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A dimenséo cultural da literatura em Terras e gentes Evelina Hoisel (UFBA) Ao assumir o impacto do debate que vinha se desenvolvendo nos congressos da Associagio Brasileira de Literatura Comparada desde 1990, em Belo Horizonte, a temitica proposta para o VI Congreso da Abralic - Literatura Comparada = Estudos Cultu- rais? ~, realizado em 1998, na cidade de Florianépolis, estampou com bastante evidéncia os limiares que interligam a Literatura Com- parada e outras produgdes eulturais, confirmando uma postura te- Grico-critica que pressupde.a interlocugao disciplinar, o reconheci~ mento de vozes emergentes na cena politico-cultural, a multiplicidade, a transdisciplinaridade, a releitura das formagdes identitarias, a revisiio de pressupostos firmados pel moder estética no campo das Letra ‘O VI.Congresso representou o dpice de uma tendéncia que ja se apresentava desde o aparecimento da Abralic, mas que se tornou mais 1 continua a partir do V Congreso, em virtude do proprio aabelecido para o evento: Canones & contextos. Desde 0 seu surgimento, no contexto cultural da deada de 80, a Abralic impOs aos estudos comparatistas brasileiros uma reflexiio bastante fecunda sobre suas perspectivas teéricas ¢ criticas, desviando-se de uma ética eurocéntrica ¢ fazendo emergirem outros objetos de investigagiio, como as literaturas latino-americanas. Por sua vez, a0 suscitar um questionamento dos cfinones literirios e artisticos, passa a dar énfase a0 didlogo entre arte ¢ cultura, deslocando o privilégio que sempre se concedeu darte em detrimento das demais produgdes culturais. Ao incorporar tais questdes, a Abralic traz para o seu espago determinadas tendéncias ¢ transformagées que ja s 1no censrio brasileiro com os processos de democratizagio. Esses anunciavam 84° Revista Brasiera de Litera Compara 8, 2006, processos, ja apontados por Silviano Santiago em seu ensaio “De- ‘mocratizagiio no Brasil ~ 1979-1981: cultura versus arte” (SANTIA- GO, 1988), tragam os contomnos do cendrio no qual situa-se a Abralic quando foi fundada, em 1984, ¢ passam a delinear determinadas mar- cas de sua atuuagio ao longo de vinte ¢ um anos de existéncia’ . Pode-se entio verificar em que medida o debate que vinha sendo travado no mbito da Associagiio, desde o seu aparecimento, 1no sentido de preservar 0 espago dos estudos especificamente literd- rios contra a prevaléncia da dimensio cultural, estd patente na reali- zagio do VII Congresso. Na Abrilic, este debate manifesta-se com mais contundéncia a partir da defesa da manutengaio de um espaco disciplinar fechado para os estudos literdrios, empreendida por fra- Gio dos professores e pesquisadores associados, e ganhou grande visibilidade através do ensaio de Leyla Perrone-Moisés, intitulado “Que fim levou a critica literiria?”, publicado no caderno “Mais!”, da Fotha de S. Paulo, em 25 de agosto de 1996, logo apés 0 encerra- mento do V Congresso, no Rio de Janeiro. Este debate pode ser flagrado de diversas maneiras. Inicial- mente, através do mapeamento dos niimeros da Revista Brasileira de Literatura Comparada, como um dos espagos para 0 questionamento das segmentagdes disciplinares institufdas no cam- po dos estudos literdrios em geral — teoria, literatura brasilvira, lite- raturas estrangeiras, historiografia literdria -, € no da literatura comparada em particular, Uma outra maneira de acompanhar este debate é através dos artigos que trazem para 0 espago dos estudos literdrios elementos da esfera cultural que pOem em questo nogdes como as de cinone ¢ de literariedade, Finalmente, em um terceiro momento, 0 debate aparece de maneira explicita ¢ coincide com a aproximagio entre a Literatura Comparada e os Estudos Culturais, irculando de maneira estampada nos textos de Eneida Maria de Sou- zae de Wander Melo Miranda, publicados no quarto nimero da Re- vista? Interessa-nos aqui verificar em que medida este debate ap: rece na cena do VII Congresso Internacional da Abralic, realizado em Salvador, Bahia, no ano 2000, ¢ tomamos como pretexto para refletir sobre esta problemitica uma matéria jornalistica que afirma que “o evento apresenta lista de tematicas semelhante a um encon- tro de Ciéncias Humanas, com um total de 900 trabalhos insei "Exons og ftns por rs Hose nas dveagdo the mesrado Cen inp ad: ves do psn ‘ats contenporineo nt Abra ‘ge trata do debate dsciphnae fax Awoxiagdo,focliando Aiversidade de abordagens, fhjotose boris ted brigados sob a rubrica de Licratura Compara, HOISEL,tisde Cana Conasindisciplinals: verte tes do pensamento critico contemporineo na Abralie 2001, 2008 SF Diserta30. (Mesiradoem Letras. Insti sdoLatas, Universidade Feral RIBEIRO, Carlo, Silvano Santiago: Con a dtadura do soa, A Tad, Salvador, 20 Jul 2000, Cadeno 2. * RIBEIRO, Cats. Si Santiago: Conraa didra lo ‘enone A Tad, Salva, 20, ji. 2000, Caer 2 {A dimensto cultural da iterauura em Terras e gentes 89. do termo. Ao ser indagado sobre a importincia do VU Congreso, destaca como “o titulo Terras ¢ gentes traduz no s6 a questiio do moe do nacionalismo, do universal e do particular, como. dade de encarar sem medo as grandes questies humanas do nosso tempo”?. Trata-se, portanto, de explorar a dimensio cultural da literatu- ra, a qual s6 poderd se efetivar no momento em que se trouxer 3 tona © que esta recaleado, Caso contrario, nfo havera didlogo, como alerta Silviano Santiago, apontando, logo em seguida, para a ne- cessidade do questionamento da idéia de cAnone literario, uma vez que 0 canone € “todo-poderoso e ditatorial”. Se a palavra gente é um coletivo e ja denota um sentido plural, ao aparecer no titulo do Congreso com a particula indicadora de niimero — gentes — pro- cura dar conta das diversas expressdes culturais que nfo formam. reconhecido pelas sada, como a ditadura do cinone, Afirma Silviano que ~A questio é nio colocar a estética de Joyce como ditatorial. Ele um maravilhoso romancista, mas 0 que eu figo com os que nao io Joyce? Por exemplo, com a literatura das mulheres, dos ne- _2f0s, dos indigenas, ¢ as minorias sexuais? Essas expressOes ar Uisticas deveriam ficar para sempre no limbo da histéria? Ou de- vemos resgaté-tas™® icando esse vi antropoldgico, a conferéncia pronuncia- da por Silviano Santiago na abertura de Terras e gentes, na Reitoria da Universidade Federal da Bahia, no dia 25 de julho de 2000, tratou do modo como um etndgrafo, Claude Lévi-Strauss, desenvolveu 0 tema da viagem transatldntica — da Europa ao Brasil -¢ doméstica — de Sio Paulo A Amazénia -, considerando os seus equivocos € os seus acertos na interpretago do Brasil. Na sua leitura, destacam-se as armadilhas da diferenga nas quais pode cair 0 antropslogo que, mesmo alerta, termina incorrendo em preconceitos, nao se libertan- do, no contato com 0 outro € com a diferenga, dle seu eurocéntrico quadro de referéncia, Ampliando ainda mais esta problematica a ainda ressaltar que uma das programagées culturais de Terras ¢ gen- tes {oi a exposicao fotogrifica de Pierre Verger, realizada no casaro antigo onde funciona o Conjunto Cultural da Caixa Econémica Fe- deral, situado na parte antiga da cidade de Salvador. Se para Pierre intropolégica, vale 90 RevistaBrasileim de Literatura Comper 82006 Verger as viagens constituem uma reserva de souvenirs visuais, a cidade de Salvador foi para ele uma imensa reserva de imagens, ros tos, corpos, gentes ~ figuras que compdem a sua vasta produgdo, primordialmente os seus Retratos da Bahia ~ express6es que ele captou com a su Rolleiflex e que to bem registram iconicamente aS questdes diasporicas tratadas em seus livros, com 0 objetivo de desvelar 0 fluxo e 0 refluxo do trifieo dos escravos. Trafico que Pierre Verger estudou minuciosamente através de suas pesquisas, repensando as relagdes Brasil-Atrica em seus diversos meandros, mas elegendo as imagens corporais como forma de registrar a cordi- alidade baiana e de representar a sensualidade que ele percebia nos negros que encontrou nos bairros popukires de Salvador e que fize- ram com que mergulhasse, através do olhar, nas diferengas culturais. Diferencas que nao sio apenas étnicas e religiosas ~ uma das constantes preocupagdes de Verger & 0 culto dos orixas € voduns ~, mas que passam também pelo crivo das relagdes homoerdticas tal a libido que se manifesta através do olhar que capta a beleza dos «li versos rostos masculinos, figuras vivas do desejo, Este aspecto tem sido observado e considerado pelos eriticos da produgdo fotogritica de Pierre Verger ao estudarem a galeria de tipos e a multiplicidade de registros da presenga masculina em sua obra. Dessa maneira, a exposigio fotogrifica do antropélogo foi mais um fio atecer o cend rio de Terras ¢ gentes, integrando-se plenamente as atividades cien- tifieas e & temstica do evento, retomando-se ainda por esse viés al- guns dos esterestipos da baianidade ~ cordialidade, sensualidade, negritude — que a organizagaio do evento pretendia expor e, simulta neamente, desconstruir, O jornal Gazeta Mercantil, poucos dias apés 0 término do VIL Congreso, divulga uma matéria em pagina dedicada 4 Antropologia (sexta-feira, dia 4, e caderno “Fim de Semana”, 5 6 de agosto de 2000), intitulada “Sociedade dz tradugdo0”, destacando as figuras de ‘Stuart Hall e Paul Gilroy. Abaixo das fotos dos dois especialistas sobre multiculturalismo e didspora negra, inscreve-se a seguinte rubrica: as em congresso de literatura”, evidenciando assim o caréter das discuss6es trazidas a cena de Terras e gentes. Na repor- tagem, so apresentadas sumariamente algumas idéias de dois dos renomados convidados da Abralic, através das quais se pode perceber como, da dtica desses especialistas, o Brasil e a Bahia representam uma reserva de questdes idemtitarias e étnicas que precisam ser pensadis, {A dimensdo cultura da iterawea om Terras e gemtes on Nesta reportagem, Stuart Hall afirma ser o cendrio baiano o espaco ideal para se entender o carter mutante do conceito de iden- tidade cultural, vez.que esta jamais se completa, e as culturas nunca do uniformes, ressaltando ainda 0 modo como as culturas domina das, desde os primeiros esforgos de colonizagio na Antiguidade, tm deixado indeléveis marcas nos seus invasores. Embora estejam na América mestiga as maiores evidéncias da dindmica cultural, a globatizago também tem servido para transfigurar o cendrio mund al. Na perspectiva atual da globalizagio, salienta Stuart Hall, obser- va-se uma inverso do fluxo original — que se efetuava na diregio da ‘metrépole para as margens ~, uma vez que a grande mobilidade f ca que caracteriza a cena contemporanea traz a periferia para a mé tr6pole, onde “tudo vai se ‘crioulizando™. Ao procedermos a leitura dos demais jornais de Salvador ou do pats que deram cobertura & realizagio de Terrase gentes, verif camos que os destaques estzo sempre voltados para questdes como identidade cultural, etnicidade, didspora africana género, Foi dess:t maneira que os midia colocaram em circulagio os “diferentes mo- dos de comparat” ~ titulo da matéria do Correio Brasiliense, cader- no Pensar— levando para 0 espago piiblico alguns questionamentos ¢ polémicas que foram travadas no Ambito dos congressos anterio- res da Abralic, polémicas essas assumidas explicitamente pelo con- gresso da Bahia. Assim, Stuart Hall, Paul Gilroy, Gayatri Spivak, Robert Young. convidadlos internacionais, e Silviano Santiago sio as principais fi- guras postas em circulugio, através das matérias que colocam em evidéncia a temitica proposta para 0 Terras ¢ gentes, fazendo tam- bém aluso ao debate disciplinar, sem contudo se adentrarem em seus diversos meandros. Referenciamos aqui alguns dos principais titulos das matérias: “A Bahia e Hall”, focalizando questdes de iden- {idade cultural; “Encontro com notaveis”, destacando a vertente cul- tural e étnica do VI Congresso ¢ trazendo também depoimento dit vice-presidente da Abralic e uma das responsiveis pela organizagio do evento, Eneida Leal Cunha. Todas estas matérias foram publicadas no Correio da Bahia/Folha da Bahia, durante a realizagio de Terras © gentes. Neste bloco de publicagdes, esté também inclufda a entrevista ‘com Silviano Santiago, jé citada anteriormente, e publicada no jor- nal A Tarde, Antes do evento, em abril de 2000, 0 mesmo jornal 92 Revista Brasilia de Literatura Compara, 200% Correio da Bahia publicava uma reportagem sobre Stuart Hall intitulada “Papa dos estudos culturais vem a Salvador” € uma ent ‘a com Liv Sovik, membro da diretoria da Abralic ¢ integrante da comissio organizadora do VII Congresso, que estampava 0 titulo “Hall € um intelectual politico sem dogmatismo™ (11 de abril de 2000). das vozes inquietas com a efervescéncia te6- tica e cultural que ja se anunciara na Abralic em momen- tos anteriores repercute nos bastidores do VII Congressoe vem a piiblico através de algumas matérias jornalisticas que deram co- bertura ao evento, como a do jornalista do Correio Brasi caderno Pensar, referida anteriormente. Ainda como uma voz que se insurge contra a proposta cultural do Terras e gentes, pode-se destacar a surpreendente entrevista de Affonso Romano de Sant*Anna, publicada no Caderno 2 do jomnal A Tarde, que consi- dera o VII Congresso como um modismo, uma “cépia americi ingénua”, ignorando o cansago da despolitizagao cultural.” Apesar das vozes discordantes, Terrase gentes adentrou-se em questdes que afirmam o didlogo eo entrecruzamento entre estu- dos literérios € estudos culturais, fazendo do espago limiar & interdisciplinar, j4 anunciado desde 0 I Congreso, uma efetiva rede de trocas e de interlocugdes que abalam e desconstroem a antiga perspectiva positivista, calcada em um desejo de fixar os saberes através de uma disciplinarizagéio do conhecimento. A prépria const tuigdo da Abralic, sempre em trinsito espacial entre as diversas ins- lituigdes € os territérios geogrificos nos quais aporta a cada dois ‘anos, expande-se através dos trinsitos epistémicos ¢ interdisciplinares, pondo em disilogo as mais diversas formas de saber, fazendo implod os limites disciplinares. A partir dessas pontuagGes, pode-se perceber que o VII Con- gresso foi montado dentro de um campo de forgas que caracter zou a Associagio de estudiosos desde a sua criagio, em 1986, mas cujos impasses foram sinteticamente explicitados doze anos de- pois, na pergunta do VI Congreso: Literatura Comparada = E: tudos Culturais? Ao formular a questao dessa maneira, percebe-se_ © desejo de equacionar o impasse, de afirmar o miltiplo ¢ a disso- lugdo das fronteiras entre os saberes. Nesse sentido, vale a pena observar a fala com que o presidente da Abralic, Raul Antelo, abriu ‘© evento, afirmando que ele comportava 0 “puro ¢ o impuro”, no iense, * COLLING, Leandro. Liv Sovik: Hall € wn sntecctad politico sem dogmatism Core da Babi Salva, 1 she 20, Fla i pS, RIBEIRO, Carls. Affonso Romano de Sant’ Anna O Brasil € uma aionese que deca. Tarde, Salar 10 jul 2004, Cademo 2, ABRALIC: Literatura Parada = Estudos Cul 19, Santa Catarina, Santa Catarina: NELIC, rep, ANTELO. Raul Discursde abertua, fu; CONGRESO Con Nb 198, A dimnsio raura em Terras ¢ genes 98 se mostrando desconfiado perante a “equagio que vincula a litera tura comparada aos estudos culturais™. E assim que 0 cenario de Salvador—Bahia, no ano 2000, ofe- rece os ingredientes para que as diversas dimensées da cultura se- jam a grande personagem no palco de Terras ¢ gentes. Inicialmen- te, por se tratar de uma estratégia de reversio, no apenas por verter temporariamente 0 pélo recaleado para que ele possa vir 4 tona, conforme nos ensinaram Friedrich Nietzsche e Jacques Derrida, mas, especialmente, pelo convite ¢ estimulo demergéncia dos muitos avessos recaleados, Se o VII Congresso privilegiou a vertente cultural, foi como uma estratégia de reversiio das classifi- cagdes instituidas ¢ como um apelo politico, intelectual e académi- co ao resgate e A dignificagio de uma meméria/histéria recaleada que precisa vir A tona em suas maltiplas manifestagdes..

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