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oe z= eae e 0 impulso wert {)aref =) p= =| a AFRICANA 190 solugio dada por Picasso nas duas figuras da direita de Les Demoi- selles d'Avignon, em especial nos rostos, assim como numa série de telas de menor envergadvra, pinta- das durante o inverno de 1906-07, repre- sentando quase todas aleumas personagens, consistia em modelar o volume, jé nao pela prépria cor, mas por uma espécie de desenho colorido Essa tentativa poderia, a primeira vista, parecer semethante A dos fattves, mas a di- ferenga ~ essencial ~ residia na deliberada indiferenga que manifestavam pelo relevo dos objetos que reproduziam, enqwanto Picasso temtava modelar os volumes pela cor, dando a esta, mediante séries de tragos com riscos paralelos, disegSeslincares des- tinadas a sugerir esse relevo (Argan, 1984. pp. 510 ¢ segs.). ‘Tem-se afitmado muitas vezes que as svas obras dessa época tinham sido eriadas soba infiuéncia da arte africana, tal ponto que € ainda hoje corrente falar-se do “pe- riodo negro” de Picasso. De fato, € muito dificil avaliar a extensao dessa influéncia. E bem sabido, com efeito, que Picasso foi um dos primeiros, com Matisse, VIamincle ¢Derain,a“descobrit” acsculturanceraca adquiti-la, Por que teria havido essa opeio entre esses conhecidos artistas modernos? Qual on quais motivagses estéticas intera- gem entre suas orlagies © a arte africana Gunge, 2004, pp. 131 ¢ segs.)? Entre varias respostas, uma constante: 6 faro de esses artistas terem ficado impres- sionados com as possibilidades plasticas que daquelas obras se desprendiam. Ovtra possibilidade era ade encontrareritérios es- téticos distintos da visto classica domundo ocidental e dos meiostradicionais europeus derepresentaro objeto plastica. A revolugio do novo movimento artistico vniram-se outras influéncias e nomes de varios outros artistas. Ao cubismo associa-se ainfluéncia de Cézanne, A exposigao retrospectiva das obras do mestre de Aix — Paul Cézanne - organizada em outubro de 1907 pelo Salon 4° Automne, foi decisivaaesse respeito. por constituir uma auténtica revelagio (Habas- que, s.d., pp. 131 ¢ segs.). REVISTA Use Sto Palo, 82, 0189-192, junhoagosto 2009 Picasso mmdou totalmente asvamancira de pintarno decorzer de 1908, Nos anos se- guintes, ele ¢ Braque renunciaram as cores purase limitaram-se aos tons neutrose geral- mente apagados (pardos, acres, cinzentos). introduzindo o“cubismo analitico”. Porém, nao perdendo de vista a “descoberta da arte africana”, pode-se assinalar a pergunta: 9 que pode estar inserido nessa fonte tio cficaz, alvo dos artistas modernos? A forea proporcionada pela arte africa ‘na, junto a questoes estéticas modernas ou mesmo vanguardistas, s6 pode serentendida pelo conjunto que a animou, Com efeito, mascaras ¢ outros artefatos adquiridos 4 eprociczo pelos artistas no inicio do século XX cram de certo modo extensio das comunidades que os criaram, Algumas das eseulturas foram feitas para serem contempladas pelo mundo dos espiritos, outras nunea tinham sido vistas por olhos de mulher, ¢ muitas nao estavam em uso, permaneciam escon- didas entre vigas do telhado, a espera das ocasides cerimoniais, ou eram guardadas ‘em telicdrios a que os nao iniciados ¢ os estrangeiros niio tinham acesco (Blackmun Visona & Poynor et al., 2001). Mnuitas das masearas paraasdangaseram feitas para serem vistas em movimento, iluminadas de maneira intermitente pela Juz oscilante de uma fogucira. Iuminadas com a luz plana dos museus ¢ em posigao estitica, arrancadas do meio para o qual foram concebidas, perderam grande parte de seu faseinio. Mesmo desse modo, fora de seu contexte original, os artistas mo- dernos © vanguardistas souberam captar as possibilidades plisticas da arte africana ‘em suas criagdes, o que reforga o alto teor expressive dessa arte. Aarte africana ¢ comunitiria, as formas que as esculturas adotam sio especificas para os poves que as produziram. Esses povosserviram:-sede umalinguagemconhe- cida e entendida pelos artistas ¢ pelos seus destinatarios. O eseultor nao era um indivi ‘duo que exprimia seus sentimentos pessoais cuja inspiragao se manifestava a0 acaso, masa arte que produzia pretendia satisfazer asnecessidadesde uma comunidade na qual cle estava muito integrado. Contudo, isso nao queria dizer que a obra de um artista tivesse de ser repetitiva, Pelo contririo, ‘um artista conservava a sua liberdade para fazer suas proprias adaptagSes num quadro de referéncia accito pela comunidade,esua ‘obra podia ser aclamada ou rejeitada. Era frequente que uma noma estabe- lecida tivesse significagao tinica para a comunidade que a gerava ¢ as vezes era dificilmente entendida pelas comunidades ‘vizinhas. Assim, aarte constitnia uma forga unificadora dentro de cada comunidade, uma vez que reafirmava a identidade co- munitéria ao servir-se de uma linguagem specifica, Issodalugaraosmal-entendidos quando se aplicamnormasprépriasdeoutra cultura para avaliar a escultura africana. As esculturas, por exemplo, com as becas entreabertas ¢ 0s seus dentes pontiagudos, sto qualificadaspor observadoresocidentais come “feras", enquanto os dentes pontia- gudos sao sinal de beleza entre os chokwe Murray. s.d.. p. 82), Aarte africana é em certo sentido “fun- cional” ouadequadaadeterminada situagao. Esculturas encontradas. por exemplo. em templos ou palacios dos iorubsis tinham fungdes muito diferentes: as primeiras pre- tendiam honrarespiritose as segundas,ooba ‘ou o rei, Em todos os casos, a importineia REVISTA USPSto Paulo, 82, 19-192, cagosto 2009 Les Demoiselles d’Avignon, de Pablo Picasso 191 192 de uma escultura nao dependiadelamesma, mas do lugar onde se encontrava, de quem a possufae de comoera utilizada, Emalgumas cidades, quandoumescultorterminavauma miscara, tinha que lhe infundir forca vital atravésda pintura, comcontinuasoferendas de alimentos on azeite, obrigagao da qual se encarregava 0 seu proprictario ou o seu guardido e sem as quais teria careeido de valor. Em outros lugares, a importancia de uma méscara podia medifiear-se ao passar de um proprietério para outro. Apesar de varias pesquisas terem sido dedicadas a arte africana, em especial as suas esculturas, ha muito ainda © que estudar ¢ dificuldades a serem vencidas. Ha uma problematica central para os his- toriadores da arte, que € conceber a arte africana inserida em um contexto proprio e diferente dos pensamentos da historia da arte convencional ou ocidental. Nao se pode perder de vista que as obras africanas estio orientadas para especificidades de sua cultura, Instituigdes ¢ muscus atualmente centram suas atengdes para essas questées vitais ¢ lutam pela durabilidade de uma escultura em madeira que sobrevive em média apenas cem anos, em condigses usuais (Murray, s.d.) Quando a obra africana fez a sua “apa rigdo” no cendrio artistice ocidental nos primeiros anos do século XX, “descoberta”™ por artistas como Picasso e Matisse, vérios artistas © movimentos, como 0 expressio- nismo, intuiram o seu impulso criador, si- nalizado por novos tragados, cores signos que remetem a essa fonte eriadora, ¢ pon- tuaram uma nova organizagao de imagem. De certa forma, essa iconografia criada sob as motivagdes de estudos africanos tornou a visto do homem modemo mais préxima das incongruéneias de seu proprio tempo, por exemplo, em Nolde, Franz Mare e so- bretudo nos artistas do grupo Die Brucke Dobe, 1976, pp. 25 e sexs.) No Brasil muitos artistas dedicaram-se a tematica africana, como Lasar Segall, Tarsila ¢ Portinasi, ¢ outros viram nos seus signos fonte para sua linguagem, como Rubem Valentim. Mais recentemente, Franz Krajeberg passou a utilizar essas marcas culturais © signos em suas intervengoes setiradas de troncos queimados ¢ paisagens agredidas pelo homem. Desde a sua colocagao em evidencia pelos artistas modernos. colecionadores, instituigdese museus langaram-se sobrecla avidamente, mesmo antes de entendé-la. Estudos mais recentes tém procurado revelar © porqué da busea dessas fontes por artistas que so conhecidos como termémetros de seu tempo. Esses aztistas sabiamente reconheceram que. além das possibilidadesexpressivasemaiorliberdade criativa, poderiam encontsar na arte tadi- cional africana fundamentos ou clos mais profundos para avaliarem omeioe o tempo em que vive, BIBLIOGRAFIA ‘ARGAN, G.C. E1 Arte Moderno ~ 1770-1970. Valencia, Fernando Torres, 1984. BLACKMUN VISONA, Ménica; POYNOR, Robin et al. A Histoy of Artin Africa. New York, Harry N. Abrams, lnc., 2001. DUBE, Wolf Dieter. O Expressionismo, Sao Paulo, Verbo-Edusp, 1976. HABASQUE, Guy. A Génese do Cubismo, Madrid, Museo de Arte Moderno. JUNGE, Peter. “Arte da Africa”, in Obras-primas do Museu Etnoldgico de Berlim, catélogo acompa- rnhando a expos }o do Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 2004, pp. 131 e segs. MURRAY, Jocelyn. "A Arte Africana’, in Africa - 0 Despertar de um Continente. Madri, EdigGes Del Prado, V.I,s.d, p. 82. REVISTA Use Sto Palo, 82, 0189-192, junhoagosto 2009

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