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Testemunha ocular historia e imagem — Peter Burke Em memoria de Bob Scribner TRAD'UGAO REVEFSAO TECNICA’ Daniel Aarao Reis Filho | Vera Maria Xavier dos Santos | | | EDUSC ~~ Capitulo 7 (oar .. ESTEREOTIPOS DO OUTRO 2, Cristaos esto certos e pagios esto errados. - : A CANGKO DE ROLANDO + O Oriente ¢ 0 Oriente e o Ocidente é 0 Ocidente e ambos nunca se eitcontrardo. 1 ¢ RUDYARD KIPLING Nao faz muito tempo que historiadores culturais.tornaram-se interes- sados pela idéia do “Outro”, com um O maitisculo, ou talvez um A maitiscu- lo, uma vez que foram os tedricas franceses que deram inicio as discusses so- bre l’Autre; Poderia ser mais esclarecedor pensar em pessoas diferentes de nds no plural em vez de transformé-las num. Outro nao diferenciado, mas, visto qué o processo de homogeneizacio € tZo comum, historiadores culturais ne- cessitam estudaslo. Esse novo interesse deles corre paralelo ao aumento do in- teresse pela identidade cultural e encontros culturais, apenas um exemplo en- tre tantos das preocupacées atuais, tais como o debate sobre multiculturalis- mo, que instiga’os estudiosos a levantar novas questdes sobre o passado, No caso de grupos confrontados com’ outras culturas, ocorrem'duas reagGes opostas. Uma seria¢ ua ignorar a distancia cultural, assimilar os outros a nés thesmos ou a 16560s vizinhos pelo uso de analogia, seja essé ar- tificio empregado consciente ou inconscientemente. O outro é visto como o reflexo do eu. Assim o guerreiro mugulmano Saladino era percebido por cer- tos cruzados como uni cavaleiro, O exploradot Vasco da Gama, entrando num templo indiano pela primeira vez, interpretou uma escultura de Brahma, ~ 153 Capitulo 7 ) . ey Vishnu ¢ Shiva como uma imagem da santissima trindade (da mesma forma que os chineses, um século mais tarde, interpretariam imagens da Virgem Ma- ria como representagdes da’‘deysa-budista-Kuan Yin.) O missiondrio jesufta Sio Francisco Xavier, defrontanido-se com a cultura japonesa pela primeira vez em meados do século 16, descreveu 0 imperador (qite possufa alto status, mas pouco poder) como tim “papa” oriental. E através da analogia que 0 ex6-| * | tico se torna inteligivel, domesticado, . a A seguiinda reagdo comum é 0 reyerso da primeira, E a construgao cons- ‘ciente ou inconsciénte da outra cultura como oposta 4 nossa propria. Nessa éti- ca, seres humarios como nés sao vistos como “outros”, Assim, a Cangao de Ro- lando descreveu 0 Islio como uma inversio diabélica do cristianismo, e apre- senta uma imiagem de mugulmanos adorando uma trindade infernal composta de Apolo, Muhammad’e um certo “Termagant’. O historiador grego Herédoto apresentow umia imagem da antiga cultura egipcia como o inverso da grega, ob- servando que'no Egito as pessoas escreviam da direita para a' esquerda, em vez de da esquerda para a direita, que os homens carregavam cargas na cabega ¢ ndo nos ombros, que as mulheres urinavam.sentadas e nao em pé, etc. Ele também descréveu 08, Persas e’os Citas em alguns aspectos como a antitese dos gregos. Nos tiltimos pardgrafos 0 termo “imagem” foi usado no sentido de uma imagem mental, e a evidéncia veio através de textos. Para recuperar Ou recons- truiressas imagens mentais, o testemunho de imagens visuais é obviamente indispensavel, a despeito de todos os problemas de interpretacao suscitados pelas pinturas. Enquanto os escritores podem esconder suas atitudes sob uma descrigéo impessoal, os artistas so forcados pelo meio em que trabalham a adotar uma posigao clara, representando individuos de outras culturas como semelhantes ou difererites deles proprios. : Dois exemplos notaveis do primeiro processo descrito acima, a assimila- - + * €40 do-outro, provém de gravuras holanidesas do.século 17. Num deles, um in- dio brasileiro foi equipado com um clissico arco ¢ flechas. Dessa forma, os in- dios foram identificados com as bérbaros do Mundo Antigo, mais familiares ao artista e a0 espectador do que 03 povos das Américas, Numa outra gravura, ilus-. trando um relato da embaixada da Companhia Holandesa Oriental da India na China, um Jama ti i catolico, e seu colar de oracdes como um rosario (fig. 64). O texto que acompanha a ilustracao vai além na direco-da assimilagao, a versio inglesa descreve o_chapéu do lama como “bastante parecido com o de um cardeal, com abas largas”, ao passo que a versao francesa, visando a um puiblico catélico, também compara as largaé mian- 154 : . Extercétipos do outro 64, Gravura mostrando um embaixador tibetano com um “rosario”, de Jan Nieuhdf, L’Am- bassade de la Compagnie Orientale des Provinces Unies vers VEmpereur de la Chine (Embaixada da Companhia Oriental das Provincias Unidas junto ao Imperador da China) (Leiden: J. de Meurs, 1665). ° : gas do lama as de um frei franciscano, e. 0 seu“rosdrio”, aos dos dominicanos e franciscanos. O chapéu representado na gravura, a propésito, difere do pontu- do chapéu tradicional dos lamas, que um viajante italiano do inicio do século ~.18, numa outra tentativa de assimilar o'desconhecido ao conhecido, comparou “a mitra de um bispo. Ao contrario de outras imagens de culturas distantes aqui ilustradas (fig. 3, por exemplo), parece que a gravura foi feita com base no tex- to escrito e nao em esbogos provenientes de observagées diretas. - do ocorrem encontros entre cultuiras, é prové- vel que a imagem que cada cultura po: i ipada. A palavra *Gsteredtipo” (originalmente uma placa da qual uma imagem podia ser imnpre- sa), como a palavra cliché (original mente o termo francés para a mesma placa), um sinal claro da ligacao entre imagens visuais e mentais. O esteredtipo pade _nio ser completamente falso, mas freqiientemente exagera alguns tracos da rea- idade e omite outros. O esteredtipo pode ser mais ou menos tosco, mais oume: ————_—_—" 155 Z Capitulo 7 . nos violento..Entretanto, necessariamente lhe faltam nuangas, uma vez que o niesmo modelo ¢ aplicado a'situagées culturais que diferem consideravelmente ‘amas das outras. Tem-se observado, por exemplo, que gravuras européias de in- ~ dios americanos eram muitas vezes composigées que combinavam aspectos de indios de diferentes regides para criar uma tinica imagem geral. “Ao analisar tais imagens; é dificil fazé-lo. sem 0 conceito do “olhar” (gaze), um termo novo, tomado emprestado do psicanalista francés Jacques Lacan (1901-1981), para 6 que tetia sido descrito anteriormente como “pon- to de vista’. Seja quando pensamos sobre as intengées dos artistas ou sobre as maneiras pelas quais diferentes grupos de espectadores olhavam para os tra- balhos desses artistas, é interessante refletir em termos do olhar ocidental, por exemplo, o olhar cientifico, oolhar colonial, o olhar do turista, ou o olhar inasculind.' Q.olhar freqiientemente expressa atitudes sobre as quais o espec- tador pond estar consent slam eas de motos, dis ou desis POS tados no outro. O pleito por interpretagdes psicanaliticas de imagens, um en- foque a ser discutido em maiores detalhes no Capitulo 10, ¢ fortemente apoia- do nas imagens de alienigenas, no estrangeiro ou no préprio pais. Alguns desses esteredtipos sa0 positivos, como no caso do “nobre sel- — vagem’, uma expressio usada'em 1672 pelo poeta e dramiaturgo inglés John Drydén! A imagem tornouse um clissico que foi revivido no século 16 e de- senvolveu-se junto com a imagem do seu oposto, a dé canibal.. Gravuras, in- cluindo as gravagbes em madeira na “obra Histéria de uma viagem do Brasil (1578) do missiondrio francés protestante Jean de Léry, ilustraram esse con @ito-A época durea da idéia do nobre selvagem foi o século 18, Foi nessa épo- ca que a cultura de Taiti, por exemplo, era vista como remanescente dos anos “| dourados. Particularmente os habitantes da Patagonia e da Polinésia'eram vis- Htos por viajantes europeus sob 0 ponto de vista da tradicdo classica como-* ‘| “exemplares modernos das austeras vidas virtuosas vividas nos tempos cléssi- | cos por povos como os espartanos ¢ os citas’* 1 BRYSON, Norman. Vision and Painting: The Logic ofthe Gaze. London: Macmillan, 1983; MASON, Peter. Portrayal and Betrayal: The Colonial Gaze in Seventeenth-Century in Brazil Culture and History V1, p.37-62, 19895 KERN, Stephen. Eyes of Love: The Gaze in English and French Paintings and Novels, 1804-1900. London: Reaktion Books, 1996; SCREECH, Timon. The Western Scientific Gaze and Popular Imagery in Later Edo Japan, Cambridge: Cambridge UP, 1996. 2. SMITH, Bernard. European Vision and the South Pacific (1960). 2nd ed. New Haven: Yale UR, 1985, p.24-25,37-38,

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