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(CH50) Essa citagéo é provocante porque, indiretamente, nos leva a colocar as seguintes questGes: Serd que a criagao é privi- légio de algumas pessoas que receberam um talento singular, um dom divino? Seré que as praticas pedagdgicas que estabe- lecemos, tao tradicionais ou criativas quanto elas possam ser, afetam verdadeiramente a criagao? Se nao pensarmos que a criacao artistica pode ser alimentada por condigées pedagdgi- cas particulares, entao, logo de safda, essa mesa-redonda ¢ inti- til, e nao adianta nada procuramos procedimentos inovadores de formagao, como o titulo da mesa-redonda nos convida. Felizmente, nao s&0 todos os artistas encontrados que, em nome da arte, desresponsabilizam-se das exigéncias que tém para com os bailarinos, pois levada ao extremo, essa atitu- de poderia levar a crer que nao é 0 coredgrafo que pede coisas excessivas, mas que é a obra que exige isso. As falas a seguir, de uma ensaiadora, denotam uma atitude diferente: “Trabalho realmente para os bailarinos, trabalho para o humano. A criagéo é um objetivo, mas é o humano que me interessa. Eu ajudo as pessoas a se descobri- rem, ¢ essa descoberta permite o surgimento de uma obra”, (RF42). As ensaiadoras, que sao, sobretudo, mulheres, parece- ram as mais cuidadosas com a integridade corporal dos baila- rinos. Enquanto na primeira citagao a obra é valorizada, na segunda a pessoa é mais. No contexto dessa mesa-redonda, é 118 0 processo formativo como construcao de novos procedimentos criativos interessante se perguntar: O que nos propomos em nossos pro- gramas de formago? Priorizamos 0 advento da obra ou 0 de- senvolvimento da pessoa? &, Ultrapassar os limites Como havia destacado anteriormente, a ultrapassagem dos li- mites é fortemente constitutiva do discurso dominante que foi extrafdo de nosso trabalho de pesquisa. A danca, para ser inovadora, convida os bailarinos a se arriscarem sem conside- rat, Ou quase, 0 custo fisico ou psicolégico a se pagar. Se, idealmente, a satisfagao dessa ultrapassagem é partilhada pelo coredégrafo e pelos bailarinos, fato é que as consequéncias fisi- cas do risco sao mais assumidas pelos intérpretes, ao passo que o reconhecimento da originalidade da obra é atribufdo ao co- reégrafo. Longe de mim a intengao de polarizar os criadores e os intérpretes, pois ao final de um longo ¢ complexo processo de incorporagao do discurso dominante da danga, todos interiorizaram formas de perceber, de pensar e de agir que con- vergem para uma grande devocao & arte como testemunha essa citagao de uma bailarina: “Nao ultrapassar os limites do bailarino torna essa danga uma danga muito certinha, uma danga banal. Isso pode ser interessante, mas nao é assim que uma arte progride”. (IF 46). Os artistas apresentam, todavia, nuances sobre esse tema da tomada de risco. Mesmo adotando uma concepgao de arte 119Sylvie Fortin que dita as vias a seguir, os coredgrafos nao podem abstrair os rastros que seu trabalho deixa no corpo dos bailarinos, Os bai- larinos constroem a obra ¢ os coreégrafos, inversamente, par- ticipam da construgao dos corpos neles impregnando sua visio do mundo, o que Dantas (2008) esclareceu magnificamente em seu estudo sobre 0 trabalho da Lia Rodriguez Companhia de Dangas e da companhia Dona Orpheline Danse de Sheila Ribeiro. A questio da integridade corporal interpela, portan- to, profundamente alguns coredgrafos, como revela esse co- mentario de um deles: “Pessoalmente, sei que eu estou constantemente colo- cando meus dangarinos numa situagao desconfortavel. Entao, onde estd o limite entre se esforgar para corresponder ao que é pedido ¢ levar longe demais este esforgo, e depois se violentar e se machucar?” (CH49) Selecionei essa citagdo porque ela toca nos desafios éti- cos da criagao em danga. O tratamento tangivel do corpo no cotidiano do esttidio assevera um aspecto ético da danga tanto quanto aquilo que é mostrado em cena. Surpreendentemente, enquanto muitos coredgrafos, no subtexto de suas obras, de- nunciam injustigas humanas, poderfamos esperar uma con- sideragao sobre a satide ou o bem-estar dos bailarinos no esttidio, mas nem sempre € 0 caso. Um coreégrafo pode utili- zar métodos autoritarios e abusivos ao ensaiar, mas colocar em cena propésitos de emancipagao e de liberagdo. Naomie Jackson (2004) afirma que numa perspectiva normativa (que tenta distinguir o bem do mal), os coreégrafos nem sempre consideram suas acdes em fungao das consequéncias decorren- 120 0 processo formativo como construcdo de novos procedimentos criativos tes delas. Os valores estéticos séo supremos, e a dimensao mo- ral é, segundo ela, muito frequentemente evacuada. Uma obra- prima, escreve ela, ser4 automaticamente associada a um pro- cesso criador moral e a individuos que agem moralmente. Se acontecer de um coreégrafo agir de forma imoral, isso seré con- siderado como uma exce¢ao ou uma necessidade a servigo da obra. Em relagao ao tema dessa mesa-redonda, ha ainda aqui quest6es que podem alimentar nossa reflexdo: em nossos pro- gramas de formacao, como encorajamos os jovens bailarinos a se engajarem de forma ética em seu percurso? Como ajudé- los, quando estao em curso de formacao, a tomar consciéncia dos elementos, as vezes paradoxais, de suas escolhas? O corpo ideal Enquanto alguns artistas mostram uma aceitag4o, ou por ve- zes mesmo uma resignacao, diante das praticas usuais, outros ousam fazer um questionamento do discurso dominante que nos pareceu fortemente marcado por uma nogao de corpo ide- al. Os pontos de vista variam grandemente, é dbvio, como ilus- tram as duas citagées seguintes, uma de uma bailarina profis- sional e outra de uma estudante: “Fico surpresa que algumas pessoas ainda vejam 0 cor- po de um dangarino contemporaneo do mesmo jeito que o de um bailarino. Eles tém de se machucar, ser magros, sem tatuagens, perfeitos, Entrei para a danga contempordnea porque achava que essa mentalidade tinha acabado. Quando descobri que ela ainda estdSylvie Fortin presente, tive de subir pelas paredes. Serd que isso sig- nifica que pessoas como cu ¢ a Emilie nao temos lugar ali?” (EF19) “Qs rapazes nem precisam fazer aula de danga! Eles fazem trés meses de danga ¢, se um homem ¢ pelo menos bonito ¢ esta em forma, as companhias vio di- zer: “a gente vai te formar”. Mas para as mulheres mais dificil. Os coredgrafos tém muito interesse em um corpo de bailarina.” (I.E,42) Esta ultima citagao evidencia diferengas de género devi- do & competitividade das mulheres, em maior ntimero se com- parado aos homens. Mas sejam homens ou mulheres, sao inti- meras as exigéncias para os bailarinos que devem dar prova de capacidades técnicas virtuosas e de uma bela aparéncia (ainda mais para as mulheres, como sugerem essas citag6es), de um grande engajamento fisico ¢ psicolégico, de uma grande disci- plina, de desejo de correr risco e do excesso, de uma presenca singular, de capacidades de improvisar, etc. Em Montréal, ape- sar de observar uma influéncia das tendéncias minimalistas da “nao danga” europeia em algumas obras, a maior parte da pro- dugdo pode ser descrita a partir de um pressuposto com rela- Gao & virtuosidade ¢ um interesse marcado por uma estética do “excesso”. O corpo do bailarino contemporaneo € tanto “um corpo virtuoso quanto um corpo intimamente sentido € vibrante de presenga, tanto um corpo atlético e virtuoso quan- to um corpo poético e capaz de abandono; tanto um corpo regulado pelo trabalho quanto um corpo apaixonado e gene- roso, tanto_um corpo objeto quanto um corpo sujeito. Susi 122 processo formativo como construgao de novos procedimentos criativos Silva Weber (2010) apresenta, alids, uma rica reflexao sobre a formagao € a construgao de modelos de corpo em danga con- tempordnea, analisando a pratica artistica de trés bailarinos- criadores que se destacam com relac&o as praticas dominantes em danga contemporanea. Os resultados de seu estudo mos- tram que é possfvel escapar daquilo que ela denomina como corpo glorioso, que se constréi no 4mago de prdticas em que se destaca uma normalizacao do corpo. Através de escolhas in- dividuais, como praticas de formagao marcadas pela educagao somatica, e pelo desenvolvimento de redes de trabalho nao hicrarquizadas, ela mostra que é possivel treinar, criar e difun- dir fora das normas hegeménicas. Ela mostra a autonomia de trés bailarinos-criadores que podem evoluir tanto 4 margem quanto no interior de campos de grandes produgées. Responsabilidade individual A relagao dos artistas com a arte pode ser marcada por discur- sos, dominantes e alternativos, que se entrechocam em sua vivéncia e que os forgam a negociar de forma concreta a com- plexidade de sua relagao com 0 corpo. Mas isso nao é evidente porque os artistas, em decorréncia de sua socializacao frequen- temente bastante similar, adquiriram um /abitus? para reto- mar um termo bourdieuziano. Por exemplo, estudos conduzi- dos em diferentes pafses estao de acordo em estimar em 70% a taxa de bailarinos lesionados. No meio da danga, 0 softi- | mento é normalizado; ele tornou-se um signo de devocao & arte ou uma espécie de prova tangfvel de sua paixio. Nao se pode esquecer que a danga repousa sobre uma leitura das sen- 123sel swewoy wm op 2 JoYyNu PUN ap s2osey -19 seurxoid senp se oss} ureasary “orougyis Op vMa]Nd ep euler ass ® OvSepar WOO aIUaUTEpITU as-woNBuNsIp susuToY Sop 2 SaTaY]NUT sep SOLTEIUEUTOD SC * LUTE 2 OdyOD ap as-rep,, aodns ogden anb ossed ov ‘oyesZoas09 win ered o8je sesnoar said -Ipiur so ered [yp s1uaUTeUTANIXe as-vpaAor “eULIOU & OsUDS -SIp ap sapepl[aa sep zesode onb serquisy osisard 9 mby (87a) .2pepisiaatun v apsap soursow sou ved sowynnsuos anb ovseindas vu g sreaesuos ure aonb saponbe urgqures wmero soxossajord sassa onbiod vyzej sv na ‘sepespise sesto> werpod soyes89a109 so opuenb ‘gpeprsiaaqun vu g “ppAayssod svossad ap oxoumnu sou SUI © WOD OSSIP IeTE] NOA ‘OUDUTTIJ WIN IATL Nd ag, ropepisiaarun vu opseur -10j ens Naqazas anb yeuorssyord evurrejreq eu ap oyUNUTaI -san_assa vIsaIe OUTOD ‘souTIETIeg suaao! so ered Opad ON! as -nasapoqeise OIUZ|IS Op eIMINT euIT] “soyesSoas0o sor oYequsa op ezainp & 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ISBN 978-85-87776-09-9 1, Arte ¢ ciéncia 2. Arte — Pesquisa 3. Teatro I. Ramos, Luiz Fernando CDD 21.ed. - 704.9495