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ANDRE DARTIGUES O QUEEA FENOMENOLOGIA? Tr Maria José J. G. de Almeida 7* EDICAO CENTAURO EDITORA UMA ESTETICA DA EXISTENCIA 99 Existéncia e liberdade Dizer que a consciéncia € s6 existéncia porque ela néo pode ser abarcada na reflexao, porque ela € totalmente vazia e foge imediatamente para as coisas exteriores, remete-nos entéo & questo da existéncia. Que entender por existéncia quando defi- nimos como existéncia pura esse vazio, esse “nada” (rien) que € a consciéncia? Vé-se desde o infcio que nao se pode tratar da existéncia no sentido classico, a saber, o fato de ser, de pertencer ao domfnio da realidade por oposig&o ao das possibilidades puras, como o supomos quando dizemos de um objeto: “existe”. Pois, dessa existéncia que € a consciéncia cumpre dizer, ao contrério, que ela é um vazio ou um nada (néant). Para dizer a verdade, nao h4 termo que traduza essa intuig&o primeira j4 que a existéncia da consciéncia ou a consciéncia-existéncia, se distingue de todas as esséncias que podem trazer um nome. Ela € 0 que ela no 6, isto é, ela € a razéo pela qual h4 um mundo com objetos e valores e que nao € nem esse mundo, nem esses objetos, nem esses valores. Assim, Sartre leva a reduc&o husserliana ao seu tltimo grau ja que 0 doador de sentido residual, que se pode chamar consciéncia ou existéncia, € igualmente nada (éant). A redugéo fenomenold- gica torna-se, levada ao limite, “‘nadificagao” (néantisation). Eis af, sem diivida, uma determinacdo negativa, mas que tem também uma face positiva. Pois, se a consciéncia nao é nada do que ela visa no mundo e se o mundo nao € nada dela, esse nada (rien) & também 0 que define todos os objetos de visada e o mun- do como tal. O nada (néant) nao est4 na fronteira do ser, mas em seu Amago, ‘‘como um verme no fruto’’, de modo que o ser € por ele arrancado A sua opacidade e a sua indiferenga e constitufdo ser-para-a-consciéncia. Esse campo transcendental, consciéncia pura ou existéncia, ‘“‘num sentido é um nada (rien), j& que todos os objetos fisicos, psicoffsicos, todas as verdades, todos os valo- res estdo fora dele, j4 que meu préprio Eu (Moi) deixou de fazer parte dele. Mas esse nada é tudo j4 que € consciéncia de todos es- ses objetos!®”, A existéncia é, positivamente, essa espontaneida- de que d4 ao ser sua configurac&o de mundo, que o constitui co- 16, La transcendance de Ego, op.cit., p. 74. 100 O QUE £ A FENOMENOLOGIA? mo objeto de todas as intengdes e de todas as significagées: ““Po- demos, pois, formular nossa tese: a consciéncia transcendental é uma espontaneidade impessoal. Ela se determina para a existéncia a cada instante, sem que nada se possa conceber antes dela. As- sim, cada instante de nossa vida consciente nos revela uma criagao ex nihilo. Néo um arranjo novo, mas uma existéncia no- val7”’, Certamente, se dir4, e Sartre o diz, que nfo se trata aqui de criag4o no sentido metaffsico, isto €, no sentido de uma origem do ser, pois “‘o ser 6 sem raz&o, sem causa e sem necessidade!8”, A espontaneidade criadora é a da consciéncia, que € para si mesma a prépria fonte e que nao pode, pois, haurir em nenhum outro lu- gar seu sentido de existéncia. Por isso essa espontaneidade € também liberdade pura, isto €, poder de uma determinagdo, que nao € ele préprio determinado por nada. A liberdade nao é, com efeito, uma qualidade da consciéncia, ela & a prépria existéncia, anterior a toda definigao ou determinagio: “E dela que cumpriria dizer o que Heidegger diz do Dasein em geral: ‘Nela a existéncia precede e comanda a esséncia!%”’. Mas, ainda que pura, essa liberdade nio se exerce fora do mundo, j4 que a existéncia sé é tal como visada do mundo, j& que © mundo € aquilo em relag&o ao qual a consci€ncia € nada (néant) e j& que sem mundo ndo haveria consciéncia. Longe de desenga- jar a consciéncia do mundo, a liberdade s6 pode, pois, ao contré- tio, engajé-la no mundo, fazé-la aparecer como projeto do mundo, como contribuigéo ao mundo de uma perspectiva que af delineia possibilidades que o mundo nfo traz em si mesmo. A opgio livre da consciéncia sobre si mesma € ao mesmo tempo uma nogio so- bre o mundo, revelando o mundo como ela se revela a si mesma, isto €, ao mesmo tempo como insatisfagdo, caréncia e capacidade de preencher essa caréncia: “‘O possfvel, com efeito, 86 pode vir ao mundo por um ser que € a sua prépria possibilidade20”’, Teremos que voltar as implicagdes ontolégicas dessa con- cepgdo da existéncia, Mas convém sublinhar de infcio em que ela 17. Id.,p.79. 18, L’étre et le néant, ops cites ps 713. 19, Id,, p. 513. 20, Id., p. 144, UMA ESTETICA DA EXISTENCIA 101 péde, pelo menos em Sartre e alguns de seus discfpulos*!, deter- minar um modo de abordagem novo dos fenédmenos psfquicos ¢ como, por sua insisténcia sobre as nogées de liberdade e de proje- to, ela converteu a fenomenologia numa filosofia da agéo. FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL E PSICOLOGIA Devem ser evocados dois aspectos concernentes 4 contri- buicdo da filosofia sartriana da existéncia para a compreenso dos estados ps{quicos. De um lado, estes nao tém mais que ser consi- derados, por serem subjetivos, como estados interiores menos acess{veis & reflexfo que os fendmenos externos. Se a redug&o expulsou toda subjetividade da consciéncia, néo hé mais, como 0 mostramos, uma interioridade abrigando e ocultando os estados psfquicos: “A fenomenologia veio nos ensinar que os estados sa0 objetos, que um sentimento enquanto tal (um amor ou um 6dio) € um objeto transcendente e nao poderia se contrair na unidade de interioridade de uma consciéncia, ele poder4, com todos os esta- dos que comporta, ser penetrado intuitivamente, nfo somente pela consciéncia da qual € 0 eu (moi), mas por qualquer outra cons- ciéncia. O Eu e seus estados estao “‘no mundo”, assim como nele esto esta drvore ou esta cadeira?3. Mas, de outro lado, essa prépria consciéncia para a qual Eu é objeto 6, ao contrério, radicalmente impenetrével. Cumpre, pois distinguir a propésito do conhecimento dos fenédmenos ps{quicos duas esferas que nfo sao da alcada do mesmo método, ou seja, “uma esfera acess{vel 4 psicologia, na qual o método de obser- vago externa e o método introspectivo tém os mesmos direitos € podem se prestar uma ajuda miitua — e uma esfera transcendental pura acess{vel unicamente & fenomenologia?”’. Entao tanto o Eu e seus estados podem receber um tratamento de objeto, quanto a consciéncia, enquanto liberdade e espontaneidade, escapa a toda objetivagao. 21. Cf., por exemplo, a concepsio da fenonenologia, de inspiracdo sartriana, de Francis Jeanson, em La phénoménologie, Paris, Téqui, 1951. 22. La transcendance de PEgo, op. cit., p. 75. 23. Cf. ibid. 2A, Id., p. 77.

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