You are on page 1of 8
cadernos REVISTA DOS ALUNOS DE POS-GRADUAGAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DA USP 1ssn 0104-5679 20 eadernos di campo ‘SAO PAULO n.20 p. 1-360 JAN.-DEZ./2014 Raga, cor, cor da pele e et L_ ANTONIO SERGIO ALFREDO GUIMARAES Nas ciéncias sociais brasileiras, a raga jé sofreu algumas reviravoltas, exemplificando melhor que outros, talve7, as vicissitudes politi- cas das nogées ¢ conceitos cientificos, No Bra- sil, ela foi introduzida pela geracio de 1870, que tomando-a emprestada das ciéncias natu- rais da época, procurava dar uma orientagio cientifica aos estudos sobre a cultura brasilei- ra, propondo, ao mesmo tempo, um progra- ma de desenvolvimento politico para a nagio pés-escravista (Skidmore 1974, Ventura 1991, Schwarcz 1993). Seguia assim, grosso modo, a orientagio que havia sido dada por von Mar- tius em seu célebre optisculo de 1845 (Rodri- gues e von Martius 1956). Paraesta geragéo, 0 conceito de raca, tal qual fora utilizado pela biologia do século XIX, era empregado para explicar as diferengas culcurais entte 0s povos ¢ 0 modo subordinado com que foram incorporados ao sistema mercantil glo- bal pela expansio ¢ conquista curopéias. Para ser claro: abstraia-se da histéria ¢ das formas sociais, econdmicas ¢ culturais para reduzir a desigualdades de situagio entre os povos a ca- racteres fisicos ¢ biolégicos. No entanto, sc é certo, como apontou Manoel Bonfim (1993), em seu tempo, que a teoria racial tinha uma motivagio claramente imperialista; no Brasil, os nossos cientistas introduziram & teoria das ragas uma motivagio politica prépria: a nova nagio, como ensinara von Martius, seria 0 re- sultado do entrecruzamento entre trés ragas (a caucasoide, a afticana e a americana) mas tal produto resultaria num povo homogéneo, de cultura latina. Tal processo de miscigenacio, potencializado pelo estimulo 4 novas ondas imigratérias de povos europeus, ficou conheci- do como embranguecimento Longe de ser simples especulagio de inte- lectuais, a mestigagem € 0 embranquecimento, como processos que dotariam a jovem nagéo brasileira de uma base demogrifica homogé- nea, se fitmaram como verdadeiras politicas raciais no Brasil (Park 1942), mesmo quando © conceito de rasa € as teorias que a utilizavam cairam em total descrédito no mundo cientifi co ¢ intelectual. Apenas para exemplificar 0 que digo: a revolugio de 1930 e, posteriormente 0 Estado Novo, assim como a Segunda Repibli- ca brasileira, dotario a nagéo de uma politica cultural explicitamente bascada nesses dois pi- lares ~ mestigagem ¢ hegemonia da lingua ¢ das tradigbes portuguesas ¢ latinas. O desenvolvi- mento capitalista brasileiro, depois de 1930, se faré procurando homogeneizar mercados nacionais (de capitais, de circulagao de mer- cadorias ¢ de trabalho), facilitando também a homogeneizagio cultural e racial. Entre 1940 ¢ 1970, regides como o Norte ¢ © Nordeste (ou alguns bolsses do Sudeste) em que um quarto da populagio se autodeclarava branca, serio os grandes celeiros de mio-de-obra para o Sul e 0 Sudeste, onde fora maior o impacto da grande imigragio européia, que se declarava branca, E nesse periodo que ocorre o banimento do termo raga de nosso vocabulitio cientifico, politico ¢ social, como consequéncia nio ape- nas dos processos a que acabo de me refetit, mas também por conta das tragédias causadas pelo racismo em termos mundiais, cujas principais expressées foram o Holocausto, na Segunda Guerra Mundial; a segregagio racial nos Estados cadermos de campo, So Paulo, n. 20, p. 1-360, 2011 266 | Axrosso Sinexo Azsnspo Guinanias Unidos, que perdurou no pés-guerra; eo apar- theid, na Africa do Sul, até bem recentemente, ‘Como se explica, entéo, 0 retorno da raca A nossa linguagem atual? O termo é to pre- sente, inclusive no coridiano, que 0 IBGE 0 introduziu nos censos demogréficos em 1991, transformando a antiga pergunta “Qual é a sua cor?” em “Qual é a sua cor/raca?”. Temos que reconhecer, primeiro, que o termo nao havia desaparecido de todo, passando mais por uma submersio que um desaparecimento, Em pri- meiro lugar, a expresso que passou a definir 0 nosso ideal de homogeneidade nacional, nosso hibridismo demogrifico ¢ 0 reconhecimento da importancia cultural de todos os povos para a nossa formagio foi o de democracia racial, Em segundo lugar, no uso burocritico e popu- lar, 0 termo cor substitui o de raga, mas deixou & mostra todos elementos das teorias racistas — cot, no Brasil, é mais que cor de pele: na nossa classificagao, a textura do cabelo ¢ 0 formato de nariz e libios, além de tracos culturais, séo ele- mentos importantes na definicio de cor (preto, pardo, amarelo e branco). Terceiro, 0 termo etnia, cunhado para dar conta da diversidade cultural humana, passou também a ser usado no cotidiano das sociologias vulgares como marcador de diferengas quase-irredutiveis, ou seja, como sindnimo de raga, Suprimia-se 0 termo raga sem que 0 processo social de mar- cagio de diferencas ¢ fronteiras entre grupos humanos perdesse o seu cardter reducionista ¢ naturalizador. Mas, 0 mais importante para 0 ressurgi- mento da raga, enquanto classificador social, se deu com sinal invertido, isto é, como estratégia politica para incluir, néo para excluir, de rei- vindicar ¢ no de sujeitar. Sao os movimentos sociais de jovens pretos, pardos e mestigos, pro- fissionais liberais ¢ estudantes, que retomaram © termo, pata afirmar-se em sua integridade corpérea e espiritual contra as diversas formas de desigualdade de tratamento ¢ de oportuni- dades a que estavam sujeitos no Brasil moder- no, apesar—¢ talvez pour cause da democracia racial, Os movimentos sociais a que me refiro rém trajetéria longa na histéria brasileira, des- de as sociedades ¢ jornais de homens de cor, no comego do século XX, passando pelo o Movi- mento Negro Unificado, dos anos 1970, até as ONGS negras dos nossos dias. A raga retorna, portanto, néo mais como mote do imperialismo ou colonialismo, mas como glosa dos subordinados a0 modo infe- riorizado ¢ desigual com sio geralmente inclu- {dos ¢ tratados os negros, as pessoas de cor, os pardos. Para os cientistas sociais, assim como para os ativistas politicos, a nogio de raga tem vantagens estratégicas visiveis sobre aquela de ctnia: remete imediatamente a uma histéria de opressio, desumanizacéo ¢ oprébio a que esti- veram sujeitos os povos conquistados; ademas, no processo de mestigagem ¢ hibridismo que sofieram ao logo dos anos, a identidade étnica dos negros (sua origem, seus marcadores cultu- rais, etc.) era relativamente fraca ante os mar- cadotes fisicos utilizados pelo discurso racial. Renascido na luta politica, a nogio € recu- perada pela sociologia contemporinea como conccito nominalista — isto é, para expressar algo que nfo existindo, de fato, no mundo fi- sico, tem realidade social efetiva (Guimaries 1999). Sem ele, ficaria impossivel explicar a longa trajetéria que culmina na mobilizacao de simbolos, temas e repert6rios dos movimentos sociais contemporaneos. Raga, enquanto con- ceito analitico, permite, por exemplo, exami- nar a acusagio feita por alguns antropélogos (Maggie 2005) segundo a qual a insisténcia do movimento negro atual em classficar como ne _g70s aqueles que se declaram nos censos pardos pretos seria uma atitude anti-modernista de retomar um racialismo que marcara brevemen- te os intelectuais naturalistas da geracio dos 1870. No restante desse breve artigo procurarei demonstrar como 0 nosso sistema de classifi cadernos de campo, Sao Paulo, n. 20, p. 265-271, 2011 cago por cor néo se sustenta sem 0 recurso sub-repticio & nogio de raga e & teoria do em- branquecimento. Para comesat, lembro que chamar de anti- modernista a atitude do movimento negro se- ria apropriado apenas para se referir 4 Frente Negra Brasileira dos anos 1930, De fato, aque- la época, enquanto em Sio Paulo os negros se mobilizavam politicamente em torno da iden- tidade racial negra, aproveitando o clima geral de racializacio da politica que soprava da Euro- pa, aqui mesmo, € em todo o Brasil, 0s intelec- tuais modernistas e regionalistas, muitos deles mesticos, gestavam a reinvengio da nacionali- dade brasileira em torno do ideal da miscura de ragas. Hé que se lembrar que este ideal de mestigagem e hibridismo é algo vem de tempo mais recuado, ja captado por Von Martius em. seu célebre optisculo Como escrever a historia do Brasil. Certamente, a descoberta de que a nagio brasileira cinha um povo mestigo data da campanha abolicionista. Releiam Nabuco, em O erro do imperador, ¢ encontrario li, com todas as letras: Os nobres ¢ aristocriticos adversirios do st, Dan- tas, descendentes quase todos de senhores de en- genho ¢ fazendeiros, quando chegavam as janclas da Camara ¢ viam uma dessas manifestagées populares, nao descobrindo chapéus altos nem sobrecasacas, mas, num relance, pés no chio © mangas de camisa,diziam somente: “Aquilo nio vale nada, é a canalha’. Talvez, mas 0 nosso povo € iss0 mesmo, € um povo de pés no cho e man- gasde camisa, e nio € um povo branco. Que a opiniso de Nabuco, corrente entre abolicionistas negros, nao era, até os anos 1930, inteiramente partilhada nos meios académicos basta lembrar o seu conterrinco Oliveira Lima, divido entre considerar se compunham o povo “os fazendeitos” ou apenas a ralé, 0 “povo pro- priamente” Raga, con con ba rane x art | 267 No Brazil, como em toda a America Hispanic ca, faltava pov, Num dos seus offcios para a chancellaria anstriaca 0 encarregado de negocios Mareschal observa que mesmo que o paiz viesse a soffter dos horrores da revolugio, “o povo se cangaria da anarchia mais cedo do que na Euro- pa, porque elle se compunha na sua totalidade de fazendeiros ¢ nao havia a ralé que se torna nas ios dos agitadores cégo instrumento”. A ralé existia, mas eta um elemento inteiramente fra da vida politica: 0 gréo de ignorancia, a condi- Gio de fata de cultura, vedava 20 povo propria- mente qualquer participasio na vida consciente da communidade, Pois, bem, jd mostrei em Racismo ¢ Anti: -racismo no Brasil que 0 nosso sistema de clas- sificasio de cor se origina da intrincada teoria de cmbranguecimento que a nossa geragio naturalista moldou a partir das diversas teorias raciais entéo vigentes. Esta origem esta expli: citada por Oliveira Vianna (1959 [1932]: 45) Nesta teoria, cor nio é redutivel a “cor da pele”, a simples tonalidade. Cor ¢ apenas um, o prin- cipal certamente, dos tragos fisicos —junto com © cabelo, nariz e labios — que junto com tragos culturais — “boas maneiras’, dominio da cultu- ra curopeia, formavam um gradiente evolutivo de embranquecimento, Preto, pardo, branco, No grupo branco nunca se hesitaria em clas- sificar alguém de pele escura, mas tragos finos (europeus) € boa educagio. Entre os pardos, estavam certamente aqueles de tragos fisicos “negrdides”, mas claros ¢ bem educados. E este sistema de classificagéo racial por cor — mas nio por cor da pele — que vem sendo paulatinamente modificado no Brasil, a medida que o ideal de embranquecimento vai perdendo forca. De um lado, a organizagéo politica dos negros, que rejeita frontalmente 0 embranguecimento, e tenta impor uma nosio histérica, politica ou énica de raga. Quando se remete & histéria, a nogio reine pessoas que cadermos de campo, So Paulo, n. 20, p. 265-271, 2011 268 | Axrosso Sincro Azsnepo Guianias vivenciaram uma experiéncia comum de opres- so; quando se remete & politica, eria uma as- sociagio em tomo de reivindicagées; quando, se remete & ctnia, quer criar um sentimento de comunidade a partir da cultura. Em todos os casos, os gradientes de cor seriam contrapro- dlutivos, se nio fossem reagrupados para tornar pretos ¢ pardos uma tinica categoria discreta (nio-continua), que bem podcria ser batizada de afrodescendentes ou negro. Do outro lado, a cor vem sendo substituida pela cor da pele, como prinefpio classificat6rio. Nesse modo de classificar, vigente na Europa atual, ¢ muito utilizada no senso comum jor- nalistico, mesmo nos Estados Unidos, a cor da pele seria apenas 0 tinico critério na classi- ficagio. Ou seja, alguns brancos poderiam ser chamados de morenos, dark, foncés, brown, sem serem negros. Porque tal forma de classificar es- taria se expandindo entre nés, no Brasil? Seria puro efeito da intensidade de nossos contatos com a Europa e os Estados Unidos? Observando mais de perto essa forma de classificas, alguns fatos sobressacm, Primeito, ge- ralmente o termo branco é etnicizado para signi- ficar 0 europen “de bergo”, ou seja, sem origem colonial ow imigrante de fora da Europa, Segun- do, tal classificagio parece conviver com outras classificagdes nativas. Por exemplo, Obama con- sinua a ser referido como negro na Europa ¢ no Brasil, pelo fato de ser negro nos Estados Uni- dos; ou um capocirista mestigo brasileiro é negro também na Europa, pois é portador da cultura africano-brasilcira, Terceio, tal clasificagio néo se aplica a povos orientais, como chineses, japo neses ou coreanos. A cor da pele se refere a um gradiente entre branco e preto. Podemos concluir, provisoriamente, que esta forma de classificar é ainda menos consis- tente que a anterior, que levava em considera- sao outros tragos fisicos, além da cor da pele possibilitando um gradiente mais extenso Uma outra conclusio, aparentemente parado- xal, € que, apesar de mais fluida no gradien- te, a classificagio por cor da pele discrimina melhor 0 grupo branco, ou seja, 0 distingue de todas as outras cores sem os riscos de con- fusio possibilitados pelo embranquecimento. Evita-se e nega-se formas raciais de classifica- gio, entendendo que a conalidade da pele é um dado natural. No entanto, pode-se muito bem, voltar-se a uma dicotomia antiga: bran- cos versus pessoas de cor. Se assim é, porque tantas pessoas no Brasil insistem em falar em “cor da pele” a0 invés de apenas em “cor”, como ¢ nossa tradigo? De fato, pesquisa recente do IBGE (2008) mostra que a nossa forma tradicional de classificar en- contra-se em plena vigéncia. Na tabela abaixo, pode-se ver que outros tragos fisicos, origem familiar, cultura e posicéo socioeconémica sio igualmente mobilizados para definir a catego- ria censititia “cor/raga’ Tabela 1: Bras, proporgio de pessoas de 15 anos ou mais de idade, por dimensées pels quas definem a pépria cor ou aa, 2008 Cordapele 23 Taos tscos a7 ‘rige fail antepasados 06 ita digo 284 ‘rigen sce ecndica 70 pci pola ieoigia 40 outa oF Fonte: IBGE (2008) Em plena vigéncia, mas modificado. Mi- nha sugestio é que nosso sistema tradicional de classificagéo esté sendo modificado pela perda de sentido do ideal de embranquecimen- to. Alguns outros fatos podem ser recolhidos para fortalecer tal linha de raciocinio. De fato, a partir do censo de 2000 a populacéo branca comega a declinar mais que esperado pelas tendéncias demogréficas, enquanto a parda, a preta ¢ a amarela voltam a crescer. Essas mu- cadernos de campo, Sao Paulo, n. 20, p. 265-271, 2011 dangas sugerem, nitidamente, que est4 em cur- s0 um proceso de reclassificagéo racial, posto que as tendéncias demogréficas (fecundidade, mortalidade © migtagées) nao a explicam. ‘Talver por isso a tabela 1 acima mereca ser inquirida de modo mais agressivo. Nao estario as influéncias da origem familiar e antepassa- dos, da cultura € da tradigao, totalmente em desacordo com o que ensinam os estudos dos anos 1960, realizados, entre outros, por Har- ris (1970), Azevedo (1953), Nogueira (1954), Sanjek (1971) © Wagley (1952)? Nesses, como vimos, apenas tragos fisicos € posigéo social importavam. Agora, segundo esta pesquisa do IBGE, cresce a importincia de fatores que defi- nem as etnias (origem e cultura) ‘Ademais, comparando dois. surveys reali- tados pelo DataFolha, 0 primeito em 1995, © 0 segundo em 2008, as respostas as mesmas perguntas captam uma diminuigso de 18% no iimero de pessoas que se declaram espontane- amente brancas ¢ um aumento de 18% dos que se declaram morenas ou morenas claras (ver Ta- bela 2). Poderiam estes dados serem interpreta- dos como uma rentincia 4 brancura por parte daqueles “brancos” de cor mais escura, aqueles que se consideram espontaneamente morenos? E 0 que sugiro. ‘Tal remincia nio poderia ser feita se fatores outros como origem familiar (scus antepassados), ou sua tradi¢éo cultural, ngo ganhassem importincia, na construgo da identidade racial de cor, sobre ideais de em- branquecimento. Tabela 2: Dedaragio de cor espantineaem 1995 ¢2008 em %) Galan 1995 [2008 | Brance so 2 [ae Moreno B [6 Parca 20 7 [3 Nes 7 7 a Moreno caro 2 5 3 Pra 1 4 3 Raga, con, COR DA PELE E ETNIA | 269 ‘Amar 1 z 1 Mult 1 1 o ha @ 1 1 ures 1 3 2 Niosabe 4 1 3 Tote em wo fo fo Fonte: Datafolha Ou scja, minha sugestio é de que a cor da pele pode estar se destacando entre os elemen- tos considerados na nossa classificagio, justa- mente porque o ideal de embranquecimento tem-se enfraquecido. Para dizer de outro modo: a medida que a ideologia do embranquecimen. to perde importincia, também o sistema de classificagio em tipos raciais, que considera tragos fisicos ¢ posigéo social, perde saliéncia, Do antigo sistema racial, a cor da pele passa, portanto, a destacar-se. Ha também que se levar em conta, para explicar a forca que a cor da pele ganha na percepgio das pessoas, que esta forma de classificagio social (a que faz referéncia ex- plicita apenas & cor da pele), no somente é corrente na Europa ocidental, como tem cur- so livre na nossa imprensa ¢ na sua sociologia espontinea, tendo hoje o respaldo de cien- tistas sociais ¢ gencticistas de renome. As: sim, os intelectuais que assinam o manifesto “Cento e teze cidadios anti-racistas contra as leis raciais “reafirmam a inexisténcia de ragas humanas, mas ignoram a existéncia de grupos sociais de cor, para enfatizar apenas a variagio individual da cor da pele, realidade objetiva ¢ natural: Ragas humanas nio existem, A genética com- provou que as diferencas icénicas das chamadas “ragas” humanas sio caracteristicasfisieas super ficiais, que dependem de parcela infima dos 25 mil genes estimados do genoma humano, A cor da pele, uma adaptagio evolutiva aos niveis de caderos de campo, So Paulo, n. 20, p. 265-271, 2011 270 | Axtoxto Sincio Azsaspo Guinanias zadiagio ultravioleta vigentes em diferentes ére- as do mundo, & expressa em menos de 10 genes! ‘Axé mesmo na sociologia de lingua inglesa, antes téo imbutda da realidade social das ra- gas, esta teoria naturalista ¢ individualista da cor tem seus defensores, Por exemplo, Michael, Banton, um dos socidlogos ingleses mais des- tacados no campo da “relagées raciais”, passa cambém a adotar a estratégia discursiva! de que © antidoto ao racismo é a afirmagio da “cor” como uma realidade natural, objetiva e indivi- dual, ¢ descarta 0 uso politico ou analitico da nogio de raga, que seria apenas um produto da imposicéo de uma linha de cor. Este exemplo mostra que nao apenas “raga”, mas também “cor” e “cor da pele” podem ser usados no mesmo contexto carregado de ide- ologia c de politica, podendo ser manipulados como conccitos naturais na uta anti-racista ou na impostura racista, Podem também servir de marcadores para um discurso de solidatiedade ¢ de sentimento de pertencimento comunité- rio, que é, a0 fim ¢ a0 cabo, © que distingue 0 discurso étnico —a referéncia a uma origem co- mum - ou nacionalista — de compartilhamento de um mesmo destino societatio e politico No caso da identidade negra, no Brasil, virios marcadores j foram utilizados pelo dis- curso mobilizador — lembrem-se que, segundo Barthes (1994), a formacio étnica é também. um empreendimento politico —: a cor (as pes- soas de cot), a raga (raga negra) € a posigéo so- cial (“o negro é um lugat” como dizia Guerreiro Ramos (1995). Sem diivida, as duas primeiras formas de mobilizasio, apesar de imprecisas ¢ incortetas cientificamente, foram as mais efica- es, Infelizmente, etnias, ragas ¢ cores humanas revelam-se refratétias as formas de esclarcci- mento pela razio. E como se fosse impossivel a0 ser humano, néo apenas fugir & sociedade mas ultrapassar formas de solidariedades gru- pais mais estrcitas. As utopias individualistas, como lembrava Marx, sio invengées possiveis apenas em sociedades complexas, formadas por classes sociais ¢ outras formas de pertengas cle- mentares, Notas 1. Oartigo, no prelo, apatecers em breve no Ebnie and Racial Studies Referéncias bibliogréficas Azi DO, ‘Thales de. Les Bites de couleur dans une ville bréilienne, Pais: UNESCO, 1953 BARTH, Frederik, “Enduring and emerging issues in the analysis ofethniity”. Ins VERMEULEN, Hans GOVERS, Cora (Ed). The anthropology of ehnicty Seyond ethnic groups and boundaries, Amsterdany: Het Spinbuis, 1994, p. 11-32 BOMFIM, Manoel. América Latina: Males de Origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993. GUIMARAES, Antonio Sergio A. (1998). Raciomo Anti-Racismo no Brasil, io Paulo, Ed 34 HARRIS, Marvin, Referential Ambiguity in the Calew- lus of Brazilian Racial Identity. Southwetern Journal af Anthropology, Vol. 26, n. 1 (Spring, 1970), p. 114, 1970. IBGE, Diretora de Pesquisas, Coordenagéo de Popula- io € Indicadores Socais, Paguice das Carateiicas Erico-racias da Populaséo 2008. LIMA, Oliveira. O movimento da independéncia, 1821- 1822, S, Paulo, Comp. melhoramentos de S. Paulo, Weisfolgirmios incorporado, 1922. MAGGIE, Yonne. Mitio de Andrade ainda vive? © idesrio modernista em questio, RBCS vol. 20 n. 58 jumbo, p. 5-25, 2005 NABUCO, Joaquim. “O erro do imperador” In: MELLO, Fvaldo Cabral de (org.) Buencial Joaquim [Nabuco, Penguin / Compankia das Letras, 2010. NOGUEIRA, Oracy, “Preconecito racial de marca © preconceito racial de origem: sugestio de um quadzo de referéncia para a interpretagio do material sobre relagées racials no Brasil". In: Tamto preto quanto bran co: estudos de elas raciais. io Paulo: TA. Queiroz, (1985 (1954)), 67-93, PARK, Robert. The Career of the Africans in Brazil, In- cadernos de campo, Sao Paulo, n. 20, p. 265-271, 2011 soduction to Donald Pietson, Negroes in Brazil cago: University of Chicago Press, 1942, RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdupéo Critica a Socials- a Brasileira, Rio de Janeiro, Ed. UFR, 1995. SANIEK, R. Brazilian Racial ‘Terms: Some Aspects of Meaning and Leatning. American Anthropologist 73, p. 112-643, 1971 SCHWARCZ, L. K.M. O Bipetdeulo das Ragas, Sio Pau- lo, Cia das Letras, 1993. VENTURA, Roberto. Eile Tropical - Hissiria cultural e polémicaslitertrias no Brasil, 1870-1914, Sio Paulo, Cia, Das Letras, 1991 Raga, con, con pa Prue E ernta | 271 VIANNA, José de Oliveira. Rapa ¢ asimilagao, Rio de Ja- ncito: J. Olympio, (1959 [1932)) VON MARTIUS, Karl Friedrich e RODRIGUES, José Honério, Como se deve escrever a Historia do Brasil, Revista de Historia de América, n. 42, p. 433-458, dec., 1956. WAGLEY, Charles, “Comment les classes ont rempl: les eastes dans le Brésil septenttional”. In: WAGLEY, Charles (ed). Races et Clases dans le Brésil Rural. Pais: UNESCO, 1952 autor Antonio Sérgio Alfredo Guimaraes Professor do Departamento de Sociologia / USP Recebido em 15/09/2011 Aceito para publicagéo em 15/09/2011 cadermos de campo, Séo Paulo, n. 20, p. 265-271, 2011

You might also like