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Pro-Posgbes.v 16, n. | (46) jane 2005, Oragao de Paraninfo — 1935! Méria de Andrade ‘Tenho a impressio, senhores diplomandos, de que talvex este momento, em que reccbeis 0 atestado paiblico do curso que fizestes, soja mais importante para mim do que para vés. Por trés vezes ji que simpatias perdodveis, levaram diplomandos do Conservatério a me consagrar paraninfo de suas formaturas. Por tris vezes tenho agora a consciéneia de que tai a vendo discursos com desejo de agradar. Hoje no poderei agir assim. Nio setei breve, nem .serei discreto, ¢ vou expor coisas escuras. Porém nao trairei o valor deste encargo. ¢trago comigo a deciséo de isso que me foi dada, escre- nido vos cantar mais as serenatas da alegria. E esta decisio de s6 encarat o teal, me veio da enorme, da radical transformagio que deu-se em minha existéncia. Chamado a um posto oficial, embora no politico, me vi de chofre desanuvi ado dos sonhos em que sempre me embalei. Sempre conservaraailusio de que era tum homem dil, apenas porque escrevia no meu canto, livros de luta em prol da arte, da renovagio das artes ¢ da nacionalizagio do Brasil. Mas depois que baixei ao purgatério dum posto de comando, depois que me debati na espessa goma da burocracia, depois que lutei contra a angustiosa nuvem dos necessitados de em- prego, depois que passaram pelas minhas mios dinheitos que no cram meus e de mim derivaram proveitos ou prejuizos, veio se avolumando em mim um como que desprezo pelo que fora dantes Eu fui o filho da felicidade. Nunca soft. Tive energia bastante para repudiar 0 sofrimento do espirito e forgas fisicas suficientes para impedir os sofrimentos do corpo. Dominei com facilidade, e sobretudo com inalecrivel otimismo, todas as ladeitas de meu caminho, Descnvolviaa lura com uma filosofia egoistica, de espi- Fito eminentemente esportivo, que fizera de mim literalmente um gozador. Também suportei omissbes e desgracas. Mas cu cra um milionstio detestivel, ‘que acumulava c esperdigava as suas riquezas e imolavafrio as visagens do mundo, para conforto do seu préprio ser. Nao rico de dinheiro, mas afortunado duma |.” Texto reproduro a pat da pubteagio, en ANDRADE, Miro de. Aspectos da tlsca Bras a, ed. Sto Paulo. Basia: Larana Marin Edtora, MEC. p. 235-247, 1975. Reproducio autonzada. (NE) 26! Pro-Posigbes, v.16, 1 (46) - jan fab 2005 farcura Vaidosa de ilusdes © defesas pessoais. Minhas edleras de critico, minhas violéncias jomalisticas, minhas peleias lirerérias, minhas dores de amor e revoltas contra a vida ambiente, em que fui to sincero, hoje me parecem fantasmagorias jgostosas em que pus em pritica uma encantada satisfagio de viver. E jé agora, com fento menos tedrico da vida porque apalpei sua quotidianidade mais de perto, eu s6 posso, no me perdoar, porém me compadecer do que fui, lembrando 2 eseurido da minha oral ignorancia: eu no sabial Agora, tendes & vossa frente um 6rf%o. Nao mais o filo da felicidade, afelic- dade morteu, mas 6 apaixonado, 0 ganancioso compartilhador da precariedade humana. Nao vou, senhores diplomandos, expor aos vossos olhares © panorama dda minha existéncia atual, De resto, nem cla ¢ feita apenas de tristezas, Ha mo- mentos de conquista, hé triunfos admiraveis, alegrias dum fulgor sublime. Porém desapareceu aquele prazer de mim mesmo que cu tinha dantes. As alegeias, as do ade, a solugoes, os triunfos nfo satisfazem mais, porque nio se dirigem as exigén« ‘meu ser, que eu domino, nem dele se originam; antes, nascem da colet clase dirigem, a esta coletividade monsteuosa,insacidvel, imperativa, que ew no domino por ser dela apenas uma parte menorissima. Um copo de eite dado a uma crianga subnuttida implica a fome de outa; uma biblioteca nova ilumina o ras- tcjo dos analfabetos; uma orquestra mantida supde musicos sem emprego, um. ‘coral dadoraorpove desafina’sa'ebin gage Wok’ que'Aenvaesfier labern ouvir. Era ganincia que domina e veio turvar tude, a mesma gandncia insoftida que faz a miséria dos acumuladores de riquezas, Ea ganincia, o desejo tempestuoso de fazer, de Fazer mais, de fazer tudo, num retorno invencivel da ingenuidade. Deixei de ser feliz, mas a inocéncia nasceu. Como pois, senhores diplomandos, poderia dizer-vos. apenas as palavrasirres- ponsiveis de prazer com que outras veres tra? Poderia agradar-vos, saudando minho? vossa formatura, quando justamente agora prineipia 0 dspero Poder glorficar-vos por um diploma vencido, quando et sci que nio estais apa- relhados para vencer? Poderia, disfurcando a importancia desta solenidade,falar-vos sobre as grandezas da musica, quando a misica anda por todos desvirtuada? Talver estejais ainda lembrados da armadilha com que quase todos os anos inicio os meus cursos de Histéria da Musica... A perguna que faco sobre © que 0s meus alunos vieram estudar no Conservatério, todos respondem, um que veio estudar piano, outro canto, outto violino. Hé catorze anos fago tal pergunta. Nio tive até hoje um s6 aluno que me respondesse ter vindo estudar miisica! Insistiteis, senhores, sobre a dolorosa significagio desta anedota. Bla € exata- mente o simbolo da sicuagao precarissima da, nossa cultura, digo mais: da nossa “moral cultural”. Porque néo é apenas a culcura que anda desnorteada por af, antes, a reagio moral diante dos problemas da cultura é que ainda nao se elevou nada anda réptil, viscosa, preguicenta, envenenando tudo, 262 Pro-Posigdes. . 16,1. | (46) jan ab 2005 Si osalunos vém ao Conservatério com o tinico fim de estudar piano ou violi- no, seo ideal dessa juventude no passa duma confusio e também duma vaidade ‘que sacrifica 0s valores nobres da arte pela esperanca dum aplauso piblico: a culpa € dessa mocidade frigil? Nao &. Nao sois vs os culpados, mas vos pais, vossos professorese 0s poderes prilicas. O vosso engano proveio dma inculeura muito ins escancarada ¢ profunda, em que confusio moral entre musica e virtuosidade, estd na propria base, Os pais, inflamados de amor, desejam gliria aos filhos. Estd quasi certo, Mas a tldria preferida ¢ que esté errada. Os pais, violentados pelo amor aos filhos, nao cém sacrificio que ndo fagam para que estes alcancem a gléria destinada. Esté certissimo agora. Os sacrificis feitos & que foram improficuos, porque o fim pre- tendido estava inicialmente errado, Qual o pai que desejou tornar 0 filho um miisico completo? Talvez: nenhum. Qual o pai que desejou vero filho um pianista, ou cantor .célebre? Tal ver todos. Nés nfo andamos » procura da vida, ¢ por isso a vida nos surpreende e assalta a cada esquina. Nés andamos apenas suspirando pela gloria. . A gloria € uma pala- ‘ra curta em nosso espirito, ¢ significa apenas aplauso ¢ dinheiro. Nés nem quere- mos ser gloriosos, nds desejamos ser apenas eélebres. Conta-se de criangas que reproduzem crimes vistos no cinema, agidas pela aspiragio de se verem Forografa- das nos jornais. Havera muita distancia entre esses infelizes ea nossa pritica fumi- liar de dirigic um filho para a celebridade pianfstica? Tudo tem como resultado tuma fotografia nos jornais. Mas a essa desorientasio que desce as criangas do bergo, vem completar a esorientagao dos professores. O contraste entre os nossos progressos viageiros © a nossa principiante civilizagio, nos leva a importar professores de terras mais com- pletas. B esses professores musicais emigrados, no emigearam por prazer: esté claro, ninguém emigea por prazer. Dé-se necessariamente uma conformacio nova, de ideal, provocada em parte pela confusio existente na terra nova, em parte pela propria ambigao, ¢ a misica é substituida pelo comércio musical, a que s6 esca- pam alguns raros. Quasi do mesmo naipe, se mostra o professorado nacional, que devia combater esse erto, Porém, ainda aqui com raras excegdes, © nosso professo- rado nfo faz sendo conformar-se As exigencias do mesmo comércio, 20 mesmo tempo que, em lua com o professorado estrangeiro, por nao ter deste o lustre de proferas © as mesmas tradigées cultura, se converte em nacionalista € invoca a patria quando se erata de investir com outto porque este possui mais alunos. E desta miseravel mutagdo de musica em comércio, pois que o fregués pede virtuose, ‘6 ensino musical tem se preocupado apenas em nos dar vircuoses. Néo se ensina :nisica no Brasil, vende-se virtuosidade. Ainda por essa conversio da miisica em comércio, é que 0s conscrvatérios sunstincia de serem eles brasileiros vivem numa pressio angustiosa. A propria ci 263 Pro-Posigdes, .16,n. | (46) jan abe: 2005, inscicutds em que o ensino se sistematiza, se moraliza por assim dizer, os obriga a cstatuir um ensino mais legitimo de miisica. E assim, inicialmente eles nascem atormentados pelo seu préprio destino, que os torna indestinados num pais onde todos pedem tocadores e ninguém pede musica. A maioria dos conservatérios se comercializa entio, engolidos pela torrente niveladora. Se tornam produtores de pianistas ¢ violinists, confundindo a elevagao cultural da sua finalidade com as acomodagées despoliciadas do ensino particular. Nio sio conservat6tios, si0 coo- perativas de professores particulares. Querericisralvez observar o fendmeno do Conservatério Dramético e Musical de Sio Paulo? Quem quer Ihe conheca os estatutos ¢ a constituigao didética, se convenceré da finalidade popular da nossa casa. Pelos seus pregos, pelas poucas credenciais de educagio escolar que exige dos seus alunos, é evidente que 0 Con- servat6rio nio se destina a formagio de elites musicais refinadissimas, porém & populatizacio da miisica. Compreendeis certamente o que significam estes enxa- mes sonoros de diplomandos que o Conservatério solta anualmente sobre o cor- po do nosso Estado. Sio ja muitas centenas de artistas menores que se perderam na multidao nacional, tocando e ensinando. Nao me orgulha ter saido das salas conservatorianas um Francisco Mignone, por exemplo. Porque na formagio dum grande artista entra um sem ntimeto de contingéncias e condigdes, todos de decis6rio valor. O que me orgulha sois ws, senhores diplomandos, é 0 enxame. O que me orgulha é a professorinha andnima do Bexiga ou da Moéca, 2 mulher de ‘Taquaritinga ou Sorocaba, que ensina seu Beethoven ou, dormidos os fllhos, inda soletra aos ouvidos da rua algum noturno de Chopin. Nao nego que num estabelecimento de ensino, onde uns sacm formados com * distingo e outros com um simplesmente, muita execugio serd mediocre, Nao nego também que no estais musicalmente bem. aparelhados para uma perfeita digressio estética, uma completa distingio de estilos, ¢ mesmo, os que menos quiseram aprender, incapazes de analisar uma forma e determinar uma harmonia. Mas se esta casa nfo se fez como drgio seletivo, é uma verdadeira idiosincrasia patusca, exigirse dos nossos alunos, serem codos bichos ensinados de excegio. Pois ¢ justamente de vs, senhores diplomandos, que se faz. a maior pedra de escindalo contra o Conservatério. Ninguém quer compreender a vossa honrosa finalidade, e o que todos pedem a esta casa éa formagio das elites pequenas. Si a0 menos pedissem elites de musicistas completos, seria apenas esquecer a finalidade do Conservatério, mas o que pedem sio tocadores deslumbrantes, na mais mes- quinha perversio nao s6 da miisiea, mas da propria virtuosidade. Campeia em toda parte, nos lares como nos jornais, nas sociedades artistas como nas escolas, no povaréu das ruas como no povinho dos concertos, na politica. como na politi cagem, a mais completa ignorincia da cultura musical, e em ver de buscarem na iiisica as elevagées estéticas ¢sociais da arte, 6 buscam a sensualidade dum ma- labaris 9 virtuosistico. 264 Pro-Posigées v. 16,1, 1 (46) jana 2005 Contra essa doenga geral, os conservatérios nao podem lutar sozinhos. Faz-se absolutamente necessério que se oficialize o ensino musical, porque s6 a defesa de verbas garantidas permitiréa sobrevivencia de escolas ensinadoras de miisia, exi- sgéncias severas nos exames, estudos completos de humanidades, multiplicagao de disciplinas complementares, disseminasao dos processos de misica de conjunto € © combate ao conceito fogueteiro da virtuosidade. E s6 assim teremos de esperar apenas 0 ajut6rio dos anos ou culpar as qualidades da raga, para a formacio de clites exemplares ¢ elevagio mais intima do nivel cultural do povo. Sem o alicerece duma protesio oficial os conservat6rios, as orquestras, os corais, os conjuntos de cimara, a composigio permanente, ainda nio poderao existir entre nds. Diteis talvez que tudo isso poderd exist pela protecio dos capitalistas, mas ainda nesse ponto a experiéncia permite garantir que quaisquer esperancas se fan- damm na arcia mais movediga. Quem jd viu um verdadeiro mecenas entre nés! So alids raissimas no Brasil, riquezas enormes que permitam 0 exercicio dumm perma- nnente mecenismo. Mas esse nao é 0 maior empecilho, porém. O mais profundo bstéculo ao mecenismo nacional, alguém ji disse, é a obsesséo da Santa-Casa. Nés inda sofremos o peso dessa tradigio culeuralmente devastadora, pela qual quem quer e pode fazer um beneficio, di dinheito pra Santa-Casa, dé dinheiro pra velhice, dé dinheiro aos pobres. Inda bem que se ajunta a essa catidade, 0 dar 8s vezes mais luminadamente dinheito para as criancinhas também. Mas a tradi- s80 grudenca, 0 imperativo que organiza inconscientemente os gestos dos benfei- tores, € 0 horror da doenga ou da pobreza que esmola na rua, De sorte que a Funsio quasi nica do conceito nacional de humanidade, é uma protegio negati- va, por assim dizer; . protege-se a doenga ea incapacidade, ninguém nao lembra de proteger sios ecapazes. Se arrumem!.... Nio é toa que brilha misteriosamente ‘entre 08 provérbios brasileitos aquele inexplicivel “Em tempo de murici, cada um ceuide de sit”... Parece mesmo que o Brasil sempre viveu em tempo de mutici.. Atentai bem, senhores diplomandos ¢ meus senhores: eu niio quero com estas afirmativas dsperas, acusar a caridade em si mesma, nem sequet recusar a protesio a santas casas e asilos. Reconheso mesmo, sem o menor receio de invalidar a mi- nha tse, que essa forma de protesao que qualifiquei de negativa, sempre de algum modo € positiva também, porque defende os capazes,tirando do seu meio o mau «xemplo da doenca e da pobreza-oficio. O que eu indigito como espécic da nossa incultura, € este viver denteo da morte, esse desgalhamento da visio catélica do ‘outro mundo, que nos leva a uma caridade assustada, a uma caridade supersticio- sa, a uma caridade esquecida de que a prépria vida é uma oragio, Ninguém aceita «vida como um beneficio de Deus. Ninguém compreende a existéncia como uma Tura, mias como um perigo de ir pro inferno. E de tamanho obscurantismo, talvez ‘no haja outro pais onde o tinico sistema de emprestar a Deus seja dar aos pobres eos doentes, Dé-se ao ineapar que vai morte. recusa-se a0 capaz que vai fazer. 265 Pro-Posigbes. . 16.1. | (46) -janJabr 2005 Hi uma monotonia opaca em nossas riqueras particulates. E essa compreen- ‘io monocérdica da vida, esse apoucamento da humanidade de cada um na como- ‘0 facilima e garantida dos hospitais. A doenga do corpo inda movimenta os nossos ricos. E no quero indagar até que ponto, a vaidade. Mas como poderao muitos perceber a doenga do espirico, esta generalizada incultura, si eles préprios softer esse mal e se imaginam sios Por sso 0s nossos museus, as nossas biblioteca, nossas sociedades culturais, nossos conservatérios, nossas orquestras nascem lerdos ¢ vi- vem maleiteiro, sofrendo de maleita mais roedora que a remanseada nas dguas bartentas dos rios. O que me revolta, neste moment final da nossa vida em co- ‘mum, senhores diplomandos, nio é a caridade ¢ nem mesmo essa neologistica “filantropia” que a pretendeu substituir, mas o desequilibrio da nossa compreen- so social, que si dum lado, a protegio a doenga, sem ser muita, & tudo, do outro lado a protegaioa inceligéncia, a bem dizer, énula. Nao existe um mecenas no Brasil. Nesta contingéncia, esperar que a sustentagio da miisica nasca da, riqueza. particular, € 0 mesmo que deixar a herdeitos a esperanga, Nés s6 podemos real- mente contar com as iniciativas oficiais. Aproveito, senhores diplomandos, esta ocasiZo solene, que me proporcionais, para langar de vosso meio um apelo grave ao Governo do Estado, para que se oficialize ese desenvolva o ensino da mis entre nds. Todos vimos com malferido espanto, que na constituigio da nossa Universidade, si todas as outras artes eram reconhecidas e oficial mente contempladas, a miisica fora esquecida, Nao haverd por acaso um lugarzinho paraa mais dindmica, para a mais socializadora das artes, ro seio da Universidade de Sio Paulo? E certo que teoricamente eu me concluo contritio a intromissio de escolas de artes no aimbito das universidades. Hi disciplinas nascidas das artes que: essas sim, fazem parte do espirito universitirio, como a Estética, a Hist6ria comparada das artes, a Hist6ria de cada arte em particular, a Musicologja. Mas existe nas artes um lado oficio, um lado ensino profissional, uma ascensio gradativa e nio seccionsvel da pritica dos instrumentos ¢ do material, que em teoria me parece aberrar do conceito de universidade Mas sea teoria me levaa esta conviegao, por outro lado estou convencidissimo, ji agora, que para o nosso pais, afusio dos conservatérios nas universidades, prin- cipalmente si tivermos as cidades uni nosso miisico precisa da existéncia uni xsitirias, sera praticamente utilissima, O rsitiria, precisa do contacto diuturno, da amizade e do exemplo dos outros estudantes, © nosso miisico precisa imediara- mente contagiat-se do espirito universitério, porque a inobserviincia do nosso miisico quanto a cultura geral, é simplesmente inenarrivel, Nenhum nao sabe nada, nenhum se preocupa de nada, os interesses completamente fechados, duma estreiteza inconcebivel,s6 ¢ exclusivamente entreaberto para as coisas da miisica. Nem isso siquer! Cada qual traza sua preocupagio voltada apenas paraa parte da 266 Pro-PosigSes. v.16, 1 (46) - jan abr 2005 risica em que se especializou, Quem quer tenha convivido com nossos misicos, ‘ou apenas seguido 0 ramertio dos concertos, sabe disso tanto como eu, Os violi- nistas vio aos recitais de seus préprios alunos ou dos violinistas célebres, os pia nistas s6 se interessam por reclados. Essa a regra comum, quasi uma lei cultural centre nds, Uma curteza de espirito assombrosa: um afastamento desleal das outras ates, da eigncias, da vida econdmica e politica do pals e do mundo; uma incapa- cidade lastimvel para aceitar a existéncia, compreendé-la, agarré-la; uma rivalida- de vulg. dda miisica e recordista em especialidade. A vida, 2 fssima; uma vaidade de zepelin sozinho no ar. Cada qual se julga dono ida cotalizada, se restringe a uum dac lies, preparar de vez em longe algum recitalzinho e falar mal dos colegas. Vida téo exangue e inodora que no se sabe mais si estamos dentro da musica ou dum mosqueiro de passagem. Esta situagio do nosso ambiente musical é que me obriga, eseudado em vs, senhores diplomandos, a implorar a inclusio dum conservat6rio em nossa Uni- versidade, Um conservatério qualquer. Bu no pleiteio siquera oficializagio desta nossa casa benemérita. Sem diivida alguma, @ Conservatério Dramitico e Mus cal de Sio Paulo, pelo seu passado, pela sua finalidade bisica, precisa, merece, deve, cxige receber 0 apoio oficial. Mas ele, pelo fim a que se destinou, est’ mais apto a oficializar-se em sua agio popular, como um estudo apenas secundstio da iiisica, Ao passo que um insttuco eriado e defendide financeiramente pelo Go- vyerno, conformado pelas exigéncias culeurais da vida universitiria, se destinard fatalmente A formagio das elices técnicas, das elites didticas, dos compositores © alta virtuosidade. E podera forcar as portas ainda apenas entreabertas para n6s, das expressbes coletivas da mtsica. E assim definido o insticuto universit ctisol selecionador das elites, esta nossa casa se definira milhormente em sua fina- lidade primeita de vulgarizadora da mtsica no povo, esta finalidade igualmente virtuosa em que a nio compreendem € atacam os enfastiados do endémico diletantismo nacional A situagio angustiosa da miisica entre nds, nfo se prova apenas pelo problema dos conservatérios, Pelo contrétio: 0 ensino, a pedagogia técnica dos instrumen- tos principalmente, ainda é justo a parte da manifesragio musical que se apresenta sais ou menos organizada. O resto é um total descalabro, que denuncia minuci- ‘osamente, aquela falta de moralidade cultural que denunciei faz pouco. Si fosse apenas a incultura, teriamos apenas de comecar; mas 0 nosso organismo musical esti cheio de coisas mal comegadas, de vicios adquiridos, de tradigSes errdneas, de cegoismos insackiveis, de velharias falsamente respeitadas, frzendo com que a imo- ralidade cultural grasse em nosso meio, buscando enfraquecer as tentativas mais Nio hi divida que a Municipalidade de Si0 Paulo subvencionou este ano ‘uma orquestra sinfonica. Mas, poderemos concertar artisticamente a condigio 267 Pro-Posibes 16, mn. | (46) jana: 2005 das nossas orquestras enquanto as exigéncias sindicais rornam impossivel a const: tuigao de orquestras novas ¢ 0s proprios musicos se recusam a concurso?... Nao hi diivida que hoje Sao Paulo possui um magnifico piano de concerto, quando por muitos anos nos envergonhou o desespero dos grandes virtuose por Wo encontrarem na terra instrumento aceitivel. Era uma situagio insolivel, sio Governo nio a auxiliasse, pois com a queda do mil 5, 05 representantes das grandes marcas nao se arriscavam a importar instrumentos que valiam como ca- sas, Nao ha duivida que Sao Paulo mantém agora um trio de primeira ordem, se esmera na constituigao dum quarteto com maiores probabilidades de permanén- cia, apresenta um coral jé excelente, ¢ ensaia 0 primeiro agrupamento madrigalistico do pais... Quem quer tenha a mais minima decencia cultural, reconhece a longa dificuldade de constitwigao desses agrupamentos que exigem anos para alcangar ‘uma legitima perfeigio. Lucien Capet, o organizador do famoso quarteto que foi ‘uma gléria musical de Franga, aplicou-se dez anos a0 trabalho quartetistico, antes de se apresentar com seu quarteto. Mas num meio deficiente como 0 nosso, onde E desesperadora a auséncia de artistas dorados de cultura estétia, e a maioria dos {que se presumem de cultos sio apenas pedantes condoreicos do culto de si mes- ‘mos, como justificagso dos duzentos e treze contos gastos com todas estas tentati- vas € fixages, os pedantes exigem imediata perfeicdo sem limite, ¢ os ignaros a barulheira, a mtisica de pancadaria nenhuma arte e didrios sons. A muitos soars talvez, eu me aproveite desta solenidade que nao me pertence, para elogiar o Governo. Senhores diplomandos, eu nao vim aqui sino por man- dado vosso, enio pleiteio sino pelo vosso destino. Sempre me conservei fora da politica e posso gritar a qualquer vento que fui chamado a um posto que no desejei, e que representa apenas para mim o sacrificio de toda aquela amenidade, de toda aquela prosperidade pessoal e de toda aquela feliz ilusio em que sempre vivi. O meu trabalho nfo politico sino naquela necessiria condigao dos servigos ppublicos, em que o que se fizer reverte em justificativa daqueles que o permitiram fazer. De resto no hesito em afirmar que o jf realizado é muito pouco para servir de orgulho a qualquer um. As doragies ¢ iniciativas novas, embora incomparaveis com o que i se tem feito entre nés, vém apenas remediar sumariamente a pentiria musical em que viviamos: ¢o esforgo tera de ser muito maior para que possamos atingir uma posigio levantada. Aliés ninguém aqui est mendigando elogios, mas exigindo compreensio. Mesmo porque sera estarmos na mais desprezivel das pre- cariedades morais julgar-se um servigo puiblico mercedor de elogios pelo fato de apaixonadamente servit. E nisto estamos, senhores diplomandos. Uma tradigio, no quero lembrar em que tempos nascida, de tudo desconfia ea tudo arrasa. Nos nao lutamos pela vida nds nos qucixamos da vida. A isso nos acostumaram, e neste detestivel costume 268 Pro-Posiges, v. 16,0, | (46) -ianJ/ab: 2005 perseveramos ainda. A uma iniciativa cultural, codas se queixam porque faltam hospitais ow porque a situagao financeira nao permite luxos. De uma protesio & cultura todos desconfiam porque ainda no se percebeu em nossa terra que a altura & 120 necesséria como o pao, ¢ que uma fome consolada jamais nao equi- librou nenhum ser e nem felicitou qualquer pats, E em nosso caso brasileiro par- ticular, ndo é sublime insatisfagio humana do mundo que rege o coral das quei- ase desconfiangas, masa falta de conviegio do que verdadeiramente sejaa grandeza do ser racional. Nés nao sabemos siquer muito vagamento que faz a realeza do hhomem sobre a Terra; ¢ da propria minoria que ainda soergue a medo o pavilho da cultura, muitos fazem porque ouviram dizer o fxzem porque europeus fazer assim, De forma que si elogiam e pedem a Cultura, ainda continuam desprotegendo ou combarendo quaisquer iniciativas culturais. Nés nao estamos ainda convenci- dos de que a cultura vale como o pio. E essa €a nossa mais dolorosa imoralidade cultural. O qué viestes fazer aqui? (O queircis fazer da vossa vida?... Acaso vos sentis bem aparelhados para veneer © rodamoinho voraz2... O meu anseio de amigo vosso, senhores diplomandos, chega a Jembrar-me de vos desaconselhar 0 caminho que encetastes, Mas ha sem- pre uma ingenuidade contra qualquer crime. havers sempre uma pureza contra qualquer vicio Eu nao vos convido 3 ilusio! Nem vos convido muito menos & conformista «speranga, pois que fui o primeito a vos substituir 0 vinho alegre desta ceriménia pela {gua salgada da realidade. Eu no vos convido siquer& Felicidade, pois que da experiéncia que dela tenho, a felicidade individual me parece mesquinha, desu- mana, muito inétil, Eu vos quero alterados por um tropical amor do mundo, porque eu vos trago 0 convite da luta, Permiti-me a incorregio desta vulgaridade; cla porém nao serd talver tao vulgar, pois que nao vos convido & luta pela vossa vida, nem & caridosa dedicagio pela vida enferma ou pobre, mas exatamence a uta ppor uma realidade mais alta e mais de todos. Ha grave auséncia de homens que quciram accitar este ideal. O maior nimero se tefugia, acovardado, na luta pela sua propria existéncia. Mas se hé falta de ho- mens, facam-se homens! Eesse € deveritrecusivel da mocidade a que pertenceis. Ha sempre uma aurora para qualquer noite, ¢ essa aurora sois vés. Quem quer freqiiente os concertos piiblicos, se surpreende ante a verdadeira multidio de ra- pazes e de garotas que desejam ouvir. Abre-se um curso de Etnografiae imediata- mente se faz necessitio desdobrar as aulas ante 0 ntimero dos que exigem saber. Tnaugura-se uma biblioteca infantil e numa semana os meninos se elevam a uma freqiiéncia de cem didrios; joga-se nos jardins uma biblioteca citculante, ¢ 0s ope- ririos quea buscam cornam-a logo insuficiente. Hé sempre uma aurora para qual- quer noite, e essa aurora sois v6s. E pois que a noite ainda é profunda e vai em meio, cu vos convido a forgar a entrada da manha, Eu vos trago o presente perfei- 268 Pro-Posigbes,v 16, n. | (46) jana 2005 to da imediata luca por uma realidade mais de todos. Ha toda uma mistica nova a cenvergar sobre os ombros, para que o destino nao se desvirtue na procura mesqui- tnha do nosso bem pessoal. Nao desprezo o individuo e sei glorificaras criagSes, as Forgas riquezas de que s6 ele € capaz: porém foram tais os descaminhos humanos nna exaltagio egoistica do individuo, que nos vemos num momento ogro do mun- do em que qualquer idealidade tem de equiparar-se & religido, cujo resultado € fundie. Essa a mistica que se exige de vés, e para a qual eu vos convido, senhores diplomandost E a luta por uma realidade mais alta, mais completa e mais de to- dos. Vosso dominio é a miisica, e infame sera quem julgar menos itil cuidar da iisica que do algodao. Tanto num como noutto destino, encontrareis sempre, como fim final de tudo, a humanidade. E todos os sacrificios que me custaram as frases deste discurso, todos eu fiz por v6s, fiz contente, buscando abrit-vos de par em par, em toda a sua soberania insaciavel, as portas da humanidade. 270

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