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humildade, assinalo um precursor distante e possivel: © cabalista de Jerusalém Isaac Luria, que no século XVI propagou que o espfrito de um antepassado ou mestre pode entrar na alma de um infeliz, para con- forta-lo ou instrui-lo, Chama-se Ibbiir essa variedade da metempsicose }, 1 No decurso desta noticia, referi-me a Mantiq al-Tayr (Co- Iquio dos péssaros), do mistico persa Farid al-Din Abu Talib Muhammad ben Ibrahim Attar, a quem os soldados de Tule mataram, fitho de Zingis Jah, quando Nishapur fol espoliada. Talvez nao consiga resumir 0 poema. O remoto rei dos pdssaros, o Simurg, deiva cair no centro da China uma pluma espléndida; os pdssaros resolvem buscé-lo, cam sados de sua antiga anarquia. Sabem que o nome de sett rei quer dizer trinta pdssaros; sabem que sua fortaleza estd no Kaf, a montanha circular que rodeia a Terra. Empreendem @ quase infinita aventura; superam sete vales, ou mares; 0 pome do pentiltimo.£ Vertigens; 0 tikimo se chama Anigui lasdo.” Muitos:pereprinos desertam; outros perecem, Trinta, purificados pelos trabalhos, pisam a montanha do Simurg, Enfim © contemplam: percebem que eles so o Simurg 6 que 0 Simurg é cada um deles e todos. (Também Plotine — Eneadas, V, 8, 4 — descreve uma extensao paradisiaca do Principio de identidade: Tudo, no céu inteligivel, esta em todas as partes. Qualquer coisa € todas as coisas’ O Sol todas as estrelas, © cada estrela é todas as estrelas € 0 Sol.) © Mantiq al-Tayr foi vertido ao francés por Garcin de Tan S93 ao inglés, por Edward Fitzgerald; para esta nota, consul. tei 0 décimo volume das Mil © uma noites de Burton ¢ a monografia The persian mystics: Attar (1932), de Margaret Smith, Os pontos de contato desse poema com o romance de Mir Bahadur Ali nao sao excessivos. No vigésimo capitulo, umas -Palavras atribuidas por um livreiro persa a Almotdsim sao, talvez, a magnificagéo de outras que disse 0 herdi: essa ¢ outras ambiguas analogias podem significar a identidade do buscado e do buscador; também podem significar que este influt naquele. Outro capitulo insinua que Almotésim é 0 “hindu que o estudante cré ter matado. (N. do A.) 40 PIERRE MENARD, AUTOR DO QUIXOTE A Silvina Ocampo A obra visivel que deixou este romancista 6 de facil ¢ breve referéncia. Sao, portanto, imperdodveis as omissbes © adigdes perpetradas por Mme Henri Bachelier num falaz catdlogo.que-certo jornal, cuja tendéncia protestanie étaanifesta; teve a desconside- racao de infligir aos coitados dos seus leitores — embora estes sejam poucos e calvinistas, quando nao magons e circuncisos. Os auténticos amigos de Menard viram esse catélogo com alarma e ainda com certa tristeza, Dir-se-ia que ontem nos reunimos dian- te do mérmore final e entre os ciprestes infaustos ¢ J o Erro trata de empanar sua Meméria... Deci- didamente, é inevitével uma breve Tetificagao, Estou ciente de que é muito fécil refutar minha pobre autoridade. No entanto, ereio que no me proi= birdo de mencionar dois valiosos testemunhos, A Baronesa de Bacourt (em cujos vendredis! inesque- civeis tive @ honra de conhecer o pranteado posta) } Reunibes realizadas as sextasfeiras, donde o nome. (N. do E.) 41 houve por bem aprover as linhas que seguem. A Condesa de Bagnoregio, um dos espititos mais finos do Principado de Ménaco (e agora de Pittsburgh, Pensilvania, depois de suas recentes bodas com o filantropo internacional Simo Kautzsch, to calu- niado — ai! — pelas vitimas de suas desinteressadas manobras), sactificou “A veracidade e 2 morte” (tais sfio ‘suas palavras) a senhoril reserva que a distingue ¢, numa carta’ aberta publicada na revista Luxe, concede-me também seu beneplicito. Esses créditos, penso, no sio insuficientes. Disse que a obra visivel de Menard & facilmente referfvel. Examinando com esmero scu arquivo parti- cular, verifiquei que se constitui das seguintes pecas: a) Um soneto simbolista que apareceu duas vezes (com variantes) na revista La Conque (mimeros de marco e outubro de 1899). b) Uma monografia sobre a possibilidade de cons- truir um vocabulério poético de conceitos que nao sejam sinénimos ou perifrases dos que informam a linguagem comum,.""mas objetos ideais criados por uma convengao e essencialmente destinados As ne- cessidades poéticas” (Nimes, 1901). ¢) Uma monografia sobre “certas conexdes ou afinidades” do pensamento de Descartes, de Leibniz e de John Wilkins (Nimes, 1903). @) Uma monogratia sobre a Characteristica uni- versalis, de Leibniz (Nimes, 1904). ¢) Um artigo t6cnico sobre a possibilidade de en- riquecer 0 xadrez eliminando um dos pedes da torre. Menard propée, recomenda, polemiza e acaba por afastar essa inovagio. j) Uma monografia sobre a Ars magna generalis, de Ramén Lull (Nimes, 1906). 42 8) Uma tradugio com prélogo ¢ notas do Livro da invengéo liberal e arte do jogo de xadrez, de Ruy Lépez, de Segura (Paris, 1907). ‘) Os apontamentos de uma monografia sobre a Iogica simbélica de George Boole. 7) Um exame das leis métricas essenciais da prosa francesa, ilustrado com exemplos de Saint-Simon (Revue des Langues Romanes, Montpellier, outubro de 1909). ' i). Uma réplica a Luc Durtain (que negara a exis- téncia de tais leis) ilustrada com exemplos de Luc Durtain (Revue des Langues Romanes, Montpellier, dezembro de 1909). x) Uma tradugio manuscrita da Aguja de nave- gar cultos, de Quevedo, intitulada La boussole des précieux. , 1) Um prefécio ao catélogo da exposigio de lito- grafias de Carolus ,Hourcade (Nimes, 1914). m) A obra Les problémes d'un probleme (Paris, 1917), que discute em ordem cronolégica as solugdes _do ilustre problema des Aquil tartaruga, Duas digGes deste livro vieramt Hagora;-a segun- da traz como epigrafe selho de Leibniz “Ne craignez point, monsieur, Ia tortue3”, e renova os capitulos dedicados a Russell e a Descartes. n) Uma anilise obstinada das “regras sintéticas” de Toulet (N.R.F., marco de 1921). (Menard — lembro-me — declarava que censurar ¢ clogiar so operagées sentimentais que nada tém a ver com a critica.) 0) Uma transposicao em alexandrinos do Cime- 1iére Marin de Paul Valéry (N.R.F., janeiro de 1928). 1 "Nao tenia, senhor, a tartaruga.” Aluséo ao famoso ar- gumento de Zendo de Eléia contra o movimento, (N. do E.) 43 { | \ | i p) Uma invectiva contra Paul Valéry, nas Folhas para a supressao da realidade, de Jacques Reboul. (Essa invectiva, entre parénteses, € 0 reverso de sua verdadeira opinido sobre Valéry. Este assim o' enten- deu, e a amizade antiga entre os dois nao correu perigo.) -q) Uma “definigo” da Condessa de Bagnoregio, no “vitorioso volume” — a locugao é do outro cola- borador, Gabriele d’Annunzio — que anualmente publica esta dama para retificar os falseios inevité- veis do jornalismo e apresentar “ao mundo ¢ A It4- lia” uma anténtica efigie de sua pessoa, tao exposta (na razio direta de sua beléza e de sua atuagio) a interpretagSes erréneas ou apressadas. #).Um ciclo de sonetos admirdveis para a Baro- nesa de Bacourt (1934). 5) Uma lista manuscrita de versos que devem: sua eficdcia & pontuacio}. Até aqui (omitindo somente alguns vagos sonetos circunstanciais para 0 hospitaleiro, ou avido, album de Mme Henri Bachelier), a obra visivel de Menard, em sua ordem cronolégica. Passo agora A outra: a subterranea, a interminavelmente herdica, a impar. Também — ai das possibilidades do homem! — a inconclusa, Essa obra, talvez a mais significativa de nosso tempo, compde-se dos capitulos nono e trigé- simo oitavo da primeira parte do Dom Quixote ¢ de um fragmento do capftulo 22. Sei que tal afirmagio 1 Mme Henri Bachelier enumera também uma versio lite- ral da versio literal que fez Quevedo da Introduction & la vie dévote, de Sao Francisco de Sales. Na biblioteca de Pit re Menard nio hé vestigios de tal obra. Deve tratar-se de uma’ cagoada de nosso amiga, mal ouvida. (N. do A.) 44 parece um disparate; justificar esse “disparate” & 0 objeto primordial desta nota’, Dois textos de valor desigual inspiraram_a em- im € aquele fragmento flolgico de Novalis ‘© que leva o nimero 2005 na edicdo de Dres- den — que esboga o tema da total _identificagio 1m determinado autor. Outro € um desses livros é situam Cristo num bulevar, Hamlet na Cannebitre ou Dom Quixote em Wall Street. Como todo homem de bom gosto, Menard detestava esses carmavais intiteis, somente aptos — dizia — para produzir o prazer plebeu do anacronismo ou (o que € pior) para embelezar-nos com a idéia pri- méria de que todas as épocas so iguais ou de que sio distintas, Mais interessante, embora de execugio contradit6ria ¢ superficial, parecia-Ihe 0 famoso obje- tivo de Daudet: conjugar em uma figura, que € Tar- tarin, o Engenthoso Fidalgo ¢ seu escudeiro,.. Aque- Jes que insinuaram que Menard dedicou sua vida a escrever um Quixote contemporfneo caluniam sua limpida memérias2=22= = G 2 7 Nao queria compor outro Quixote =o que.¢ fAcil — mas 9 Quixote. Inutil acrescer que nunca visio- How qualquer igo mecnica do original; ndo se propunha copié-lo, Sua admirdvel ambicao era produzir pAginas que coincidissem — palavra por palavra e linha por linha — com as de Miguel de Cervantes. “Meu propésito & simplesmente assombroso”, es- 1 Tive também o propésito secundério de bosquejar a ima- gem de Pierre Menard. Mas, como atrever-me a competir ‘com as péginas dureas que, dizem-me, prepara a Baronesa de Bacourt ou com o ldpis delicado e pontual de Carolus Hourcade? (N. do A.) 45

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