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espacgo escrita oiticica estojo Cre ToL (Cs. quadra (Ld carta cidade interior(es) ef PCM) arquitetura atmosfera territério outro vazio dentro bey) Sumario or 04 Silke Kapp Arquiteta, doutora em filosofia pela UFMG, onde é professora da Escola de Arquitetura. Coordena o grupo de pesquisa Morar de Outras Maneiras (MOM). sindrome do estojo 603160 em -edigho 0. Nozo# Em Das passagens, Walter Benjamin redne, entre outras coisas, uma colego de fragmentos e comentérios sobre os espagos inte- riores no século XIX, especialmente o interior da moradia burgue- sa. Ele interpreta essa moradia como 0 “estojo" ou o “casulo” de seus habitantes: “0 sécullo XIX, mais do que qualquer outro, foi 4vido por mo- radia. Ele compreendeu a moradia como estojo do ser huma- no e nele 0 acondicionou com todos os seus assessérios, t8o profundamente que se poderia pensar no interior de um es- tojo de compasso, onde o instrumento com todas as suas pe- gas repousa em cavidades fundas, revestidas de veludo viole- ta. Para quanta coisa 0 século XIX no inventou estojos: para relégios de bolso, pantufas, porta-ovos, termometros, bara- thos —e, na falta de casulos, capas protetoras, passadeiras, cobertores e forros."’ Hé algumas caracteristicas notdveis nesses estojos do século XIX. A primeira é 0 fato de seu exterior raramente revelar o que con- tém. As caixas, sejam lisas ou ornamentadas, costumam ter uma aparéncia que no causa estranhamento, enquanto muitas vezes, guardam objetos recém-inventados ou recém-chegados & esfera do uso cotidiano e advindos de uma industrializagao ainda pouco habitual. Os estojos, de certa maneira, protegem da evidéncia ime- diata dessa légica de produco, da mesma forma que a profusao de ornamentos 0 fazem nos produtos massificados. Ambos criam uma capa, um emolduramento, um intersticio para a imaginacéo. Nesse sentido, sao contrérios & chamada estética da maquina, que tem por premissa evidenciar 0 funcionamento interno, baseando- se em mecanismos ainda relativamente compreensiveis pela ima- gem, como a bicicleta ou 0 14-Bis, Um segundo aspecto importante dos estojos com os quais Benjamin compara a moradia € seu interior perfeitamente molda- do para seu contetido, mas, ao mesmo tempo, apto a reter mar- cas do uso, Nesse interior, importa que as pecas ndo se mexam, no se embaralhem, estejam intactas e disponiveis; as partes de- vem se encaixar sem folgas. Mas, como os estojos so forrados com materiais téxteis, o manuseio repetido de determinados pon- 0s, ou mesmo os mindsculos movimentos das pecas em suas ca- vidades, criam desgastes singulares. Entao, por um lado, o estojo resulta de um raciocinio tecnocrético que quer acondicionar per- feitamente, da mesma forma que quer ordenar 0 mundo. Mas, por outro lado, ele evoca a ideia de aconchego dos objetos, como se tivessem alma e ali lhes fosse dado um “repouso merecido” apés um “trabalho” executado, na contramao do consumo puro e sim- ples. As mercadorias atuais séo acondicionadas em pléstico ou espuma; materiais que se quebram ou se dissolvem antes de re- terem marcas singulares. Nese sentido, pode-se dizer que 0 estojo condensa uma dialéti- ca prépria do século XIX, ou as contradigées da sociedade burgue- sa, entre imaginagao e racionalizagdo, entre um ideal de comuni- dade livre, igual e fraterna e a prética de um modo de produg&o que pressupde dominagao, desigualdade social e uma razodvel” indiferenga para com 0 sofrimento alheio, O estojo ¢ racionalizado, predeterminado, constrangedor e, 20 mesmo tempo, aconchegan- te, seguro, confortdvel e até imaginativo. ‘Se Benjamin compara as moradias a esses estojos, ¢ porque as pensa segundo uma dialética semelhante. Os interiores burgue- 1 BENJAMIN, alter. Das Passagen. frst Sad Fanklutiv Subveamp, 952. 292.(0A), Nor 04 53 Sindrome doestoo 3 2 Shndrome do esoj0 ses criam, pela primeira vez, um mundo privado como promessa de felicidade. Esse mundo “privado”. como o préprio nome indi cae Hannah Arendt enfatizou muitas vezes, é o mundo de priva- 40 — privagao de vida piblica. Mas, na sociedade burguesa, ele se torna espaco privlegiado, ao menos para as classes que podem dispdr de espacos préprios e nao so constantemente ameacadas de despejo. A moradia burguesa representa o que Adorno chamou de “felicidade no recanto", apontando que se trata, na verdade, de uma pseudossatisfacao que resiste na medida em que ignora que esté ao seu redor. E importante perceber, também, o quanto a moradia-estojo & pautada na ideia de permanéncia, contrapondo-se as transfor- mages entao em curso em todas as esferas. Da mesma forma que o estojo, a casa amortece os choques externos para que no abalem a vida privada, Para Benjamin, o homem-estojo alguém que usa de violencia sancionada (na forma da exploragao do tra- balho, por exemplo) em busca de conforto e seguranca, e assim resiste & violencia no sancionada (na forma de movimentos re- volucionérios, por exemplo). Benjamin considera que o século Xx teria posto fim a existén- cia-estojo da burguesia do século XIX, sendo o art nouveau 0 pri- meiro passo decisivo nesse sentido. ‘0 século Xx, com sua transparéncia e porosidade, seu gosto pela luz e pelo ar livre, pds fim a esse habitar no sentido antigo do termo.[...] O art nouveau [Jugendstil] abalou a existéncia-es- tojo profundamente. Hoje ela esta moribunda eo habitar arrefe- eu: para os vives, pelos quartos de hotel; para os mortos, pelos crematérios*? Quero estruturar o argumento que se segue na ideia de que, em- bora Benjamin tenha razao em certos aspectos e a moradia bur- guesa do século XIX certamente tenha deixado de existir, o para- digma do estojo se estendeu por todo o século XX e continua nos assombrando até hoje. Chamei-o “sindrome”, porque na medici- nna e na psicologia esse termo indica caracteristicas, fenomenos e eventos que frequentemente ocorrem em conjunto, mas cuja causa nao é conhecida. Se, ainda assim, as sindromes sao es- tudadas, ¢ porque sua descrigdo e a comparacao sistematica de suas ocorréncias concretas podem fazer avancar o conhecimento a seu respeito. Portanto, trata-se, agui, de tentar descrever com alguma cla- reza os projetos de moradias que tém o estojo por modelo expli- cito ou sub-repticio, Nao tenho a pretensao de Ihe descobrir as causas, mas, sim, a de apontar algumas possiveis alternativas. E nesse contexto que quero discutir os temas da mutabilidade e da coordenacao modular, vendo essa ultima menos como um ex- pediente em favor da indiistria e mais pelo viés do usudrio e do equeno produtor ou autoprodutor de moradias. Antes disso, po- rém, retomarei alguns pontos da trajet6ria hist6rica do paradig- ma da moradia-estojo. Um lugar para cada coisa, cada pessoa em seu lugar Voltemos entdo ao art nouveau. € possivel que, como expressa a supracitada passagem de Walter Benjamin, ele tenha tepresen- tado para os seus contemporéneos uma mudanga estilistica sig- nificativa. Mas, retrospectivamente, sua diferenga em relacdo a periodos anteriores nao parece t&o grande, ao menos no que diz Sindrome da estjo a L008, aot -Von einem amen, reihes anne’ in acre Gesprocten Wier Pacer, 997, p198-209 (7A) esta crdinion est pubcada também pela primeira ver fem portugues, nesta edigao darevsta Naz (ep asy (ne) L005, Atop. Gt. 200.(r.A) respeito & concep¢ao dos espagos domésticos. Arquitetos como Henry van de Velde ou Otto Wagner projetaram casas que leva ao extremo 0 principio ordenador: um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar. Adolf Loos os criticou repetidamente por isso, em especial na crOnica intitulada “Histéria de um pobre homem rico"®, cujo protagonista, um apreciador das artes, sofre na pele a ditadura da prescrigdo arquitetonica: ao fim e ao cabo, sen- te que esta morto, pois no pode mais se transformar, nao pode adquirir novos gostos, nem pode mais ganhar presentes ou com- prar coisas, pois todos os lugares de sua casa jé esto devida- mente preenchidos e qualquer alteracao destruiria a harmonia da obra do arquiteto, Oestojo art nouveau, embora visualmente menos eclético e por vvezes mais arejado do que os do século XIX, € ainda mais ajustado. Ele exacerba a heteronomia do habitante, a mesma medida que ‘a autonomia do arquiteto, A moradia, como obra de arte, anula a possibilidade de marcas ou modificagdes pelo uso. Como diz Loos, “para a menor das caixinhas havia um lugar determinado, feito es- pecialmente com essa finalidade”*, Se a moradia-estojo sempre foi uma tentativa de tornar permanente determinado status quo, esse aspecto parece acirrado no inicio do século Xx. Contudo, essa forma de tratar 0 interior da moradia mantém a especificidade que entao se atribuia as obras de arte. A l6gi- ca do espago ¢ a Idgica dos objetos que o integram, mas tais objetos se destinam a expressar algo da singularidade de seus donos. Henry van de Velde e outros contempordneos de Loos no projetam moradias para a massa, mas para pessoas que dedicam-se aos seus habitos obstinadamente. O procedimen- to € problemético porque desconsidera a possibilidade de a vida @ 08 desejos dos moradores se modificarem; 0 casulo cabe ao dono, se, ¢ somente se, este permanecer sempre idéntico. Mas, ‘ao mesmo tempo, ele tem a qualidade de ainda ndo ser casulo genérico para seres humanos idealizados, frutos de um proces- 50 mental de abstragao. Essa dltima situagao 86 se instala no momento em que os mes- ‘mos profissionais de arquitetura, antes dedicados as moradias da alta burguesia, passam a entender também a moradia popular como seu campo de atuagao, isto é, na década de 1920. A princi- pio, parecem ganhar terreno ideias como transparéncia e fluidez dos espacos, auséncia de delimitagdes espaciais rigidas e até su- perposigtio e mutabilidade de fungBes. A Casa Schréder, projeta- da por Rietveld e pela viiva Schréder em 1924, permite integrar ou apartar 0s espacos com grandes elementos corredicos; os apar- tamentos projetados por Mies van der Rohe para a exposi¢ao de \Weissenhof em 1927 permitem variadas disposi¢des de divis6rias internas; e até uma das casas projetadas por Le Corbusier para a mesma exposigo tem um espaco multifuncional em lugar de sala e quartos. Nesse sentido, 0 Movimento Moderno tem aquele card- ter destrutivo-subversivo que Benjamin vé como oposigao a exis- tencia-estojo do burgués bem adaptado. Ele contém, literalmente, uma vontade de “abrir espago”. Porém, o mais tardar em 1929, no Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM) dedicado ao Existenzminimum, isto 6,4 moradia minima para uma existéncia supostamente digna, prevalece o intuito de enquadrar a populagao trabalhadora num modo de vida preconcebido, em detrimento das possibilidades Sindkome do estojo de abertura e flexibilizagao. Como jé dito, 0 estojo é a tentativa de tornar permanente determinado status quo. Inserir as clas- ses mais pobres em espagos desse tipo, elimina certas formas de ago e as tornam mais “administraveis". Se por um curto periado o habitante genérico da moradia de massa foi entendi- do como um sujeito com criatividade e vontade préprias, essa caracteristicas sdo paulatinamente eliminadas de suas repre- sentagdes; uma tendéncia, alids, que acompanha a do cendrio sécio-politico da época. No fim, o que sobra das primeiras am- bigdes da arquitetura em relagao & moradia de massa ¢ um am- biente doméstico em que o sujeito deve simplesmente se recom por (descansar, alimentar-se, higienizar-se, procriar), da mesma maneira que no ambiente de trabalho deve ser parte da engre- nagem produtiva. Nenhum desses dois ambientes comporta 0 desenvolvimento criativo da propria personalidade ou qualquer espécie de agao inusitada. ‘As premissas para essa nova modalidade de espagos rigidos e predeterminados jé estavam dadas, antes, pela lenta entrada do gerenciamento cientifico de Taylor no ambiente doméstico, impul- sionada inclusive por mulheres, como Catherine Esther Beecher, Lillian Gilbreth e Margaret Schatte-Lihotzky. € preciso deixar cla- ro que as intengdes dessas mulheres eram emancipatérias, a0 menos de seu préprio ponto de vista, pois o estudo dos movimen- tos ou a disposicao otimizada de objetos na moradia deveriam fa- cilitar as tarefas cotidianas, e no oprimir ou restringir suas usu- rias. Assim, também as solugdes massificadas no se instalam de imediato. As cozinhas so um exemplo: enquanto a “cozinha de Frankfurt” projetada em 1926 por Schatte-Lihotzky para o de- partamento de habitagao da Prefeitura daquela cidade tem di- menses padronizadas segundo a estatura mediana das mulhe- res da época, a “cozinha prética” projetada por Lillian Gilbreth em 1929 para a companhia de gés do Brooklyn deveria ser ajustada as medidas especificas de cada usudria. Essa ultima concep¢&o ainda lembra 0s ajustes singulares das ricas casas art nouveau que mencionei acima, a0 passo que a cozinha de Frankfurt jé faz parte do “espirito CIAM" de solugdes universais que prevaleceré nas décadas seguintes. De um modo ou de outro, fica evidente que nem o art nouveau nem o funcionalismo modernista abandonam a ideia de projetar espagos e objetos domésticos segundo um determinado roteiro, imposto aos moradores. Embora, como diz Benjamin, os obje- tos e edificios de vidro nao tenham a aura e a privacidade dos estojos burgueses, nada impede que se persista na I6gica do acondicionamento. € possivel que nas vilas da alta burguesia do inicio do século XX, nas quais Corbusier também trabalhou, haja, de fato, uma reversio & moradia estojo do século ante- rior. Mas, quando se trata de abrigar nas metrépoles a popula- 80 trabalhadora, as caracteristicas do estojo retornam. Sendo que 0s novos estojos so menos suscetiveis a rastros e marcas pessoais, servindo ainda melhor para acondicionar e condicio- nar seus habitantes, A grande contradigao do estojo art nouveau e do estojo funci nalista ¢ 0 fato de tolherem 0 consumo. Loos jé evidenciara isso © pobre homem rico é pobre porque, apesar de ter dinheiro, nao tem onde colocar novas aquisigées e, portanto, no pode comprar nada. A mesma coisa vale para o espago doméstico hiperfuncio- Sindrome do estojo 5 CLFREDWAN, Av The adaptable hou fe: designing homes fr chang. Nova York Mecrawsti 2002 nalizado. Ambos contradizem a formacao social em que estao in- seridos, porque essa formago social depende da expanso con- tinua do mercado consumidor. Quando o CIAM propde o estudo da moradia minima, em 1929, a légica da sociedade de consumo do século Xx jé havia sido descoberta e experimentada por Henry Ford, que aumentara os saldrios e o tempo livre de seus traba- thadores para que pudessem comprar e usar (desgastar) 0 Ford T que ele produzia. Ou seja, as massas haviam se tornado o merca- do consumidor por exceléncia. Entao, como viebilizar, ao mesmo tempo, uma moradia funcionalizada e o consumo ininterrupto de novas mercadorias? Entendo que esse impasse leva a duas transformagdes impor- tantes na maneira de projetar a habitagao de massa, mas, pa- radoxalmente, nao altera a premissa fundamental de encaixe acondicionamento. A primeira delas é a passagem de ura mo- radia inteiramente prét-a-porter (pronta para o uso), para uma. moradia cujos equipamentos so adquiridos paulatinamente pe- los moradores e substituidos com frequéncia. Assim, por exem- plo, a cozinha de Frankfurt ainda era um equipamento entregue juntamente com a unidade habitacional, e 0 imenso conjunto de Levittown nos Estados Unidos, do inicio da década de 1950, ain- da oferecia modelos com TY, geladeira, fogao e estantes embu- tidos. Mais tarde, prevalecerao moradias com nichos ou “ca- vidades” vazias, como um dlbum a ser preenchido. A segunda transformacdo é a ideia de que as moradias poderiam ser subs- tituidas quando néo mais comportassem os anseios e necessi- dades de uma familia. A casa Dymaxion de Buckminster Fuller, por exemplo, foi concebida para uma produgo industrial seriada, que langaria periodicamente novos modelos, tal qual a prépria industria automobilistica. Os usuarios trocariam sua casa, como trocam seu carro. © modelo de Fuller nao foi bem sucedido, por razBes cuja andlise no me cabe aqui, mas a sua légica de subs- tituigdo periédica da moradia prevaleceu largamente sobre ou- tras alternativas, como a possibilidade de moradias alterdveis, adaptaveis, evolutivas ou mutdveis, que tiveram um breve mo- mento de ascensao na década de 1920. Tal persistencia da moradia-estojo esta de acordo com um padrao de produgdo da indéstria de bens de consumo chama- dos “durdveis", cujo apogeu se da no segundo pés-querra. Nao interessa a essa industria que o piblico deseje quaisquer coi- as, mas que deseje as mercadorias que ela tem a oferecer € que, em vista da sua quantidade, so muito pouco diversifica- das. Nada melhor, portanto, do que reforcar 0 comportamento de consumo num setor pelo outro. Nao quero insinuar um comp. 16 de estratégias bem planejadas entre, por exemplo, os produ- tores de moradia de massa e os produtores de eletrodomésticos (embora essa possibilidade também nao esteja excluida). Mais importante é perceber que o contexto s6cio-econdmico molda a mentalidade dos consumidores para um ciclo de compra e des- carte do qual a moradia também se torna parte. Avi Friedman registra que, ao longo de sua vida util, uma moradia norte-ame- ricana é habitada, em média, por oito diferentes familias e que as familias se mudam em média a cada dez anos*, Nesse movi- mento, as pessoas costumam migrar de um lugar a outro e, por vezes, de um patamar de consumo a outro, mas dificilmente es- capam de padrdes predeterminados. Nor 04 Sindrome doestojo Sindrome do esto quanto melhor mais KAR S."Rbentouer der Koper inn bemdtichen Ststen” Cloud cuckoo and inerconal urna) OF Azcitoctral Theos, Cott 9.7. yp. 200230 (opel arutetra in: DUARTE, modi FIGUEIREDO, Vigna; FRETAS,Verline, ANGUSSU, imeculada gs) Kahrs Teles de um conc esti... Belo Nov 04 um espacgo se adequa a determinada orquestragao de usos, dificulta outros usos quaisquer (© argumento mais frequente em favor desses padroes, utiliza- do inclusive pela prépria indiistria que os torna tao persistentes, € ‘a suposigdo de que oferecem o maior conforto possivel em deter- minada falxa de renda. Mas a propria noc de conforto, a ideia de promover a comodidade do corpo ao sentar, dormir ou execu- tar movimentos, s6 aparece no inicio do século XVIII e s6 aleanga c-ambiente doméstico jé no século XIX. Ela faz parte da sociedade urbana de massa e, como jé discuti em outras ocasides®, tem rela- ‘edo direta com a anulac&o do corpo necessdria aos novos regimes de trabalho. © modo de produgao do capitalismo industrial depen- de da adaptacao de cada individuo a um ritmo coletivo minuciosa- mente definido. Desejos e necessidades de um corpo indisciplina- do prejudicam a produtividade. A melhor maneira de domesticar esses corpos, no entanto, no € a violencia direta, mas 0 conforto que 08 torna passivos e aptos & execucdo de tarefas sempre par- ciais e restritas. Tanto ¢ que, a ergonomia, disciplina dedicada ao conforto, significa literalmente “normalizagao do trabalho". Se hoje falamos em “ergonomia aplicada & habitagao”, “ergodesign’ e coi- sas semelhantes & porque se promove no ambiente doméstico uma adequagao padronizada do corpo muito semelhante &quela dos ambientes de trabalho. E “méveis ergondmicos” parecem perten- cer 4 mesma categoria dos sapatos ortopédicos e dos brinquedos pedagégicos: eles tolhem muitas possibilidades, mas ainda assim ‘nos convencemos de que nos fazem bem. Em resumo, terfamos entao uma histéria do que chamei de “sindrome do estojo” que se inicia no século XIX, com uma burgue- sia abastada, altera seu padréo estilistico com 0 art nouveau, se massifica e se torna cientifica com a produgao dos grandes con- juntos pelo Estado e pela iniciativa privada, e ver se prolongan- do, também, pela sociedade de consumo da segunda metade do século XX. Essa sindrome consiste num modo de concepgao de moradias em que o bem intencionado projetista prevé cuidado- sa e meticulosamente cada movimento, aco, evento e objeto de um futuro usuario abstrato. O usuario é abstrato para o projetista, porque abstrair significa subtrair e o projetista recolhe as caracte- risticas do usudrio de estatisticas genéricas e de vagas represen- tages prdprias ou, no melhor dos casos, de um curto momento de contato direto. O projetista cria 0 cenério tido por ideal para esse usuario abstrato, observando preceitos de conforto e funcionali- dade, por sua vez baseados em sistematizagbes genéricas, tais, como as registradas no “Neufert" ~ a “biblia’ da medida exata de objetos, seres humanos e movimentos, e o livro mais vendido de arquitetura em todos os tempos. Sobre os usuarios, essa previ- 80 cuidadosa tem um efeito sedutor: ela promete aconchego e conforto e evoca as imagens de vida familiar bem ordenada que a industria cultural se encarrega de propagar. Apenas depois de algum tempo de uso instalam-se os conflitos, porque os aconte- cimentos concretos sempre ultrapassam 0 roteiro abstrato para o qual o espaco foi projetado. Ha, entéo, trés possibilidades: ou os Usuérios se resignam e se adaptam ao espago de que dispdem; ou tentam empreender reformas, em geral dificeis, onerosas e cheias de transtornos; ou, quando podem, almejam uma nova substitu Go da moradia, mantendo aquecido o mercado imobiliérioe a propria industria de incorporacdo e construgao. Alternativas Paralelamente ao percurso hist6rico da moradia-estojo, houve d- versas iniciativas de maior flexibilizagdo. Na supracitada Levittown, do inicio da década de 1950, por exemplo, ja havia projetos com divis6rias mévels para arranjos diversificados. Mas tals possiblida- des se multiplicam, sobretudo na década de 1960, quando, nos pal- ses industrializados mais ricos, a produgo de moradias de massa jd esté avangada em termos quantitativos e seus problemas se fa- zem sentir concretamente, Por um lado, a abertura ou a retomada de tais alternativas est relacionada a movimentos politicos e so- Ciais mais amplos de critica & propria sociedade de massa do sé- culo XX; de outro lado, esta ligada a tentativas de diversificacao e individualizacdo da oferta de bens, necessérias para manter altos 6s niveis de consumo, depois que as demandas mais fundamen- tais parecem estar supridas. Cito apenas alguns exemplos. Na Holanda, um grupo de arqui- tetos se associou em 1964 para financiar uma pesquisa da qual IN. J. Habraken se tornau coordenador ~0 SAR (Stiching Architecten Research]’. Seu objetivo era justamente criar estratégias para a 7 ChHR@RAKEN, WALA esos de habitagdo industrializada sem a uniformidade das moradias ento spre, Barrons: Gusto, 2000-€ produzidas naquele pats. Resultou disso um método de produg&o vos, Warn. How rh ions John independente de “recheios" e “suportes", que acabouenvolvendo _—_‘aeker ane SA 1990-2000 Rtersam uma parte expressiva de toda a cadeia produtiva de construgao da Holanda e tem consequéncias até hoje no movimento Open Building. Na Inglaterra, em 1969, Reyner Banham, Paul Barker, Peter Hall e Cedric Price publicam um artigo inttulado "Non-Plan: an experiment in freedom”, evidenciando que o planejamento esté historicamente “Mra essayson on parieation | relacionado & auséncia de democracia e que raramente tem 0s resul-_bunsin oxo. Wetteclral Press, 2000. 8 CLHUGHES, Jonathan: SADLER, Simon Nox 04 a Sindrome doestojo

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