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Frederick Cooper, Thomas C. Holt e Rebecca J. Scott Além da escravidao Investigac6es sobre raca, trabalho e cidadania em sociedades pés-emancipagao Tradugao de Maria Beatriz de Medina ‘CIVILIZAGAO BRASILEIRA = Rio de Janeiro 2005 A esséncia do contrato Thomas C. Holt Do modo como a questo se coloca agora, uma raca foi li- bertada, mas ainda no se formou uma sociedade. Lord George Harris, governador de Trinidad, 1848 AARTICULAGAO ENTRE RAGA, GENERO EE CONOMIA POLITICA No PROGRAMA BRITANICO DE EMANC| PACAO, 1838-1866 sociedade emoldura a problematica e pordneos das sociedades pés-emanci Proposta mal foi investigada, quer pelos contemporaneos de Harris, quer por historiadores. Do Ponto de vista do século XX, a emanci- Paco parece uma ruptura histérica dramética: para alémdar escravi- dao esta transigio para uma sociedade “Livre” eas: vastas convulsGes e transformagées Sociais provocadas por esta transicao. Do ponto nao provocou nenhum Fompimento assim radical com o passado; ha verdade, hd muito tempo a manumissio dos escravos era parte integrante do proprio gerenciamento da mo-de-obra escrava, Por que a emancipagao nao poderia simplesmente ser uma manumissio €m escala maior? Afinal de contas, as republicas americanas recém- independentes tinham conquistado algo do género no final do sé- culo XVIII e infcio do XIX. Por que uma mudanca no sistema de trabalho necessitaria da formacao de uma nova sociedade? Que tipo de transformagio social Harris tinha em mente? ssencial dos estudos contem- Pago. Mas a novidade desta O, THOMAS €. HOLT Exatamente uma década antes, durante o ultimo ano co, de aprendizagem (apprenticeship, um perfodo de tran SigS0 Ie te imposto entre a escravidao e a liberdade), Lord Glenelg rio colonial da Gra-Bretanha, dera uma resposta Parcial 4 Segung das co} zi das as leig al atencig Mais ing). deveriam ser eliminadas das leis coloniais. Com estas in: Glenelg, um ex-tory liberal que se convertera aos whigs, definigao muito mais detalhada e de alcance muito maior ficado de liberdade do que se sugerira havia apenas quatro anos, durante a discussao da Lei de Abolicao de 1833. “O Btande princi. pio fundamental da lei de abolic¢ao daescravatura”, escreveu Glenelg, “é que a aprendizagem dos escravos emancipados deve ser imedia- tamente sucedida pela liberdade pessoal, naquele sentido completo eilimitado do termo que € usado em relagdo aos outros stiditos da Coroa britanica,”! Para implementar esta politica, Glenelg ordenou que os gover- nadores e seus procuradores gerais revisassem as leis coloniais rela- tivas ao acesso ao dircito de votar ¢ ser votado, as escolas, as igrejas, A milfcia ¢ a outras instituicGes sustentadas pelo governo ¢ lhe enca- minhassem um relat6rio, Deviam ficar atentos a quaisquer restri- gdes as ocupagGes as quais os libertados provavelmente recorreriam no lugar do trabalho nas plantations, como as de mascate, carrega- dor e barqueiro, Deviam estudar a distribuigdo de auxilio aos pobres, as leis contra vagabundagem, o sistema tributario, a manutengao das Strugdes, deu uma do signi- 92 A ESSENCIA DO CONTRATO esiradas, a venda a terras da Coroa e a disciplina prisional. Tado jgso deveria ser revisado para Sarantir que nao envolyesse mais ne- nhum vestigio de discriminagao racial. Esta, ressaltou Glenelg, era #g esséncia do contrato entre a Gra-Bretanha e as colénias”. — © mandato de Glenelg como secretério colonial durou pouco mais de um ano depois disso, mas sua doutrina de igualdade civil e oli inuou, mais Ou menos, a configurar a pratica de seus sucessores durante a década seguinte. No entanto, em 1849, Earl Grey, um dos sucessores de Glenelg como secretdrio colonial, es- creveu uma carta particular ¢ confidencial a seu primo, Charles Grey, governador da Jamaica, exprimindo sua crescente preocu pagdo com oque uma democracia politica genuina para os ex-escravos poderia pressagiar na administragao dos assuntos coloniais daquela ilha. Examinando a comparacao do ndmero de habitantes negros & bran- cos da Jamaica & a auséncia de todo impedimento real a aquisigao do direito de votar e ser votado pelos primeiros, parece impossivel duvidar que em periodo nado muito distante eles possam adquirir suprema influéncia na legislatura [e usar 0 seu poder] com pouca atengao aos interesses dos fazendeiros ou mesmo a justica, & que portanto se os fazendeiros forem sdbios usariam a autoridade que hoje possuem no para reduzir 0 poder da Coroa, mas (...) para k fortalecé-lo.? A carta de Grey assinalou o inicio de uma mudanga dramitica da politica do Escritério Colonial, o Colonial Office. Em meados do século, a adogao confiante da democracia politica por Glenelg dera lugar ao temor crescente de que o poder politico na jamaica pudes- sena verdade ser usado para aten ler aos interesses politicos ¢ eco- nOmicos dos negros. A partir desta época, as autoridades coloniais Simicos dos negros. A partir de 93 S681 ap eyoa.sod ‘eoreuref \ > A ESSENCIA DO ContRato puscaram formas de reduzir o impacto da participacao politica ne- a ~primeiro através de mudangas na estrutura governamental da {ha em 1854, depois com um imposto de capitacad sobre os eleito- resem 1859 ¢,finalmente, abolindo por completo o governo auté- nomo da Jamaica em 1866. —— O breve interltidio que separa esses momentos da emancipagao jamaicana, interlidio néo muito diferente da Reconstrugao nos Es- tados Unidos trinta anos depois, ajuda a situar o problema politico que a emancipagao representou para os britanicos em particular ¢ para as sociedades que abragavam os valores democraticos liberais em geral.? A proposta de Glenelg de fazer dos ex-escravos cidadaos nos termos de Frank Tannenbaum levanta duas questées que refi- nam ainda mais aquelas levantadas inicialmente pela declaragao de {ord Harris. A primeira: por queaigualdade e a participasio polt- tica foram m conside: adas “a esséncia do contrato entre a Gra-Bretanha eas colénias”? A segunda; por que esta politica foi abandonada tio depressa? A resposta 4 segunda pergunta pode ser mais que deter- ‘minada pela solugao da primeira, que em muitos aspectos é mais intrigante. A emancipagao dos escravos da Gra-Bretanha nao foi a primeira e até entao nenhuma adotara o igualitarismo racial como corolario moral ou politico necessdrio para a renincia a escravidao. Na verdade, como Tocqueville observara no norte dos EUA, local da primeira emancipagao de escravos das Américas, as vezes pare- cia que aqueles estados livres eram mais racistas do que os estados escravistas do Sul.* Entao o que foi diferente na experiéncia brita- nica ou, talvez mais exatamente, no momento de sua experiéncia, que tornou a igualdade racial uma caracterfstica contratual essen- cial de sua politica de emancipagao? Com uma melhor compreen- sao, daquilo que, para comecar, tornou possivel aquela polftica, seremos mais capazes de explicar seu rdpido recuo.* 95 a. THOMAS ©. HOLT Pode-se ficar tentado a explicar a politica de Glenelg simples. mente como expressio do idealismo da época, que estayg aes maré enchente depois do sucesso abolicionista. Mas, como crea demos em estudos anteriores do abolicionismo, 0 idealismo Nao ¢ transcendente em termos temporais; pelo contrdrio, est4 enraiza. do numa vida social que € historicamente especifica.* Assim, 0 idealismo também deve ser levado em conta em termos histérj. cos. De qualquer modo, 0 idealismo da doutrina de Glenelg nig parece ter brotado da anterior campanha antiescravista. Emborg alguns indivfduos possam ter desposado a democracia politica para r os ex-escravos, nada na campanha ‘abolicionista como tal ou nos debates no Parlamento indicou que os direitos politicos integrais para os negros se seguiriam como conseqiiéncia da emancipacio, Mais provavelmente, os abolicionistas britanicos teriam exigido 0 ditame esclarecido mas nada democrdtico de leis coloniais pelo governo metropolitano (sobre o qual esperariam exercer, de modo bastante sensato, mais influéncia do que sobre as colénias) do que confiado o destino da reforma aos processos politicos locais. Os abolicionistas nao fizeram protestos visiveis em 1839, por exem- plo, quando o Escritério Colonial apresentou propostas que pre- viam a eliminagdo total do governo democratico nas colénias nem se opuseram ao sistema colonial da Coroa onde este jd existia. Na verdade, alguns burocratas coloniais argumentaram que a restri- Gao e nao a expansio da democracia serviria melhor aos seus ¢s- forcos de administrar com eficiéncia a transigao da escravatura para o trabalho livre. Se nao foi por idealismo, entdo talvez a politica colonial iguali- tdria tenha sido ditada pela praticidade politica, uma trama dos burocratas coloniais para limitar 0 obstrucionismo dos donos de plantations cultivando em seu meio um bloco concorrente de po- 96 oo A ESSENCIA DO CONTRATO As discussdes entre Glenelg ¢ alguns governadores jamaicanos 4 sustentagio a este cendrio, mas tais discussdes nao re- numa politica coerente ou constante.” O Escritério Colo- | ae ter buscado, com suas idéias, uma abordagem moderada nial pe da politica das colénias, nem liberando demais 0 direito ee acedendo aos esforgos dos donos de plantations para de Ba Impunham-se aos candidatos a eleitores requisitos de pro- a ed we saldrio ow tributacao, mas, dadas as Testrig6es similares jo dleitorado da Gra-Bretanha, até um contemporaneo de idéias democrdticas 0s consideraria aceitéveis.* Na verdade, a queixa mais “ouvida na época era que na Jamaica o direito de voto era liberal demais! E verdade que, dada a avassaladora maioria da populace — ¢ 2 negra, estas exigéncias para o sufrégio auguravam uma potencial ~ 2 maioria eleitoral de proprietarios rurais negros livres, ainda que exclufssem das eleigdes a maioria dos negros. Em meados do sécu- laquele potencial politico negro parecia suficientemente real para que os responsdveis pela politica britanica comegassem a cogitar maneiras legais de reduzi-lo ou limita-lo.> a: jenelg € seus colegas conseguiam conceber a igualdade politi- caesocial como “esséncia” do contrato de emancipagio com os li- bertados nao por idealismo, pragmatismo ou excesso de desatencio, oe pane an i ee . mas porque aquela politica arti a evolugao mais am- pla, ou seja, com um momento espectfico da histéria do liberalismo ssnc0- A davida se 05 escravos libertados se tornariam cidadaos oi uma indagacao inerente ao século XIX. Seja qual tenha sido a Tesposta, ela ndo poderia sequer ter sido feita antes que a cidadania moderno no final do século XVIII e infcio do XIX aumentou a pro- babilidade de todas as emancipagées gerais de escravos. Assim que “nagao passou ase constituir de “cidadaos” com uma nacionalidade det. dio algum™ Ne (0s € Gifodonic. one a THOMAS C. HOLT em comum em vez de “stiditos” que tinham em comum a obedia, cia 4 monarquia, nao sé a base de inclusao ou exclusao ng na a necessariamente se transformou como também a questio da an dania como tal apresentou-se de modo inescapavel,10 Segunds Orlando Patterson, todos os sistemas escravistas invocaram algum tipo de processo ritual de incorporagao quando os escravos Passa. ram da “morte social” da servidao para a vida civil da liberdade,11 Mas podia-se supor que, desde que todos os habitantes de uma unj- dade politica fossem sujeitos firmemente situados dentro de uma hierarquia de status, a incorporagdo dos escravos libertados Nao traria ameagas 4 ordem social existente. A Era da | Revolugio, coat tudo, alterara a lgica, se nao os fatos, das relages sociais dentro das unidades politicas nacionais. Thomas Jefferson, talvez o Mais poderoso retérico da nova ideologia democrética, também foi um dos primeiros a sentir sua maior importancia: qualquer movimento para emancipar os escravos teria de enfrentar 0 problema de incor- pord-los como iguais numa sociedade livre. Como muitos outros que se seguiram, tal como os estados do Norte que realmente liberta- ram seus escravos, Jefferson, apesar de todos os seus preceitos con- trdrios 4 escraviddo, nao conseguia tolerar a perspectiva de cidadania igual para os ex-escravos.' O que seria impensavel nos primeiros estagios da Era da Revo- lugdo tornou-se mais provavel nos anos de seu Apice. Quando a Gra- Bretanha emancipou os escravos de suas possessdes nas {ndias Ocidentais, jé passara por meio século de torvelinho politico e eco- némico interno que nao s6 transformara em preocupagao impor- tantfssima as dificuldades de sustentar a ordem social ea legitimidade politica como também aprimorara suas idéias sobre o problema. As ordens sociais estaveis dependiam do cardter dos cidadaos que cons- tituam a organizacio politica e a estabilidade do carater dependia A ESSENCIA DO CONTRATO eficdcia das instituigdes bdsicas que formavam o cidadao. Por- a setores sociais diferentes e estratos de classe burgueses en- tants m terreno comum numa ideologia de domesticidade que definia€S feras separadas mas interdependentes para os homens ¢ as ppulhertss ditava os atributos da masculinidade e da feminilidade e tomnava © yinculo entre a vida domestica © o aparelho de Estado in dispensdvel para a ordem politica e social, assim como para a or- contraral dem econémica." Tanto o langamento da doutrina de Glenelg quanto seu recuo s4o produtos desta construgio ideolégica. O liberalismo classico ser- viu, para os responsdveis pela politica colonial, de guia essencial na garsigaodo escravismo para a mdo-de-obra livre. O abolicionismo caemancipagio foram, em grande parte, produto desta ideologias obriveram seu maior sucesso exatamente no momento em que ela_ pcan Se IA CRS SESS Ole een EEao ct se tornou hegem6nica no discurso publico, na politica ¢ na buro- cracia da Gra-Bretanha e enfrentaram sua crise mais s grave quando aideologia sofreu uma revisdo e um recuo nificativos." Assim comié @ transigao da escravatura ao trabalho assalariado pés a pro- ‘ya os prinefpios econdmicos do pensamento-democratico liberal clissico, a transigao de escravo a cidadao pés a prova seus princi- ios politicos. Para apresentar 0 argumento da forma’mais amp direta, a ideologia burguesa deu origem a experiéncia britanica com aemancipagao dos escravos simplesmente para que aquela experién- cia demonstrasse as contradig6es centrais da ideologia; a reacao do- ihinante a essa demonstragao foi um recuo geral e a reformulacdo jaa) liberdade burguesa. Neste sentido, entdo, os debates so- __ bre os programas politico € econ6mico adequados para as socieda- { | des tecém-emancipadas desnudaram questées relevantes para outras | | sociedades humanas que, nao fosse assim, poderiam permanecer inarticuladas, N Gok tr wo 99 Compete voute * Maths gah adage THOMAS C. HOLT POLITICA E SOCIEDADE NA TEORIA LIBERAL CLASSICA A ideologia liberal cldssica,\do modo como evoluiu até Mead ‘ 8 do século XIX, pressupunha um modelo de ordem social no qua I exis. tiam divisdes basicas e funcionais entre o Estado e a sociedade Civile entre a vida pablicae privada.'’ A atividade humana localizavasse em esferas sobrepostas mas diferentes: as atividades administrativas fe over. navam € reproduziam a vida social e econémica; a arena Piblica (dis. tinta tanto da sociedade civil quanto do Estado) onde transpirava g Tegra ou a elaboracdo das normas democritica e coletiva; e, finalmen. te, a esfera intima do lar, a familia patriarcal e conjugal, onde se ali- mentava a vida emocional. Uma inovacio fundamental desta teorig das relagdes sociais foi a idéia de que a sociedade civil cons: esfera privada, independente do Estado, animada por individuos ay. ténomos em vez de propriedades feudais que, em princfpio, cada um desses individuos tinha igual acesso e contri ‘ole de suas Pessoas, Tecursos € poderes, Em termos tedricos, cada Pessoa (mas, na Verda- de, cada homem) tinha Posi¢ao igual perante a lei, era capaz de acy. mular bens e recursos em quantidade ilimitada e €stava, portanto, livre Para maximizar seus ganhos de modo a satisfazer 0 apetite materia- lista inato. Dada esta Premissa, todas as interagées sociais relevantes Poderiam modelar-se segundo telacdes de troca e, como tais, ao mes- mo tempo promoverem-se ¢ regularem-se a si mesmas. Em resumo, sperava-se que o interesse Proprio individual, sem a inibigdo dos regulamentos do Estado, inspirasse maior esforgo e Produtividade, enriquecendo, assim, a Sociedade como um todo. A virtude piblica Seria gerada pelos vicios privados, Policiais do Estado; as atividades privadas (nao estatais) que titufa uma Mas a nogao de que a ordem social poderia firmar-se em torno Bandncia humana nio era livre de problemas, quer em termos da 100 A ESSENCIA DO CONTRATO os, quer como base da politica social real.'° Pelo menos teori- 10 anova ordem de relag6es de mercado teria de vincular-se oe ae base moral das relagées politicas. O Estado nao podia Og « desaparecers teria de ser reformulado e reposicionado. As- apena contrapartida politica do mercado econémico competitivo ¢ eS regulamenta a si mesmo seria a esfera ptiblica/o mercado de” ae ioes)Era uma esfera que fazia parte da sociedade civil mas dela eng ali dentro, os homens privados, instrufdos e detento- res de propriedade exerciam influéncia tanto sobre o Estado (cria- io das leis) quanto sobre a vida civil (os varios sistemas de troca econdmica ¢ social entre os individuos). Além disso, as relagées politicas € econémicas nao eram simplesmente complementares, no sentido em que ambas eram conceituadas como trocas entre sujei- tos auténomos; na verdade, estavam funcionalmente ligadas, j4 que a esfera econdmica privatizada e a esfera doméstica intima eram ambas terrenos basicos para configurar aqueles sujeitos individuais que entrariam na esfera publica. O terreno econémico/civil produ- tia homens com propriedades; o lar produzia homens reflexivos capazes de discurso civilizado e interagdes governadas por normas. Este processo de formagio do homem/cidadao é esbogado por Jurgen Habermas, que sugere que foi dentro da “interioridade da familia conjugal” que se desenvolveu a subjetividade necessaria para que os homens entrassem na esfera ptiblica como individuos auté6no- mos: “Afinal, as experiéncias sobre as quais o ptblico apaixonada- mente preocupado consigo mesmo buscava acordo e esclarecimento através do debate publico critico-racional das pessoas privadas en- tesibrotaram da fonte de uma subjetividade especifica. Esta ultima tinha seu lar, literalmente, na esfera da familia conjugal patriarcal.”” Ouseja, a subjetividade de homens independentes e reflexivos, for- ™ada na intimidade do lar, produziu as “opinides” civis que eram 101 a THOMAS C. HOLT trocadas como mercadorias neste mercado de discussig fa Gional; Dessas trocas saiu uma “opiniao publica” co} que surgiu tanto na Gra-Bretanha quanto no continente euro em fins do século XVIII, tornando-o, em termos temporaise ee mentais, precursor das revolugées politicas na Franga Nos a Unidos, da decolagem industrial da Gra-Bretanha e do mo: ft tics etiva, conte Estado, - . ee ee ViMenty abolicionista.!* Em muitos aspectos, a opiniao publica era yj Sta como reguladora da politica, compardvel ao papel que a “mio invisivel> de Adam Smith tinha na vida econémica. A legitimidade e a autor. dade da opiniao péblica dependiam, entretanto, da existéncia de um processo de troca aberta ¢ livre (ou seja, a democracia), Masa precondigao nao declarada desta troca democrética era A harmonia de propésitos ¢ de pressuposi¢Ges basicas dos participan- tes, que, por sua vez, s6 podia nascer da compatibilidade da telacig de cada sujeito com 0 todo. Assim, desde o princfpio foi condi¢io essencial da admissio na esfera publica de criagdo de regras ser um homem instrufdo com propriedades (em talentos ou terras); isso asseguraria. 0 compromisso igual com a preservacao de uma ordem_ social que garantia a propriedade.” Também essencial para este | discurso liberal foi a pressuposigao de que tais cidadaos seriam a | progénie de uma esfera intima, a fam{lia conjugal e patriarcal, pois | era ali que os desejos e ambig6es inatos de progresso pessoal torna- _ de algum modo compativeis ou, de forma bastante literal, domesticados. Em suma, entao, as trocas “livres” e abertas na esfera publica presumiam a homogeneidade dos participantes, a mutualidade dos interesses fundamentais e, além disso, a possibilidade de discutir as diferengas.”” Conseqiientemente, a vida politica (e a pratica demo cratica) dependia, em iiltima instancia, da similaridade da localiza- 40 dos cidadaos dentro da ordem social’ € em relagéo a ela. Em 102 A ESSENCIA DO CONTRATO embora fosse necess4ria.a-ordem politica democrtica para 0 , cs jenn 1 esfera privada auténoma da invasio do Estado ou das reger 2 ; ae j Sti, ed des feudais antag6nicas, as exclusdes sistematicas do ter- r datomada de decisées (a esfera publica) eram necessdrias para nt = aquela mesma ordem social dos questionamentos dos Te eee Com o tempo, os critérios de admissdo poderiam Eee mas 0 teste ou princfpio fundamental continuava a ser a recémn-admitidos nao ameagassem a ordem social. aera claro, uma contradigao aparente entre o autocontrole eaautonomia envolyidos no liberalismo econémico e o desapos- samento obviamente seletivo inerente a constitui¢ao da esfera polf- {ica. Todos os membros da sociedade eram ndo s6 aceitaveis como compelidos a participar das trocas econémicas na‘ esfera civih, mas s6 os homens instrufdos e com propriedades seriam passiveis de admissio naesfera piblica, que controlava as fung6es de elabora- cao dasnormas para toda a sociedade. Esta contradig4o poderia ser conciliada de duas maneiras: definindo-se, de jure, um sistema no qual houvesse igualdade de oportunidades para a possivel inclusdo ou retragando-se as fronteiras da participagdo, de modo que algu- mas pessoas ou grupos fossem definidos, de facto, fora da esfera piblica em virtude de seu afastamento daqueles atributos humanos “naturais” ou inatos que equipavam os considerados aceitaveis.” E claro que, em termos hist6ricos, as fronteiras foram determinadas de modo a excluir categorias sociais inteiras — raciais, nacionais, Sexuais ¢ de classe — consideradas elementos “residuais” da ordem social. Na época da emancipagio, contudo, a pressuposicao em “igor entre as clites concernentes era que todos os homens seriam “pazes de se aproveitar das oportunidades supostamente iguais de Adguirr Propriedades, instrugao ou habilidades que lhes confeririam aadmissio na esfera publica, 103 Sn Apesar desta fé secular, a transicao da sociedade escravisty sociedade livre acabaria por expor as contradig6es da ideologies Una que encontraram expresso nos esforgos da burocracia aise formular a politica de emancipagao. A formacio de uma wdated vre exigia primeiro a criagio de pessoas com valores burgueses, ade fi, por sua vez, exigia a intromissio estatal com dimensoes total; cs ue, esfera social. Mas as politicas realmente implementadas, que eae LS ram reformas da educagio, da tributagao e do recrutamento de = de-obra, empregaram meios indiretos € nao diretos para atin, = fins e, de modo coerente com suas pressuposicSes ideol6gicas, pn Ponsdveis pela politica subestimaram a forga da cultura e da classe come fatores a configurar 0 desejo humano ¢ as relagées sociais. Além disso havia uma contradi¢io gritante entre a no¢ao de que os trabalhadores imitariam a esfera privada burguesa e a exigéncia dos donos de plan. tations de controlar o trabalho de familias inteiras. Essas contradicoes minaram os projetos britanicos de sociedade democratica liberal; a po Iitica empregada nao conseguiu fazer dos escravos um proletariado feliz nem transformar os donos de escravos em empregadores burgueses, | Desses fracassos nasceram reformulagées racistas da doutrina liberal fundamental que suprimiam suas contradi¢6es inerentes. No proceso \ de tentar prever e legislar como, na frase c4ustica do governador Harris, uma sociedade poderia se formar ¢ ao mesmo tempo libertar uma raga, ‘os responsdveis pela politica britanica deixaram expostos, assim, a na- tureza ¢ os limites de sua visdo. 12a S\d> Bel oO proedur« ale Avaniiporee * THOMAS ©. HOLT Saget A (Ufo byt MU & "Veh A DEMOCRACIA LIBERAL E A EMANCIPACAO NA JAMAICA O ceticismo sobre a aplicacio da teoria democratica liberal ao PEO” blema da emancipagao, ou pelo menos sobre o modo desta aplics- 104 A ESSENCIA DO CONTRATO quase desde o principio, um tema surdo da oposigao nas 50, foi J ses da politica colonial da Gri-Bretanha. Quase ao mes- geliberss da declaragao de Glenelg sobre a politica de “igualdade 9 temp ae -governador j jamaicano e proprietério ausente de sua total” ye o marqués de Sligo, ressaltou as armadilhas de realizar Bein social completa naquela ilha sob tais auspicios. uma Em verdade, nao hé justiga nas instituig6es locais gerais da Jamaica; pois nfo ha opiniao Piblica § & qual se possa apelar. A escravidao dividin a sociedade em duas classes; a uma, deu poder, mas a outra nao estendeu a protegao. Uma dessas classes est4 acima da opiniao piblica ea outra, abaixo; nenhuma delas, portanto, sofre sua influén- alas muito de se temer que, devidoa falta de simpatia entre e elas, i falta de dependéncia e confianga miitua, a classe mais pobre ser capaz de atender as necessidades da vida sem nenhuma rogatéria a classe mais alta, jamais exista na Jamaica, nem em qualquer outra colénia escravista, uma comunidade de sentimentos sobre a qual a opinido publica possa funcionar de forma benéfica.2* O fato de oaristocrdtico Sligo apresentar uma andlise da ordem social jamaicana repleta do dogma do liberalismo classico indica como tais nog6es tinham se tornado hegemé6nicas ¢ até lugares-comuns em fins da década de 1830. Mas sua diivida sobre a aplicacao pratica da doutrina liberal nas condigées sociais jamaicanas deixa expostas também as contradigées gerais subjacentes. Sligo admitia quea opi- nido piblica desinteressada era Arbitro essencial dos snp na sociedade moderna Est opin opiniao dependia, no en- tanto, tanto, da existéncia de uma esfera piblica constitufda de individuos 'nstruidos, privados e com propriedades que pudessem envolver-se no que Habermas descreveria como debate racional nao antag6ni- 105 ai THOMAS C. HOLT Co, que seria o tinico caminho para a verdade e para y, publica sélida e imparcial. Nao existia na Jamaica esta esferg ca e, portanto, nenhuma “publicidade”, porque a escravidge duzira uma sociedade dividida entre poderosos e desp Totegidg, dominandoa esfera publica, 0s outros fora dela. Nenhum ae is, uns ser alcangado pela opinido ponderada e, conseqiienteme havia base social na sociedade para a legitimidade politica, Eray situagdo que ameagava qualquer esforgo de reforma Lacan autorizada. Além disso, sob as condigdes jamaicanas (isto 6, are cimento de seu campesinato independente), nao havia Sequer oefeity moderador dos lagos econédmicos como os que se podiam encon. trar nas reas rurais da Gra-Bretanha, onde uma classe dependia dy Outra para sua subsisténcia ¢ assim ambas estavam submetidas a in. fluéncias mituas. Em vez disso, duas classes hostis com interesses antagénicos enfrentavam-se num vacuo social. £ claro que a ironia € que a contradi¢ao fundamental que Sligo podia ver com tamanha clareza na Jamaica logo romperia a fachada de autoconfianga do discurso liberal também na metrépole. oy ESS Quase ao mesmo tempo da publicagao do panfleto anénimo de Sligo, Henry Taylor, lider da divisio das Indias Ocidentais do Escri- tério Colonial, redigiu uma critica muito semelhante da sociedade jamaicana que visava a persuadir Glenelg a abandonar sua politica racialmente igualitéria e impor o dom{nio colonial da Coroa em todas as Indias Ocidentais, Veterano dos esforcos gorados para con- vencer os donos de plantations a melhorar as condigées de vida dos escravos na década de 1820, assim como do fracasso do sistema de aprendizagem para a transigdo suave da escravidéo 4 liberdade, Taylor concluira em 1838 que as assembléias legislativas das fis Ocidentais eram, “por sua constituicdo e pela natureza das socied des para as quais legislavam, absolutamente incompetentes € inade- ma Politics Pre te, ng 106 a

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