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O discurso do sujeito coletivo ac DIALOGOS eS © dos autores Capa: Thanara Schénardie Revisiio: vone Justina Polidoro Franco Editoragio eletrénica: Formato Artes Grdficas Impressfo e acabamento: Metrépole Indistria Grafica Dados Intemacionais de Catalogagiio na Publicagio (CIP) Universidade de Caxias do Sul UCS ~ BICE — Processamento Técnico L493d Lefevre, Fernando Discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos) / Fernando Lefevre, Ana Maria Cavalcanti Lefevre. — Ed. rev. ¢ ampl. — Caxias do Sul, RS : EDUCS, 2003. 256 p.+il.; 22 em. (Colegio didlogos) Apresenta bibliografia. 85-7061-246-X 1. Pesquisa ~ Metodologia, 2. Pesquisa qualitativa. 3, Pesquisa cientifica, I. Lefevre, Ana Maria Cavalcanti. Il. Titulo. CDU:; 001.891 Indice para o catélogo sistemético: 1, Pesquisa — Metodologia 001.891 2. Pesquisa qualitativa 001.891 3. Pesquisa cientifica 001.891 Catalogacdo na fonte elaborada pela bibliotecéria Marcia Carvalho Rodrigues - CRB 10/1411 Direitos reservados &: YZ ‘ Ere] 48bR = = EDITORA AFILUDA EDUCS - Editora da Universidade de Caxias do Sul Rua Francisco Getilio Vargas, 1130 — CEP 95070-560 ~ Caxias do Sul - RS - Brasil Ou: Caixa Postal 1352 — CEP 9501-970 - Caxias do Sul —RS — Brasil Telefone / Telefax: (54) 218 2100 — Ramais: 2197 e 2281 — DDR: (54) 218 2197 Home page: www.ues.br ~ E-mail: educs@ucs.com.br PRINCIPIOS BASICOS E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DO DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO Fernando Lefevre* Ana Maria Cavalcanti Lefevre" INTRODUCAO Na sua forma tradicional, de molde quantitativo, os dados de uma pes- quisa em que se deseja saber, por exemplo, 0 que a coletividade dos docentes ¢ dos alunos de pés-graduagao das universidades puiblicas brasileiras pensa sobre a Capes, poderiam ser levantados por meio de questées do tipo: Vocé acha que a Capes é autoritaria e centralizadora? © representa um avango para a pés-graduacio no Brasil? e deveria ser radicalmente reformulada? Ja se viu que essa forma nao é a melhor, uma vez que 0 pensamento, tanto o individual quanto 0 coletivo, nado € ou nao se comporta da mesma forma que um atributo ou varidvel como peso, altura, etc. O modo tradicional de ver as coisas desconsidera a caracterfstica espe- cificamente qualitativa do pensamento coletivo na medida em que parte do suposto de que um determinado individuo tem um pensamento (ou opiniao, ou crenga, ou vis&o, ou percepgao, ou representacao), assim como tem um peso e uma altura. B se um individuo tem um pensamento, uma coletividade de individuos também apresenta uma distribuig&o estatistica desse pensa- mento, da mesma forma que apresenta uma distribuigdo de peso, de altura, de mortalidade, etc. E facil entender por que se costuma pensar assim: trata-se de uma pos- tura cémoda, pois, j4 que se dispde de todo um enorme e previamente testa- do estoque de procedimentos metodoldégicos para descrever, sistematica e * Prof. Titular da Faculdade de Satide Puiblica/USP. “* Doutora em Satide Piiblica pela Faculdade de Satide Piblica/USP. 13 Clentificamente, atributos humanos, é relativamente facil e seguro incorporar fo Universo de: atributos, de maneira sistematica, qualidades antes repu- tadas como subjetivas, ou seja, néo passiveis de descrigio cientifica, como pensamentos, crengas, valores, etc., e assim, supostamente, fazer avancar o conhecimento sobre 0 homem. Ei claro que as pessoas e as coletividades tém idéias, opinides, crengas, valores mas o fato de elas os terem e também de terem peso, altura e tuber- culose nao quer dizer que se possa investigar, cientffica e sistematicamente, os pensamentos, da mesma forma que se investigam peso, altura, presenga ou auséncia de tuberculose. Quando se diz que uma pessoa ou uma coletividade tém um pensa- mento sobre um dado tema, esté-se dizendo que ela professa, ou adota, ou usa um ou varios discursos sobre 0 tema. Ora, parece claro que ter nao é 0 mesmo que professar, ou usar, e que se, na conversa do dia-a-dia, os dois séo vistos como sinénimos, numa discussio mais sistematica sobre metodologia cientifica, como a presente, esses termos precisam ser distinguidos porque estao se referindo a situagdes bastante distintas. Quando se diz, por exemplo: tenho 98 quilos e uma opiniao determinada sobre o governo Lula, de fato deveria dizer, no segundo caso, que professo uma determinada opiniao sobre o governo Lula. Mas qual é a diferenga entre ter e professar? Quando se pesquisa algo que as pessoas efetivamente tém, esse algo jé estd completamente dado antes da pesquisa, enquanto que, quando se trata de pesquisa acerca daquilo que as pessoas professam, a varidvel existe de modo apenas virtual necessitando ser reconstrufda durante ou através do prdéprio processo de investigaciio. Além disso, quando esse algo que as pessoas professam & um pensa- mento, uma idéia, uma opiniio, o dito algo 6, sempre, um diseurso; o que quer dizer que se estaré descrevendo muito melhor e muito mais adequa- damente os pensamentos de individuos e coletividades quando esses estive- rem sendo coletados, processados e apresentados sob a forma de discurso, porque os pensamentos pertencem A familia das linguas e linguagens e, portanto, 4 ordem do discurso ou do texto.) © E claro que € possivel coletar e/ou processar e/ou apresentar pensa- mentos, crengas, opinides, valores de uma forma completa ou parcialmente nao discursiva, por exemplo, sob a forma de questées fechadas, escalas, tabelas, graficos; e € dessa forma que a grande maioria dos pesquisadores sociais vem trabalhando em suas pesquisas. 14 Mas, se assim for feito, estar-se-A usando um ferramental metodolégico que, apesar de vdlido em si mesmo, nao é 0 tinico disponfvel e nem, sobretudo, © mais adequado para lidar, em uma escala coletiva ou social, com pensa- Mentos que sao, necessariamente, compostos de matéria discursiva. SOMA DE PENSAMENTOS? Porém, se se aferrar 4 idéia do pensamento como algo essencialmente discursivo, como obter descrig6es de pensamentos, crengas e valores em escala coletiva? Para isso, obviamente, € preciso crer que € possivel produzir algum tipo de soma de discursos. Antes de buscar desenvolver essa crenga, é preciso dizer 0 6bvio, ou seja: uma forma classica de obter a descric¢éo de pensamentos coletivos é aquela da antropologia da cultura, com andlise dos mitos fundadores ou estruturadores e da sociologia da literatura ou da midia em que, por exemplo, se recorre a Balsac ou a Machado de Assis, ou a imprensa, para se saber o pensamento de uma dada coletividade, num dado espago e num dado momento histérico. Mas, permanccendo no terreno das pesquisas empfricas que envolvem pessoas e coleta de depoimentos referentes ao pensamento de pessoas, alguns passos sao, a nosso ver, obrigatérios para se responder positivamente A pergunta acima. Antes de mais nada, pelas razes expostas no predmbulo, € preciso fazer perguntas abertas® para um conjunto de individuos de alguma forma representativos dessa coletividade e deixar que esses individuos se expres- sem mais ou menos livremente, ou seja, que produzam discursos. Ou seja, para se saber 0 que uma pessoa ou um conjunto de pessoas pensa é preciso perguntar de modo a ensejar que as pessoas expressem um pensamento, ou seja, um discurso, 0 que sé pode ser feito através de questées abertas. A questio fechada nao enseja a expressio de um pensamento, mas a expressiio de uma adesio (forgada) a um pensamento preexistente. Feita a pergunta aberta, é preciso juntar os discursos individuais por ela gerados de modo que eles expressem o pensamento de uma coletividade, Mas como somar esses discursos? Para tanto, foi criado 0 conceito de Discurso do Sujeito Coletivo, que € uma proposta de organizagiio e tabulacdo de dados qualitativos de natureza 15 verbal, obtidos de depoimentos, artigos de jornal, matérias de revistas se- muanais, cartas, papers, revistas especializadas, etc. A proposta (a ser detalhadamente descrita mais adiante) consiste, basicamente, em analisar o material verbal coletado extraindo-se de cada um dos depoimentos, artigos, cartas, papers, as idéias centrais e/ou ancoragens as suas correspondentes expressdes-chave; com as expressdes-chave das idéias centrais ou ancoragens semelhantes compée-se um ou varios discursos-sintese na primeira pessoa do singular. O Sujeito Coletivo se expressa, entio, através de um discurso emitido no que se poderia chamar de primeira pessoa (coletiva) do singular (ver exemplos a seguir). Trata-se de um eu sintético que, ao mesmo tempo em que sinaliza a presenga de um sujeito individual do discurso, expressa uma referéncia coletiva na medida em que esse ev fala pela ou em nome de uma coletividade. Esse discurso coletivo expressa um sujeito coletivo, que viabi- liza um pensamento social: como afirma Gertz, a sociedade ou as culturas podem ser lidas como um texto. Adota-se, aqui, como se percebe facilmente, um pressuposto socioantro- polégico de base na medida em que se entende que o pensamento de uma coletividade sobre um dado tema pode ser visto como 0 conjunto dos discursos, ou formagées discursivas,” ou representagdes sociais® existentes na sociedade e na cultura sobre esse tema, do qual, segundo a ciéncia social, os sujeitos langam mao para se comunicar, interagir, pensar. Bourdieu fala a respeito dos habitus como esquemas sociocognitivos. Nesse sentido, o pensamento coletivo é um idioma “segundo”, uma segunda lingua, ou, na terminologia chomskiana, uma “competéncia” social? que, na medida em que viabiliza e permite a troca entre individuos distintos de uma mesma cultura, constitui, como o idioma “primeiro”, condigao impres- cindivel para a vida humana em sociedade. Esse idioma é obtido indutivamente, por abstragiio, a partir de um conjunto de falas individuais de sentido reputado semelhante ou complementar, com a finalidade precfpua de expressar e representar um pensamento coletivo. Partindo-se do suposto que o pensamento coletivo pode ser visto como um conjunto de discursos sobre um dado tema, 0 Discurso do Sujeito Coletivo visa dar luz ao conjunto de individualidades semanticas compo- nentes do imaginario social. O Discurso do Sujeito Coletivo é, em suma, uma forma ou um expe- diente destinado a fazer a coletividade falar diretamente. 16 FIGURAS METODOLOGICAS Para confeccionar os DSCs foram criadas as seguintes ldgicas: o Expressdes-chave As expressées-chave (ECH) sao pedagos, trechos ou _transcrigdes literais do discurso, que devem ser sublinhadas, iluminadas, coloridas pelo pesquisador, e que revelam_a esséncia do depoimento ou, mais precisamente, do contetido discursivo dos segmentos em que se divide o depoimento (que, em geral, correspondem as quest@es de pesquisa). Busca-se, aqui, o resgate da literalidade do depoimento. Esse resgate é fundamental na medida em que, através dele, 0 leitor é capaz de comparando. um trecho selecionado do depoimento com a integralidade do discurso e com as afirmativas reconstrufdas sob a forma de idéias centrais e ancoragens — julgar a pertinéncia ou nao da selegdo e da traducio dos depoimentos. Ou seja, as expressGes-chave sao uma espécie de prova discursivo-emptrica da verdade das idéias centrais e das ancoragens e vice-versa. E com a matéria-prima das expressdes-chave que se constroem os Discursos do Sujeito Coletivo. figuras metodor Idéias centrais A idéia central (IC) é um nome ou expressio lingtifstica que revela e descreve, da maneira mais sintética, precisa e fidedigna possfvel, o sentido de cada um dos discursos analisados e de cada conjunto homogéneo de ECH, que vai dar nascimento, posteriormente, ao DSC. E importante assinalar que a IC ndo é uma interpretagdo, mas uma descrigao do sentido de um depoimento ou de um conjunto de depoimentos. Essas ICs podem ser resgatadas através de descrigGes diretas do senti- do do depoimento, revelando o que foi dito ou através de descrigdes indiretas ou mediatas, que revelam o tema do depoimento ou sobre o que o sujeito enunciador esta falando. Nesse tiltimo caso, sera preciso, apés o levan- tamento do tema, identificar a ou as ICs correspondentes a cada tema. e Ancoragem Algumas ECH remetem nao a uma IC correspondente, mas a uma figura metodoldégica que, sob a inspiragao da teoria da representagao social, denomina-se ancoragem (AC), que é a manifestacao lingiifstica explicita de uma dada teoria, ou ideologia, ou crenga que o autor do discurso professa © que, na qualidade de afirmacao genérica, esta sendo usada pelo enunciador para “enquadrar” uma situagdo especifica. ’ 17 ik Considerando as coisas genericamente, dir-se-ia que quase todo dis- curso tem uma ancoragem na medida em que estd quase sempre alicergado ef pressupostos, teorias, conceitos e hipdteses. No entanto, para efeito de andlise mais fina de discursos, convém, metodologicamente, destacar e distinguir os discursos nos quais se encon- tram marcas lingiiésticas claras de ancoragem, aqueles nos quais essa anco- ragem 6, digamos, genérica. Nesses tiltimos, nao se consegue fazer emergir a ancoragem, correndo o intérprete o risco de subjetiva e arbitrariamente construir aquilo que acredita ser a dita ancoragem. O destaque dado 4 ancoragem tem uma inegdvel motivagao pratica. Com efeito, quando se for trabalhar, educativamente, seja com populagao, ja com profissionais, parece da mais alta importancia tornar manifestas, para eles, teorias, ideologias e conceitos, que, no mais das vezes, incons- cientemente, esto subjacentes as suas praticas cotidianas e profissionais. e Discurso do Sujeito Coletivo O Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) é um discurso-sintese redigido na primeira pessoa do singular e composto pelas ECH que tém a mesma IC nN re ou AC, Por ser a principal dentre as figuras metodolégicas, merece um desen- volvimento mais aprofundado. Apresentagado da proposta: critica ao procedimento tradicional de categorizagdo JA, hé algum tempo, mesmo dentre os pesquisadores adeptos dos métodos quantitativos, considera-se que a presenga, numa pesquisa so- cial, apenas de questdes fechadas limita muito a expressio do pensamen- to dos pesquisados. Daf a necessidade sentida, por esses pesquisadores da presenga de algumas questdes abertas, geralmente propostas com o intuito de aprofundar as razGes subjacentes 4 escolha por uma das alterna- tivas de resposta. Como se colocou anteriormente, a forma tradicional utilizada, para tabular dados provenientes de questdes abertas de pesquisa, consiste na lei- {ura das respostas e na identificagio de uma palavra, ou conceito, ou expres- sfio que revele a esséncia do sentido da resposta. Feito isso e encontradas palavras ou expresses adequadas para repre- sentar os depoimentos, tem-se o que se chama de categoria. 18 A partir daf, torna-se possivel enquadrar os varios depolmentan/dis” cursos em uma das categorias, de sorte que dois depoimentos enquadraday. na mesma categoria sao reputados iguais ou equivalentes, podendo, cone qiientemente, as respostas ser somadas, da mesma forma que se SONI) respostas iguais de questiondrios com questées fechadas. A categoria, dessa forma, torna os depoimentos e demais discursos equivalentes porque expressam a mesma idéia, representada simbolicamente, pela categoria. Na categorizagiio convencional, o agrupamento dos discursos, condl: cao considerada necessdria para produzir conhecimento ou entendimento através da eliminagio da variabilidade individual, nao pertinente ao fend- meno pesquisado 6, pois, classificatério. O que passa a valer é 0 nome ou 0 titulo da classe, deixando os discursos empiricos de existir justamente na medida em que as categorias, ou seja, o nome das classes passa a existir em seu lugar, ou seja, a ser 0 signo ou, como diria Peirce® representamem de seu entendimento ou conhecimento. A categoria/representamem &, assim, condigao para a “cientificidade” na proporgao em que os discursos — e os individuos que os professam — siio classificados, isto 6, reduzidos ou equalizados nas classes, podendo, entiio, ser distribuidos por essas classes. A proposta do DSC A proposta do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) como forma de conhe- cimento ou reduc&o da variabilidade discursiva empirica implica um radica rompimento com essa Iégica quantitativo-classificatéria na medida em que se busca resgatar o discurso como signo de conhecimento dos préprios discursos. Com efeito, com o DSC, os discursos dos depoimentos n&o se anulam ‘ou se reduzem a uma categoria comum unificadora j4 que o que se busca fazer & reconstruir, com pedagos de discursos individuais, como em um quebra-cabega, tantos discursos-sintese quantos se julgue necessdrios para expressar uma dada “figura”, ou seja, um dado pensar ou representagdo social sobre um fendmeno. o O DSC &, assim, uma estratégia metodolégica que, utilizando uma estra- tégia discursiva, visa tornar mais clara uma dada representagao social, bem como 0 conjunto das representagdes que conforma um dado imaginario. Através do modo discursivo, é possivel visualisar melhor a representagio social na medida em que ela aparece no sob uma forma (artificial) de quadros, 19 fabelite © citegorias, mas sob uma forma (mais viva e direta) de um discurso, que F, ofi6 se assinalou, o modo como os individuos reais, concretos, pensam. Hara a elaboragdio do DSC parte-se dos discursos em estado bruto,! fue so submetidos a um trabalho analitico inicial de decomposigéio que con- siste, basicamente, na selegao das principais ancoragens e/ou idéias centrais pPresentes em cada um dos discursos individuais e em todos eles reunidos, que termina sob uma forma sintética, onde se busca a reconstitui¢io dis- cursiva da representagao social. Nesse sentido, o DSC pode também ser visto como um expediente de apresentagio de resultados de pesquisa qualitativa, aparentada a algumas formas classicamente encontradas em pesquisas quantitativas, quando se utiliza, para dar visibilidade aos dados “frios”, de descrigdes do tipo: a grande vitima da violéncia urbana em Sdo Paulo é pardo, tem de 15 a 29 anos, ndéo completou o primeiro grau, esté desempregado, ou o brasileiro médio nao lé, assiste muito a televiséo... Juntando as pegas Para juntar as “pegas” e construir 0 DSC, € preciso considerar os seguintes principios: e Coeréncia ODSC € uma reuniaio, agregagiio ou soma nao matematica de pedacgos isolados de depoimentos, artigos de jornal, de revista, etc., de modo a formar um todo discursivo coerente, em que cada uma das partes se reconheca enquanto constituinte desse todo € 0 todo constituido por essas partes. ¢ Posicionamento préprio Para que se esteja em presenga de um discurso, ele deve expressar, sempre, um posicionamento prdprio, distinto, original, especifico frente ao tema que esta sendo pesquisado. Tipos de distingao entre os DSCs Quando uma resposta apresenta mais de um DSC, podem ser dois os 98 de distingao: | ue, é claro, é muito menos brute do que parece na medida em que o pensamento primério Hoy individiios = maléria-prima basica — j4 esta intensamente trabalhado pelo recorte tematico Peealliido, pelas perguntas do questiondrio, ete. 20 © diferenga/antagonismo c © complementariedade. Quando se trata de discursos sensivelmente diferentes, a apresentagie deles, em separado, é obrigatéria; quando se trata de discursos complemen: tares, a apresentagao dos discursos, em separado, depende de o pesquisadar querer resultados mais detalhados ou mais genéricos. Ha discursos que, a despeito de nfo serem iguais ou semelhantes, Nilo constituem cadeias argumentativas inconcilidveis; podem, entio, se desejir ser reunidos sem provocar contradig&o ou incoeréncia; pode-se, também, separd-los quando se quer realgar matizes de posicionamento. ¢ Produzindo uma “artificialidade natural” Diz-se que o DSC é como se uma pessoa s6 falasse por um conjunto de pessoas mas, obviamente, se trata de uma construcio artificial. Assim sendo, para fazer com que 0 discurso coletivo parega falado por uma s6 pessoa, deve-se efetuar algumas operagées nos pedagos selecionados de discursos “limpando-os” de particularidades (por exemplo: uma determi+ nada doenga que nao é comum a todos, uma pessoa particular mencionada num depoimento, etc.). Deve-se, também, encadear narrativamente os discursos de modo que apresentem uma estrutura seqitencial clara e coerente. Para a construgao do DSC é€ preciso aproveitar todas as “‘pegas”, isto 6, todas as idéias presentes nos depoimentos para que a figura nao fique incom: pleta; entre as “pecas” repetidas ou muito semelhantes, escolhe-se apenas um “exemplar”. ALGUNS EXEMPLOS DE DSC Cada um dos DSCs apresentados abaixo foi composto com as expres: sdes-chave de varios (entre cinco a dez) depoimentos de diferentes pessoas, reunidos em discursos-sintese. Eles representam alguns exemplos de sujeitos coletivos (freqlient dores de sites da internet: adolescentes gravidas, clientes de clinicas de se xualidade, estudantes de Medicina, clientes de pronto-socorro) “falando! @ se expressando como se fossem emissores de um discurso individual, Serio apresentadas quatro DSCs de idéias centrais e um DSC de ancor ragem. 4 DSC de participantes de um forum na internet sobre uso/econsumo de maconha” Idéia central: hierarquia dos vicios DSC “A maconha deveria ser liberada porque faz menos mal do que o cigar- ro. O cigarro, que, comprovadamente, é prejudicial a satide, é liberado, nada de crime. Por que a maconha deveria ser? O cigarro é muito mais prejudicial do que a maconha, o alcool nem se fala, calmantes pior ainda. A pessoa que toma um wisky, uma cerveja, um conhaque também estd, de alguma forma, se drogando e néio estd praticando crime algum. Quem nao gosta de chegar em casa depois de enfrentar o transito maluco desta metrépole e tomar um copinho de wisky. E muito natural, nao? Pois é isso que acontece com a maconha. Hd pessoas que preferem em vez de relaxar com wisky, relaxar com a maconha, que jd foi provado nao fazer tao mal como a bebida. Em suma, beber faz mal, mas ndo é proibido, fumar faz mal e nao é proibido, transar sem camisinha pode fazer muito mal, mas néo hé nenhuma lei que puna tais “desprevinidos”. A verdade é apenas uma: estamos nos tornando cada vez mais hipécrita: DSC sobre a descoberta da gravidez em adolescentes!”) Idéia central: a vergonha da descoberta da gravidez, DSC “Tomava remédio porque ele conversou comigo e me trouxe no médico. Comecei a tomar. Depois que eu terminei com ele, eu parei porque ndo fiquei com ninguém. Depois, quando nés voltamos, eu tomei novamente, mas, depois de um tempo, eu parei. Foi quando eu fiquei gravida. Nossa Senhora, foi um choque pra mim [...] Eu tomava o remédio! Minha mde viu o remédio ld e eu ficava com vergonha. [...] Eu revelei ao meu namorado que estava gravida, mas ele veio falando que nao era dele. Contei para ele, mas ele ndo acreditou, disse que a crianga ndo era dele, Eu pensei em tanta coisa. Eu pensei também em tirar 0 neném. Eu falei que ndo o queria, porque eu tinha tudo, e com o neném, eu ndo ia ter nada. Nao tinha a responsabilidade para cuidar de uma crianga, que é muito novinha assim! Ele também ndo [...]. Ea vergonha na escola, quando eu voltasse tis aulas. E a vergonha de todo mundo olhando para mim, vendo-me gravida e barriguda. 22 Comecei a aceitar mesmo, quando eu fiz quatro meses de gestacgéo. Porque com trés meses eu batia na barriga. Batia mesmo de nerveso, porque ele fazia eu passar nervoso, entdo eu também ficava nervosa. Mas, depois eu aceitei tudo e me arrependi. [...] Eu estava tentando, queria tirar mesmo [...] eu tomei umas coisinhas. Assim, eu tomei novalgind @ um monte de coisas juntas; novalgina, canela quente, mas ndo tem jeito. Ah, eu chupei mais de dez lim6es, quatro comprimidos de cibalena, tudo de wna ver Agora, jd esté feito, fazer o qué? Tenho que aceitar. Acho que eu, ele e 0 neném seremos muito felizes ainda," DSC de cartas de individuos a uma clinica de sexualidade, pois sofrem de ejaculagao precoce” Idéia central (tema): ejaculagiio precoce DSC “Old, me chamo... Depois de muito tempo e agiientar muito sofrimento, estou buscando ajuda para solucionar um problema que transforma minha vida de relacio» namentos um inferno. Sempre suspeitei, mas hoje em dia tenho a certeza que sofro de eja- culagao precoce. Nunca tive (infelizmente) controle sobre minha ejaculagéo, as vezes leva uns trés minutos, ds vezes menos (1 rapido, néo é?). Quando utilizo camisinha, a ejaculagdo demora um pouco mais, po- rém ndo 0 quanto eu gostaria. Confesso que sou um pouco ansioso, mas jd tentei controlar minha ansiedade e também minha ejaculagdo de varias formas, até mesmo pen- sando em coisas sem nenhuma conotagdo sexual como, por exemplo, um barranco de terra, um oceano, 0 espaco sideral, e até nas minhas dividas, enfim, varias coisas. Outro problema é que, quando eu tento mudar de posigdo ou outra coisa para dar uma relaxada, eu acabo perdendo a eregéo (é um problema!). Quando percebi que estava com EP e devido a esta razdo, procurei um urologista e 0 mesmo solicitou alguns exames (sangue para medir a testerona e outros), segundo os resultados, nao estou com nenhum problema Jisioldgico e, segundo o doutor, o problema deve ser ansiedade, inclusive ele receitou um medicamento para retardar a EP mas de nada adiantou. Enfim, realmente estou muito preocupado, néo sei o que fazer: devo procurar um médico? Meu caso tem solucao? 23 Serd que vocés poderiam me ajudar, me orientar? iu quero ter mais prazer e fazer com que minha parceira tenha mais praser; gostaria de ter uma penetragdo mais duradoura. O que fazer, como proceder? Jé néio estou mais agiientando esta situagdo. Gostaria de saber, por exemplo, 0 que causa, como tratar... e também como fazer para manter um maior tempo de eregéio. Gostaria também de saber se vocés tém atendimento. Esperando contar com a ajuda de vocés, obrigado!” DSC de estudantes de Medicina sobre a raz&o da escolha do cur- so?) Idéia central: escolha da Medicina como um sonho DSC “Faco 0 curso de Medicina porque foi aquele que mais me fascinou. Tenho uma certa paixdo pela Medicina e estou no curso apenas para obter a satisfagdo pessoal de realizar um sonho. Acredito que tenho vocagdo, pois sempre, durante toda minha vida, quis ser médico, por achar essa profissao muito bonita. Desde crianga até o presente somente me vejo trabalhando como médico. Nunca quis ter outra profissdo.” DSC de clientes de um pronto-socorro publico? Ancoragem: s6 0 convénio garante um bom atendimento DSC “Que eu dependo mesmo, néio é? Nao tenho convénio, entéo tem que passar no pronto-socorro. Eh... quem ndo tem convénio hoje, pelo amor de Deus, sofre! Precisa do que vier pela frente, nao é? Olha, na época em que nés estamos vivendo, com a satide publica do Jeito que estd, a gente que ndo tem como pagar um convénio, que ndo ganha muito, o jeito é recorrer aqui, aos prontos-socorros, niio €?” 2 Em resposta a questdo: “Vocé recomendaria este pronto-socorro para um amigo ou parente seu que precisasse de atendimento?” ALGUNS DESDOBRAMENTOS DO DSC Serdo discutidas, aqui, algumas conseqiiéncias do DSC para a pes- quisa qualitativa, consideradas importantes. ¢ Inter-relagées entre idéias centrais’ e expressdes-chaye O DSC, como estratégia metodoldgica para descrever 0 sentido dos discursos presentes em pesquisas de representag3o social, utiliza-se, entre outras, das figuras metodoldgicas da idéia central e das express6es-chave. O objetivo aqui é mostrar como a inter-relagiio entre essas duas figuras contri- bui para descrever, de maneira adequada, o sentido dos discursos presentes em pesquisas de representacio social. 1-0 que é e qual a fungdo da idéia central No quadro de uma pesquisa empirica de representagio social que envolva coleta de depoimentos individuais, 0 que se busca obter, pelo menos inicialmente, é uma descrigio do sentido de cada um e do conjunto de depoi- mentos/discursos que se coletou sobre uma dada temitica. Considerando cada depoimento/discurso isoladamente (por exemplo, uma resposta a uma pergunta de questiondrio) a idéia central é uma descrigio (a mais suscinta e objetiva possivel) do sentido desse discurso, sendo que um discurso pode ter mais de uma idéia central. Considerando conjuntos de discursos/depoimentos, pode-se observar que eles podem conter idéias centrais semelhantes ou complementares. Por exemplo: na pesquisa desenvolvida por Ignarra“” sobre a razio da escolha do curso de Medicina, muitos alunos emitiram discursos como resposta A questo: “Por que vocé escolheu 0 curso de Medicina”, cujo sentido pode perfeitamente ser descrito pelo termo vocagdo ou vocagdo para a Medicina. Paradigmatica- mente falando,‘ se est na presenga de um determinado conjunto de discursos que €, positivamente, o discurso da vocagdo e que, negativamente, niio 6, por exemplo, no contexto da mesma pesquisa supracitada, 0 discurso caritativo) A idéia central tem, portanto, a importante funcio de individualizar um dado discurso ou conjunto de discursos, descrevendo, positivamente, suas especificidades semAnticas 0 que permite distingui-lo de outros discur- sos portadores de outras especificidades semAnticas. 2 Tudo 0 que for dito aqui sobre idéias centrais aplica-se também & ancoragem. 4 Sobre o conceito de paradigma em semistica ver, entre outros: GREIMAS; COURTHS. sé miotique: dictionnaire raisonné de la théorie du langage, Paris: Hachette, 1979. 25.

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