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Uma voz que s6 vocé possa escutar Fle continuow aler€ nbs, + ercutar,Levou algum tempo pia para mas, quando erguew 05 olhos, nésextivamos ;anaiados pelo siléncio, O Suxo de palavras nha ferminado, Vagarosamente, voltamos 205 noss0s corpos e is nos vidas. (Leoyo Jones, 0 5». Pip) remota ilha de Bougainville, entre Papua-Nova Guiné eas has Salomao, foi cendrio de uma guerra civil na década de 1990.0 governo de Papua impés um bloqucio A ilha, deixando os habitantes sem rédio, sem jomal, sem eletricidade e carentes de qualquer tipo de suptimento, O jornalisa Lloyd Jones, nascido em Nova Zelindia, cobrit 0 blogucio 3ilha do Pacifico, ¢ foi nela que ambientou a narra- tiva fiecional que the garantiu, anos mais tarde, lugar entre os grandes eseritores da literatura cor nea, com obra de muita repercussio entre leitares ¢ eriticos(O Sr. Pip en eres cri dos lecores, o romance de Loyd Jones delineia umalparticular relag6 Site protSNONCURMHEE mediada pels presenca, deciiva na vida de todos, de um livro na sala de aula Em O Sy. Pip, a narradora é uma jovem: Matilda. Ela relata o que vviveu na ilha stiada, a partir dos seus 13 anos, e 0 que um romance de ‘Charles Dickens significou para ela, 0s colegas e 0 professor, quando a "Pen aba, era em 200, 0 escorsalou primis de importncs como « Commonwealth ‘Wier: Piee iting de ser Bea do Man Booker Prize cm 207m pores er + gio O Sr. Pp. Tradudo de Léa Vireoe de Caso, Todas cages referents 20 romance fora ex dest ei 7 guerra impunha a todos suas atrocidades. Embora a narradora assuma, | em algumas passagens, uma voz infantil, eata-se de um livro escrito Cn para adultos, Articula conceitos complexos, sem poupar o leitor da de Lloyd Jones arr um easo de intenso envolvimento a6 leitor descrigio de episédios cruéis proprios de um cendrio de guerra. No no mundo ficcional ¢ a experiéneia de profundo conhecimento entanto, em seus aspectos essenciais, o livro de Lloyd Jones processa -Petsonagem que a literatura propicia, fendmeno que s6 os leitores estimula uma reflexio sobre a relacio do leitor, em sentido amplo, ‘podem compreender. ‘edo professor, em sentido restrito, com a literatura ‘A guerra prowsegue com seus horrores, eas criancas © que querem, A narragio apresenta a vida na ilha a partir das restrigdes impostas saber é do futuro de Pip, 0 protagonista da histéria. Cecilia Meireles pela guerra, Com o agravamento do contflto, os professores avian (1979, p. 27) jd nos advertia: pode até acontecer que a crianga, ener fugido do lugar e as criangas se ressentiam do fechamento da escola im Tivo eserito especialmente para ela e outro que nao o foi, venha ‘Além dos nativos, 0 tinico estrangeiro que li ficou foi o St. Watts, 4 preferir 0 segundo. Tudo & misterioso, nesse reino que o home homem a quem, com irreveréncia e zombaria, as criangas chamavam comesa a desconhecer desde que 0 comesa a abandonar'yA verdade, de Otho Arregilado. Neozelandés, casado com uma nativa, 0 Sr OFEM, como s6 +e descobre 40 final da historia, € que o professor no ‘Watts era uma figura um bocado excéntrica, Arrastava pela ilha, como esteve apenas lendo Dickens, Ble adaptava a obta do grande romancista, se fosse um animal, uma carroga onde carregava sua mulher. Ela ia “a condigdes de entendimento dos seus alunos, o que nio é apenas um em pé. Como se nio bastasse, em certos dias, ele costumava aparecer detalhe na natrativa, Merece toda atengio. com uma bola vermelha no nariz. E no se importava que ficassem narrativa e, s6 mais tarde, um jovem ~ que, no entanto, habita um mundo radicalmente diferente daquele dos alunos da ilha. A hiseéria aS ‘Como consequéncia do bloqueio imposto a ilha,/e livro lidé na i olhando ¢ rindo dele. Vv escola nio softe a concorréncia de todos os recursos de informagice 59 Pois é exatamente esse sujeito que decide reabrir a escola se dispde 2 2 € entretenimento com os quais, em condiges normais, em zona nio & a dar aulas para os alunos que passavam o dia em casa, sem ter o que LE $5.2/ sciada, ele inevitavelmente compete, £ desse modo que se potencia- fazer. O Sr. Watts, no entanto, nio tem formagio de professor. Tam- & ) liza 0 efeico que um romance como Grandes esperancas pode exercer Pr pouco dpe de matt idiico, porque nso hava wid ‘nen 0) Seger ore, eee / em pessoas g Pi P Mesmo assim, ele assume a fungo de profesor ¢ as criangasretornam 4 _( (fatdo coridiano, vslumbrar diferente modelo de mundo e pensar em SS 4 sala de aula, em meio as ameagas, 4 precariedade, as dificuldades & < (putts posi lades, ——~ a eee a a0 sofrimento. Tudo 0 que o improvisado professor tem a oferecer € 32 0 livia’ uo concorre com: outros uikies, come veletiee 4 paixio pela literatura ¢ por uma obra em especial, de que resta um Fidio, periédico, computador, ndo escapa de coneomrer com outros - tinico exemplar: (Grandes expert, de Charles Dickens E € isso 0 que Rasa alec Sogn, Gane ee ae ele faz. Comega a Ter a historia para os alunos, depois de dizer: ® 4 Pte, fe See as _ \ puta que vai gerar eigies consequéncias. Os dscuros, js sabe, $5 ‘Vou ser honesto com vocts, Nio tenho nenhuma sabedoria, % 3} existem em cruzamento. E nem sempre isso se dé de forma tolerante nenhuma mesmo, A coisa mas verdad que powo dite 1 vorés SAA 4 on pacitica, De qualquer modo, o romance de Lloyd Jones iustra bem € que 0 que quer que tenhamos entre nés é tudo 0 que temos, = > \ certa nature: turbadora da literatura que, mesmo em uma ilha sitiada, precisa encontrar condi¢Bes para existr, , >| Abistéria contada pelo professor durante as aulas ocupava a mente \/ das eriangas de tal modo que modificava o comportamento delas. Diante JP do envolvimento dos filhos com o livro escolhido por um professor estrangeiro, que nio parttha das crengas religiosas dos nativos, os pais Antes que alguém diga que um romangio do século XIX é ina- ara o piblico infantil e juvenil da classe multisseriada do gWatts, deve acompanhar no relato o encantamento ¢ a adesio 10 4 personagem Pip ~ ele também um menino, no inicio da ‘Uma vor que s6 voce possaescutar 19 estar hostilidade a0 professor itarem a sala de aula e reserva reagem com temor, Passam, entio, am Estrategicamente, ele convida 0s paisa ‘eles espaco para fizerem seus préprios relatos. E desse modo que 0 Sr. Wacss, o professor improvisado, promove 0 explicito entrecrazamento dos discursos€ a valorizagio do conhecimento pritico e mitico-religioso dos pais de seus alunos. Mas ele no pode, ¢ claro, interferir na recepio dos meninos a essa histérias. Fles preferem a ficgio. (O fato de que o grupo reunido para ouvir ¢ falar de literatura, na aldeia em que vive a pequena Matilda, seja bastante pequeno, apenas 20 eriangas entre sete © 15 anos ~ pois @ maioria dos moradores ou abandonaram a ilha, ou se juntaram aos rebeldes, ou foram mortos reforga a ideia de que, qu 0 “Teitores literdrios, falamos de um circulo restrito de que f 'Nés, 05 que nos intetessamos por livros, nio somos muitos, mas nos sentimios parte daqueles convocados na conhecida epigrafe-dedicatSria do livro do poeta espanhol Juan Ramén Jiménez, que diz: "para a Por isso, abandono © dramatic desenvolvimento da trama da narrativa de Lloyd Jones, para manter 0 foco no que interessa dat ‘destaque aqui: 0 envelvimento dos alunos com o mundo da ‘elucidativo acompanhar os estigios pelos quais passant o alunos de Bougainville como leitores. O primeiro deles é bem ilustrado na passagem seguinte: {LJ enquanto of rebeldes © os peles-vermelhas continuavam & trucidir uns 20s outros, tinhamos outro motivo para nos rfugiat “fat foe angst Wtoiana, Descobemioe QUe pods chegar |i com facilidade. (Jonts, 2007) {As criangas da aldeia haviam descoberto tim Feffigio mental/para se evadirem do inexplicivel conflito que oprimia a todos os ilhéus. © mundo paralelo, que ganhava forma nas palavras do professor que contava Grandes esperangas, adquiria consistencia e intensidade, permi- tindo aos meninos um modo de escape ndo muito diferente daquele que podemos encontrar diante da tela de televisio, ao fim da jormada de trabalho, ou na tela do cinema, em certos dias e, tantas vezes, a0 20 conversas com o Professor ler um livro. ©) ‘ratura é, portanto BROPEla pode esquccer da guerra c, também, psetipda miner ye meee hin reece ficgio de enredo sedutor. GERD sao itn aNeReRNEE AT apesar do sentido pejorativo atribuido ao termo, pode estar na base da formagio dos mais requintados leitores, assim como de escritores de grande talento, Nio minimize essa etapa iniial da formagio do leitor. Observe 0 depoimento da ficcionista ¢ ensaista norte-americana Susan Sontag (2008, p. 219): ‘© que me salvou quando eu era estudante no Arizona, 3 espera de crescer, 3 espera da hora de fugir para uma realidade mais ampla, foi lerlivros [..] Ter acess @ literatura, literatura do mundo, era ‘escapar da prisio da fuilidade nacional, da vulgaridade, do provin- ianismo compulsério, do ensino vatio, dos destinos imperfeitos ¢ da ma sorte, A literatura era 0 passaporte para entrar numa vida ‘mais ampla, ou sea, a regio da hberdade. Deixemos essa menina real, que viveu sua infincia no interior dos Estados Unidos, ¢ voltemos aquela crianga ficcional, que vive numa convulsionada ilha do Pacifico. Antes escapista, Matilda evolui da posi- 0 de quem foge da dura realidade da vida para o mundo paralelo do livro, quando precisa conffontar a obscuridade do fanatismo religioso ‘matemo. Dolores, a mie, havia entrado em guerra particular e ostensiva contra o professor. Ela tinha opinio um tanto contraditéria a respeito daquela histéria que fascinava tanto a filha, Ao mesmo tempo em gue via 0 envolvimento com a ficeio como algo que potencialmente ‘oferecia risco moral para a menina, considerava aquela histéria uma inutilidade, porque, na opinido dela, nio ensinava coisa alguma Podemos tentar entender © que Dolores pensava, formulando 2 seguinte proposicio: a literatura, por ser initil, constitu risco moral. A interpretagio, porém, logo se mostra insatisfatoria, pois fica claro que © que assusta a mae é exatamente o alargamento dos horizontes de uma menina, que ela jf ndo consegue controlar como antes. Ao defender, de modo incondicional, 0 direito de envolver-se com a histéria que a centretinha, contra o sistema de crencas da propria mae, Matilda j mais uma escapista, que desfruta a narrativa ambientada em outro ‘Uma vor queso voce possa escutar 21 tempo € outro lugar, para esquecer dos proprios problemas. Por conta da literatura, ela se vé agora 38 voltas com um problema novo, ¢ ni se evade dele. E nesse momento que ela passa a experimentar e a praticar a liberdade de pensamento E claro que no contei a minha mie sobre nosso projeco. Els seri capa de dizer: “iso nio vai pescar um peixe nem descascar uma banana”. E teria razio. Mas nfo extivamos aris de peixes nem de ‘bananas, Estivamos atris de algo bem maior. Estivamos tentando conseguir ovtra vida para nés mesmos. Jones, 2007) © professor ficultard passagem para outra etapa da relacio dos ‘meninos com a literatura, a0 dar a eles a tarefa de descobrirem a pro- pria voz; “Com uma voz que s6 vocé possa escutar, diga 0 seu nome. Diga sé para vocé”. Matilda faz o exercicio ¢ conclu ‘© som do meu nome me levou para um lugar bem no fundo da ‘minha cabega. Eu jé sabia que as palavras podiam levar voct para ‘um mundo navo, mas nio sabia que 2 forga de uma inca palavea pronunciada apenas para ot meus ouvides me levaria a um lugar ‘que todos desconheciam. (Jones, 2007) ‘Assim, o professor ensina cada um a perceber que tem uma vor propria, uma singularidade, e que esse é um dom especial, que ninguém ppoders jamais tirar, Os alunos jé sabem que existe 0 mundo paralelo, ‘criado pelo leitor a partir do livro, Aprenderam também, de modo doloroso, que'um livro pode ser perdido, contestado, perseguido e até queimado, Mas, como descobriram que o leitor tem uma voz propria, aquela da subjetividade, sabem agora que podem secuperar uma his- t6ria, mesmo quando seu suporte ~o livro~ desaparece. Sabem ainda ‘mais: que 0s varios da obra sfo preenchidos com o proprio mundo do leitor. Experimentaram, portanto, o que formula a frase de Proust tio. repetida: cada leitor , quando I, o leitor de si mesmo. © professor, contudo, tem também consciéncia de que nem todo mundo pode ser leitor. Quando Matilda pergunta a ele se sua esposa, a Sra, Wats, tinha lido Grandes esperancas, ele responde que, infelia- mente, nio. E, compreensivo, acrescenta que ela tentou, mas ele pode notar que nio conseguiu. Leitores podem conviver com nio leitores. ‘A propria narradora ici concluir mais tarde que algumas éreas da vida nao devem se misturar, Como © professor percebeu que a mulher 22 Conversas com o Professor dele, de fato, nio conseguiu ler? Porque “é impossivel alguém ngir ue esti lendo um livro. Os olhos traem voce. A respiragio também” (jones, 2007) A leitura nio provoca apenas alteragio mental, mas também fisica E a absorgio pelo leitor de um livro que encanta é tal que “a casa pode pegar fogo e quem estiver mergulhado num livro nio levanta 0s olhos” (Jones, 2007) ‘A paixdo de Matilda pelos livros a impulsionou a continuar 0 estudo da literatura, quando finalmente conseguiu: deixar a ilha ¢ completar © ensino médio no continente. Viveri, entio, outro estigio de sua condigio de leitora, 20 se tomar também uma professora substituta para ‘meninos ~ tal como sebstituto tinha sido o Sr. Watts ~ em Brisbane, na Austrilia, E ainda outro estigio de leitura sobreviri, quando ela, com distanciamento, comega a rever todo 0 seu processo de formacio de leitora. Nese momento, como era inevitivel, ela se pergunta quem foi mesmo aquele professor que Ihe ensinow a amar a literatura ‘Quem era aquele homem que viamos na sala de aula? Um omen {que achave realmente que Grandes Exporanas era 0 maior romance do maior eseritor inglés do século dezenove? Ou um homem ue 36 disobe de uma migalha pata comer e diz que aguela é a melhor refeig20 de sua vida? Suponho que seja posivel er todas sas coisas. Sait, por asim dizer, de quem voc® & e se transfor- ‘mar em outro, bem como retomnar a um sentido essencial de eu, (ones, 2007) Reimaginar 0 mundo e, nesse processo, conhecer-se, esta foi a principal ligfo que o improvisado professor deu as criangas. Fez com ue vislambrassem possibilidade de mudanga e dessem passagem a ela «em suas vidas. © momento pice da formacio da narradora ~ porque, sim, se trata de um romance de formagio ~ é este em que ela percebe ‘que a possibilidade de nos transformarmos em outro é 0 que torna igualmente possivel o etomo a algo essencial em nés, Esta éa condicio ‘que leva Matilda, a que deixou a ilha ¢ se afastou da origem, a tentar © retomo para casa. Quando se trata de leitura, de promové-la na escola ou em outro lugar, ou quando se discute a experiéncia do professor como leitor, & importante ter presentes 0s diversos estigios por que passa um leitor, ‘uma voz que so voct possa eseutar 23 jworgue a formagio nao se da de uma sé vez, nem de modo ‘nico ow ecinico. Tomar-se leitor & processo que ocorre ao longo do tempo «de distintas maneiras para diferentes pessoas. Epreciso saber que nio ‘uecessariamente um estigio leva a outro, Precisamos assumir também, jpor embaragoso que isso seja, que hi professores que sio como a Sra ‘Wats. Eles centam, mas nio conseguem ser leitores. © que nao impede slyuns deles de se empenharem honestamente na divulgagio do livro entre 0s alunos € a trabalharem de modo a fivorecer a outros melhor cexperincia de leitura que aquela que tiveram. Ao falar de leitura, no entanto, nem sempre estamos falando da mesma coisa. A palavra pode ter virias acepcdes. Quando se trata do professor como leitor, a palavra leitura nao quer dizer capacidade de decifrar sinais gréficos, mas, sim, de doar sentido ao que se Ié, de set capaz de viver, numa leitura literiria, uma experiéncia iniciitica, conforme entende Ricardo Piglia (2006). Nessa acepeio, leitura € algo capaz de provocar mudangas, para ls do mero entretenimento que, no entanto, é fundamental para atrair ¢ animar 0 contato primeiro de iniciantes, como a erianga, com o livro. ‘Aliteratura, com frequéncia, representa aquele que Ié como uma figura menos enquadrada que as demais, sujeito nao exatamente aco- modado. © gosto pela leitura viria exprimir certo desajuste e 0 leitor surge representado na fic¢le como um ser extremo € apaixonado. Exatamente como Matilda, vio concordar 0s leitores de O Sr. Pip. ‘Acontece que leitores visitam a toda hora um mundo paralelo. Em alguns casos, chegam a imaginar que esse mundo entra na realidade. Dom Quixote é © exemplo paradigmitico disso, Diz Piglia que a lcieura constréi um espago entre 0 imaginsrio e o real, desmontando assim a clissica oposi¢ao binéria entre ilusio ¢ realidade. Nio existe nada simultaneamente mais real € mais ilus6rio do que 0 ato de ler (Prcuia, 2006, p. 29). Em O timo letor, hi uma citago do filosof francés Jean-Paul Sartre, {que diz mais sobre leitura ¢ leitores do que alguns ensaios extensos: or que se Iéem romances? Falta alguma coisa na vida da pessoa Aue Ie, €€ iso que ea procura no livro, O sentido, evidentemente, Eo sentido de sua vida, dessa vida que para todo mundo é tort, ‘mal vivida, explorada, alienada, enganada, mistificada, mas acerca 24 Conversas com 0 Professor 4 qual, 20 mesmo tempo, aqucle que 2 vive sabe muito bem que poderia ser outra coisa, (PIoLIn, 2006, p. 136) [Nessa medida € que a leitura assume a forma de uma diferenca € 0 leitor de literatura ganha um trago distintivo: © do sujeito que busca no livro um modelo de construgio de sentidos, ¢ nele encontra também um refiigio. Porque a leitura requer isolamento ¢ certa forma de solidio para consteuir a subjetividade, do modo como fez Matilda, 4 revelia do que para ela desejava a mie e o ambiente desfavorivel poderia limitar: © Brasil ainda ndo é um pais de leitores, situag2o determinada pot farores de natureza social, econémica, politica, historica, cultural. No entanto, existe hoje especial sensibilidade para esse assunto, traduzida ‘em inimeras iniciativas, piblicas e privadas, para promover a leitura Nao podemos esquecsr, porém, que muitos professores nao tiveram as condigSes necessirias para se desenvolverem devidamente como leitores e, is vezes, pensam ser deficiéncia pessoal 0 que, na verdade, provém de Ambito muito mais amplo, como a divida social do pais com seu povo. ‘Outros, porém, tiveram a formagio de leitor favorecida ¢ influen- ciada por citcunstincizs familiares ou escolares, quando nao por ambas. As vezes, uma Giniea pessoa, como 0 professor improvisado de Bougain- ville, fez toda a diferenga. E hd ainda aqueles que se tornaram leitores apesar de todas as circunstincias para nio s€-1o, Seja de um modo, seja de outro, cada um de nés tem sua propria historia de leitura, confi- ‘gurada na relagio que mantivemos, a partir da infancia, com os livros. Recuperar essa historia & uma experiéncia rica e esclarecedora, mesmo se for narrada com uma voz que s6 a gente pode escutar. Uma vor gue 6 voct posta escutar 25 ‘A obra biteriria deixa vazios por onde podemos ingressar com nossa imaginagio, nossa experiéncia, nossa capacidade para completare refazer o namado. A operagio de leitura, por sua vez, € também inacabada, como sabe qualquer um que, tendo lido um livro em certa época, volta a 1é-lo cem outra, Vers que a leiturajé nfo € mesma, porque ji do € o mesmo fo sujeito que lé. As vivéncias, que teve depois daquela primeira leivura, interferem no texto de tal modo que podem modificar a experiéncia, inclusive 0 fato de ter gostado ou nao do que inicialmente leu Numa época em que a abundante oferta de titulos demanda saber distinguir literatura infanel de mero livro para crianca, nio se pode esque~ ccer que um escritor de literatura infantil cria, por via da imaginasio, por ‘meio de uma linguagem propria, um modelo do mundo com tragos muito peculiares,Inevitavelmente, sua obra estar marcada pela trio, mas nela © criador conseguiri se inscrever com algo de feigao autora, e despertari no Ieitor uma feliz surpresa, como a que provoca obra de Barrolomeu ‘Campos de Queirds (2007), de que destacamos a segvinte passagem: ‘Declarava ser de um pais que nio tinha dia mio tinha noite, nem. fronteiras, onde se falavam tréslinguas: Uma feita de vorais, ‘utes apenas de consoantes ¢ una terceira fita de siléncios. A ‘bandeira de sua pera foi costurada com tes realhos oloridos: um pedaco cor-de-nada, outro cor-de-varioe 0 terceio com metros cestampados de sléncios. ‘Ao criar um mundo proprio, a literatura reage ao mundo fora do texto, desviando-se dele, revogando suas leis naturais, revertendo ¢ revi- sando seus postulados, suas exengas. E, por isso que um livro de litera~ cura nfo serve como porta-voz de nenhuma causa, programa, doutsina, ‘deologia. Nio prega. Nao faz propaganda de nada, Nao se submete a0 politicamente correto. Nio representa interesse de ninguém, porque uma de suas fungdes & construir contra-afirmagées is crengas de todo tipo. discurso literirio s6 avanga na contramio e é desse modo que con segue tomar audiveis as mais diferentes vores, estabelecer didlogos diversos ¢ inusitados, colher 0 préximo ¢ © distante, o estranho € 0 familiar. Se 0 fax é porque ofereve mito e contramito,capazes de abalar 0 que acredi- tévamos ser inguesonével,o que supnhams seni e pensar. £ por set -iitipla que a literatura oferece um espago de liberdade. Sem cruzamento de fils, sem tensio, sem aventura de sentidos, onde hi literatura? 50 Conversas com 0 Professor Literatura de hoje: fronteiras franqueadas ‘A iteratra 4 vem impregnando dessa antiga ambigio de representa a multipicidade das relagOes, em ato e potencialidade (rato Ca.wino, Seis propostas para 0 primo mili) produgioliterria infin dest inicio de culo mostra acentuads inclinago para transcender as fonteiras de género ¢ também para estabelecer novas relacdes entre imagens palavras, Asilustragdes ‘bandonaram © modesto papel de ficar a servigo do que relatam a palavrase passaram a constituir um outro texto, de natureza visual, que stabelece intera¢o com o verbal. Assim, ambos se tornaram igual- ‘mente fandamentais no livro para criangas. A obra de Roger Mello ‘constitu exemplo dos mais expressivos dessa tendéncia, em época em que a comunicacio visual ganha proeminéncia significativa Escritor ilustrador, Roger Mello compe duas textualidades nos livros que assina, Como desfrutam ambas de autonomia, as informagSes de um texto nio se repetem no outro. O texto verbal nio é replicade fem imagens, © texto visual nio ecoa em palavras, Meminas do mangue, jum de seus livros mais celebrados, € representativo a esse respeito. (© texto verbal reéne oito histérias contadas por uma personagem alegérica, a Preguica, a uma outta, a Sorte, As duas extZo 3 beira do tio Capibaribe, no Recife, dedicadas a pescar sri. Enquanto isso, clas vharram istrias dos meninos do mangue, habitantes de casas suspensas, Gque vivern aventuras entre lama © marés, atentos sempre 20s ciclos de 3 seis horas em que a Agua sobe ~ hora de pescar ~e a Agua desce ~ hora de pegar caranguejo. Exemplo do cariter polimérfico da literatura de hoje, que assume virias formas, em Mentos do mangue, cada conto & composto segundo um estilo narrativo, desde o remoto conto curnu- Iativo até a fibula de feicio contemporinea. Ilustrativo da natureea migratoria dos discursos, o livro ecoa, de certo modo, a filmagem de {que seu autor participou como diretor de arte: O cide do caranguejo, de ‘Adolfo Lachtermacher. Esse filme, por sua vez, baseou-se também em ‘outro discurso: uma erénica do socidlogo Josué de Castro.! Lampito ¢ Lancelot, do escritor¢ ilustrador Femando Vilels, ¢ outro exemplo de transposicio de marcos. O livro, com proporgdes maiores {que as habituais cm semelhante produgio para crianga, lembra o formato de um livro de art. Asilustragbes, realizadas em xilogravura ¢ carimbos, aproximam universos to distantes quanto os da cavalaria medieval ¢ do ‘cangago brasileiro. A obra embaralha ritmos verbais € visuais do repente nordestino e da prosa das novelas de cavalaria, ¢ asim estabelece entro~ samento entre géneros literrios completamente distintos, Usa a métrica tradicional do cordel nos didlogos entre personagens de um duelo que ‘ocorre no Nordeste brasileiro, Abre lugar a prosa, quando 0 destaque & dado a Lancelote, personagem da novela de cavalaria que, no relato, contracena com Lampiio. Cordel ¢ cavalatia, visual ¢ verbal, prosa ¢ pocsia no encontram fronteiras que possam impedir a aproximagio concebida pela invengio ¢ pela expressividade. ‘Combinam-se varias técnicas na ilustragdo, o que também contribui para a aproximagio de culturas distintas. O uso das cores do bronze ¢ da prata aludem 3 indumensiria de cangaceiros e cavaleiros, A xilogravura~ gravura em madeira ~ por sua ver, além de referir 0 padrio ilustrativo do corde, sugere o universo de Gutenberg, 0 trabalho atistico dos ipégrafos, {que também envolvia técncas diversas. Relatos de cavalaria,contos ¢ lendas ‘da Tavola Redonda, historias de cordel, efeitos de iluminutas, iconografia ‘baseada em armas ¢ armaduras da Idade Média, por mais distanciados ue sejam entre si, afirmam-se, pelas aproximagdes ¢ efeitos da obra, como elementos de um imaginério comum. * Opernambucamo José de Cast vive etre 19086 1973: Astor de Gsm dajimee Caplie “a jome eso a conden de wa dos mangues urban, 52 Conversas com o Professor ‘Alem desses apectos que se oferecem ao olhar, outros, proprios da literatura infantil neste inicio de milénio, se d3o a perceber no texto verbal, Também nele o tratamento do tema desloca no espago ‘eno tempo elementos de culeuras diversas, Ao deslocar, aproxima © inesperado, transplanta Lancelote ao cangaco. Pode? Quando a obra assume olhar contemporineo e se orienta pela pluralidade das referén— ‘as culturais, sim. Porque vivemos tempo de fronteiras franqueadas, convivéncia de culturas diversas, auséncia de centralidade Nessa mudanga de foco reside a diferenga fundamental entre 2 Jiteratura infantil de hoje e aquela produzida nos anos 1970, periodo de expansio ¢ consolidagio do género, As circunstincias politicas daquela época defniam com nitider o lugar centralizado do poder ¢ 2 Iga pela democracia repereutia nas trocas simbélicas, como a hiteratara ‘© confronto com o autoritatismo e a luta por emancipacio. Na literatura de hoje, no entanto, referéncias politicas, sociais, cculturais ganham multipicidade e voltam-se 4 afirmagio da diferenga edo lugar do outro. O texto literario combina elementos das culturas mais diversas ¢ estabelece ente elas dislogos capazes de romper com 1 programagio ¢ © condicionamento, que por acaso tenhamos, para perceber sempre o mesmo. Assim, um efeito posivel das variada formas ide trocas simbélicas na cultura é a percepgdo pelo sujeito de que seu mundo nio € 0 dinico, e que 0 outro ~ 0 diferente dele ~ ndo é objeto, ‘mas é também sujeito. Sendo assim, por distante que 0 outro esteja, ‘no sera apenas um objeto no foco da observa¢io, mas um interlocutor fem didlogo em que ambas as partes se dio a conhecer. De ral modo que, quando um recebe algo do outro, influenciam-se ‘A idensidade, parece que finalmente aprendemos, no ¢ fa, mas ins- tivel, Nio nascemos com ela, Nés a constraimos 20 longo da vida vivida, ppensada, sonhads, comparihada, Por isso, uma forte vercente temitica da titerarura infantil contemporinea volta-se ao reconhecimento de diferentes gripos sciis como sujetos poradores de wma cultura & ssi que at tmanifestagSes literirias de hoje, como bem expressa Zila Berd,’ tomam-se ‘opalco onde se encena um jogo de olhares reciprocos, pelo qual se tent2 + pcmattaserefre pecicmente erature neg em aegument qc, gods 2 Proporsct fode ser tendo otros grupos. Ver “Literatura ners” GOBIM, 1992) Literatura de hoje fromteasfranaueedas $3 desconstruir a imagem estereotipada fibricada sobre o outro, ¢ crstalizada como se verdadeira ose, silenciando assim o discurso alheio,® f também livre de impedimentos de fonteiras que as historias mais diversas, lidas em livros, ouvidas na familia, narradas por amigos, ocupam regem nosso imaginirio. Sem ordem ou hierarquia, em um bazar de ;narrativas, flclore, mitologia, causos, relatos daquela ta, outros da indiistria cultural, uns tragicamente veridicos ou, quem sabe, alegremente sonha- dos, sio guardados sem ordem na meméria. Povoam nosso inconsciente, compdem nosso repertério narrativo individual. Como essas historias, ‘Go muitas, hoje, uma se faz presente e outras recuam. Amani, a que pparecia esquecida é lembrada, Existimos nés e essa porgio de historias que carregamos, is veres sem saber, sem tempo ou disposigio para recordé-las, cou enumerd-las, da maneira como fez Moacyr Scliar (1996, p. 7), 20 dar expressio A miscelinea narrativa de seu repertério intimo: Na verdade, todas as minhas recordagdes citi ligadat is, a ouvie € conta hist6ras. Nio s6histrias dos personagens que me encan- taram, 0 Saci-Pereré, o Negrinho do Pastoreio, a Cuca, Hercules, Teseu, os Argonautas, Mickey Mouse, Tarean, os Macabeus, of piratas, Tom Sawyer, Sacco € Vanzets, Mas eambém as minhas proprashistrias, as historias de meus personagens, ests ctituras reais ou imaginirias com quem convivi desde 2 infinca Referéncias ALMEIDA, Femanda Lopes de. Sapte, Sio Paulo: Atica, 1992, BARRIE, JM, Pr Pan. Traduto de Maia Antonia Van Acker, Sto Paulo femus,s/d. BAUM, L Fan, © mit de Ot, Tupac dapat de Lg Chemo: Sto Paulo: FID, 2008. oe ae ‘ BOCACCIO, Giovanni. Decamerio. 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Carreguei-o para cas, sbri-o em dois ou tes diat de profunda excitagio (..] Eu cinha 12 anos e pela primeira ver me dava conta de que o mundo cra miior que © meu brirto, maior que minha cidade, maior talver que as montanhas que azulavam Is Jonge, E sso descobs ‘rls palavras de um escrito uctaniano, entio sovitio, Anatoly Keznetzov (..) Pot eriticos mistérios, o menino do bio Paraiso, em Cataguases, identificou-se com a slidfo, angi, 0 senso de sobrevivencia daquels familias dias em plena Segunda Guerrs Mundial (Lure Rurraro, Esper de espa) inguém com algum interesse em leitura juvenil hi de ler o frag- mento acima, extraido de um ensaio de Luiz Ruffato, com indife- renga. Encontro nele pontos fundamentais sobre a questio da literatura para jovens. Mas foi o verbo “pescou-me" que, de imediato, atraiu minha atengio. Um menino de 12 anos, alheado, andando a esmo nna mesmice dos dias, vé a vida modificada por interferéncia de uma bibliotecdria ~ ¢ vem aia segunda palavra particularmente significativa do texto ~ "felicissima”. Na referéncia a0 estado de animo, com que ela

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