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A linha “Arte, sujeito, cidade” dedica-se 4 reflexao sobr arte entendida nao apenas como fazer voltado para pie a cao de artefatos e eventos, mas como Praxis definidora a modos de ser e de habitar a cidade, Nesse sentido, a arte é dita atividade incessante de criacdo de espacos de vida ede autoformacao, de experimentacao de praticas de subjetiva- go e de producao de presenga... Criagéo Definimos a arte como uma atividade incessante de criagdo: é arte a cacao do mundo humano, mundo de coisas e de artefatos que ates- tam, como bem observou Hannah Arendt, que a existéncia humana deixa organizar, como € 0 caso da vida animal, pelas simples exigén- las de conserva4o e reproduc4o que em toda parte definem o com- Portamento dos organismos vivos.' Atividade de criac4o do mundo, aarte é, pois, techné - que, no dizer de Aristételes, “... arremata 0 que *natureza é incapaz de levar a termo”.” Porém, mais do que qualquer es coisa, é arte a atividade permanente ¢ de criacdo de si, de au- , “"as20 humana dos modos de ser e de habitar. o mundo das coisas Snr Dore, a os tian a Ee Seo desta suite nal sida. Prodrn ae eaidade ee autoconstitui¢ao, a arte é inscri¢ao er ape Tis de ae faz ser 0 mundo e que descreve formas S© 23 apr Suag ay no mango. Como arte, o humano faz-se pres q 2 ae Mas proprias de afetar 0 mundo e os outros, & 4¢ P ii fetar. Fluxo permanente de criacg, também se delat te é, essencialment: oem lo dos modos de habité-lo, a arte &, ente, pratica de °¢ (a formacao humana. to) () Formacao humana A dimensio artistica que é propria da experiéncia humana no mun. do abre, assim, para a reflexdo, uma questo tedrica de Primeirissima ordem, que é a concepc4o que temos e que praticamos do humano ¢ do que o caracteriza. E isso é tao mais importante que, queiramos ou ndo, vivemos ainda no mundo que os modernos edificaram - e muito embora possamos hoje facilmente reconhecer, em toda parte por onde y passamos, novas construgées se erguendo sobre o que a nés parecem ser as ruinas dos tempos passados, os alicerces do terreno sobre o nossos pés iam ainda sdo aqueles que a modernidade construiu Por isso é tao dificil - e tao necessdria — a critica das concep¢ées mo- dernas: 0 que delas sobrou se constitui no subsolo de nossa cultur, mas t4o escondido que disso raramente nos apercebemos. Sem um exame vigoroso dos esquemas mentais e dos modelos antropolégicos erigidos no passado, nao poderemos conceber nem criar novas insti tuigdes, compativeis com nossas exigéncias no presente. . Ora, um dos aspectos mais marcantes da tradi¢ao moderna ¢* tendéncia A subsung4o, ou melhor, a dissolucao da sensibilidade¢ e afetividade num continuum racional que tem, ele proprio, Po! O™ © 4 5 i i 5 oper §A0 a reduc4o da razao a apenas um de seus aspectos ~ ° dae i e ; as i i ree mentais responsaveis pela consciéncia imediata, Pel? *4 conhecimentos e pelo célculo, ube Assim, ; . lesta a5) da alma cartesiana a consciéncia lockiana ¢ 4 det jetivid, jy da mo! . : lade transcendental kantiana, construiu-se a Prt” tivel co” tim modelo de humano que, perfeitamente comps! sanci® aS novas exi " la cient *igéncias da vida pratica revolucionada P° 6 eens dev origem a0 que denominamos de we amos puscando defini-lo, 0 sujeito isolado 6 isolado. Taj ome oe coisa, uma construgao social: ele nasce a antes de qual. ae ne de organizacao social e econdmica que j Piltemiakeg condis eS salailh que impéem a cor" sg padroes de sociabilidade anteriores e com suas j _— om 0 was iNstituicses vebase Mas, se & verdade que os novos modos de vida alae < quecimento das saauiane coletivas da existéncia, eles tamb “go por esse esquecimento alimentados, £ a Constituicao subjeti- yecomo um todo - a relacao do humano consigo mesmo, com seu passado e Sua progenitura, com seu futuro e sua descendénci ao saber, seu corpo, seus impulsos, apetites, vontades e tendén- que sofre a influéncia desse isolamento, dessa alienacdo. Tra- se, como afirmou Hannah Arendt, da “privatizacio” do sujeito, ie seu a] lade an6: spartada da viséo do outro, irrepresentavel; nela, essas duas faces ‘parece como indissociaveis ~ a destruigio do piblico levando ao desaparecimento das condigées sociais de emergéncia da plurali- dade sem a qual nenhuma singularidade pode se afirmar. Assim, 2 “privatizacao” é perda de sie, ao mesmo tempo, do outro: significa que os homens estao privados de ver e ouvir os outros, € também de serem vistos e ouvidos por eles.* - Ao final do proceso, afirma Maria Rita Kebl, “..assistimos aemer- éncia de um sujeito que passa a desconhecer tanto suas determina- ies intimas como o carater coletivo, social, das forcas que oatravess & sam, Para se acreditar independente, ‘individual’ entre seus S=m¢ thantes, ele tern que ignorar (recalcar?) todas as evidéncias de sua dependéncia." , desapartado : jstoriae de seu meio * ‘ento da experiéncia de si mesmo quanto de sua Bae e age Soq i 10. “ccial ~cis af a sintese do projeto antropold} ie ed one desta : i eeepn «aoe OF Perspectiva que a educaga0 do eal Sane en, eee Um sujeito sem corpo, ou melhor, de dieciphnar a senoritiade desordenads, como recyryy Ate visando captar & atengado ¢ 0 interesse & manté-log Prisioneing. < vis te desenvolvida, exercesse enfim gor, eS Me af "role que a rane, plenamen Tipicamente moderno, © paradigma antropolégico alude, 1 tanto, a uma construyao muito anterior: ndo 6 dificil identifies, aoe eas da elaboragto plardnica e, desde entdo, tod 4 hiv, do pensamento herdado, que descreve a lenta emergéncia do gy. to moderno. Mas é ainda preciso relembrar que em nenhum own periodo histérico foi possivel fazer coincidir a propria finalidade a formacao humana com 0 desenvolvimento racional, tal como ele ‘ pensado até hoje. Para/Aristételes, a praxis] que era a finalidade maxima da existin. cis humana, correspondia a[trés dimensées indissocidveis: a razio, entendida em seu sentido muito mais amplo de reflexao e de pen- samento; a a¢ao politica, que marca o enraizamento social e a vida entre humanos; e a frui¢ao estética, que da, para nés, a medida da gratuidade sem a qual nao ha formagao propriamente humana & praxis nao tem outra finalidade além de seu proprio exercicio - e isso os ajuda a perceber que, para Aristételes, a eudaimonia, a felicida- n de, nao é um estado permanente a que se chega, mas, antes, pré- ionalidade, tice de que nao podem estar ausentes as exigéncias da r da sociabilidade e da sensibilidade. Como pensar nossa propria exis- tencia? Que finalidades pretendemos.fornecer. i de nés mesmos, & nossa exper ncia no mundo? Bis ai questdes que devem permanecer abertas, pelo menos enquanto nos preocupanes em pensar a formacao humana. E é por fazer-se um constante convir te a esse questionamento onto-antropoldgico que a arte pode, a mew ver, fornecer sua maior contribuigao. Como dominio especializado da cultura humana, a arte se™ di Vida introduz a tarefa de gerir todo um patrimdnio de realizasoes que testemunham da amplitude e da riqueza da vida humans cee yer de se preocupar em dar acesso esse rem? fe evidentemente, do estabelecimento ¢ nde, ere! «dos modos e das condigées de acess nimenio; e isso | a democratizacag } 40 que se constitui jas aas erat comum. 0s ada disso faz sentido se no se tem em : vista o que constitui “Mas ni | cere da ne est indi experiéncia artistica: e que, a menos que muit i 4 to issociavelmente relacionado a experiéncia de fies enga- i a liber. “ almente como realidade ou como proje dade npida sock * rt institute? . : FERC reo to, pensada co- * desafio, manifestada social ou individualmente Por sua ausén noe cia sjo clamor do artista. Surpreendendo e afastando as rigidas fron. em que o humano 6 pensado, a arte se revela, assim, um pe campo de questionamento da formacao humana. E, por pelo menos duas razdes, ela é como gbrigada a realizar a critica das pré- sas cortentes da formacao e seus limites: por nao poder deixar de srabalhar 0s sentidos (termo cuja raiz etimolégica, em grego, remete 3 estética) e por nao poder deixar de lado, igualmente, a questao da criacao, da iniciativa humana. reiras ders Nao se esta tratando aqui, como ficou ja evidente, da famosa questao da educacao do gosto — paradoxo que Kant brilhantemen- te formulou, e, sim, de um dominio constantemente obrigado a se haver com as complexas questées da sensibilidade - que, em seu du- plo aspecto, de instituig4o a cada vez singular, mas também necessa- riamente social, nao se deixa “ensinar”, mas remete a uma pratica; e obrigado, igualmente, a se haver com as nao menos arduas questées da criacZo que, em qualquer acep¢ao em que as pensemos, 40 pode deixar de se referir a uma concep¢ao de humano mais plural e mais ae como eu prefiro dizer, e Ge presenca e aco! Nesse sentido é que se pode e se deve afirmar qui alquer projeto.oe avalorizaco da arte é uma tarefa que se imp6e 4 4 @utonomia humana, a todo tipo de intervensa0 visando 4 pene de nossas instituicoes, e é, sem divida, uma exigencla incontorn Para uma politica publica de educagao autenticamente democratica. generosa, de um ger de corpo e espirito - ou, N Contemple-se, assim, a arte, finalmente entendida como cm eda ae suns modalidades e-em S08 mals diversag gy’ Pit ; tbe, ela da a ver 0 humano que, resistindo ao discurso dentifien, centa-se para nosso proprio pensamento como uma Bie wie interrogago sem Ei ela dé a ver, mais ainda, novos model los ane, pologicos construidos a contrapelo das idealizagbes e dos esq, mentais herdados e também a revelia dos processos instituidos te formacao humana. Marcados por uma corporeidade resistente, desafiadora e matica, esses novos modos de ser reintroduzem a questio mente indecifravel com que a filosofia se defronta desde suas or; mas que a arte, em toda parte em que se manifesta e nas miltiplas formas que adquire, da a ver de forma direta e contundente. Nas franjas do que é a humanidade reconhecida, repousa ease enigma incémodo e hostil exposto em arte, que nos obriga continu. mente a desfazer nossas certezas, a refletir ainda, ea conceder que é afinal, na precariedade que o sentido do ser se consti, NOTAS 2. ARENDT, Hannah, A condigéo humana, 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 98% pass, i 2. ARISTOTELES, “Fisica II”, [Physique, Il, In: PELLEGRIN, Pierre, Aristo uvres completes. Paris: Flammarion, 2014] 3. ARENDT, Hannah, op. cit., p. 67-68. 4. KEHL, Maria Rita, Sobre ética e psicandlise. $0 Paulo: Companhia das| 2002, p. 64 5. ARISTOTELES. “Etica a Nicémaco I", [Ethique & Nicomaque. In: Pierre, Aristote. Buvres completes, Paris: Flammarion, 2014] 120

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