo ao entendimento do que sejam direitos humanos, A primeira delas, muito comentada atualmente e bastante difundida na sociedade, inclusive entre as classes populares, refere-se 4 identificagdo en- tre direitos humanos ¢ direitos da marginalidade, ou seja, so vistos como "direitos dos bandidos contra os direitos das pessoas de bem", Essa deturpa- 40 decorre certamente da ignorincia e da desinformago, mas também de uma perversa e eficiente manipulagio, sobretudo nos meios de comunicagao de massa, como ocorre com certos programas de radio e televisio, voltados para a exploragio sensacionalista da violéncia e da miséria humana. ‘A segunda deturpago, evidente nos meios de maior nivel de instrugo (meio académico, mas também de politicos e empresérios), refere-se a cren- ga de que direitos humanos se reduzem essencialmente as liberdades indivi- duais do liberalismo clissico e, portanto, nao se consideram como direitos fundamentais os direitos sociais, os direitos de solidariedade universal. Nes- se sentido, os liberais adeptos dessa crenga aceitam a defesa dos direitos humanos como direitos civis e politicos, direitos individuais 4 seguranga e & propriedade; mas nao aceitam a legitimidade da reivindicagdo, em nome dos direitos humanos, dos direitos econémicos ¢ sociais, a serem usufruidos in- dividual ou coletivamente; ou seja, aqueles vinculados a0 mundo do traba~ Iho, & educagio, 4 saiide, & previdéncia e seguridade social ete. Com tal quadro histérico e com tais deturpagdes - muitas vezes conscien- tes ¢ deliberadas, de grupos ou pessoas interessados em desmoralizar a luta pelos direitos humanos, porque querem manter seus privilégios ou porque querem controlar e usar a violéncia, sobretudo a institucional, apenas contra os pobres, contra aqueles considerados "classes perigosas" -, reafirmamos que uma educagio em direitos humanos s6 pode ser uma educagio para a mudanga, e no para a conservagdo. Embora insistamos na idéia de cultura, trata-se da criago de uma nova cultura de respeito 4 dignidade humana; portanto, 0 termo cultura s6 tem sentido como mudanga cultural. Esse quadro bastante negativo sobre a realidade histérica e contempora- nea do Brasil nao deve ser um empecilho para o nosso trabalho; pelo contra- rio, deve ser incentivo para procurar mudar. Podemos ser razoavelmente otimistas, pois jé existem varias iniciativas de grupos de defesa de direitos humanos, no sistema de ensino piiblico e pri- vado, nos movimentos sociais ¢ nas ONG em geral - inclusive a Rede Brasileira de Educagio em Direitos Humanos que patrocinou 0 encontro de onde gerou esta publicagao - além dos drgios oficiais, como no caso da Secretaria de Justi- ga e Defesa da Cidadania no Estado de Sao Paulo. Portanto, ser a favor de uma educago que significa a formago de uma cultura de respeito dignidade da pessoa humana significa querer uma mudanga cultural, que se dar por meio de um processo educativo. Significa essencialmente que queremos outra socie- dade, que nao estamos satisfeitos com os valores que embasam esta sociedade € queremos outros. Formages de educadores A titulo apenas de introdugdo, cumpre lembrar o que so direitos hu- manos. Sio aqueles direitos considerados fundamentais a todos os seres humanos, sem quaisquer distingdes de sexo, nacionalidade, etnia, cor da pele, faixa etiria, cl opiniao politica, religido, nivel de instrugdo e julgamento moral. Uma compreensio histérica de direitos humanos traz como eixo principal ¢ dbvio o reconhecimento do direito a vida, sem o qual todos os demais direi- tos perdem o sentido, Costuma-se falar, apenas por uma questio didatica, em geragdes de direitos humanos; nao se trata de geragdes no sentido bioldgico, se social, profissio, condigo de satide fisica e mental, do que nasce, cresce e morre, mas no sentido histérico, de uma superagdo com complementaridade, ¢ que pode também ser entendida como uma dimensio. ‘A primeira gerago, contemporinea das revolugdes burguesas do final do século XVIII ¢ de todo o século XIX, ¢ a dos direitos civis e das liberdades individuais, liberdades consagradas pelo liberalismo, quando o direito do cidadio dirige-se contra a opressio do Estado ou de poderes arbitrérios, con- tra $s perseguigdes politicas ¢ religiosas, a liberdade de viver sem medo. Dessa importantissima primeira geragdio, ou dimensio, so os direitos de locomogao, de propriedade, de seguranga e integridade fisica, de justiga, ex- presso ¢ opinido. Tais liberdades surgem oficialmente nas Declaragdes de Direitos, documentos das revolugdes burguesas do final do século XVIII (na Franga ¢ nos Estados Unidos) e foram acolhidas em diversas Constituigées do século XIX. A segunda geragio, que no abrange apenas os individuos, mas os gru- pos sociais, surge no inicio do século XX na esteira das lutas operdrias e do pensamento socialista na Europa Ocidental, explicitando-se, na pratica, nas experiéneias da social-democracia, para consolidar-se, a0 longo do século, nas formas do Estado do Bem-Estar Social. Refere-se ao conjunto dos direi- tos sociais, econémicos e culturais: os de caréter trabalhista, como saldrio justo, férias, previdéncia e seguridade social, ¢ os de cardter social mais geral, ide, educago, habita- independentemente de vinculo empregaticio, como do, acesso aos bens culturais ete. Em complemento as duas geragdes, a terceira dimensio inclui os direi- tos coletivos da humanidade, como direito 4 paz, a0 desenvolvimento, & au- todeterminagao dos povos, ao patriménio cientifico, teenolégico e cultural da humanidade, ao meio ambiente ecologicamente preservado; sio os direi- tos ditos de solidariedade planetéria, Tais geragdes mostram como continua viva a bandeira da Revolugo Fran- cesa: a liberdade, a igualdade e a solidariedade. A liberdade nos primeiros Educagée em direitos humanos: de que se trata? direitos civis e individuais, a igualdade nos direitos sociais, a solidariedade como responsabilidade social pelos mais fracos e em relagdo aos direitos da humanidade. Direitos humanos sio fundamentais porque s4o indispensdveis para a vida com dignidade. Quando insistimos nessa questo da dignidade, mui- tas vezes esbarramos numa certa incompreensio, como se 0 termo fosse indefinivel e tratasse de algo extremamente abstrato em relagdo & concretude do ser human. Portanto, é importante tentar esclarecer o que entendemos por dignidade da pessoa humana. Sabemos, sem divida, identificar um com- portamento indigno; por exemplo, omissao de socorro nos hospitais, aban- dono dos idosos na fila do INPS, desprezo pelos direitos dos mendigos, das criangas de rua, dos desempregados, dos excluidos de toda sorte sio indig- nidades, Mas de onde vem essa idéia de dignidade? Por que ela & central no nosso processo educativo? Durante muito tempo, o fundamento da concepgdo de dignidade podia ser buscado na esfera sobrenatural da revelagdo religiosa, da criagdio divina - o ser humano criado 4 imagem e semelhanga do Criador. Ou, entéo, numa abstragdo metafisica sobre aquilo que seria proprio da natureza humana, 0 que sempre levou a discussdes filoséficas sobre a esséncia da natureza hu- mana. Independentemente dessas polémicas, aqueles que so religiosos ou espiritualistas t&m um motivo a mais para se preocupar com a dignidade da pessoa humana, se acreditam na criagdo divina, na afirmagio de que todos somos irmios, nessa fraternidade que vem da religiio, como no caso, dentre outros, do cristianismo. Hoje, numa visio mais contemporanea, percebemos como todos os textos nacionais e internacionais de defesa dos direitos huma- nos explicam a dignidade pela prépria transcendéncia do ser humano, ou seja, foi o homem que criou ele mesmo o Direito. Ele mesmo criou as formas da idéia de dignidade em grandes textos normativos que podem ser sinteti- zados no artigo I° da Declaragao Internacional de Direitos Humanos de 1948: "Todos os seres humanos nascem livres ¢ iguais em dignidade e em direitos” Essa formulag: de uma maneira que é historicamente dada. decorre da propria reflexdo do ser humano que a ela chegou Foi uma grande revolugdo no pensamento e na histéria da humanidade chegar A reflexio conclusiva de que todos os seres humanos detém a mesma dignidade. & evidente que nos regimes que praticam a escravidio, ou qual- quer tipo de discriminagao por motivos sociais, politicos, religiosos ¢ étnicos no vigora tal compreensio da dignidade universal, pois neles a dignidade & entendida como um atributo de apenas alguns, aqueles que pertengam a um determinado grupo. A dignidade do ser humano nio repousa apenas na racionalidade; no pro- cesso educativo procuramos atingir a razio, mas também a emogio, isto , corages e mentes - pois o homem nfo é apenas um ser que pensa e raciocina, ‘mas que chora e que ri, que é capaz. de amar e de odiar, que & capaz de sentir indignagdo ¢ enternecimento, que ¢ capaz da criagdo estética, Unamuno dizia que © que mais nos diferencia dos outros animais ¢ o sentimento, ¢ nio a racionalidade, © homem é um ser essencialmente moral, ou seja, 0 seu com- ‘obre o bem e o mal, Ne- im apreciado em term da sua bondade ou da sua maldade. Portanto, o ser humano tem a sua dignida portamento racional estard sempre sujeito a juiz nhum outro ser no mundo pode ser a s de dever ser, de explicitada mediante caracteristicas que so dnicas ¢ exclusivas da pessoa humana; além da liberdade como fonte da vida ética, s6 0 ser humano é dotado de vontade, de preferéncias valorativas, de autonomia, de autoconsciéncia como 0 oposto da alienagdo, Sé o ser humano tem a meméria e a consciéneia de sua propria subjetividade, de sua propria historia no tempo e no espago e se enxer- ga como um sujeito no mundo, vivente e mortal, Sé 0 ser humano tem sociabi- lidade; somente ele pode desenvolver suas virtualidades no sentido da cultura € do auto-aperfeigoamento vivendo em sociedade e expressando-se por meio daquelas qualidades eminentes do ser humano, como 0 amor, a razo e a cria- so estética, que so essencialmente comunicativas. E 0 tinico ser histérico, pois € 0 dinico que vive em perpétua transformagdo pela meméria do passado e pelo projeto do futuro. Sua unidade existencial significa que o ser humano é ‘ico e insubstituivel. Como dizia Kant, é o tnico ser cuja existéncia é um va- lor absoluto, é um fim em sie ndo um meio para outras coisas. Os direitos humanos sao naturais e universais, pois esto profundamen- te ligados & esséncia do ser humano, independentemente de qualquer ato normativo, e valem para todos; s4o interdependentes ¢ indivisiveis, pois nao podemos separé-los, aceitando apenas os direitos individuais, ou s6 os so- ciais, ou s6 os de defesa ambiental. Essa indivisibilidade € importante porque temos exemplos histéricos, também no século XX, de regimes politicos que valorizaram exclusivamente 08 direitos sociais, como o regime soviético, em detrimento da liberdade; assim como temos varios regimes liberais que pregam a liberdade mas des- cartam a obrigatoriedade dos direitos sociais. Direitos humanos sio histéricos, pois foram sendo reconhecidos ¢ con- sagrados em determinados momentos histéricos, e & possivel pensarmos que aa novos direitos ainda podem ser identificados e consolidados. A historia da humanidade comprova a evolugdo da consciéneia dos direitos; na Biblia, por exemplo, lemos casos de aceitagio de sacrificios humanos e de escravidao. Os liberais da América, do Norte ¢ do Sul, conviviam com a posse de esera- vos, embora defendessem a liberdade e a igualdade de todos diante da lei. Direitos humanos so histéricos na medida em que vio crescendo em abrangéncia e em profundidade, até que s versal, Hoje, por exemplo, reconhecemos que existe consciéncia universal de que a escravidio, seja por que motivo for, é uma violago radical dos direitos humanos, assim como a explorago do trabalho infantil, a dominagao sobre as mulheres, as formas variadas de racismo e de discriminagdo por motivos religiosos, politicos, étnicos, sexuais etc. Os casos ainda existentes de escra- vidio, racismo e disctiminagao sio veementemente condenados pelas enti- dades mundiais de defesa dos direitos humanos. solidem na consciéncia uni- Quando falamos em educagdo em direitos humanos falamos também em educacio para a cidadania. E preciso entender aqui que as duas propostas andam muito juntas, mas nao so sinénimos. Basta lembrar, por exemplo, que todos os projetos oficiais, do Ministério da Educagio as Secretarias Mu- nicipais e Estaduais, afirmam que seu objetivo principal é a educaglo para a cidadania, No entanto, a concepgio e 2 razio de prefeituras ¢ de governos, que 0 conceito de cidadania foi esgargando; nio se tem certeza de que se fala sobre o mesmo tema. E bastan- te comum a idéia de educagio para cidadania ser entendida como se fosse meramente uma educagao moral e civica, Ou seja, como se fosse necessério & suficiente pregar 0 culto a patria, seus simbolos, herdis e datas histéricas, assim como fomentar um nacionalismo ora ingénuo ora agressivo, sem a percepgao de que a nagdo nao é um todo homogéneo, mas um todo heterogé- neo, com conflitos, classes sociais, grupos e interesses diferenciados. A idéia de educagdo para a cidadania nao pode, portanto, partir de uma vistio da sociedade homogénea, como uma grande comunidade, nem perma- necer no nivel do civismo nacionalista, Torna-se necessirio entender educa- cao para a cidadania como formagao do cidadao participativo e solidério, cons- ciente de seus deveres e direitos - e, entdo, associd-la a educagdo em direitos humanos. $6 assim teremos uma base para uma visio mais global do que seja uma educasio democrtica, que &, afinal, 0 que desejamos com a educa- so em direitos humanos, entendendo "democracia" no sentido mais radical radical no sentido de rafzes ~; ou seja, como o regime da soberania popular com pleno respeito aos direitos humanos. Nao existe democracia sem direi- 315 tos humanos, assim como nao existe direitos humanos sem a pratica da de- mocracia, Em decorréncia, podemos afirmar 0 que j4 vem sendo discutido em certos meios juridicos como a quarta geragdo, ou dimensio, dos direitos humanos: o direito da humanidade a democracia. E nesse sentido que nos referimos sempre a cidadania democratica Existem casos de regimes politicos que levaram ao extremo a educagio para a cidadania, em termos de mobilizagao civica, mas nao em termos de cidadania democratica. Regimes totalitarios levaram ao extremo a formagio do cidadao ligado a patria, a nagio, ao seu passado histérico, ao projeto do futuro. Alias, regimes totalitarios s para um tipo de educagio civica que no tem nada a ver com educagio em direitos humanos, com educagio democritica. Em meados do século XX regimes totalitarios formaram cidaddos participantes, conscientes de uma missio civica, porém cidadios fascistas, determinado regime que nao era democ dania insere-se exclusi cida- dio aqueles que mais mobilizam os nazista ou gia, cidadaos de um idéia de cida- tico. Portanto, nos imente no quadro da democracia. Em relagdo especificamente 4 educagdo em direitos humanos, o que de- sejamos? Que efeitos queremos com esse proceso educativo? Queremos uma formagdo que leve em conta algumas premissas. Em pri- meiro lugar, 0 aprendizado deve estar ligado A vivéncia do valor da igualdade em dignidade e direitos para todos ¢ deve propiciar 0 desenvolvimento de sentimentos ¢ atitudes de cooperagao e solidariedade. Ao mesmo tempo, a educagdo para a tolerdncia se impde como um valor ativo vinculado & solida- riedade, ¢ nfo apenas como tolerdncia passiva da mera aceitag3o do outro, com o qual se pode nfo estar solidério. Em seguida, o aprendizado deve levar ao desenvolvimento da capacidade de se perceber as conseqiiéncias pessoais e sociais de cada escolha. Ou seja, deve levar a0 senso de responsabilidade. Esse processo educativo deve, ainda, visar & formagio do cidadao participan- te, critico, responsével e comprometido com a mudanga daquelas priticas e condigdes da sociedade que violam ou negam os direitos humanos. Mais ain- da, deve visar 4 formagao de personalidades auténomas, intelectual e afetivamente sujeitos de deveres ¢ de direitos, capazes de julgar, escolher, tomar decisdes, serem responsaveis e prontos para exigir que no apenas seus direitos, mas também os direitos dos outros sejam respeitados e cumpridos. Uma questo que surge com muita freqiiéncia quando debatemos o tema da educagio em direitos humanos é: serd realisticamente possivel educar em direitos humanos? A questo tem pertinéncia, pois se trata, sem divida, de um processo extremamente complexo, dificil e de longo prazo. O educador 6 em direitos humanos na escola, por exemplo, sabe que nao terd resultados no final do ano, como ao ensinar uma matéria que seré completada 4 medida que 0 conjunto daquele programa for bem entendido e avaliado pelos alunos. Trata-se de uma educagdo permanente e global, complexa e dificil, mas nio impossivel. {2 certamente uma utopia, mas que se realiza na propria tentativa de realizé-la, como afirma o educador Perez Aguirre, enfatizando que os di- reitos humanos terdo sempre, nas sociedades contemporaneas, a dupla fun- go de ser, ao mesmo tempo, critica e utopia frente realidade social © que serd indispensével para esse processo educativo, partindo-se da constatago de que, apesar das dificuldades, é possivel desenvolver um pro- cesso educativo em direitos humanos? Em primeiro lugar, o conhecimento dos direitos humanos, das suas ga- rantias, das suas instituigdes de defesa e promogio, das declaragdes oficiais, de Ambito nacional e internacional, com a consciéncia de que os direitos humanos ndo sao neutros, nao sio meramente declamagées retéricas. Eles exigem certas atitudes ¢ repelem outras. Portanto, exigem também uma vivéncia compartilhada. A palavra deverd sempre estar ligada a praticas, embasadas nos valores dos direitos humanos e na realidade social. Na esco- la, por exemplo, deverd estar vinculada 4 realidade concreta dos alunos, dos professores dos diretores, dos funcionari da comunidade que a cerca. Onde podemos educar em direitos humanos? Temos varias opgdes, com diferentes veiculos ¢ estruturas educacionais. Podemos fazer uma escolha, dependendo dos recursos e das condigdes objetivas, sociais, locais & institucionais, de cada grupo, de cada entidade. Hé que distinguir entre as possibilidades da educagio formal da educago informal. Na educago for mal, a formagio em direitos humanos ser feita no sistema de ensino, desde a escola priméria até a Universidade. Na educagio informal, ser feita por meio dos movimentos sociais e populares, das diversas organizagdes no governamentais - ONG, dos sindicatos, dos partidos, das associagdes, das igrejas, dos meios artisticos, e, muito especialmente, pelos meios de comu- nicagdo de massa, sobretudo a televisio. Cumpre lembrar que essa educagdo formal na escola, desde a priméria até a Universidade, e principalmente no sistema piblico do ensino, resultara mais vidvel se contar com 0 apoio dos drgios oficiais, tanto ligados direta- mente a educagdo como ligados , a justi¢a e defesa da cidadania. E por isso que valorizamos os planos oficiais de educagiio em direitos humanos na escola, tanto no Ambito federal como nos Ambitos estadual ¢ municipal - embora nem sempre vejamos seus resultados ou mesmo sua aplicago no cultur: cotidiano escolar. Se escolhemos a educagio formal, constatamos como a escola piblica é um locus privilegiado, pois, por sua propria natureza, tende a promover um espirito mais igualitério, na medida em que os alunos, normal- mente separados por barreiras de origem social, ai convivem. Na escola pi- blica o diferente tende a ser mais visivel e a vivéncia da igualdade, da toleran- cia e da solidariedade impde-se com maior vigor. O objetivo maior dessa educagio na escola é fundamentar 0 espago escolar como uma verdadeira esfera piblica democratica. Finalmente, quais seriam os pontos principais do conteiido da educagio em direitos humanos? Ha um contetido dbvio, que decorre da propria defini- do de direitos humanos e do conhecimento sobre as geragdes ou dimensdes histéricas, sobre as possibilidades de reivindicagdo e de garantias etc. Esse contetido deve estar efetivamente vinculado a uma nogiio de direitos, mas também de deveres, estes decorrentes das obrigagdes do cidadao e de seu compromisso com a solidariedade. E importante, ainda, que sejam mostra- das as razBes ¢ as conseqiiéneias da obediéncia a normas e regras de convi. véncia, Em seguida, esse contetido deve conter a discussdo - para a vivencia - dos grandes valores da ética republicana e da ética democritica. Os valores da ética republicana incluem o respeito as leis legitimamente elaboradas, a prioridade do bem piiblico acima dos interesses pessoais ou grupais, ¢ a no- gao da responsabilidade, ou seja, de prestagdo de contas de nossos atos como cidadaos. Por sua vez, os valores democraticos estdo profundamente vincula- dos ao conjunto dos direitos humanos, os quais se resumem no valor da igualdade, no valor da liberdade e no valor da solidariedade. E preciso, pois, deixar claro que o componente essencial ao escolhermos trabalhar na escola com um programa de direitos humanos é que ele sera impossivel se ndo estiver associado a priticas democriticas. Um grande edu- cador como o Prof. José Mario Pires Azanha enfatiza, com o rigor de sempre, que de nada adiantaré levar programas de direitos humanos para a escola, se a propria escola nao é democratica na sua relagdo de respeito com os alunos, com os pais, com os professores, com os funcionarios e com a comunidade que a cerca, E nesse sentido que um programa de direitos humanos introduzido na escola serve, também, para questionar e enfrentar as suas préprias contradi- ges € 08 conflitos no seu cotidiano

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