You are on page 1of 20
OS OBJETOS TEM HISTORIA? ENCONTRO DE PASTEUR COM WHITEHEAD NUM BANHO DE ACIDO LACTICO* DO OBJECTS HAVE HISTORY? A MEETING BETWEEN PASTEUR AND WHITEHEAD IN A LACTIC-ACID BATH* Bruno Latourt* LATOUR, B.: ‘Do objects have history? A meeting between Pasteur and Whitehead in a lactic acid bath’ Histéria, Cidncias, Savide— Manguinbos, W (1), 7-26 Mar-Jun. 1995, Did Pasteur discover, construc, invent lactic acid? This Gordian knot in social studies of the sciences is ‘happily cut when the scene played out at Lille in 1857 is peopled with Whitebeadean concepnial charactors. The Nature addressed by Pasteur does not speak the language of scientific utterances but netber iit mute, ts imbued witb propositions. Insofar as Pasteur plays tbe character ofa scientist, bets ‘acted on’ by a singular proposition — “a tale that perbaps might be told,” as Whitebead would say, but that will only be true or fale if Pasteur manages to make a real world correspond to this proposition, a ‘world capable of providing logical subjects, and thus offering proof to “whomever judges with impartiality.” A bybrid-mediator translator of Pasteurian and microorganismic propostions, the experimental environment “makes the event,” in an encounter from which a new Pasteur and a new yeast emerge, partners of a new histor. KEYWORDS: Pasteur, Whitebead, lactic acid, bistoricity. “But in the real world it is more important that a proposi- tion be interesting than it be true. The importance of truth i, that it adds to interest." “It must be remembered that the phrase ‘actual world’ is like ‘yesterday’ and ‘tomorrow’, in that it alters its meaning according to standpoint.” Process and Reality * Arigo publicado org Este artigo quer fazer reagit, no sentido quimico do verbo, a fuboan Van 19” filosofia de Whitehead a respeito de “personagens conceptuais” & Cenue de Socio i8USitados ou mesmo incongruentes. De minha parte, quero saber Ge‘rinovation teas que luzes a metafisica de Whitehead poderia langar sobre uma ta Tem, Becks, questo candente na histéria social das ciéncias, a historicidade das MARJUN 1995.7 BRUNO LATOUR 1 A gpresenracie canéal- cot de tal principio ens fem H. Cols 2 (0s exemplos mis eae boradas encontram-s¢ fem. Shapin e'. Schut fer, 1993; em C: Licop- er 198% coisas, que até agora nao recebeu solugao satisfatéria. Como bom. fil6sofo empirico, vou partir de um exemplo, a descoberta-inven- (Ao-construgio do fermento do Acido lictico por Pasteur em 1857. Pretendo, neste artigo, montar uma prova dupla: de que ma- neira Whitehead nos permite recolocar uma grande questio da filosofia da historia? E como se comporta sua filosofia quando tem de enfrentar os detalhes concretos de uma situagio experi- mental? Alguns debates recentes no estudo das ciéncias Antes de mergulhar Whitehead num banho de Acido lactico, convém resumir para o leitor os episédios precedentes. “The simple notion of an enduring substance sustaining persistent qualities, either essentially or accidentally, expresses a useful abstract for many purposes of life. But whenever we try to use it as a fundamental statement of the nature of things, it proves itself mistaken. It arose from a mistake and has never suceeded in any applications” (Whitehead, 1978). Por razdes bem diferentes esta critica 0 substancialismo, to importante para Whitehead, poderia ser partilhada por muitos historiadores da cigncia. Segundo eles, num relato de descoberta no se deve apelar para qualquer substincia exterior ao trabalho humano, a fim de explicar-lhe a génese.’ E certo que, como Kant, para evitar os malfeitos do idealismo, a maior parte dos novos historiadores nao the negam existéncia, mas o que eles querem € fazer emergir os atributos concretos apenas de um lado, 0 do espitito que conhece, ou, mais recentemente, 0 da pratica do grupo dos cientistas que manipulam e verificam no recinto fechado e local do laboratério.* Para criticar 0 substan- cialismo devemos simplesmente, na historia de uma descoberta, abster-nos de conferir qualquer papel 20s seres no-humanos construir 0 relato apenas com a ajuda das priticas, dos lugares, dos instrumentos, das autoridades, das instituig6es e dos acon- tecimentos hist6ricos fornecidos pelo contexto. Com isso, espe- ra-se que uma multidao de pequenas determinagdes acrescentadas lumas As outras acabe por contar tanto quanto a substincia sem- pre-jé-ali dos relatos de descobertas ‘a moda antiga’. Como mos- trou Isabelle Stengers em um livro recente (1993), existe em tal abordagem alguma coisa de inverossimil para © cientista.prati cante, alguma coisa de irrealista, no apenas no sentido filosofico do termo, mas também no sentido corrente de improvavel. Falta ai algo de essencial. Seri que falta justamente a esséncia? Nao, 8 MANGUINHOS Vol. 1a) 3 aapresemagio canon cca catt em 0, Bloor, 1982. Para uma juste ler recent, ver 8 pre to da segunda edig30 (8 tees, 190. 4G. Canguithem, 1968, presents svt forma 5 xa concamagio cecontns sé 90 thine rig do. vo, mes fo sun soften, de 5" shapio ©. Schatfer, op (08 OBJETOS THM HISTORIA. © 0 interesse de Whitehead € imaginar um realismo sem subs- tincia, um realismo histérico radical: “The Castle Rock of Edin- burgh exists from moment to moment, and from century to century, by reason of the decision effected by its own histori route of antecedent occasions" (Whitchead, 1978, p. 43). Para escapar 4 historia social das ciéncias, ao construtivismo: social € aos diferentes avatares do kantismo, foi preciso passar de um principio de simetria restrita a um principio de simetria gene- ralizada. O primeiro principio pedia aos historiadores que julgassem_ ‘os relatos de descoberta com justica, tratando no mesmo pé os cientistas que estavam errados e os que tinham razio.’ Este principio, diametralmente oposto a tradic4o epistemolégica francesa, que exi- gira, ao contrario, distinguir a “ciéncia vencida” da “ciéncia sancio- nada”, permitiu belos efeitos de contextualizagao histérica, As vit6rias dle Boyles sobre Hobbes, de Newton sobre o cartesianismo ou de Pasteur sobre Pouchet nio diferem daquelas, provisérias, de Napolelo sobre o imperador Alexandre, ou de Pompidou sobre Poher. A histéria das ciéncias deixa de se distinguir da histéria pura ¢ simples, “cheia de som ¢ de firia” © prego a pagar por tal reunificagio da histéria com a hist6ria das ciéncias continua, no entanto, muito alto. O principio de simetria restrita S6 consegue igualar as oportunidades dos vencedores e dos vencidos (anteriormente dos racionais e dos irracionais), proibindo aos dois protagonistas 0 acesso aos proprios fendmenos que, no entanto, eles consideram sua unica razio de ser. Parafraseando Whitehead a respeito de Hume, ha algo de herdico nesta abstencio. Na arbitragem entre vencedores vencidos, 0 historiador partidirio da simetria teria de se abster de tocar até mesmo nas coisas que proliferam nas mios e nos corpos de todo 0 mundo. A natuteza, dizem eles com uma ascese de ioga, nao intervém nas interpretagdes que fazemos a seu propésito, Compreende-se a raziio de tal determinagio. Os historiadores partidérios da simetria reagem contra os abusos dos substancia- listas que se contentam em julgar os vencedores da histéria das ciéncias explicando, na maior candura, que cles ganharam porque eram mais racionais ou porque tiveram mais acesso natureza das coisas. Insistindo, pela primeira vez, nas dificuldades da experiéncia, nas incertezas dos instrumentos, na localizagio irre- medidvel das priticas, na ambigiiidade das interpretagbes, na importincia da comunidade de colegas mais ou menos dignos de crédito, os historiadores construtivistas podem facilmente ri- dicularizar — como seu ancestral Hume fez com a percepgao — 05 que acreditam se beneficiar com um acesso imediato 20 real © que tomam pela esséncia permanente das coisas certos habitos sociais ou cognitives surgidos ontem. MARJUN 1995. 9 [BRUNO LATOUR © principio de simetria generalizada evita que se chegue a anorexia nesta herdica ascese.® Nao se trata mais, dessa vez, de igualar as oportunidades de vencedores € vencidos, proibindo igualmente aos dois grupos o acesso a0 real, mas de deixar todos Tea es ‘08 grupos construirem simultanea ¢ simetricamente sua tealidade natural € sua realidade social. Como iogas privados de alimento por demasiado tempo ¢ obrigados a dormir em camas de pregos por demasiadas noites, petmite-se enfim 20s descobridores far- tarse de realidade e dormir em colchdes de pluma! Basta este pequeno empurrio para sair do kantismo, ja que, para explicar tuma descoberta, nio se deve mais escolher entre o acesso pri vilegiado ao real e a determinagio por milhares de pequenas ccausas sociais ou priticas. Percebe-se, com efeito, que a definigio do real como reserva ou Ancora contra © idealismo s6 tinha sentido em contraste com 0 espitito conhecedor (ou o laboratério,, ou o paradigma). A revolugio copernicana, contra-revoluclo co- pemicana € meia. O descobridor estabelece, ao mesmo tempo, ‘© que ele é, 0 mundo em que se situa, e as numerosas causa- lidades sociais, priticas ¢ hist6ricas compativeis com o tipo de fendmenos com que ele povoa o coletivo. Atenua-se a diferenga entre quesiOes ontolégicas, epistemoldgicas € sociol6gicas. A questo se tora: em que mundo sécio-natural aceitamos viver? principio de simetria generalizada nto apaga o principio de etria restrita, mas estende-o 2 questio da matureza e 2 da sociedade, fazendo aparecer um novo objeto: o coletivo de hu- 7 Pa uma apresentacio manos € de ndo-humanes.” ge Mosofia dea teow Esta solugio, no entanto, nao tem a metafisica de suas ambi hone 53! ‘goes. Embora tenha deixado de ser antropomérfica, continua Go fragil quanto o sentido dado a palavra coletivo. Se por este nome designamos a atividade demitirgica de pesquisaclores capazes de engendrar nfio apenas a natureza, como ainda a sociedade e a historia nas quais cles se situam, aproximamo-nos perigosamente dos grandes relatos do idealismo absoluto que, também eles, acreditavam ir além de Kant, Caso se trate de uma proliferacao semistica que dote de certas propriedades os humanos, 0s nao- humanos, 0s objetos circulantes, as posigdes enunciativas € 0 contexto inscrito no texto, mergulhamos entao no discurso, em campos de posigdes sem sujeitos e afastamo-nos ainda mais do realismo que buscivamos. A ‘morte do homem” sucede brutal- mente 20 ‘super-homem. Caso se trate de deixar os ndo-humanos multiplicarem-se tanto na sociedade como nos sujeitos, corremos © risco de naturalizar 0 conjunto da hist6ria ¢ dos relatos sem mais poder dotar os objetos de sua incerteza, de sua transcen- déncia, de seu “tremor”. Passamos a uma vontade de poténcia 6 Ver exposes 6 me Be Lat 10. MANGUINHOS Vol 1) 5 ina andlise emisticn do antigo se enconara er 1, Eaton, 1993, pp. 227" 422. Paes ma present 20 geral do pastortanise mo. melhor foate coniinia sendo G, Ger Son, 1974, pp. 351-415, ‘Aqui tiize apenas 0 Som she preocupsr com Slr c tson ‘que me vincularim com ‘ule seguranga ao labo faucrio ou 2 prea de Paster 9 vaca ua apreseragao dex quimicor oe Klooliinsprofksionas, ver bensuele Vincent OF, Stenger, 1992 (0 onyeros Tha HisTORta2 que ancoraria brutalmente 0 discurso € as acdes na biologia ou na fisica Para ter a certeza de escapar a estes trés perigos — enqua- dramento na sociedade, enquadramento na linguagem, enqua- dramento na natureza —, € preciso sair da ambigitidade da palavra coletivo, até mesmo abandonar todo “coleto-centrismo” bem como as nogdes de autor, de agio, de sujeitos, de objetos, de bumanes e de nio-humanos, que serviram provisoriamente para escapar ao kantismo. E preciso assim, como Whitehead, ousar comerciat com a metafisica, a despeito do embargo pro- nunciado contra ela tanto pela filosofia analitiea como pelo cons- trutivismo, seja ele social ou siméttico. Chegados a esse ponto, depois de ter resumido os episédios precedentes, € preciso, no entanto, mudar de maneira e acom- panhar um caso conereto, a fim de nao perder o fio deste realismo historico sem substincia intemporal que Whitehead nos permite imaginar. Relato de uma descoberta de Pasteur Em 1858, pouco tempo depois de ter ‘posto em evidéncia’ o fermento do levedo de cerveja, Pasteur relata, num célebre memo- rial para a Académie des Sciences, a descoberta de um fermento proprio ao Acido lactico.* Para historicizar esta descoberta, precisamos apenas de uma forma muito elementar de enquadramento hist6rico. Hoje, a fer- mentagao lictica nilo € mais objeto de discussio e pode-se en- comendar, por catilogo, diversas variedades e quantidades de fermento para as leiterias ¢ queijarias de todo o planeta. Mas basta se ‘remeter as condigdes da época’ para avaliar toda a originalidade desta meméria, ¢, portanto, a parte que Pasteur pode reivindicar para si proprio. Em meados do século XIX, nos meios cientificos marcados pela quimica de Liebig, a presenca de um microrganismo especifico para explicar as fermentagdes significava um retrocesso, jt que foi se livrando das obscuras explicagdes vitalistas que a quimica tinha acabado de conquistar © direito de reivindicar 0 status de ciéncia.? Segundo ela, a fermentacio poderia ser explicada de maneira puramente quimica pela degradagio das matérias inertes, sem intervencao de qualquer set vivo. De qualquer forma, os especialistas em fermentagio nunea tinham visto microrganismos associados dluravelmente 2 tansformagio do agicar “Pesquisas minuciosas nao conseguiram até agora revelar 0 desen- volvimento de seres organizados. Os observadores que os reconhe- MARJUN 1995 11 [BRUNO LATOUR 19 sa surpreendentes fe adizive live 3" fre flosofin chines. de Fejulle, 1992, © A.M. Whitehetdop. ci ceram estabeleceram, ao mesmo tempo, que eles eram acidentais © perturbavam o fendmeno. Os fatos, assim, pareciam muito favordveis as idéias de Liebig ou as de Berzelius. Aos olhos do primeiro, o fermento é uma substincia excessivamente alterivel que se decompoe € que estimula a fermentagao apés a alteragao que ela propria sofre, abalando pot comunicagio e desorganizan- do o grupo molecular da matéria fermentescivel. Ai esti, segundo Liebig, @ causa primeira de todas as fermentagdes € a origem da maior parte das doencas contagiosas. Para Berzelius, o ato quimico da fermentacao entra nas ages de contato. Tais opiniGes obtém a cada dia um novo crédito .... Estes trabalhos estao de acordo em rejeitar a idéia de uma influéncia qualquer da organizacao e da vida na causa dos fenémenos que nos ocupam’ (grifos meus). E Pasteur acrescenta: “Sou levado a uma maneira de ver in- teiramente diferente.” O descobridor vai parecer ainda mais ativo por ter todo o mundo contra si, tanto a opiniao unanime dos quimicos como as pesquisas minuciosas dos especialistas. O des- cobridor no ergue o véu onde se ocultava desde sempre o fermento da fermentagio lictica. Ele age. Acontecimento da his- {6ria, ele reverte uma situagio que the era de todo adversa: da mesma maneira, um historiador poderia acompanhar © obscuro general De Gaulle desde junho de 1940, em Londres, até seu triunfo, cinco anos mais tarde, nos Champs-Elysées. A acho de Pasteur no consiste mais, porém, em impor obrigatoriamente um quadro ou uma visio a uma fermentagio — se bem que, como veremos, mais tarde ele formula o problema nestes termos. Ble afirma, na verdade, que ‘foi levado a uma maneira de ver". Sua atividade consiste propriamente em se deixar levar pela “propensio das coisas’, para retomar a bela expressito de Francois, Jullien.” Mesmo quando age para fazer emergir o fermento contra 2 opiniao do mundo, ainda assim se deixa levar pelas coisas, mesclando de outra maneira a sorte de um sujeito — autor digno de crédito que reivindica a polémica e a agio — € de um objeto — que leva 0 sujeito a modificar sua visio. Na hist6ria politica e militar existem recursos que permitem pesar o papel respectivo da ocasito, das circunstancias, do genio proprio, da sorte, e, enfim, da atribuigao da responsabilidade a alguns operadores reconhecidos como chefes ou demiurgos. Quando se trata de colocar no relato os seres que se descobriu, © historiador das ciéncias se faz mais timido, mais hesitante. Por maior que seja a heterogeneidade dos fatores que a hist6ria usa, ela nunca parece to grande como na histéria das ciéncias, onde € preciso integrar a curta existéncia de Pasteur, a duraglo mais longa da quimica ou do Segundo Império, aquela ainda ma longa das fermentagdes alcodlicas € lécticas que remontam ao 12. MANGUINHOS Vol. 11) 11 Ver 0 anigo seminal de Facey 1998, 301-25, dias eritieas i de simetat general ‘aes, Pars no respons fa logica des atoresre des que o present at go pretende melhor, Yer Bi Callon eB. Ls {oii ap. et, Pp. 343.68 (05 OETOS TEM HISTORIA? neolitico © aquela, infinitamente mais longa, absolutamente mais longa, do fermento do cido lictico sempre ja presente. Dito de outra forma, comparado 20 historiador puro e simples, 0 historiador das ciéncias aborda um monstro a mais: uma vez descoberto por Pasteur em 1857, 0 fermento do Acido Kictico sempre esteve li, tanto no neolitico, nas cabagas do Homo sapiens, como hoje em dia, responsivel pelo soro que se torna azedo em todas as leiterias do planeta. Como fazer para historicizar a criglio de um ser que parece logo transbordar de seu quadro hist6rico para retomar na totalidade do tempo e se espalhar na totalidade do espago? A tinica solugao, comum na hist6ria, consiste em atribuir his- toticidade a todos os elementos que entram no relato.!! De Gaulle se transforma, mas também Churchill, 2 Alemanha, os radares, as opinides piblicas, os submarines, 0 cAlculo dos comboios perdidos, a divida respectiva dos bancos centrais, ¢ assim por diante, segundo escalas e ritmos diferentes. Sempre existe, portanto, de maneira mais ‘ou menos igual, reciprocidade na aventura, no acontecimento. De Gaulle modifica Churchill que, por sua vez, o transforma. F justamente esta reciprocidacle que parece impossivel na historia das ciéncias, pois seria preciso parthar o acontecimento entre Pasteur e 0 dicido Kictico! No entanto, a simettia generalizada exige esta partilha. Nao apenas o fermento ‘chega a’ Pasteur — transformando este honrado quimico provinciano em um mestre da microbiologia mundial —, ‘como Pasteur ‘chega ao’ fermento do Acido lictico — transformando esta fermentaglo por contato na cultura de um fermento que se alimenta de acticar. Sim, € preciso admitir, o jovem Louis Pasteur de Lille deve ser contado como um episédio no destino, na esséncia, ra trajet6ria do fermento Kictico. E facil conceber o absurclo de tal posiclo € © escindalo que deve ter suscitado,” sobretudo se, em Jugar do fermento, ainda préximo dos organismos mergulhados na historia agitada dos vivos, © argumento for aplicado A gravidade ou a cosmologia. Newton chegaria & gravitagao universal © CERN surgi como conseqiiéncia do Big Bang? Se, buscando outra vez reftigio no confortivel quadro kai no, se falasse apenas de representagio, 0 caso com certeza niio apre- sentaria qualquer dificuldade. Pasteur transforma as idéias que os quimicos ¢ os fabricantes de laticinios tm sobre a fermentagao Hetica, assim como Newton modifica nossas idéias sobre a ago 2 distancia dos corpos celestes. Seria mais ficil voltar historia ja que se ficaria entre homens, com suas representagdes, suas visdes do mundo, seus interesses mais ou menos apaixonados. A hist6ria das ciéncias — social ou intelectual — poderia se apresentar com uma audiicia ainda maior jd que se limitaria apenas As repre- sentagdes, deixando fora de alcance os fenémenos propriamente ditos.’ Mas, com a simetria generalizada, queremos alcangar os MARJUN 1995 13, [BRUNO LATOUR de dieu mi fase de Kutn, que en fora pass sou aor um sen pies Se from que o mundo 220 side dot una ‘audanga de paraigme, screve cle, “9 bomen do ‘ciénela.trabatba dat ‘para a frente un mau {40 diferente Nes por {feo debra de estar con Yereidp de que deers Sprendee 3 encontar unt Sbntido acs est fir Go. No € posed fedusie 0 ques insnte ws revelaeao ‘Sones una eine prego de dads eti- eis ¢independentes,T Kus, 1983, p. 171 14 Tomo emprestado ex tes termos do excelente fitigo de J.) Cobh 1998, fenémenos, sair da casi da infincia do idealismo ¢ encontrar, com 0 realismo, 08 rscos da. ontologia, sem perder as incertezas hist6ria nem a localizagio das praticas.'* Assim, € preciso explorar este caminho, por mais bizarro que possa parecer, falar de Pasteur como um acontecimento que se di com o Acido Kictico. O que parecia absurdo numa metafisica da esséncia dos atributos pode se tornar um jogo de criangas para ut cntologia dos acontecimentos € das relagées."* Algumas ontologias de geometria variavel Uiilizando © vocabulirio de Whitehead, 0 laboratério de Pasteur parece-nos uma ocasiio aberta a trajetérias de entidades que herdam circunstincias precedentes ao ‘decidir’ perseverar, de uma nova maneira, no ser. Certas entidaces vio percorter © laboratétio como priticas estabilizadas. E 0 caso do prdprio acide lactico: “O Jicido Kictico foi descoberto por Scheele, em 1780, no soro azedo. Seu procedimento para retird-lo de tal matéria ainda hoje em dia € 0 melhor que se pode seguir. Fle inicialmente reduzits o soro a um oitavo, por evaporagio. Filtrou-o, saturow-o de cal para precipitar o fosfato de calcio. © licor foi filtrado e dissolvido em Uu@s vezes seu peso em agua; derramou nele, gota a agota, 0 dcido oxilico para precipitartoda a cal. Evaporouo licor até a consistén- cia do mel ..." (grifos meus). © Acido nao se apresenta como uma substincia durivel_ no tempo e definida por seus atributos, mas por um conjunto de yerbos que remetem a gestos de laboratério. Reduz-se a um procedimento € no tem outra definico que nto a de ser coex- tensivo ao conjunto de tais manobras. Pouco importa que a lista de operagdes seja longa, ji que cada uma delas fz parte da rotina de um laborat6rio de quimica bem equipado. O encaixe entre os subprogramas de agio nfo fragiliza a esséncia, na medida em que quimicos hibeis compreendem, sem esforco, o significado de gestos como filtrar, evaporar, precipitar, e na medi tomem seu agenciamento como uma s6 € tinica caixa-preta Nao ocorre © mesmo com o fermento, de que toda a comu- lade cientificn duvida em 1857: ni “Quando se examina com atengiio uma fermentagio léctica ordina- ‘hd casos em que se pode reconhecer em cima do depésito de Cilcio e de matéria azotada manchas de uma substancia cinzenta que algumas vezes formam certas zonas na superficie do depésito. Esta matéria é levada pelo movimento gasoso. Seu exame 10 14 MANGUINHOS Vol. 11a) (05 OETaS TEM HISTORIA. microscépio ndo permite, quando niio se est prevenido, distingui- a do caseum, do ghiten desagregados etc.; de tal maneira que nada indica que se trate de uma matéria especial, nem que tenba nascido durante a fermentagao. Seu peso aparente é sempre muito ‘pequeno, comparado ao dla matéria azotada primitivamente neces sdria para a realizagio do fendmeno. Enfim, muftas vezes ela esta de ial forma misturada 2 massa de caseum € de calcio, que em cuja existéncia ndo se poderia cre. E ela, que desempenba, nao obstante, o papel principal” (grifos meus). Contrariamente ao dicido lictico, a propria existéncia do fer- ‘mento est em questio. Nao existem mais gestos rotinizados que permitam garantirlhe a presenca regular. A propria entidade define-se apenas por um “servigo minimo” que aparece como “manchas de uma substincia cinzenta que algumas vezes formam, certas zonas na superficie do depésito”. Nao € possivel existéncia mais infima! O contraste surge ainda mais forte com a frase em forma de desafio que conclui o parigrafo. Contra Liebig © Ber- zelius, como acabamos de ver, Pasteur foi “levado a uma maneira de ver inteiramente diferente”. Tal conduta e tal retomo dependem desta nova conversio pela qual um ser “em cuja existéncia nao se poderia crer ... desempenha, nao obstante, o papel principal’! E facil imaginar que os termos “sujeito” € “objeto” passam a ser de pouca utilidade para acompanhar como o fermento, c1 ticado por todos, invisivel, pobre mancha ao fundo de um reci piente de vidro, logo se transforma no “\inico responsivel” pela fermentagio lictica, Pasteur aposta alto neste negécio, assim como © fermento, Liebig € os produtores de laticinios. Nao observamos um homem dotado de faculdades a descobrir um ser definide por seus atributos, O que vemos € um corpo com membros mGltiplos € parciais buscando fazer advir em seu laborat6rio, por uma série de provas, uma seqléncia regular de agdes: “Vou, de inicio, indicar o meio de isolar festa matéria especiall, de Prepari-la em estado de pureza. Extraio do levedo de cerveja sua parte solivel, mantendo-a por algum tempo & temperatura da ‘gua fervente com quinze a vinte vezes seu peso em gua. O licor, solugio complexa de matéria albumindide ¢ mineral, é filtrado com cuidado. Faz-se dissolver cerca cle 50 a 100 gramas dé agticar por litro, acrescenta-se.o calcio e semeia-se um pouco desta matéria cinzenta de que jf falei, extrafda de uma boa fermentagio lictica comum; depois se Jeva 2 estufa a 30° ou 35°. Também 6 bom fazer passar uma corrente de Acido carbénico para expulsar © ar do frasco, ao qual se adapta um tubo recurvo que mergulha n‘igua. Ji no dia seguinte uma fermentacao viva e regular se manifesta” (grifos meus), MARIUN 1995. 15 BRUNO LATOUR 15. erro de Schaffer, em 5 Schafer,op ct fairs incre lay spenae os pele adres vlad como: vos, inrodu os aoe Heian signa jer cairascontroverias iment ice 3, pp, 10237, aptem giaigur aia ae em dara inex Soe fos soca que IGt candi dss ‘ex por tots) que ees Tio podem conesponder nad que to ‘to reaizadon. No laboratério, © compo cuidadoso ¢ hébil de Pasteur serve de ocasito, de circunstincia, de concrescéncia ao estabelecimento durdvel de uma fermentagto lactica. Através de certos gestos (iltrar, dissolver, acrescentar), ingredientes (levedo de cerveja, licor, eilcio), aparelhos (tomeiras, recipientes, estufas, tubos), instrumentos de medida (termémetros, balangas, termostates), pe- quenos truques do oficio (€ bom), a fermentagio se torna visivel € estivel, Neste estigio de variagio, a esséncia da fe:mentagio nada mais é do que esta exibigio em tais circunstincias priticas e locais. © enquadramento hist6rico, dessa vez, ultrapassa 0 simples Sretomo as incertezas da época’. Nao se trata mais apenas de encontrar Pasteur trémulo em seu laboratério, diante da idéia de perder nto apenas sux fermentagio como também o fermento incerta que the parece “correlative da vida". E a fermentagao Victica que treme, ela também. Tal manifestagio “viva e regular’, controlada, jamais Ihe aconteceu em lugar algum, desde que 0 mundo é mundo. © pequeno laboratério do decano da Faculdade de Cigncias de Lille constiui um entroncamento decisivo na luajet6ria desta fermentago, jé que ali ela se toma justamente visivel e pura. Nao é mais apenas Pasteur quem muda sua ‘re- presentaclo’ da fermentaglo, mas ¢ ele proprio, em seu ser, em sua hist6ria, em suas ascendéncias e descendéncias que modifica suas manifestagdes. Se Pasteur hesita, a fermentacio hesita, ela também. A ambivaléncia, a ambigtidade, a incerteza, a plasticidade nao vém perturbar apenas os humanos que avangam, tateando, na diregio de fenmenos garantidos em si mesmos.!* Elas acompa- nnham também os seres 20s quais o laborat6rio oferece uma nova possibilidade de existéncia, uma oportunidade histérica. Sem Pas- teur, sem a fitragao, sem 0 tubo recurvo, sem o ato de semear num meio de cultura, a fermentagao jamais seria ‘manifesta’. Ela conheceu outras existéncias antes de 1857, alhures, mas sua nova concrescéncia na Faculdade de Ciéncias de Lille, entre as mios de um quimico ambicioso novo em folha, oferece-Ihe uma nova cexisténcia, Ginica, datada, localizada, feita em parte de Pasteur — ele mesmo transformado por sua segunda grande descoberta — € do laboratsrio — ele mesmo corpo € espirito de Pasteur, inteligncia distribuida, teoria materializada nos instrumentos, as- sembléia muda © materializada de toda a quimica havia cem anos. Estamos fazendo a historia de Pastcur c de scu fermento, do fermento de seu Pasteur; estamos falando de acontecimentos definicos apenas por suas relagoes 16 MANGUINHOS Vol. 11> (0s OMETOS TEM HISTORIA Do acontecimento a substancia Qualificando assim a histéria comum de um pesquisador, de uma disciplina, de um laboratério, de uma montagem, de um fermento € de uma teoria, nfo perdemos com isso a substincia e seus attibutos, ‘mas o sentido da palavra substincia vai mudar profundamente ¢ se toma a atribuigo progressiva de propriedades estaveis atreladas por uma instituigio a-um nome ligado duravelmente a uma pritica, 16 Pera acompanhar esta Circulando o todo numa rede relativamente padronizada. © Tal transi- historia natu dos se85 56 do acontecimento a substincia definida de maneira nova coloca Gggitiss veri. teas, um sério problema de descriglo e de interpretacio, de que Pasteur se safa com duas aparentes contradigoes. No inicio de seu memorial, © autor ainda nao sabe que pro- priedades atribuir a que esséncias. No final, o fermento possui a mesma solidez, recentemente descoberta, da cerveja. A subs- tancia dotada de atributes oferece um caso particular do acon- tecimento definido por suas relagdes, uma certa maneira de resumir, de rotinizar, de estabilizar, de institucionalizar os acon- tecimentos. Tudo se passa como se 0s atributos precedessem a uma esséncia, Tome-se esta passagem, raramente estudada, entre dois parigrafos do memorial: “Vejamos agora quais sio as caracteristicas de tal subsidncia, cuja produgiio correlativa dos fendmenos compreendidos sob a deno- minacao de fermentacao lactica. Tomada em massa, ela se asseme- tha completamente 20 levedo comum escoado ou prensado. £ um pouco viscosa, de cor cinzenta. Ao micrascdpio, ela & formada por pequenos glébulos ou de artigos muito curtos, isolados ou em grupo, constituindo flocos irregulares semelbantes aos de certos precipitados amorfos ... . Ela pode ser recolbida e transportada para longe sem perder sua energia. Sua atividade apenas se enfraquece quando € secada ou quando é fervida na agua. Enfim, € preciso muito pouco deste levedo para transformar um peso consideravel de agacar. Encontramos ai todas as caractertsticas gerats do levedo de cerveja, e tais substéncias provavelmente tém organizagbes que, em uma classificagdo natural, devem ocupar dois géneros vizinhos ou duas familias proximas” (grifos meus). No primeiro pardigrafo, a ess@ncia 56 se define pelas provas a que se submete um "x", uma “matéria especial” andnima, de que se registram as respostas recentemente tomadas estéveis gracas 0s cuidados & habilidade do cientista, bem como ao génio do lugar. Cada prova surpreende ainda por seu frescor: "x” pode: ser transportado sem se enfraquecer! £ preciso muito pouco dele para modificar um peso considerivel de agucar! Os atributos MARJUN 1995. 17 [BRUNO LATOUR 17 para ocestdo deta do de tas tunslonmagoes Scessivas no texto. de Pasteur, ver Be Latour, 1988, ainda flutuam sem poder se ligar a um substrato, Sente-se ainda no texto as hesitagdes, os escripulos, as tergiversacdes de Pasteur diante de tal matéria viscosa € cinzenta que resiste a secura ou a fervura. A prova ainda a define em todo seu frescor, como se 86 se pudesse induzir suas competéncias a partir de desempenhos perturbadores. Mas, no parigrafo seguinte, a coalescéncia aconteceu. A “ma- téria especial” nto mais parece apenas com o levedo de cerveja, nao € apenas composta de glébulos, de flocos irregulares. O fermento, agora nomeado, torna-se uma substincia e ocupa uma posi¢ao bem visivel numa classificactio por género ¢ espécie. Os atributos que flutuavam ao acaso tomam-se as marcas de uma. esséncia durdvel, € no apenas de uma rotina estabilizada, como 0 Acido léctico estudado antes.'” Como explicar a passagem de uma longa série de provas hesitantes a um ser resumido por um nome? Por que os atributos acabam por se alojar numa substincia, como um véo de pombos de volta a0 pombal A resposta dos historiadores inspirados pelo primeiro principio da simetria mio deixa dtivida. Foi preciso que o préprio Pasteur desse um pequeno empurrio, a fim de reunir em um conceito a pocira indeterminada dos fatos. Sem © pressuposto do crorganismo, ele jamais teria conseguido resumir a longa lista de provas em um tinico fermento, os desempenhos nunca teriam pemnitido supor uma tal competéncia de micrdbio organizado. Na verdade, para os historiadores da ciéncia desde Duhem, sem- pre foi preciso uma teoria, um preconceito, um pressuposto, um. quadro conceitual, um paradigina, a fim de ordenar os dados que jamais se pode encontrar frente a frente. Retorno obrigatério a Kant e a seus epigonos socidlogos. Curiosamente, Pasteur faz-se 2 mesma pergunta ¢ parece comungar da tese dos construtivistas, antes de se contradizer uma segunda vez: “Ao longo de todo este memorial, raciocinet na hipétese de que o novo levedo € organizado, que € um ser vivo € que sua ago quimica sobre 0 acicar € correlativa de seu desenvolvimento e de sua organizacao. Caso me viessem dizer que nestas conclusdes et vou além dos fatos eu responderia que isto é verdade, no sentido de que me coloco francamente numa ordem de idéias que, para falar rigorosamente, mo poclem serirrefutavelmente demonstradas. Bis minha maneira de ver. Todas as vezes que um quimico se ocupar de tais misteriosos fendmenos, e que tiver a felicidade de Ihes fazer dar um passo importante, ele seri instintivamente levado a colocar a causa primeira em uma ordem de reagdes com relagao 0s resultados gerais de suas proprias pesquisas. Ea marcha logica 18 MANGUINHOS Vol. 11a) 18 personagem de varios romances policsis por planes na"Pranga, ve fink ints gens, mas que pretend se pre segoifsmplesmente FO tongo canto des sanig™ (Nd T)- (05 onjeros THM HisTOnta do espirito humano em todas as questées controversas” (grifos meus). Na mais pura tradicao racionalista, Pasteur insiste que uma teoria € obrigatéria para que os fatos possam falar e mobiliza no mesmo impulso o instinto, a légica do espitito humano ¢ as maneiras de ver. Ele sabe, como Rouletabille,”* que primeiro é preciso seguir “o longo caminho de sua razio”, Mas ele nao fica nesta solucao do pequeno ‘empurrao’ que, no entanto, encantaria os construtivistas sociais. Sem medo de se contradizer, passa em seguida ao realismo mais tradicional e afirma tranqiiilamente: ‘Ora, € minha posi¢lo, no ponto em que me encontro de meus conhecimentos sobre 0 assunto, que quem quer que julgue com imparcialidade os resultados deste trabalho ¢ dos que publicarei em breve, reconhecerd comigo que a fermentagio ai se mostra correlativa da vida, da organizagao dos gl6bulos, niio da morte ou da putrefacio de tais glébulos, assim como nao aparece ai como um fendmeno de contato, onde a transformagio do agicar se realizaria na presenca do fermento sem nada Ihe dar, sem nada Ihe tomar. Estes tiltimos fatos, como logo se veri, sao negados pela experiéncia” (grifos meus), Déem-me colegas imparciais, e eles reconhecerio comigo o que a experiéncia afirma sem contestagio, esta mesma experiencia a qual, na citaclo precedente, era necessirio acrescentar alguns Pressupostos porque ela no podia demonstrar, sem refutagio, a presenea de microrganismos. Contradigiio flagrante! Os histo- riadores sociais que, por ascese, se obrigam a jamais apelar para a experiéncia incontestivel, para fazer calar as controvérsias, no mais aplaudem o grande homem Pasteur, no entanto, passa, num piscar de olhos, de uma epis- temologia a outra, assim como © fermento, denominado “x°, passa suavemente do acontecimento 2 substincia. Antes de Whi- tehead, no tinhamos como escapar de tal dilema. Pareceria que deveriamos sempre escolher entre dois males, como uma gota que um golpe de vento faz passar de um lado a outro de uma linha de divisao das Aguas. Ou a gota vai juntar-se a vertente da inventividade humana, cuja histéria é facil de formular porque ela impoe categorias mais ou menos arbitririas a uma realidade que jamais se podert conhecer, ou vai para a outra vertente, a da natureza, a dos objetos sem histéria sempre jf presentes € que 05 humanos se contentariam em descobrir, Whitchead abre uma nova possibilidade © nos permite com- preender por que a contradigio € apenas aparente. O fermento lo cido lictico muda sua hist6ria em contato com Pasteur € seu laborat6rio. Ele € bem real, mas sua realidade histérica o MARJUN 1595 19) [BRUNO LATOUR coloca em paridacle com 0 pesquisador € 0 laborat6rio no qual se mistura. O Acido léctico também passou por uma mutagio. O fermento recebeu 0 empurrio que Pasteur Ihe deu como uma oportunidade hist6rica de se manifestar, alterando toda a sua trajet6ria. © fermento propde, Pasteur dispoe. Pasteur propde, 0 fermento dispOe. Pasteur no impés seus pontos de vista a uma forma infinitamente plistica, nem descobriu, tateando, a resistén- cia de uma forma infinitamente robusta; ele deu a um fendmeno sua oportunidade. E por isso que, ao escrever 0 memorial, nao vé nenhuma contradigio entre as duas tiltimas citagdes, que, aos olhos de um epistemdlogo ou de um historiador social, em tudo divergem. Uma ontologia, mais contra-intuitiva ainda do que a da histéria social das ciéncias, permite imiscuirmo-nos no senso comum de um cientista. Seria preciso compreender esta frase enigmatica que ele pronuncia no elogio académico que fez de Littré, cuja cadeira assume: *O experimentador, homem de conquistas sobre a natureza, se encontra todo © tempo As voltas com fatos que ainda nao se manifestaram e s6 existe, em sua maioria, como poténcia de devir nas leis naturais. O desconhecido no possivel € nto no que foi Icontrariamente ao historiador Littré], eis o seu dominio ...” (Pas- teur, 1939, p. 334, grifos meus). A prova de Whitchead Por que esta solugio de uma historicidade das coisas, embora sefa forjada com o cunho do bom senso, parece, & primeira vista, tio inverossimil, to insensata? Por causa de nossas idéias sobre a natureza, sobre a transcendéncia e sobre a causalidade, idéias cujo peso Whitehead nos permite reduzir ao extremo. Suponhamos que calculamos os ingredientes que entram na composigio do fermento Kictico de 1857, a fim de compreender a coprodugio de tal fato cientifico. Uma vez abandonados os relatos de descoberta 1 moda antiga, bem como os de construc social, mais recentes, devemos fazer uma lista heterogénea que compreende, entre muitos outros fatores, Pasteur, a Faculdade de Ciéncias de Lille, Liebig, as queijarias, os equipamentos de laboratorio, 0 levedo de cerveja, 0 acticar e, enfim, o fermento. Nao hi essencialismo nesta lista, j4 que cada entidade se define apenas por suas relagdes. Se as relagdes mudam, a definicio muda igualmente: a Faculdade de Ciéncias com ou sem Pasteur nao € exatamente a mesma; © agticar com ou sem o fermento ictico nao é, de modo algum, 0 mesmo; o fermento lictico antes € depois de 1857 no €, de modo algum, o mesmo. 20. MANGUINHOS Vol 1) 19 Ow methor, 2 teora dos storesredes buces oniugar on dois mos {om tn, em explieto, sobre neat tuo, subsrepticio, sobre 3 Selo. Pari ex lin Faneionan € preciso tt fontologis adspeada so pnp de ser ge 2 sau actual entities share with God this = Sctersic of selene ton Fe hs ison ee ry actual entity also Shares wih God the characteristic of trans. fending all other actual tetaies inking God GUN” Whitehead, op. ct, p. 23). 21 Sobre.a nogio de me- sagt na dominio prvi fegado da te muses ser o excelente lid A Heanton, 1993 (08 OJETOS TPM HISTORIA. Isto basta para criar histéria? Nao, © sabemos muito bem por qué. A historia nao pode ser definida por um simples rearranjo de fatores, porque ela ndio é feita, como uma receita de cozinha, 2 partir de ingredientes. Por mais heterogéneas, por mais rela- cionais que sejam as entidacles que entrarao em certa combinacio, no ser por esta razo que dai surgird a historicidade. O ferment lictico nto se compde de ingredientes esparsos vindos de outras partes, nem mesmo de associagoes, como na teoria, muito embora radical, dos atores-redes."? Para evitar o tilintar das combinagdes, 0 atomismo dos fatores, é preciso, assim, reconhecer em todo composto, em toda con- crescéncia, alguma coisa a mais, alguma capacidade radical € Sinica de inovaclo. Para isso, € preciso aceitar que os aconteci- ‘mentos, para merecerem seu nome, sejam em parte sem causa. Por mais absurdo que possa parecer, o realismo exige o abandono da idéia de causalidade como um transporte de forgas ou como um deslocamento de formas. A descoberta do fermento em 1857 nao se deve nem a Pasteur, que a ela leva seus pressupostos, nem ao laboratério onde se define uma boa pritica, nem ao fermento presente desde toda a eternidade e levado 2 Faculdade de Lille — nem, certamente, a um estilhagamento de pequenas condigdes infinitesimais que desafiariam 0 cilculo mas, no en- tanto, agiriam, cada uma delas, como uma causa. Para que haja historia € preciso que o fermento-de-1857-em-Lille-com-Pasteur seja, em parte, causa sui2° Em lugar algum do universo pode-se ter 0 transporte de forgas que permita fazer 2 soma de tal acon- tecimento a fim de explicar retrospectivamente seu aparecimento. A descoberta-invencio-construcao do fermento lictico exige que se Ihe dé 0 estatuto de mediagio, quer dizer, de uma ocorréncia que nio é de todo causa, nem de todo conseqtiéncia, nem completamente um meio, nem completamente um fim,” Pasteur pode ser entendido como um acontecimento do fermento porque € imprevisto, exterior & série de herangas que até entio definiam a ‘Sociedade’ do microrganismo, sua tajet6ria, sua linhagem. Encontrar-se no laborat6rio para ali ser semeado, cultivado, con- tado, purificado vai espicagar o fermento de maneira imprevisivel. Correlativamente, a presenga durivel de um fermento associado a uma fermentagio, a atividade quimica de um ser vivo, constitui, para Pasteur, uma encruzilhada decisiva tanto de sua carreira como de sua pessoa. Quanto aos quimicos, ao aceitar Pasteur € seu fermento, tomam-se, numa tradugio decisiva, bioquimicos. Nenhum ingrediente, € ficil compreender, entra em tais relagbes, sem nelas se refine Enquanto se fazia da natureza © reino das causas, parecia inverossimil falar de uma historicidade das coisas. A inventividade, MAR JUN 1995 21 [BRUNO LATOUR 22 curtosamente, a pas sagem de ui 80 re iiel das causes 2 ama concepedg. de orem Sificou esta alternativa, & ddespeto de I. Pigagine eb Stengers, 1988. A n0- 20 de eee, que teheadians, mo mpi forgosamenes a historch zagio simetnea da pat fez eda sociedade 23 Ysts historicidade nao deve ser condi corn ST vranformaci na ten pe ca pais den ar lac conn ST-ooald 1991) Iver tendo © principio ate Peo, vase de fae os Elentistas entrarem na Instr cas cos. Nao dlnessaos dessparece: Ieortdlogos paren i prope ta den dingo: arhise resus distin a flexibilidade, a hesitagio s6 podiam vir dos humanos e de sua dolorosa historia. Somente eles podiam transcender o reino bruto dos objetos, afirmar sua liberdade contra as restrigbes viscosas do pratico-inerte. Ao ligar os humanos e os nao-humanos, o principio de simetria generalizada escandalizou, jé que significava estender a nogao de pessoa aos seres da natureza — panpsi- quismo, hilozoismo — ou, ao contririo, mergulhar a invengio do homem no jogo mais ou menos previsivel das causas — mecanismo, engenharia social.” Como € diferente se todas as entidades transbordarem, transcenderem, ultrapassarem em parte suas causas, suas herangas, seus ascendentes! Os objetos da na- tureza nao oferecem mais, como tinico modelo ontolégico, aquela exigéncia opiniatica, teimosa, obstinada, da substincia. Nada mais impede, portanto, de atribuir-lhes um papel na fabrica do mundo humano, sem retornar ao realismo & moda antiga que os histo- riadores sociais combateram com razdo, e sem serem acusados de atribuir aos nao-humanos aquela personalidade intencional até agora reservada apenas aos humanos. A natureza partilha com a sociedade a mesma historicidade, sem que, no entanto, © conjunto reunificado se torne imanente ou transcendente, im- pessoal ou pessoal. A transcendéncia necessaria & inovag’o se distribui em todos os pequenos descolamentos pelos quais as conseqiéncias transbordam sua heranga, A historia das ciéncias transforma-se, em definitivo, no existencialismo estendido as pro- prias coisas. Ao tornar-se outra vez historica,”> a natureza torna-se ainda mais interessante, mais realista. Quanto @ vertente da sociedade, ela se transforma ainda mais, ¢ se aproxima do senso comum. Nao somos mais prisioneiros perpéwos da linguagem, encerrados nos quadros conceituais, privados para sempre de qualquer acesso as proprias coisas, 3s quais, como em Kant, s6 podiamos impor categorias arbitririas. Nosso espirito, nossa cultura, nossos paradigmas nao silo simples més. A despeito de suas hesitagdes, Pasteur no diz. aos fatos como eles devem falar. Mistura-se a eles, partilhando com os fermentos (aos quais ele oferece uma outra oportunidade) sua histéria, seu corpo, seu laboratrio, a assembléia de seus colegas. Ele nao s6 os descobre como os molda. Todos coalescem nesta ocasiio, matéria e forma uns dos outros. Whitehead zomba gentilmente dos filésofos criticos que créem que nosso espirito esta ligado ao mundo apenas pela frigil ponte da percepcao, como se uma grande cidade, aberta até entao aos ventos do campo que a cerca, pouco a pouco decida se fechar atris de muralhas, a ponto de s6 autorizar a passagem por um portio estreito € uma ponte levadiga oscilante. Toda a filosofia do conhecimento provém de tal fragilidade artificialmente man- 22 MANGUINHOS Vol. 11)

You might also like