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Revista Critica de Cidncias Sociais n# 12 Outubro de 1983, ERIK OLIN WRIGHT * O QUE & NEO © O QUE & MARXISTA NA ANALISE NEO-MARXISTA DAS CLASSES? ** Se a resposta for a classe, qual é a pergunta? Diferentes tradigdes de andlise das classes inserem o coneeito de classe em quadros explicativos também diferentes. Para os sociélogos we- berianos, a classe é um elemento central da resposta & questo sobre o que é que mais determinantemente distingue das ante- riores formas de organizagio social os sistemas de estratifica- co e os respectivos modelos de conflito social nas sociedades capitalistas «modernas>. Neste sentido, a transigio das socie- dades tradicionais para as sociedades modernas é, em larga me- dida, a transicao de um sistema de desigualdade social com base no status para um outro estruturado em termos de classe. Para 0s tedricos da estratificacao social, a classe representa uma das formas de abordar a questo de saber quais sao as caracteris- ticas da origem social de um individuo que marcam as suas coportunidades de vida», e particularmente as suas oportunida- des de mobilidade social. A classe 6, assim, uma condicio ine- rente aos individuos, com influéncia sobre as suas oportuni- dades e motivacées. Para o marxismo, 0 conceito de classe ocupa um lugar central nas explicagdes do conflito social e na dina- mica histérica da mudanga social. Ele constitui o elemento con- ceptual basilar para estabelecer ligagées entre as micro-condi- Ges da accio e da subjectividade individuais e a macro-teoria das transformagies sociais estruturais, * Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Wigeonsin (Madison). ‘ss "Este artigo beneficiou bastante da eritiea profunda_e do cepticismo de Michael Burawoy e Andrew Levine. A investigagdo re- ferida no artigo fol subsidinda parcialmente pela National Science Foundation, pela Wisconsin Alumni Research Foundation e pelo German Marshall Fund dos Bstados Unidos 10 Brik O. Wright Como seria de esperar, dadas estas diferentes estratégias explicativas, 0 conceito de’ classe surge definido de formas muito diversas consoante as diferentes tradigées. Na tradicéo weberiana, dada a sua insisténcia nas classes como elemento distintivo do capitalismo, estas surgem, em geral, definidas pe- las relagdes de mercado. Por outro lado, sempre que 0 conceito de classe € utilizado com vista a caracterizagdo das origens s¢ ciais dos individuos, num quadro de explicacdo de oportuni dades e motivagées, ele define-se por um conjunto de atributos atinentes a destinos individuais: ocupacdo, estilo de vida, edu- cago, rendimento e varios outros elementos. Quando, ‘final mente, os marxistas empregam o coneeito de classe para expli carem’o conflito ¢ a mudanga social no tempo, ele surge defi nido em termos de modos de producao, sistemas de exploracao, e assim por diante. ‘Neste texto, vou procurar analisar algumas das contribui- des mais importantes de debates recentes para a anélise mar- xista das classes. O texto assume como dado o quadro central da andlise marxista das classes, sem procurar estabelecer quais- quer comparagdes entre os contributos marxistas e diversas correntes néo-marxistas, nem muito menos avalié-los. Preten- de-se por a claro algumas das limitagdes do debate sobre as classes no interior da corrente marxista e fazer ver como 0 contributo neo-marxista procurou suplantar tais limitagdes (*) Na parte que se segue, examina-se sucintamente 0 trata- mento das classes feito pelo proprio Marx. O propésito desta diseussao nao é, em primeira linha, exegético. Pelo contrario, pretendo explorar 0 terreno conceptual de Marx, para assim especificar 0 que € que ha de novo nos debates recentes. Na segunda parte do artigo, passar-se-40 em revista, ainda que breve, as andlises marxistas contemporaneas e alternativas das (©) A expressio eneo-marxismos abrange um vasto leque de posigdes tedricas que vai desde os que, fortemente empenhados no marxismo como quadro teérico, julgam’ ser necessirio repensar sis- tematicamente algumas das suas teses tradicionais até aos que veem na tradiclo marsista uma fonte importante de interrogagdes e de inspiragdo, mas no se sentem especialmente comprometides com 0 marxismo’enquanto tal. A verdade € que muito poucos adoptam este rotulo para se caracterizarem a si proprios; ele é principalmente uti~ Hzado por nfo-marxistas para designar os teéricos que, usam conceitos marxistas de mancira aeademicamente respeitavel. Pela minha parte, Usarel a expresso para designat diversidade das contribuigoes te6- Fleas que aceitam, umas mais outras menos, 0 quadro explicativo marxista, mas procuram reformular, dentro dese quadro, 08 ergu- mentos substantives. Marzismo e Teoria das Classes 11 classes nas sociedades capitalistas. Por dltimo, na terceira parte, procurarei intervir, com base em dados empiricos, num debate especifico, o das fronteiras estruturais da classe operéria, 1A CONCEPGAO DE MARX Como frequentemente tem sido notado, ¢ lamentado, Marx nunca definiu nem elaborou sistematicamente 0 conceito de classe, apesar da centralidade deste para o seu trabalho. Para perpétua frustragao daqueles que procuram nos textos de Marx as respostas a problemas teéricos fulerais, 0 tinieo lugar onde 6 prometida uma elaboracao desse género, o capitulo final do volume III de O Capital, intitulado «As Classes», termina, apés escassos pardgrafos, com 0 comentario melancélico de Engels Aqui, interrompe-se 0 manuscritos. Qualquer tentativa de ex- planar a concepgio de Marx das classes, para ja nao falar de a criticar ou recriar, nao poderd, assim, deixar de ser parti- cularmente problemética. ‘Marx fornecen fundamentalmente duas espécies de and- lises das classes: por um lado, um quadro estrutural abstracto das classes, contido nos seus diferentes textos sobre 0 modo de producao capitalista e a teoria geral da historia; por outro lado, © quadro conereto e muito complexo das classes-agentes, nas suas analises politicas de conjunturas histéricas particulares. Na anilise abstracta de Marx sobre os modos de produ- ¢fo, 0 conceito de classe apresenta quatro caracteristicas prin- cipais: a) A classe & um conceito relacional. As classes nao se definem pelos seus atributos em si, mas pela sua relago com outras classes (*) b) Estas relagdes sao antagénicas e nao simétricas e reci- procas. «Antagénicas» significa que as relagdes por que se de- finem as classes so intrinsecamente geradoras de interesses opostos, no sentido de que a satisfagio dos interesses de uma ©) Afirmar que as classes se definem pela sua relagio social com outras classes representa mais do que defini-las em relacdo a outtas classes, Quando se definem as classes pelo rendimento, em que 2 classe alta é rica, a classe baixa € pobre ea média fica entre uma @ outra, sem divida que as classes esto a ser definidas em relacdo outras classes. Contudo, isso nao implica necessariamente a exis- tencia de qualquer relacdo social espeeifica que ligue 0s ricos © 0s pobres. 12 Brik O, Wright classe supde um confronto com a realizagio dos interesses de uma outra, Isto nao implica a impossibilidade de um , Afirmar que os senhores feudais ex- ploram os camponeses é ir para além de dizer que uns so ricos © outros sio pobres; & afirmar que existe uma relagdo causal entre a riqueza dos senhores e a pobreza dos camponeses —o senhor 6 rico porque os senhores esto em posigao de se apro- priarem de um excedente produzido pelos camponeses (*). E devido a esta relacao causal entre o bem-estar de uma classe © as privagées de outra que 0 antagonismo entre classes, defi- nido por estas relagdes, assume um carécter da estru- tura de classes tem-se contrado tanto na questo geral da con- ceptualizagao abstracta das classes como na elaboragio de con- ceitos mais concretos, isto é, conceitos eapazes de identificar a especificidade da estrutura de classes em diferentes sociedades capitalistas. Nos debates sobre a conceptualizacao abstracta das relagies de classe, 0 aspecto central da discussdo tem sido o de saber como deve ser definidas as relagées sociais de produ- Gio». Sera que este conceito se refere principalmente as rela- ges juridicas de propriedade? Incluem-se nele relagdes de mer- cado ou relagées de autoridade? Ser que existem dimensies politicas e ideol6gicas nas relagdes sociais de produgao, ou deve estas ser entendidas simplesmente como uma categoria econd- mica? (°) Quanto & investigagfo que se tem centrado no de- 08 eapitalistas e proprictérios fundidrios, por outro, que, na sua maior atte, tem o rendimento como fonte de sustento directa, que se apoiam ‘como’ um fardo nos alicerces do trabalho e aumentam a seguranca e © poder socials das minorias exploradoras» ‘A tendénela central da obra de Marx 6, porém, a de acentuar ‘a polarizagio tendencial das relagdes de classe no desenvolvimento capitalista © nfo a proliferagdo de novas formas de lugares intermédios. (S) Cf. Poulantzas, 1973; Roemer, 1982 8; Wright, 1970, 1978; 6 Carchedi, 1978, Para um debate especificamente centrado no problema da dimetsio politica das relagoes de classe, ef. Wright, 1982, ¢ Roc- mer, 1982b. 16 Erik O. Wright senvolvimento de um conceito de classe mais concreto, existem dois aspectos que tém sido alvo de atencdo particular: primeiro, a questao da compreensio dos lugares da estrutura de classes das sociedades capitalistas avangadas que nfo se enquadram bem nem na classe capitalista nem na classe operdria e a que o dis- curso comum chama duma maneira vaga «classe média»; e, segundo, a questéo da conceptualizacéo dos lugares da estru- tura de classes das sociedades capitalistas menos desenvolvidas que parecem ter conservado caracteristicas de relagées de classe néo-capitalistas e que, contudo, se integram nas economias capi- talistas dessas sociedades (°). © segundo grande contributo dos estudos recentes que procuram estabelecer uma ligacdo entre a andlise abstracta das estruturas de classes e as andlises conjunturais dos confli- tos entre classes inelui a busca de uma compreenséo mais rigo- rosa do processo pelo qual os elugares vaziosy da estrutura de lasses se constituem em agentes intervenientes nos conflitos. Neste campo, inclui-se um conjunto variado de estudos sobre questies como o proceso histérico de formacao das classes (por exemplo, Thompson, 1968; Foster, 1974; Aminzade, 1981); as vias, pelas quais 0 processo de trabalho estrutura formas de conflito € de consenso (por exemplo, Burawoy, 1979 e no prelo; Noble, 1978; Friedman, 1977; Clawson, 1980); 0s processos pelos quais 0 estado e 0s partidos politicos mediatizam as formas tanto de or- ganizagdo como de conflito das classes (cf. Praeworski, 1980; Katznelson, 1982 a; Abraham, 1981; Therborn, 1982); ¢ 'a for- ma como as estruturas comunitarias as instituigdes culturais, penetram a formago e 0s conflitos das classes (cf. Katznel- son, 1982) Nenhum destes contributos — contributes para o quadro conceptual dos lugares vazios na estrutura de classes e para a teoria da formagao de agentes colectivos a partir desses luga- res—é verdadeiramente novo na tradigéo marxista. Podem j& encontrar-se discussGes tedrieas sobre a «classe médiav disper- sas na obra de Marx e Engels, endo ha divida de que, no ‘tempo de Kautsky, se reconhecia a importincia desta ques- (©) Entre outros exemplos de estudos que tratam explicita- ‘mente da conceptualizagéo da eelasse média» nas sociedades capitalistas, avangadas, ef. Wright, 1978; Carchedi, 1977; Johnson, 1982; e Walker, 1979. Para estudos sobre ‘a estrutura de’ classe em sociedades do ‘Terceiro Mundo, particularmente em termos de representam uma classe dis- tinta, com estatuto proprio; (3) a concepcdo de que estas posi- des ‘nao deveriam nunca ser entendidas como sfo 0 exemplo mais incontroverso do que € um lugar contraditério. Os quadros ocupam um lugar ¢a- racteristicamente burgués na medida em que dominam os ope- rarios, tomam decisdes correntes sobre a utilizagéo dos meios de produgao © podem mesmo participar na tomada de decisdes acerca da aplicacio dos excedentes (investimentos). Mas eles ‘ocupam também lugares tipicamente proletarios, ja que sofrem 0 (3) Este argumento surge geralmente assoelado @ posiebes an- ti-marxistas, como no easo de Bell, 1973, mas pode também encontrar- sse em autores mais préximos ‘do marxismo, como por exemplo Gouldner, 1979. C4} Para uma extensa anilise sobre a biografia deste coneeito, ef. Wright, no prelo: cap. 2. Pode ser stil aqui um elemento de clari fieagdo: todas as relagdes de classe Go, de certa forma, sem fungdes de super- 2, Nova Classe Operétia : ). & precisamente por eausa da dificuldade dessa validagio empfrica que os debates entre marxistas acerca do concello de classe {e Sobre a maloria dos outros concoitos) so desenrolamn principalmente em termos do estatuto Iogico dos varios elementos do coneeito. Apesar de uma tal evalidagao teoricas ser fuleral pata o processo de (trans)for~ maedo conceptual, é importante complementar este debate conceptual, Sempre que possivel, atraves de intervengSes emplricas, Para uma discussfio metodoldgica da relaglo entre a validaelo tedrica dos con- frontos entre diferentes definighes e 2 valldacto empirica, et. Wright, no prelo: cap. 1 30° Erik O. Wright Para cada uma destas discordancias, requer-se uma estra- tégia empirica distinta. No que respeita & conceptualizagéo dos trabalhadores assalariados nao-operérios, ambas as perspectivas conjecturam especifieamente sobre as semelhancas ¢ as diferen- gas que existem entre as ideologias dos individuos situados na- quelas posigoes e as dos situados nas classes «fundamentais». Se 0s trabalhadores assalariados ndo-operdrios constituem uma «n0- va» pequena burguesia, deveriam entdo apresentar maiores se- melhangas ideolégicas com a pequena burguesia «tradicional> do que com outros assalariados. Na verdade, Poulantzas argu- menta explicitamente neste sentido ao afirmar que a seme- Thanga ideolégiea dos dois segmentos da pequena burguesia uma das razdes principais para os considerar partes componen- tes da mesma classe. Por outro lado, 0 conceito de lugar con traditério faz notar que as tendéncias ideologicas de lugares contraditérios especificos dependem da importincia assumida pelos diferentes elementos de classe que integram essas posi- ‘ges. Os quadros superiores deveriam estar relativamente mais préximos das posicoes burguesas, 0s supervisores, das posigoes operarias, ete. Na discusséo sobre as fronteiras da classe operdria, Pou- Jantzas e eu proprio estamos de acordo em que os trabalhadores manuais, produtivos ¢ sem tarefas de supervirao pertencem & classe operdria (°). A discordéneia diz. respeito, acima de tudo, ao lugar de classe dos trabalhadores nao supervisores, néo au- t6nomos e improdutivos. Eu sustento que séo operdrios, en- quanto Poulantzas insiste em que eles so parte da nova pe- quena burguesia. Se Poulantzas estiver certo, ento, manten- do-se todas as outras condigées, esta polémica categoria social deveria aproximar-se mais das posigdes que ambos reconhece- mos serem as dos trabalhadores assalariados nao-operarios do que daquelas que ambos julgamos serem as dos operdtios. Ao contrario, se for eu a ter razo, entao aquela categoria deveria assemelhar-se mais com as posigSes que ambos julgamos serem as dos operarios. () Mais precisamente, Poulantzas sustenta que o trabalho € exterior A classe operdria, enquanto eu defendo que & € trabalho eauténomos que @ exterior a essa Classe. Na pratica, 0 meu eoneeito de autonomia @ uma sub-categoria do conceito de «trabalho intelectual» de Poulantzas e, assim sendo, Poulantzas eonsideraria, 05 trabslhadores autGnomos como nova pequena burguesia, Para uma dis- cussao da relacdo entre eautonomias e «trabalho intelectual» enquanto conceitos, cf. Wright, no prelo: cap. 2 ‘Marzismo ¢ Teoria das Classes 31 Para podermos avaliar as proposigées que se opdem sobre estas duas questdes, construiremos um tinico indice de atitudes pré-classe operdria/anti-classe capitalista baseado nas pergun- tas do inquérito ja referido que mais directamente se relacio- nam com a quesiio das classes. Perguntou-se aos inquiridores se concordavam em absoluto, se concordavam apenas relativa- mente, se discordavam apenas relativamente ou se discorda- vam em absoluto das seguintes seis afirmagoes: 1—0s beneficios das empresas vao para os proprietérios, & custa dos operdrios e dos consumidores; 2—Durante uma greve, a direcgio da empresa devia ser proibida por lei de contratar trabalhadores para subs- tituirem os grevistas; 30s trabalhadores em’greve tém geralmente razio em usar meios fisicos para evitar que fura-greves entrem no local de trabalho; 4—As grandes empresas tém, hoje, demasiado poder nos Estados Unidos; 5—Uma das principais razdes da pobreza é que a econo- mia se baseia na propriedade privada ¢ nos Iucros; 6—A crise energética nao sera completamente ultrapas- sada enquanto 0 governo nao controlar as maiores companhias produtoras de energia Estas seis proposigdes foram depois agregadas numa es- cala tmica em fungao da manifestagao de acordo ou de desa- cordo, Nessa escala, 0 valor +6 significa que o inquirido concordou com todas as seis questoes; da mesma maneira, — 6 significa 0 desacordo com todas elas; 0 valor 0 traduz a igual- dade de acordos ¢ desacordos. Desnecessario seré dizer que existe um sem-ntimero de questées que imediatamente poderiam levantar-se a propésito da utilizagio de escalas deste tipo para detectar a orientagio ideolégiea dos individuos, e nao irei tentar defender aqui nem 0 uso generalizado de inguéritos de atitude nem estas proposi- Ges especificamente. Em qualquer caso, as abordagens empi- icas desta espécie nfo sio nunca decisivas. A questio & que, se os resultados redundam decididamente a favor de uma con- ceptualizagao em detrimento de outra, entao é aos defensores da coneepedo que ficou prejudicada pela sentenga que cabe

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