You are on page 1of 11
DEREDEC”, na revista Mots, mimero 6, 1983, Texto publicado originalmente na revista Semen, ntimero 8, em 1993, pp.107-119. N. T: Obra publicada no Brasil em GADET, F.; HAK, T. Por uma andlise automédtiea do discurso: uma introdugao & obra de Michel Pécheux. ‘Campinas: Pontes, 1997, pp. 61-151. N. T: Obra publicada no Brasil com o titulo de Semédntica e discurso: uma critiea A afirmagio do ébvio. Campinas: Pontes, 1997. Lingua, linguagens, discurso Michel Pécheux A linguistica esta atualmente na moda. Na visio de muitos pesquisadores de disciplinas bastante diversas, ela desempenha 0 ambiguo papel de “ciéneia piloto”. Limitando-nos As eiéneias sociais, & historia e a literatura,1 nés tentaremos analisar essa ambiguidade separando o que nesse papel insereve- se numa intervencio cientifiea da linguistiea no trabalho cientifico de outras ciéncias e o que se insereve na exploracio ideolégiea, yde,\.suas dificuldades, sob o pretexto de thes trazer uma “solugao”. Linguistica e paralinguistica Apés rapidamente designarmos as_principais subdisciplinas que atualmente constituem a linguistica, daremos ao leitor uma ideia da extensio do campo que permanece “descoberto” no exterior da linguistiea ¢ sobre 0 qual sto desenvolvidas pesquisas paralinguisticas eujo mimero de pesquisadores, linguistas ou nio, faz pressentir 0 carter fraudulent ou pseudolinguistico do ponto de vista teérico.2 A questo sera, desde entao, saber se a propria natureza desse campo (concebido do ponto de vista marxista-leninista) no impde o fato de que as relagdes que ele estabelece com a Tinguistica sejam redefinidas em seus prineipios: se, a titulo de exemplo, consideramos 0 dominio da politica e aquele da producdo cientifica, constatamos que, nesses dois dominios, as palavras podem mudar de sentido segundo as posigées sustentadas por aqueles que as empregam. Nessas condigdes, trata-se ainda de um problema puramente linguistic? Se nao, como redefinir, a propésito de exemplos dessa natureza, a relacao, entre a ciéneia lingnistica e o dominio da Historia concebido por Marx, cuja exploraedo se busca hoje, tanto tedrica quanto praticamente? Fonologia, morfologia, sintaxe, semantica Segundo os diciondrios, a linguistica constitui-se como 0 estudo cientifico da linguagem, entendida como 0 conjunto das Iinguas faladas ou eseritas. Pelas proprias necessidades dese estudo, a linguistica foi conduzida a elaboragio de uma teoria geral da lingua que permite a, interpretagio, dos fendmenos linguisticos particulares desta ou daquela lingua: a fonologia (literalmente, o estudo dos sons), a morfologia (literalmente, 0 estudo das formas) ¢ a sintaxe (literalmente: maneira de combinar as palavras), pertencendo a essa teoria geral, na condigéo de subareas desta iltima, aplicam-se, ao mesmo tempo, a descrigao especifica do francés, do inglés, do arabe ete. Assim, nessa teoria geral, 0 nivel fonolégico tem por objetivo definir os elementos fonicos de uma lingua e as regras de combinagao segundo as quais esses elementos formam as palavras dessa lingua. Por exemplo, a oposicao entre os fonemas /l/ e /r/ por meio da qual se distinguem duas palavras francesas lampe e rampe~ A essa descricio fonolégica correspondem regras que autorizam ou interditam essa ou aquela combinagao de fonemas. © nivel morfolégico incide sobre 0 estudo das formas sob as quais se apresentam as palavras numa dada lingua. Tomemos, por exemplo, as trés formas “partons”, “parlémes” e “parlions” consideradas como resultantes da jungio de trés sufixos & base “parl”. Consideremos, por outro lado, © termo intermedirio “er”. Vemos que apenas dois desses trés sufixos assinalados podem eombinar-se, visto que a forma *parler-dmes", que nao se atualiza em francés, constitui um “barbarismo”, ou seja, trata-se de um erro que conduz a uma forma que no existe na lingua. O nivel sintatico, enfim, conceme as regras que, numa dada Tingua, regem a construgio das frases pelo encadeamento das palavras. Trata-se, aqui, de evitar os etros na construgio da frase (“solecismos”). E notério que a gramaticalidade de uma frase e seu cariter compreensivel nao coincidem absolutamente: uma_ frase como “incolores ideias verdes dormem furiosamente” é gramaticalmente correta, mas desprovida de sentido imediatamente apreensivel, ainda que possamos Ihe atribuir um. Em contrapartida, “vocé me fazer rir” é agramatical, mas imediatamente compreensivel para os leitores do romance de Peter Cheyney, no qual um locntor estrangeiro pronuneia essa frase. Conforme acabamos de ver, nenhum dos niveis que caracterizamos pode se definir de maneira isolada, mas apoia-se necessariamente no nivel de ordem inferior. £ tentador considerar que tudo se passa de modo andlogo, quando abordamos o problema da producio e da interpretagio do sentido de uma frase, ou seja, quando se trata da teoria semantica. Nessas condigdes, a semantica seria o prolongamento e o coroamento dos niveis inferiores da linguistica. A linguistica ¢ as outras ciéneias humanas H4, contudo, um {indice que mostra que a questio ndo é tio simples assim. Com efeito, enquanto a fonologia geral aplica-se ao estudo da fonologia do francés, do inglés, do arabe ete. (0 mesmo se di na morfologia e na sintaxe), temos dificuldade para imaginar o que significaria uma semantiea do francés, do inglés, do arabe ete.: tudo se passa como se a correspondéncia entre teoria geral © estudo particular de uma dada lingua desaparecesse no nivel semantico. Entretanto, este iiltimo ultrapassa_ todo. “dado —_conereto”: simplesmente, a semantica vai bused-los alhures, por exemplo, na sociologia, na psicologia, na hist6ria, na literatura ete., que Ihe forecem dados, segmentados, contudo, de modo absolutamente diverso dos dados linguisticos concretos de uma dada lingua nacional. Notamos, sem diivida, que os componentes “sociais” ¢ literdrios nao esto ausentes dos dominios fonologico (0 /r/ “alveolar” dos meios urbanos X 0 /r/ “retroflexo” do dialeto caipira), morfolégico (variagdes histéricas de prefixos € sufixos, criagdes de novas palavras ligadas ao surgimento das estradas de ferro... ou do socialismo) e sintatico (a gramaticalidade nao varia, a0 menos em suas zonas fronteiricas, em fungio de dados sécio-histéricos?). Contudo, aqui se trata somente (salvo talvez no que se refere ao tiltimo ponto) de propriedades secundérias, do ponto de vista Tinguistico, as quais a teoria geral nao considera. O caso é totalmente diferente para a semantica. Com efeito, a relaglo que associa as “signifieagdes” de um texto as condigdes sécio- histéricas dese texto niio @ absolutamente secundiria, mas constitutiva das proprias significagdes: conforme justamente observamos, falar & algo totalmente diferente de produzir um exemplo de gramétiea. Podemos, a partir dessa constatagao, nutrir a esperanga de “estender” a teoria linguistica até uma semAntica geral (ciéneia geral das significagdes), que libertaria a linguistica do “jugo” formal da gramética? Veremos, agora, como esse empreendimento foi experimentado © examinaremos as consequéncias que dele resultam. Linguistica e estudo das “linguagens” Para comecar, observemos que é absurdo censurar a linguistica por se restringir a seu objeto: toda disciplina cientifica se constitui excluindo de seu proprio campo aquilo que, até entio, 0 perseguia, no exato sentido do termo. Assim, a Tinguistica exeluin de seu campo as questdes do sentido, da expressio das significagdes contidas nos textos, Ora essas questdes, que continuam a no ser colocadas nese dominio (atualmente, sto sobretudo as diversas “ciéneias sociais’, citadas acima que se enearregam direta ou indiretamente de fazé-lo), insistem ante a linguistica,para.serem resolvidas com os meios teéricos dos quais esta ‘iltima dispde; e a maneira pela qual a linguistica resiste ou cede a essa demanda se traduz definitivamente na relagio que essa ciéneia estabelece com seu exterior especifico e que ela exprime por si mesma pela oposicdo “lingua/fala”. Ao conceito (cientifico) de lingua ope-se, com efeito, a nogio de fala, que representa a maneira pela qual cada individuo usa a lingua, a maneira ‘tinica pela qual cada “sujeito falante” manifesta sua liberdade, dizendo “aquilo que jamais sera ouvido duas vezes". Todavia, essa liberdade aparece imediatamente submetida a leis, ndo somente no sentido de coergdes juridieas (que limitam a liberdade de expresso), mas também no sentido de determinagdes sécio-historieas dessa liberdade da fala. Somos, assim, conduzidos a pensar que, numa dada época e por um dado “meio social”, a “fala”, sob suas formas politieas, literfrias, académicas ete., se organiza necessariamente em “sistemas” regidos por leis. Definitivamente, 6 essa dupla ideolégica “liberdade/sistema” que recobre o termo fala; o segundo sentido da palavra “linguagens” (no plural), que designa a existéncia de uma pluralidade de sistemas (sistema da narrativa, do drama ete.), constitui, desde entao, uma tentativa de resolver essa contradicio, reaplicando a “fala” os, conceitos e operagdes de andlise definidos pelo estudo da lingua. Uma aplicagdo metaforica da linguistica Disso resulta um ntimero. considerdvel de pesquisas de natureza e de qualidade bastante diversas. Assim, vimos aparecer na andlise literdria “sistemas de oposi¢io” caracteristicos de um. romance ou de uma familia de romances, do drama ou da narrativa ete. No,dominio-sécio- historico, alguns estudos dos “léxicos” ou das “linguagens” possibilitaram 0 desenvolvimento das mais diversas preocupagdes _ideolégicas. e a consolidagio da concepcao idealista segundo a qual a infelicidade essencial de nossa sociedade reside na separag%o das Tinguagens, reduzindo assim a uta de classes A velha ideia de um “conflito” entre dialetos ou jargoes de classe. Essa aplicago metafériea da lingnistica pode, por outro lado, ultrapassar o dominio do estudo dos textos e se estender ao conjunto de objetos ‘comportamentos, no qual todos, sem exeecdo, so suscetiveis de revestir uma “estrutura” (linguagens musical, pictériea, cinematogrifica, estrutura da moda, do objeto e do comportamento automobilistico etc.). A linguistica serve assim de caugio para um empreendimento de “andilise geval da inteligibilidade humana’ ou seja, para uma impossivel ciéncia da realidade, ao lado ou, antes, acima das ciéneias existentes, com vistas a caracterizar rapidamente a natureza impossivel dessa nova ciéneia das ciéneias; diremos que ela decorre da relacdo que se estabelece aqui entre 0 dado conereto empirico, extraido do que os anglo- saxdes chamam de a vida cotidiana, e os eonceitos supostamente capazes de descrevé-los. Lingua e diseurso E importante agora dissipar um __possivel equivoco. Nao é preciso ver na eritica que acaba de ser feita a marea de um tipo de integrismo linguistico, no qual a palavra de ordem seria: “fora evocamos ha poueo no estio destinadas por natureza a permanecer desconhecidas, mas seu conhecimento supée, como indicamos no inicio, uma mudanga de terreno de que,os,pesantisadores sentem cada vez mais a possibilidade e a necessidade. Em seu prinefpio, essa mudanga de terreno consiste em se desembaracar da problematica subjetivista centrada no individuo, fonte dos gestos e das falas, ponto de vista sobre os, objetos e sobre o mundo, e em compreender que 0 tipo de concreto com o qual lidamos ¢ sobre o qual pensamos é precisamente o que o materialismo historico designa pelo termo de relagdes sociais, que resultam de relagdes de classe caracteristicas de uma dada formagio social (por meio do modo de produgio que a domina, da hierarquia das pratieas das quais necessita esse modo de producio, dos aparelhos mediante os quais se realizam essas priticas, as posigdes que Thes correspondem, e as representagdes ideolégico-tedricas e ideologico- politicas que dependem dessa formacio social). Considerando uma formagio social, poderemos falar de uma “formacio ideolégiea” para caracterizar um elemento suscetivel de intervir, tal como uma forca confrontada a outras, na conjuntura ideolégica earacterfstiea de uma formagio social, em um dado momento; cada formagio ideolégica constitui assim um conjunto complex que comporta atitudes ¢ representacdes que nao sio nem “individuais’ nem “universais”, mas que se referem mais ou menos diretamente a “posigdes de classe” em conflito umas com as outras. Apoiando-nos em grande mimero de observacdes contidas no que chamamos de “os classicos do marxismo”, nés sustentaremos a ideia de que as formagies ideolégicas assim definidas comportam, necessariamente, como um de seus componentes, uma ou varias formagoes discursivas interligadas, que determinam 0 que pode e deve ser dito Garticulado sob a forma de um promunciamento, de um sermio, de um panfleto, de uma exposicxo, de um programa ete), a partir de uma dada posicio numa dada conjuntura: 0 ponto essencial aqui é que nao se trata somente da natureza das palavras empregadas, mas também e sobretudo das construgdes nas quais essas palavras se combinam, na medida em que essas construgdes determinam a significagio que as palavras terdo. Conforme indicamos acima, as palavras mudam de sentido segundo as posigées sustentadas por aqueles que as empregam. Nesse momento, podemos precisi-lo: as palavras “mudam de sentido” ao passar de uma formago diseursiva para outra, Lugar de uma “teoria do discurso” no materialismo dialético ‘Mas preciso dissipar um outro possivel equivoco, Nao podemos deduzir do que acaba de ser dito que a lingua como realidade autonoma desapareceu, que a propria gramética é somente uma questio de luta de classes (1). Na verdade, convém, antes, conceber a lingua (objeto da Tinguistica) como a base em relagio a qual se constroem 0s processos; a base lingufstiea caracteriza, nessa perspectiva, o funcionamento da lingua em relagdo a ela mesma, como realidade relativamente auténoma; e é preciso, desde entio, reservar 0 termo de proceso diseursivo (proceso de produgio do diseurso) para se referir ao funcionamento da base Linguistica em relagio as representagdes (cf. acima) colocadas em jogo nas relagdes sociais. Isso permite compreender por que formagies ideologicas bastante diversas podem se constituir sobre uma tinica base (resposta ao problema: uma s6 lingua/varias culturas). Precisemos que 0 termo “base” nao deve ser entendido no sentido de base econémica, em. relacio a uma superestrntura, mas, antes, no sentido de que a existéncia do animal humano social e falante constitu o pressuposto de base de todo modo de producio econémica possivel ou, mais precisamente, o suporte das relagdes sociais que correspondem a esse modo de produeio.5 Um certo niimero de linguistas e de pesquisadores especializados no estudo dos textos comecam a trabalhar sobre esse ponto,® decisivo para o futuro das relagGes entre linguistica (ou teoria da lingua) ¢ © que, designado aqui pelo provisério nome de “teoria do discurso”, constitui por direito um setor do materialismo hist6rico plausivelmente destinado a1um grande desenvolvimento. Notas Conviria também explorar esse papel nas ciéncias da natureza (a biologia, por exemplo). a Sublinhamos, embora isso seja evidente, que essa_—_questio, inscrevendo-se na luta teériea, nfo poderia evidentemente ser regulada por medidas administrativas que visam a opor-se a essa direcio de pesquisa. 3 Ver acima, na definigio de Tinguistica, o primeiro sentido dado a esse termo. 4 Cf. a Apresentac&o do mimero 4 da revista Communications. 5 © estudo desses mecanismos, que representam no interior, da. base .a condigao geral de possibilidade dos processos, permitiré plausivelmente colocar de uma maneira adequada e, talvez, resolver 0 problema das “relagdes” entre sintaxe e semantica. ° Os trabalhos citados por L. Guespin e reunidos no ntimero g (fevereiro de 1971) da revista Langue Francaise so um exemplo desse trabalho. Texto publicado originalmente no jomal FHumanité, na edigao de 15 de ‘outubro de 1971, pp. 8-0. N. T Em portugués, equivalentes desse tipo de oposigio seriam, por exemplo, lama/rama, com 0 mesmo par de fonemas, e gato/rato, com um distinto par de fonemas.

You might also like