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FUNGOES DA ESCRITA Adrewe Grenfell (Lets - UFES) [Estudar a linguagem ¢ enveredar por caminhos complexos, porque complexo €0 sistema da linguagem. Intricado e variado. Dentro da variedade uma variével —a escrita, Decor- rente dela, 0s questionamentos sobre ela. Escrever por qué? Para qué? Primeiro, em ambiente natural, a crianga aprende a falar, isto 6, a fazer uso da Wngua na modalidade oral. Num segundo momento, na escola, de modo menos natura, alguns aprenderao a outra modalidade - a eserita Acscola, portanto, enquanto detentora de um saber socialmente legttimo no sentido que Ie atribui Bourdieu (1970) cabe a transmissto dos conhecimentos fundamen tais da litura, eda escrtura,sendo este, de modo geral,o principal objetivo da lingua matemna: ensinar alere a escrever. Mas ¢aescrita,alinal, que se constitui no né gérdio do ensino da lingua rmaterna, E, ademais, escrever por qué para qué? Gestos de todo o corpo ou de parte do corpo, 0 ollar a mesmo osiléncio, como recursos ‘de comunicagSo, precederam. no tempo, as atividades de falar ede escrever. Posteriormente, elementos nfo verbais ¢ linguagem articulada passaram a coexistr, ‘cumprindo cada um 0 seu papel de comunicar idgias. Foi contudo 0 uso dos simbotos na linguagem articulada que marcou definitivamente a entrada do home no univers das significagdes abstratas, garantindo-Ihe conseqUente expansio da consciencia. Em suas represenlagbes rupestres de dezessete mil anos atrds, 0 homem desenhava as sithuetas de animais fidedignamente isto €,figuraivamente, a0 passo que, a0 se referir a si proprio, o fazia de forma figurada: um revingulo ou um quadelétero designavam 0 hhomem, o que indica o surgimento do simbdlico como representagao do real. De acord ‘com Leroi-Gourhan (1985) € um s6 o dispositive cerebral que permite ao bomem tanto a fabricago de utensiios como a produgio de simbolos. Em deconéncia disso, estariam indissociados o progresso(écnico e 0 progresso dos simbolos da linguagetn, Além disso, foi neste ponto que se distinguiu © homem. dos demais animais que 0 circundavamn: cle foi capaz de uma linguagem artculada e de expressar a realidade, rojetando-a simbolicamente Em tempos recuados, a linguagem oral, manifestagao primsria ¢ fundamental da lingua, serviu a propésitos sociais e religiosos, além de cumprir uma funsao primordial: a de preservasio da meméria coletiva. Foi contudo a scria,surgida pesteriormente, com uma Fungo predominantemente uilitaristal, que chamou para sia maior responsabilidad pela reservagio dos conhecimentos, das sabedorias e das tradigbes émicas ds povos, garan- lindo ao homem a transmnissao de sua historia A posteridade, Preservar a hist6ria © ‘ansmiti-la ao futuro & uma das fungBes deserts Segundo Spengler (1953), 0 uso da escrita pelo homem significow uma transformacao ‘completa nas relagtes da consciencia humana, pois eserever equivale a libertaraconsciéa- 4 cia da pressao que o presente exerce sobre ela, J4 lugar-comum dizer-se que o homem & sua linguager e que a sociedade 56 € possivel como tal pela lingua que a conforma, a ‘qual por sua vez Sofre as influéneias da sociedade que a utiliza & também por meio dn ingua que se pe rotomar a0 passado para reconstitute ‘metalingistcamente, econstriros pasos configuraderes da exci Segundo a tai chinesa as primes marcts de sins de animals sobre a neve ou sobre 0 solo foram os bjlos ds primes lets. Tas marcas trim sugerid 0 to de eserever, 0 qe no seria ahsolotamente defini de una cronologia para osursimento da hiséria da esta, mas sim definidor da natoeza desse supimento, A se considera como veddica essa hiotese, tems a consti de ndependéncia do surgimento da esrita em relagao & ald, @,aprimeic no dcoreriasimplesmente da segunda, mas teria surgido de forma auidnoma. parr da capacidade visual e cognitiva dos primeizos homens de detectarem e mesmo de rocoabecerei as diferentes marcas impresas no chlo pelos Assim, mesmo em hipblese, mas, desde sempre, escrta e oralidade apresentaram-se ‘ndependentement. Hino século XX, 0 padre J. Van Ginncken também defendev a tese da precedéncia da escrit sobre a oralidade: teria @ homer escrito anies de ter falado. Para Ginneken, 08 ‘gests foram a primeira linguagem, endo sidoos primeinos piclogramasa mera transcrigao arifica deles, A oralchue seria conquista posterior, surgida a partir dos cliques, que se fragmentariam depois cin consoanies, Embora Ginneken tena sido contestade depois por Y. Perrier. em sua Histoire de écriture, e por outros autores que refutaram o caréter determinante dos gestos, estas especulaghes € otras anteriores servem para reforgar a negagto da existéncia de relag2o e determinasso entre as duas modalidades de expressio, fas, se & impossivel 0 extabelecimento de uma rigorosa cronologa que demarque as _xGneses histricas da escrita (ov da oralidade), € contudo possivel dizer-se que 0 wso da eseritaintrativa fem sun origem enlec os fenfcios, tendo surgido para cumprit fundamen: {almente uma fungio juridica, isto €, a Fungo de se registrarem contratos comerciais de compra e venda, 6 que. portato, autoriza a aseverar que, desde o principio, a escrita se uw poder, porque uilizls como instrumento juridico e de comércio nas relagbes comerciais. A escrita surge, portant, das necessidades da economia pablica e da adminis twagao. Além disso, 0 desenvolvimento da escritaligou-se a sociedades fortemente hierar (quizaaas e Fixas. Segundo Barthes ¢ Marty (1982) 0s povos némades jamais dispuseram «da csc, pois, por sux prejprit atureva, s6 So eapazes de conceber 0 espago como sendo aero, e eserta € wna fora de fechas espags e sentido, |A Mesopotiinia, ents, win dos mais antigos centros de eivilizago fixa do planeta conhecen © mais extraordindrio desenvolvimento da eserita de que se tem noticia na Aligtidade. Alia eidade de Fla, por exemplo,tomou-se renomado centro de instruglo ‘de onde saan para outras cidades esribasbilinges, que passaram a. arte da eserta, Nas bibliotoeas le Flba gunrdavam-s¢ livros feitos de tibuas de harro, ccontendo os mais variados temas: legislagko social, sucesso real, lsias de profissz0, clo de salrio de traballadores do palicioe até um diciondrio bilingie Mas sea Fenicia foi o beryo da escritainterativa e o, por sua ve, fen un pape] crucial na exploragiodo saber dal [porque 0s primeiros processo.- de sistematizacio e de apropriago do saber orale escrito ‘por parte do poder constituido se deram neste pats, também consideralo bergo da cultura «eda educago dos povos do Oriente Proximo, Documentos atestam a existéncia de uma escola ali crgida para exerefcio do poder, além dda existéncia de uma prética pedagégica. no seio das familias das classes dominantes, voltada para a manutengao do satu quo, Em anbas as instituigves — escola e famitia — ensinavam.-se regras morais de compertamento que implicavam a subendinagio,aobedién= ciae 0 conformismo como condigées de sustentagto das estruturas sociais, esse contexto, 0 aprimoramento do orale a utlizaglo da eserita exercicio do poder ou os servigos a ele prestadas. Faz-se a apolo falar, que deve, contudo, ficar circunserito as classes dominantes, com a aperfeigoamento da arte politica do comando. Ao meso tempo, erilica-se e busca-se Jmpedie a apropriacao da arte da palavra ou arte politica por outras classes socials que mo a detentora do poder, situago,aliés, que se reprira sempre ap longo dos tempos, na histéria dos povos captalstas até o advento das sociedades moxdernas, quando se sofiti- caro as relagdes ene capital e trabalho, sofsticando-se, em conseqincia, a elaco homenv/apropriago da Hinguagem.* [Nao € diferente wmbém a questto da escrita no Egito: os textos escritos exam usa a ceducacao dos jovens daclasse dominante, que os aprendiaim mnemonicamente, para depois recité-los, como parte de sua formagio intelectual. Tals textos, relatos da HistGria © da administragao civil, tém ainda aqui uma fungao utltarista, embora desta vez clasista formar para o comand, Nao se pode todavia precisar sea aprecnsdo desses conteddos por parte de governantes ede seus descendentes em alguns casos implicara a aprendizagem da arte de escrever,sabe-se, como nerma geral, que isso 10 se deu. A arte dt eseria ficou mesmo restrita. ao trabalho dosescribas que, nesses primers tempos, eran eros cOpistas, isto 6, meros registrulores de mensagens. ‘Com 0 passar dos séculos, contudo, foram-se acunulundo os repistos das palavras ‘roferidas pelos fundadores das dinastias, além dos demaisregistros rlativos 2 histria ‘dos povos, 0 que acabou por conferie volume a esses saberes compilados, conferindo, em ‘conseqineia, inegavel poder aos escritas, que passam @ detentores do starus de sAbios, no sentido de qoe thes cabem a reprodugao © a leitura das palavtas dos governantes, antecessores, bem como as dos atuais.E aescrita novamente prexluzindo poder. Segundo Spengler (1983), aescrita, nas mais diversas culuras, era privilégio da classe sacerdotal na qual se inluam o poeta eo sabio. A nobreza, 20 contro, desprezavat ato ‘de escrever, pois mandava que 0s outros eserevessem por la Pode-se dizer, portanio, que aescrita, desde suas origensalcanvels,ullrpassou sempre amais bvia de suas fungbes, para se ela propria, um instrumento de poder (ov do poder. Sob a aparente inocéncia do registro, 0 poder se instaura poryue € em Fungo dele que o registro se fa. Para Osakabe (1985) eserita & complemento da oraldade (no sendo, portant, simples ‘ansposigao desta, e tem como fungo precipurt superar os limites de tempo € espagy, ‘constiwindo-se portanto como um instrumento de ineslocugdo distncia, © que por si & ‘capaz de suprir as limitagoes da oratidade. Contudo, tal Fungo, também, nito se exercia de Forma inocente ou neuira, Os processos 36 comtemporancos de apropriagio da ti passado, diferindo, hoje, apenas os usos que as diferentes camadias da sociedad fazem da lingua, Osakabe lembea que a eserita se encontra, na atualidade, completamente marcada pelos usos que fazer dela as classes privilegiadas, uma vez quc so essas as que se ‘apropriam de Kngua eserita, desenhando-the a feigR0. E por esse motivo que coincidem. 6igo escrito pdro lingUistico socialmente dominant Segundo Bourdiew (1983), nas soviedades moderns complexas, paralclamente a uma ‘econexnia de trocas materisis, hums eeonomia das Wocas simnblicas. cm cujastransagoes se utlizam bens imateriais, so é,simbélicas, Sendo a Hinguagem un bem simbélico,€ no ‘mercado linguistico que Ihe & alribuido um valor, de conformidade sobretudo com a posicio e importincia daqucle que a uiliza. Toda situacto lingdfstca funciona como um ‘mercado (semelhaate a um mercado de bens materais) no qual o bem a ser comercializado 6 simbslicoistog, comercaliza-seapalavra odiscurso, que écotado sobretudo em fuigio da posigdo que oindividvo fou grupo falante) ocupa na estrutura socal ‘Quando alguém fala, 0 que esté senda considerado én somente 0 eu discurso, mas toda a sua pessoa social, Assim, eserita, ao possbilitar a interlocucdo através do tempo ¢ do ‘espago, 0 Faz de determinada maneira, e, nesta, camega consigo mais do que € dito: 0 valor social de quem diz se agrega ao dito e legtima o modo de dizer. Daf a importincia da linguagem, marcada por uma retGrica particular capaz. de dizer contedidos,dizendo simultaneamente como eles S20 importantes e verdadero. A lingua- ‘gem, legitimada pela sociedad que a uiliza,afiniza-se apenas com determinados contes- 4s, exercenda cenosecitasde censura,tornando certos conteddosdificeis ovimpossiveis, {de senein ditos, prvitegiando cutos, socialmenteaceitiveis, coincidentes com 0s gostos, ‘com os valores ¢ coin o modus vivendi da classe dominante. Dessa forma, legtimando-se cexternamente os contedds,keitima-se mbm a forma de dizer:a gramaticalidade formal silencia, soba nogio da agramaticalidade, outras formas do dizer. Segundo Gnerre (197), diferentes saberes autorizam o desempenho de diferentes tarefas nas sociedades democriteas. Assim, saberes paticos oientam para resologoes de proble- ‘mas damésticos (Familires), a0 passo que saberes académicos,letrados ov intelectuais orientam para resolugoes de problemas de carser péblico, isto €, s40 legitimadores das atitudes do poder, Nesse contexto, tem lugar especial a gramética normativa escrita em fungao de scu cariter dogmético. Citando Gramsci, Gnerre aponta para dois tipos de ‘grundticas constitutivas dh rwalidade lingufstica de uma nag’. A primeira, representante {0 consenso espontineo & norma Linguistica dos grupos sociais hegemdnicos, € uma ‘gramdtica normativa nfo eserta, que, nas sociedades constiufdas, funciona como um ‘equilibrador hegeménico, capaz de criar consenso para o ncleo central do poder ingts- tivo, (A segunda, a gramévica normativa escrita, epresentante da lingua culta dominante, € tunbsim representativa da nacionalidale des ususrios, sendo imposta pelo estado através {de suas instituigdes. Gnerre associa aos estados de organizagBo autoritéria e centraliza- dora. ‘Com se v8, hd, nas sociedades modemas, um processo de apropriagao da escrita por parte «das classes dorninantes ou do poder consituido similar aguele que se dew no Fito, no passa, em relago tanto escita quanto Aoralidade. A diferenga é que, tendo-se tornado mai complexas.as elag es entree homem ea apropriagao dariqueza material, tomaram- também mais complexas as relagacs enlre © homem © a apropriagao da linguagem, 7 variando, na atualidade, 0 modo como se dio tas relagdes, [No passado,aescrita surge vinvulada 8 esonoinia a contedlos de importincia econdmi: (vidas para com os deuses ou para com os nes, ao paso yue receitas de cozinkia ‘ow e6aigo de comportamento ransmitiam-se oralmente.Liga-se, portato, a determinados assumtos de prestigio ou econdmicos. No presente, hf um desdobramento nessa ordem, pois a eseritatomou-se, ela propria, capaz de prodir a exceléncia, isto ¢, produzie 0 ado, o prestipic. Basta lembrar Bourdieu, que diz sera linguagem das chases pivilegi legitimada — uma linguagem que, além daquilo que diz, diz cons bem. Ou Gnerre, que mostra a vinculagae da normaliza0 ao poder d is —alinguagem Vivemos hoje em uma civilizagao grafoctntrica, o que, por si, ésuficiente para garantie lugar privilegiado a escrita. 1880, pelo menos, nas sociedades ocidentas industializadas, ‘porque, em muitas das sociedades orientais, ainda hoje, aexemplodo passado, privilegia-se oralidade como & melhor forma de tansmissio de conheimentos através Ue geeagbes, ‘A India € um exemplo de sociedade que ainda Noje preserva a uansmissto cultural por meio da oraidade, tal qual no passado, Ali se considera que uma pessoa s6 conlece bem aquilo que € capaz de memorizar. Saberes bastante complexos e profundes, como por ‘exemplo, as relagdes psico-fisiol6gicas entre o homem ea natureza, so transmitidos de -mestre a diseipuls, ainda hoje, oalmente, [No ocidemte, as prticas de ransimissio oral de conhecimentostiveram lugar apenas no ppassado. Hoje, imersos que vivemos no universo das palavras escrtas, certamente 0 lugar ‘daoralidade, enquanto transmissio cultural, se restringe,resistind, contudo, nas cages, nas cantigas de desatios ¢ de repentes,¢ impondo-se sober, no ridin a chamada oralidade mediatizada, E sem divida esta uma civilizagio Tinguagem, sobretudo a lingvagem grfica, Uma cvilizago de livros, de jomnais, de revista, {de ansncios publictarios, de legendas de filmes, de retatsrios, de cede de atestados,

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