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LEYLA PERRONE-MOISES ALTAS LITERATURAS Escolha e valor na obra critica de escritores modernos 2 reimpressdo oot las LETRAS Copyrigit © 1998 by Layla Perrone Moisée Caps Mocma Cavalcanti Indice onoméstico Maria Clad Carvalho Matos Prepargt: Inabel Jorge Cury Revisto ‘Ana Pata Castellani Er Todos os dito desta eo reservados Rua Bandeira Paulista, 702 6.32 (04532-002 — Sto Paulo —s Telefne: (11) 3707-3500 ax: (11) 3707-3801 sw conspanhiadisletras com br A pesquisa que deu origem a este livro foi iniciada em 1980, na Univer: sidade de Yale, com uma bolsa da Fundagao Fulbright, e terminada em 1998, em So Paulo, com 0 apoio do CNPq. Ao longo desses anos, desenvolvi o tema em cursos de pds-graduacio: na Universidade de Montreal (1987), na Universidade de Paris vii — Vincennes/Saint-Denis (1988); na Unicamp (1995), 0 dislogo com esses alunos qualificados obrigou-me ¢ ajudou-me a Aaprofundar varias questoes. ‘Muitos amigos colaboraram com leituras,discussBes, sugestbes préstimos de livros ou com a publicagio dos resultados parciais em suas revis- tas. Alguns deles jase foram, como Emir Rodriguez Monegal, Jean-Francois Lyotard, Jacinto do Prado Coelhoe David Mourio-Ferreira, Outros, felizmen: 1e, esto muito vivos eativos: Trvetan Todorov, que lew e comentou meu p ‘meiro projeto: Wladimir Krysinski, que me convidou aapresenti decurso, no Canada: 0s colegas da Universidade de Paris vit, que o discutiram ‘Comigo cm seminsrio: Albert Audubert, que me enviou preciosos recortes de Jomal: Joao Alexandre Barbosa, que leua versio final do livro com atengo de especialistae paciéncia de amigo. A todos eles. e 20s nd citados mas lembra dos, meu muito obrigada LPM. INDICE ORIA LITERARIA E JULGAMENTO DE VALOR ... itura da hist6ria literdria eso e permanéncia.. geraisefatos particulares ade e subjetividade 46 ONE DOS ESCRITORES-CRITICOS 1.00.0 ‘cinone, paideuma ol geral das escolhas dos escritores-criticos. 66 foi estabelecido o quadro \SOS EXEMPLARES. saat n-aso de confirmagao: Dante Alighieri (1265-1321) 84 o de recuperagio: John Donne (1572-1631) - 100 de reconhecimento: Stéphane Mallarmé (1842-98)... 111 1941)... 128 |MODERNOS a 143, ncipios que presidem a escolha dos escritores-criticos ..... 143 {comuns aos escritores-criticos 5. A MODERNIDADE EM RU Asescolhas de Modernidade e pés-modemidade. Morrerio os imortais? A literatura na era da globalizagio, 174 179 190. 203 217 233 INTRODUGAO Pela propria etimologia da palavra, critica implica julgamento ‘nein = julgar). Desde sua pratica autoritéria no século XVit, sob a na de decretos da Academia, passando pelas escolhas J pessoais quandoela ating plenitude de seus meios e de seu poder como instituicao autGnoma, critica literdria reivindicou e exerceu a funcdo de julgar. Sainte- Wve, em suas Causeries du lundi, ¢ Bruneti¢re, na Grande Ency- lopédie du XIX’ siécle, declaravam magistralmente: “Criticar € jul- -. Victor Hugo, no auge do romantismo, resolvia sumariamente a st20: “A obra é boa ou ma? Eis todo o dominio da erica” (Prefé- ide Les Orientales). ‘Ao longo do século XX, essa certeza foi sendo abalada. No mal- de um julgamento cada vez mais desprovido de critérios estiveis, critica, modlesta, contentou-se em explicar os textos ou, “cientifica”, ‘a analisar. Até que a desconstruissem, indagando se “o simples ijeto de um hrinein nao pertenceria a0 mimetologismo metafisico”. No vocabukirio critico de nosso século, os adjetivos qualificativos tomnaram raros e discretos. Quando se fala de um “belo livro” ou de “um “grande escritor”, confia-se num vago senso comum partithado ‘Pelo interlocutor. De modo geral, preferem-se os qu “comprometedores: forte, interessante, curioso, sensivel, imaginative, ‘nteligente, astucioso etc. Dentre os adjetivos. dois (que se reduzem a _ um) tém sido utiizados sem constrangimento ao longo de nosso sécu- Ho: novo e original. Nascidos com a estética romantica, os valores ovidade” ¢ “originalidade”, desconhecidos anteriormente, tém tido Juma longa vida. Ao abolir os critérios e as egras clissicas, os romdnti- ificativos menos 9 Te quate persicae cos desencadearam a valorizagao da ruptura e da diferenga. Na célebre postulagao do Belo por Baudelaire (permanéncia e novidade), a mo- dernidade privilegiou o segundo elemento, Mas, medida que nosso século passava, as rupturas e as diferengas se sucederam com tal abun- incia e em tal velocidade que se comegou a questionar: 0 novo pode subsistir a repetigao jd tradicional de sua busca?® O que é original, quando s6 hd diferengas? E quanto ao julgamento: nio é paradoxal ter se, como nico valor estavel, a mudanga? Abolidos todos os cédigos. ficou entretanto um mandamento: contrariar 0 e6digo. (ra, se um discurso sobre as obra literdrias continua aexistir, seu autor ndo pode evitar a questio do valore 0 exercicio de um julgamen- to, mesmo que este seja técito. Assim, juizos continuam sendo emiti- dos, mesmo quando se evita pudicamente a explicitagio de seu funda- mento isto é, suas lei {Quslaveraue sejao “métodade andlise”, cada : Se oh de di vez que uma obra € eleita por algugmcomo objeto de discurso, essa escolha jéé expresso de um julgamento, Lire. élive"("Ler,eleger"), Sintetizava Valé: Dentre as numerosas reflexdes que uma pesquisa sobre 0 juizo estético no século Xx pode suscitar, hd uma que ainda no foi feita de ‘maneira sistemética e que pode ser particularmente esclarecedora: a Oexercicio intensivo da ativid teristica da modernidade. O proprio fato de que numerosos escritores ‘de nosso século tenham acrescentado, a sua obra poética ou ficcional, uma obra paralela de tipo te6ricoe critico tem a ver com omal-estar da avaliagao. Esse exercicio particular da critica, que €a critica literia, se ins- reve num contexto filoséfico maior, de profanizagao da esfera dos valores, ide valorizacao da subjetividadg, de perda de respeito pelas autoridades legiferantes p toncomitante reivindicagio do livre exame ¢ do livre-arbitrio. Desdel Hegel ja propria conccitualizagio da mo- demidade coincide com ua eritica da mesma. Na medida em que a modernidadg se concebe como ollugar privilegiado do qual seencara a historia como um todo, um lugar em que se prepara o futuro e se opera ‘uma ruptura com o passado, bla tem de se autocriicar sem apoi dela mesma, "A modemidade”, diz Habermas, “nio pode e nio quer ‘continuar a ir colher em outras Epocas 0s critérios para sua orientacao, ela temde criaremsiprépriaas regras por que se rege.” E, como lem- uy 10 bra o mesmo Habermas, foi no dominio da critica estética que surgiu, inicialmente, a questo de uma fundamentagdo da modernidade a par- tirde si propria, desde a Quevelle des Ancienset des Modernes (final do século Xvi!) até Baudelaire, o primeiro a usar o substantive “moderi- dade” Napritica, o exercicio da critica pelos proprios escritores se deve, ‘em grande parte a0 fato de os principios|as regras¢ os valores literé- ‘ros terem deixado de ser, desde 0 romantismo, predeterminados pelas ‘Academias ou por qualquer autoridade ou consenso;Diluiram-see per- ‘deram-se, pouco a pouco, os cédigos que orientavam a produgio lite- cédigo moral (0 Bem), cédigo ¢ (0 Belo), c6digo de géne- ros (determinado pela expectativa social), de estilo (orientado pelo Zosto), cédigo candnico (a tradigao concebida como conjunto de ‘modelos aimitar), Cada vez mais lives, através do sSculo XIK e sobre- tudo do Xx, 0s esertores sentiram a necessidade de buscar individual- ‘mente suas razées de escrever,¢ as razdes de fazé-lo de determinada ‘maneira|Decidiram estabelecer eles mesmos seus principiose valores, e passaram a desenvolver, paralelamente as suas obras de criagdo, Exiensas obras de tipo tebrico eeritico. Escrevendo sobre as obras de seus predecessores ¢ contempori- ineos, os escritores buscam esclarecer sua propria atividade e orientar ‘05 rumos da escrita subsequente.|A critica dos escritores ido visa sim- plesmente auxiliar ¢ orientar o leitor (finalidade da critica institucio- nal), mas Visa principalmente estabelecer critérios para nortear uma ago: sua propria escrita, presente e imediatamente futuraNesse sen- ido, é uma critica que onfirma e cria valores ;Enquanto a critica lite- réria institucional, na sua vertente universitéria, tornou-se cada vez mais analitica (com pretensdes a ciéncia) e cada vez menos judicativa, acritica dos escritores lida diretamente com os valores ¢ ¢xerce, sem pudores, a faculdade de julgar. ‘Ao escolher falar de certos escritores do passado e nao de outros, 6s escritores-crticos efetuam um primeiro julgamento. Assim fazen- do, cada um deles estabelece sua prépria tradiga0 e, de certa maneira \reescreve a hist6ria literrig. Os indices dos livros criticos assinados Dor escritores nos fornecem os mapas de seus percursos historicos, as vias de suas revises do passado, Em cada coletinea critica, determina- ‘dos nomes formam uma figura, fragmentada e lacunar com relaco aos “quadros completos" das histrias da literatura, uma figura que sugere wtiqy dot / bonus + ei ‘outra historia, Nesses predecessores, os escritores vo buscar uma lergia ainda ativa. Os valores que eles atribuem aos autores do passa. do nao sio valores a priori, mas aqueles capazes de garamtir 0 prosse~ guimento de seu préprio trabalho e da escrita literéria em geral Diante desse fendmeno do escritor-critico moderno, podemos ccolocaralgumas perguntas, menos coma pretensio de a elas responder ddo que de refletir sobre os valores da modernidade’ por que ¢ como alguns criticos, que so também e antes de tudo escritores, escolhem no, passado certos nomes e certas obras? Que relago existe entre essas lis tas pessonis € as da historia literdria institucional? Que modificagoes essasescolhase seus fundamentos introduzem nessa historia? Existem (Os escritores que constituem o corpus de minha pesquisa perten- em a fiteraturas de diferentes paises. ¢ tm em comum, inicialmente, © fato de possuirem uma obra critica extensa e abrangente, versando sobre diversas les 1972), T. S. Eliot (1888-1965), Jorge Luis Borges (1899-1986), Octavio Paz (1914-98), talo Calvino (1923-85), Miche! Butor (1926), Haroldo de Campos (1929) e Philippe Sollers (1936). Esseseseritores-criticos tém certas caracteristicas comuns, que cconstituem seu “retrato falado”: 1) aeriticanao é, para eles, uma ativi- dade esporadica e ocasional, mas constante, ocupando em suas obras ‘um lugar tio importante quanto o da escrita de criagao: 2) todos esses ‘escritores pertenceram, de uma forma ou de outra, aoque se convencio- ‘nou chamar de “vanguardas” do século xx: 3) todos eles manifestam tuma preocupagao pedag6gica ou programatica, que se exprimiu ou se cexprime, para uns no proprio ensino da literatura, para outros, na reda ‘gio de manifestos, e/ou na publicacao de revistas dotadas de um pro- ¢grama: 4) sio todos potiglotas, cosmopolitas, escreveram sobre auto- ese obras de vitias épocas de vérios paises: 5) todos exerceram, en alum momento. a(ividade da traducio, ligada ela mesma a preocu- pagao pedagégicac ibusca da universalidade da literatura, Esse corpus niio € exaustivo, Outros escritores modernos também cexerceram ou exercem acriticaliteraria, embora de modo mais ocasio: nal, mais individual ou com outras motivagées. Vladimir Nabokov, por exemplo, tem muitas das caracteristicas do “retrato falado”, todas, O mesmo se poderia dizer de Mario Vargas Llosa 2 Acescolha desses oito escritores-criticos no implica uma valorizagio particular ou exclusiva dos mesmos com relagdo a seus pares no que se refere & qualidade de seus trabalhios de criagdo ou de critica. Dentre eles, hd alguns que, pela extensio de suas obras e pelo reconhecimento que alcangaram ao longo do século, jé podem ser considerados nicos”. Outros, mais recentes ¢ ainda atuantes, esto sujeitos a avali es ulteriores, Minha escolha foi empirica, baseou-se em exemplos coincidentes. Quando se percorrem as obrascriticas desses escritores, notam-se certas coincidéncias na escolha de seus objetos. Certos nomes cons zgrados do passado af perman {tempo que outros nomes, esquecidos pelos manuaise programas esco- lares, aparecem com grande destaque. Essas coincidéncias parecem indicar certo consenso, um conjunto de valores que ultrapassa aesfera do gosto pessoal e da mera recepeao,e que afetaria a prépria producao da literatura moderna, Os escritores se encontram aqui na posigdo de leitores. Os teéri- cos da literatura do sculo xx tém insistido na correlagio escrita¢ lei tura, Desde que as verdades comegaram a falta estabeleceu-se que a leitura nao descobre o que a obra contém, em sua verdade essencial, ‘mas literalmente recria a obra, atribuindo-Ihe sentido(s). leitura fo! feconhecida como condigio da existéncia da obra, Ao mesmo tempo, ‘considerou-se que toda obra nova implica, em sua fatura como em sua recepcao, uma releitura do passado liter ima obra ainda estd viva quando tem leitores.JOs te6 “estética da recepeio” enfatizaram o papel do leitor na propria produ- ‘do literdria, sua influgncia sobre as diregdes subsequentes dessa pro- dugio, Entretanto, nio 60 leitor comum (abstragio que s6 porte concre- tizar-se como sombra, pela via indireta e enganadora das tiragens, das, vvendas ou dos documentos relativos a distribuido e ao consumo), mas sim 0 leitor que se torna escritor quem define o futuro das formas € dos valores. que leva a literatura a prosseguir sua histéria nio slo as lei- turasandnimase técitas (que témumefeitoinveri Gia duvidosa, em termos estéticos), mas as leituras ativas daqueles que as prolongarlo, por escrito, em novas bens Erigiro escritor a posig fago aqui, levanta a questio da autoridade. E preciso, po srde que autoridade se trata, Mesmo no tempo er os da B tdoridade Ue ro. aly bo, tavam autoridades, Kant diia que nlo hi autoridades estéticas, por aque ndo se pode provar o bom fundamento dos julgamentos de gosto, Eniretanto,acrescentavaele, hi pessoas capzes de forecerargumen- tos e demonstar, assim, certa autoridade A autoridade do juiz.esté conto reside em sua eapacidade de responder ao objelo, mas. sua capacidade de aniular esa rexposi. Is0€ valido para qualquer er ticode ante. Ora, osescritores-criticosno apenas respondem pormeio de discursos criticos como suas préprias obras sio respostas articul das as obras anteriores. Por sua vez, as obras que soicitam ou provo: cam suas respostas demonstram seu valor nessa capacidade de insti~ 610, para além de seu proprio momento histérico, Dai a importincia Particular das escolhas eriticas dos escrtores como valoragies ding micas do passado A questio da escolha, na obra critica desses escritores, obriga a tocar em vastos assuntos de poética: formacio de cnones, tradigio © novidade, influéncia ¢ intertextualidade, tradugio.|Escolhendo sua prUpria tradigio, esses escritores propsem novos cinones\ Dialogando com 0s autores do passado ou do presente, praticam formas particula- res de intertextualidade, Exercendo a tradusio, arrancam essa pritica da condigao ancilar aque fora relegada pela metafisca da Obra, para promové-la.& categoria de recriagdo, trabalho em comum e (0 que aqui nos interessa) forma privilegiada de critica‘ traduo é, primeiramen ‘e,conseqiéncia de uma escolha significative, em seguida, trabalho compreensivoe seletivo de desmontagem e remontagem do texto ori- ginal, A dimensio critica da tradugdoefetuada por escritores se eviden- cia no fato de esta ser frequlentemente acompanhada de um ensaio cri tico, sob a forma de introdugdo ou de notas; outras vezes, a tradugo ‘constitui uma longa citagdo demonstrativa de um ensaio critic. Dentre os escrtores que consttuem o corpus de minha pesquisa, dois se destacam como precursores préximos ¢ formadotes dos outros: Ezra Pound e T. S. Eliot. As propostas desses dois escritores-crticos anglo-americanos do inicio do século foram assimiladas e desenvolvi- das pelos seguintes. Eliot eolocou, de modo decisivo para a teoria e a cxiticaliterrias do século xx, a questio darelago entre o talento indi- vidual ea tradigao, Pound insstiu na importancia da escolha e propés uma critica ideogramética, por listagem ¢ citagio demonstrativa, Ambos eram didticos, pliglotas, eosmopoitasetradutores 4 Entretanto, Pound é 0 que melhor encarna o “retrato falado” aci- ‘ma exposto, por scu pioneirismo nesse tipo de critica tanto quanto por ‘suas caracteristicas exacerbadas. Quem melhor o define é seu amigo Bliot. Na“Introdugio" a coletanea de ensaios de Pound, diz Eliot: “Ele sempre foi, antes de tudo e principalmente, um professore um militan te [campaigner]" (p. xi). Sua critica se destinava, primeiramente, a foutros escritores: mas é precisamente por isso, diz Eliot, que ela tem ‘um valor especial e permanente para leitores”, como aprendizagem ¢ treino da literatura. A motivago de sua critica “é fundamentalmente a ‘mesma: o revigoramento, a revitalizagio ¢ o|; making new’jda literat ‘ade nosso préprio tempo”. Por tudo isso, Eliot considerava que a obra critica de Pound era “o menos dispenséivel corpus critico de nosso tem- po". A propria idéia sm certa medida, poundiana: I ecstatic {stabelecimento de lstas ou ideogramas criticos) | ~ As marcas de Pound e Eliot se conservam, nos outros escritores- criticos, em graus variados; mas todos foram eitores dos dois primei- 10s. O fatode os escritores de linguas latinas serem tio devedores a dois Anglo-americanos nao deve surpreender. A reflexao individual sobre as fslagtes do novo com a vadigaojem uma longs histra em lingua “Tagless, que tem a ver com a Reforma, no mbito religioso, ¢ com a ‘monarquia parlamentarista, nodimbito politico. Olivreexame da Biblia ‘abriu caminho para o livre exame da tradigio literdria. Diferentemente dos escritores de paises catslicos — onde se instalaram a Contra- | Reforma e a Inquisig0, a monarquia absoluta e as Academias encarre- “ gadas de ditare resguardar valores e regras —, 0s escritores ingleses " foram levados a estabelecer seus valores (¢ por conseguinte sua tradi- | go) de maneira mais live.'A pritica da critica por escritores foi mais precoce ¢ abundante na literatura inglesa do que nas literaturas nco- “atinas. Dryden, Pope, Coleridge, Arnold sio os precursores mais Femotos dessa linhagem de escritores empenhados na critica lteratiae fa tradugio. Em 1759, em Conjectures on Original Composition ‘Young propunha uma relagao com os Antigos baseada na livre escolha ‘enta busca de elementos ainda vivos do passado. ‘A grande eclosio da reflexio critica na obra dos romnticos ale- ies (que, em seguida, inspirou e alimentou de mancira dilufda os ‘escritores de linguas latinas) era informada por discussdes estéticas Prévias, conduidas principalmente na Inglaterra. O proprio Kant ti 1s nha, como referéneias anteriores para sua relexio estética, Joseph Addison, Francis Hutcheson, Edmund Burkee David Hume. Oque nos mos ena recebido das Academias sob a forma de regis teve ito cedo um correspondente mais “democritico” na Inglaterra, onde 0s valores eram uma questio de gosto ede escolha. Por seurelativismo, Hume parece ainda hoje muito modemnolA referéncia inglesaé por toiindispensivel quando se trata de escritores-eriticose, em nosso sé lo esa tradigdo foi canalizada por Eliot e Pound, De tal modo que no se pode falarem escritor-ritico, no culo xx, sem partir dos dois. Por outro lado, se 0s escritores-criticos de linguas latinas leram esses dois anglo-americanoy, estes tinham partido do estudo e da valorizagio da tradigdo romanica, o que instaura uma circularidade nesse processo. A modernidade pretende julgar sem crtérios: 0s ertérios conti- nnuam existindo, mesmo se eles se constituem ad fie e permanecem muita vezes implicitos. 0 que earacteriza ojulgamento modemo, sia ele estético ou outro, € que ele € um juizo reflexivo (Kant) Nao se jul- 0a partir de critérios, mas, ao julgar,criam-se eritérios. Na leitura, como na eserta julzamento é uma questi de invengo, O estudo das obras crticas desses eseritores modernos permit reflexdes tedricasrelevantes para a compreensio da literatura no sécu- o xx. O-exame dos padrdes sobre os quais se esteiam as escolhas dos eseritores-criticos modernos levars a uma discussio sobre a questo dos valores na pés-modemnidade. A modemidade se caracteriza, entre outras coisas, pelo conceito de “projeto™. que implica a questo d {xcolhae do valor. Napss-modemidade, a recusada unidade, da homo: geneidade, da totaidade, da continuidade histrica, das metanarrat ‘as, impede, em principio, ojulgamento estétco.¢ ornaateoriae acti tica improcedentes. Entretanto, o julgamento continua a existir, na ‘medida em que esses contravatores tendem a positivar-se (em oposicio aos valores da modernidade) ea servir de base ao estabelecimento de ssas grandes questdes nfo serdo tratadas aqui com o rigor meto: dol6gicoe formal dostrabalhos cos. ASnumerosas re que aparecerio ao longo deste livro foram colhidas através dos em varios lugares, vériaslinguas e variadas edigaes, de modo que sua homogeneizagio se torou dificil. Na medidado possivel, fornecereia meus colegas universitirios as fontes de minha pesquisa. Mas a opcio Por uma forma de exposicio clara einformativa, assim como pela tra- wend 16 do das citagies, se deve ao desejo de que nido apenas os especial ftenham acesso ao que aqui se discute. ‘O que proponho ao leitor é um passeio pelo espaco lite {como guias alguns escritores modernos. Este & um pequeno livro ‘um assunto vastoce talvez infinito: 0 da oscilagdo dos valores na Literaria, E um livro para amantes da literatura, num momento que se detectam (com indignagiio ou resignagdo, 3s vezes com indi- a) sinais muito claros¢ universais de desaprego pela leitura e de jnio do ensino das “humanidades ‘Numartigode 1894,"0 académico Gustave Lanson descansava de lescritos “cientificos” devaneando sobre a questao: "Como um itor se torna imortal?”. O historiador literirio comentava, entdo, fesse tipo de elucubracio permite “toda espécie de considerag is do jantar, entre etrados, quando se terminou 0 trabalho do dia e fo se quer discutir politica”. Hoje em dia o letradoé uma espécie em io, ca pergunta de Lanson poderia receber uma resposta scendo na televisio”, ou “Tendo um site na Internet”. Entretan- algum letrado remanescente ainda se dispuser a csse tipo de con- ‘ele saber que a mesma, contrariamente ao que afirmava Lanson, tem de fil; ela gnvolve valoresestéticos. éticos,eimplicaneces- ne questdes politica. 1 HISTORIA LITERARIA E JULGAMENTO DE VALOR |REESCRITURA DA HISTORIA LITERARIA Durante amaior parte do século xx, ahist6ria litedria foi uma dis fina em queda de prestigio. Muitos dos enfoques da obra lteriria, nosso século, foram imanentists, privilegiaram 0 aqui e agora do sobre ocontexto suatemporalidade, Apesar das diferengas eda 080s, 1 estilistica, o formalismo russ, 0 “new criticism”, a feno jologia literdria,o estruturalismo e a semidtica dispensaram ou imizaram a histri Os te6ricos de inspirago marxista mantiveram, obviamente, a sxio hist6rica: mas, por considerarem os fendmenos de superestru- ‘excessivamente dependentes da infra-estrutura, defendendo a reoria doreflexo” ou. no pior dos casos, por forgarem a historia daarte “Aespelhar um progresso revolucionério,atrairam toda espécie de eriti- £2, inclusive de outros marxistas menos ortodoxos, e acabaram por “Contribuir para o descrédito da historia literdria como disciplina stil Teflexio estética Em 1970, no vi Congresso da Asso Tatura Comparada, René Wellek fez um balanco da triste situagio d histéria literdria, numa comunicagao intitulada “A queda da histéria litera” (“The Fall of Literary History", Diziaele, para comecar:“E ‘Muito dificil negar que algo aconteceu com a historiogratia literiria, Algo que pode ser descrito como declinio ou mesmo como queda” {P.29). As causas dessa queda eram por ele enumeradas: “o factualis- Mo atomistico dos estudos lterrios eo resultante antiquarismo"; “o Gientificismo a-critico que pretende estabele iagdo Internacional de Lite~ +r relagées causais” 19 (erie obras entre vidae obra} “afala de foo" (fata de eitéios na ha do corpus a ser estudio). Depos de apresentar as diferemtes proposas de nosso século, no sentido de renovar a isria litera, Welle concli:“O proprio material dahistria lier Iho com base em valores. LA histéia no pode diver ica eelicasignitica uma referéncn constateaum sistema de valo- tes. que énecessariamente ode hstriador” (p34) ‘Obalango de Wellk incl consideragdes sobre a enti recen tienda ecepga0" esobrea propos de Jauss relativaahistria tri, aus iera também um balangoda questo em “A histériada literatura: um desafioa teoria teria A avaliagdo de Jauss no ¢ tito diferente da de Week, mas suas propostas sto outas fundar 8 histraiterdra sobre uma esttica doeeito produzidoc da eeepc reconstituirohorizont de expectativa do primeiro pablo: dterminar a distneia esttica ene ohorizonte de expectatva anterior o post rior obra: ecolocaraobra em eu contestoenasérieliteraraseombi par diacronia¢sncrondal As proposts de Jauss repousam sempre sobre aafiemagto do. papel fundamental do leitr. Mas ele no define suficientemente esse Into, nemindiea wn modo seguro derecuperar sua ago abstr. A reago de Wellek a esa proposta é prudent: “Devemos reeber com apreg aénfase dada a aspectosaté agora inexplorados da itis ite pric, aesética da receps io’ no pode ser oua coisa senio ahistria das interretagdes critics efetuadas por autores le tors, uma historia dagostSque sempre steve inculdn na hit ica” (p. 35), Fossem ou nl pertinent os reparosa propostade Jas. aque. noexato momento em que Wellekestbcleciaoaestado de dito dahistria litera, esta enascia das cnzas, na esticadarecepgio¢ emoutrasreflexdestericas 0 fim do peiodoesirauralista ace anos 70, coincdia com a volta do interesse plaisir. Entelano, no ter. Teno liter, ess interesse tem se anffestado misma anise de tex. tosem que se verfca\naorntersseposdadoshistricos, do que ma prépria hisoriogratia.Apesar das emtativas de atualizagio da histerio, traf iterdria, esta continua sedebatendo com alguns de seus atgos problemas: limites de seu campo, vsada nacional ou intemacional felatodiarénicoousincrnico, papel do autor edo Ictor ete e com um problema nove: a desconfianga dos” grandes relaton deve ser esco- 20 A crise da historia literiria, na verdade, data das origens da disci- pplina. Tendo se firmado, como disciplina académica, no periodo éureo ida histéria geral, a historia literdria tentou, de inicio, seguir os princi ios daquela c logo enfrentou os problemas decorrentes das diferengas seif objeto, O principio de causalidade, a busca da objetividade, “nosiiode progressoe ou as preocupagdes da historiografia posi fivista mostravam-se inadequados para os fatos estéticos. Por outro Jado, as transformagSes da historiografia através de nosso século supri- Imiram alguns daqueles problemas iniciais. mas criaram outros, no que ¢ A harmonizagode principiose métodos da historia lit Jaco aos da hist6ria geral. Hoje, os historiadores ja abandonaram a tensio a objetividade, a crenca num progresso da histéria etc. Mas is mentalidades, 0 inovas tendéncias da historiografia — a histori xdono ds “grandes fatos e grandes homens” em proveito dos at ‘anénimos da histéria — s6 podem redundar num uso dos fatos esté pela histéria geral e no numa historia especifica dos fatos este ‘como tais. A historia dos leitores, da difusdo das obras, do gosto nada época, da literatura popularete.tem um interes ‘instituigdo lite jioem de histérico.e sociol6gico indiscutivel, masconceme "eno as obras elas mesmas como fendmenos estéti ‘A questao fundamental, levantada por Wellek e no por Jauss, € julgamento de valor implicito em todo discurso histrico,e ainda © mais quando se trata de historia daare, De fato, nas numerosase exten- "sas considerades tecidas em nosso século sobre a historia litera, a uestio do julzamento de valor éevitada ou fica implicita. Todos con- ordam em que ahistériadeve sereritca, masaconeordncia seriabem enor se se discutissem os valores que devem presidira critica, Sendo IPonto pacifico que offigementy de-valor¥é contingente e relativo, os historiadores da literatura julgam sem explicitarcriterios, como se se Teportassem a um consenso acerca de obras maiores e menores ‘Todos os balangos e propostas relatives i hist6ria lterdria ganha- riam em partirda seguinte pergunta: para que serve a histra litera? Tal pergunta repousa ou redunda, em dltima instncia, na questo: para que serve a literatura? Se nés acreditamos ques literatura tem a alta ut lidade de esclarecer.alargar ¢ valorizar nossa experiéncia do mundo, Admitiremos que a hist6ria do conjunto de suas realizagoes maximiza © proveito que podemos trar do contato com cada realizagio particu- far. E sea fruigio da literatura, no seu mais alto sentido de conhe 2 to € valorizagao da experiéncia humana, & 0 nosso objetivo, seremos levados a defender um certo tipo de historia lteraria: aquele que otimi- zaa fruigio das obras. A pergunta “Para que serve a hist6ria?” foi colocada, no fim do século pasado, por Nietzsche, numa""consideragio intempestiva” inti- tulada “Da utilidade e dos inconvenientes dos estudos hist6ricos para a vida") Trata-se de um texto do joven Nietzsche (1874), dirigido con- trao historicismo entiodominante, Podemos reler as consideragées do filsofo ¢ tentar estendé-Ias para o caso especifico da hist Nietzsche parte das seguintes premissass ria literdria. AA vida necessita dos servigos da histéra, é Wo necessério que nos con: Vvengamios disso quanto de outra proposta que demonstrarei em seguida, a saber: que o excesso de estudos hist6ricos € nocivo aos vivos. A hist ria pertence a08 vivos sob trés aspectos: ela Ihe pertence porque ele ¢ at ‘Yo e desejante: porque ele conserva e venera; porque ele softe e precisa serlibertado.A essa tindade de relagdes correspondem r8s espécies de historia. [pp. 86-71 vE" As trés espécies de historia distinguidas por Nietzsche siio as séguintes!hist6ria monumental historia antiquériag-hist6ra critica, A hist6ria monumental € aquela que privilegia os grandes ‘momentos, os “cumes da humanidade” que “se unem nas altura atra- vés de mithares de anos”, aqueles momentos em que se cumpre “uma ‘obra, uma ago, uma claridade singular, uma criagdo”. A histéria monumental tem uma “veridicidade icnica” (p, 91), isto é, ela forma uma figura que une os pontos altos e ndo segue uniformemente a linha de tudo o que aconteceu. 8 vantagem da hist6ria monumental & ade estimular o homem para a8 grandes coisas, jé que ele conclui que “o sublime que foi outrora foi certamente possivel outrora,e sera, por con- seguinte, ainda possivel um dia” (p. 90) 0 inconveniente dessa histo- ria € que tudo.o que é menor, mas que também existiue viveu, édespre- zado| Ela leva“o homem corajoso aempresas temerériase oentusiasta a0 fanatismo” (p.92). Outroinconveniente é que elapode servirde pre- texto para desvalorizaro presente, sugerindo que s6 outrora houve © grande o bom.) ‘A histériaantiquéria’corresponde a um|amor do passado por ele priprio:"A alma conservadorae veneradoradohomiem antiqustio para la se transporta e ld elege domicilio” (p. 95). A vantagem dessa historia € que ela nao injusta, ja que conserva tudo, sem conceder privilégios. (Na verdade, Nietzsche nit parece ver grandes vantagens nesse tipo de storia.) O inconveniente, que o filésofo chama de perigo,é que ahis- ia antiquiria guarda tudo com “uma curiosidade insaciével, 0 Vi to mesquinha”, e “alimenta-se com alegria da pocira das bagate- blbLiogrificas”. Assim, ela\conserva o que foi vivo, mas nfo gern impede a robusta deciso em favordo novo! (pp. iticajulga o passadoe ocondena, em nome do presen- injusto; mas viver, paralNietzsche, é ser injusto, e “que osquecimento do pascado, decorrente da conde: Jo, € um estimulante da vida. Viver € esquecer} O inconveniente & elaefetua um recalque do passado, uma negagio das origense, quer ramos, quer ndo, pertencemos a uma cadeia de eventos. E possivel e instrutivo aplicar a tipologia nietzschiana a historio- literdria. A\histéria monumental corresponderia uma histéria ra fortemente valorativa, em que s6figuram as grandes obras, ’sombra toda a produgo menor, O que € grande ou pequeno nde, & claro, do sistema de valores do historiador. Assim. perten- Sem & historia monumental tanto os “précis de littérature” (do tipo andes Vultos de nossa literatura”) quanto o idiossincratico paidew ‘de Ezra Pound.* Entretanto, se seguirmos os principios de Nie~ che, 0 “précis de ltérature” € a historia monumental em sua forma orwveniente, ¢ 0 paideuna poundiano, em sua forma util; porque © meiro imobiliza a grandeza no passado, € 0 segundo prope a gran- za passada como para serrealeangado na produgio do presente. Jou noutro caso, entretanto, no estéexcluid o risco de dogmat je que Nietzsche vé na hist6ria monumental, ‘A historia antiqudria corresponderia ao levantamento minucioso {erudito feito pelos tratos de bibliotec4"”, que recothem tudo 0 que se luziu na literatura de um pais ou de uma época, com um gosto ‘muscol6gico generalizado, O historiador antiqusrio deseja, também, estabelecera visio contemporanea dobra estudada, isto é,a visio pas- ‘sada do objeto passado. A vantagem disso é um conhecimento extensi- YO, erudito, histrico. O inconveniente € que saber como se esereveu € '8¢ leu no passado, considerando tudo igualmente interessante s6 por- {Que existiu e existiu daquela maneira, tem pouco poder estimulante Para a producio e para a fruigao da literatura no presente vivo. A historia critica, como vimos. é para Nietzsche o julgamento severo e condenatério do passado. A palavra critica tem. ai, um senti- do negativo. Por ser essencialmente moral, esse julgamento € o que menos se presta a transposigdo para o dominio estético, Entretanto, podemos ver tracos dessa atitude nos defensores da histéria monumen tal quando esta, fortemente ancorada noy valores do presente, enterra inapelavelmente grande parte da produgao passada, recalcando assim ‘suas origens menos nobres. Convém nao esquever que as grandes obras- (ocorrem tendo como chao e hiimus uma cadeia ininterrupta de obra ‘menores, ¢ que os produtores da literatura presente sio to devedores das grandes obras do passado quanto dos milhares de obras menores que prepararam terreno para as maiores. O balango final de Nietzsche, sobre as vantagens ¢ inconvenien- tes de seus trés tipos de historia, 0 seguinte: ‘Cada homem, cada povo. segundo seus fins, suas forgas ¢ suas necessi- . Remete A obra de Gracin. Agudeza y arte de ingenio, “um livto itura deveria ser obrigat6ria para todos os nossos poetas jovens” ele mesmo, a agudeza, praticada pelos barrocos espanhdis e ne A aguuleza é um conceito que maravitha ao préprio entendimento, que rela se contempla e se assombra. A maravilha da agudeza consiste em descobrir relagdes escondidas¢ assim nos faz ver que ndo sabiamos,em dade, aqui que acreditavanos saber. E um atficio que altemativa- mente descobreerecobre as coisas. Deamibasosmodos, ost se fossem indi [.] Nngum foi mais aguda do que os measicos ingleses. fp. 26] Ficam evidentes, nessa definigdo, tanto as afinidades dos metafi- sicos ingleses com os barrocos e conceptistas ibéricos quanto suas semelhangas (af nio indicadas, mas importantes para.o poeta Paz) com «poesia surrealista, de Lautréamont a Breton. Afinal, 0 famoso encon- trodo guarda-chuva coma maquina de costura, evocado nos Chants de Maidoror inspirador do surrealismo, era uma “agudeza” de Lautréa mont. Paz informa que foi animado pelas excelentes tradugbes de Donne, publicadas por Jaime Garefa Terrés na Revista de la Universi: dad de Mexico em 1958 que, naguele mesmo ano, fez a tradugao do poema que agora reapresenta, Sobre 0 vocabulirio desbocado de Donne, que chocou a Inglater- raaté a época vitoriana, Paz comenta: Apesar do uso e abuso de palavrdes com que pretendem assombrar-nos ‘seseritoresatuais, as linguas do séculoxx so menos lougas eterestes, ‘mais pobres e timidas que as dos séoulos passados. Os modernos exp ‘cam 0 espirto pelo corpo, no que talvez tenham raz, mas no conse quem reconciliarse com seu corpo. A linguagem reflete essa situago, ‘As coisas tm um nome. quando esse nome se torna indizvel, € que a Jnfeceao da vida aleangou também a das palavras.[p. 28] Em Las hijos det fimo (1974), Donne écitado duas vezes. Em Ver siones y diversiones (1974), Paz traduz dois poemas de Donne: 'Elegia: Antes de acostarse” e “El aniversario”. Nesta tltima tradugo. toma-se ainda mais evidente a afinidade de Donne com os barrocos cespanhdis: “Todos los reyes. todas sus privados! Famas, ingenios, glo vias, hermosuras Desde muito jovem, Michel Butor se interessou por Donne, tal vez por aquela mesma busca indicada por Paz (a conciliagao da reli gio coma sensualidade) ecertamente poraquela mesma afinidade do 108 tismo com o surrealismo, corrente na qual Butor estreou como ‘DartigoSurte ‘Progrés de "Ame de John Donne™ éde 1954 jor comesa por declarar:"O Progresso da Alma’ €omais ambicio je mais estrunho de todos os textos que Donne nos dea. tam um dos mais dficels deer, porsua densidade rugosa e sua gram adesenvolla”(p. 20) Butor lembra quc o tema do pocma é a transmigragto de uma 8, desde a maga colhida por Eva até o corpo da rainha Tabet ido por virios corpos de animais.O tema é portantosairieoe co, Butor vé, na obra, uma “autobiografiafantéstica”. Donne, tendo nascido catdico se convertera de modo um tanto oportu- 20 anglicanismo, se consideraria to herege etraidor quanto a. A mudanga de tom, no fim da obra, de sarcastico a apologé- (0 livro termina por justificar a licaria por esse aspecto aulobiogrfico e pela muck 0 decorrer da escria ‘As qualidades que impressionam Butor nessa obra sio “seu 80 poder descritivo, a faculdade que ele tem de retratar a vida al, por assim dizer, do interior”. E, concluindo: Enfim, em nenhum outro dos textos de Joh Donne aparece mais cara mente essaqualidade que escandalizava to profundamente seus leitores dos séculos passados, quero dizer: essa negagdo sarcistica essa incon: sgruéncia deliberada, esse questionamento to profundamente ressent- do. Donne sentiu-seele mesmo num mundo que desabava, como os poe: tas franceses do fim do século xix, exprimiu sua alice por meio de um. humor muito particular, que merece ser aproximado do deles. Se Donne ‘setorou inteligivel.€ porque o éerau que varios séculos de compromis- sotinham estabelecido diante de algumas questdes fundamentais. de que cle tna plena conseigncia, desabou.{p. 27] Como vimos acima, ao resgatar Donne, Eliot também o fazia luz tas franceses do fim do século xix, Laforgue e Corbiere, ambos sperados” num passado mais recente. A escolhae valorizaya0 dos ritores do passado pelos escritores-criticos se efeluam, uma vez is, pela letura sincronizada como presente. leitura sinerOnica dos itores-criticos no ignora a diacronia; apenas scleciona, nesta, ntos que evidenciam a evolugio das atitudes ¢ formas literdrias 109

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