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-- -xto € 0 primeiro de uma pesquisa 2, Titegrando o projeto de uma exposicao sobre Seer Museu de Folclore Edison Carneiro. Os dados RAF etenrsdos si fvto de pesquisa de compo realizada “ent 1996, incorporando também documentagio relativa a 1997, 1998 e um pouco do material de 1999, quando voltei 20 campo. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Instituto de Filosofia © Ciencias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRD Rua Sambaiba, 238/302 2450-140 Rio de Janeiro — RJ Brasil CAVALCANTI, ML. V. de C:'O Boi-Bumba de Parintins, Amazonas: breve historia e etnografia dda festa’ Histéria, Giéneias, Savile — Manguinbos, vol. VI (uplemento), 1019-1046, setembro 2000 0 festival dos Bois-Bumbas de Parintins (AM) alcangou nos titimos anos dimensdes massivas, conjugando, de modo inesperado e criativo, padiOes ¢ temas culturais tradicionais a procedimentas ¢ abordagens modemizantes. E hoje uma das grandes manifestagdes populares do Norte do Brasil, atraindo milhares de pessoas nao s6 de Manaus (a capital do estado) ¢ cidades proximas, como de diversas partes do pais. O artigo analisa-o a partir de uma perspectiva antropol6gica, centrada no estudo dos rituais, Tece consideragoes sobre o estudo e a historia do folguedo no Brasil. Empreende uma etnografia do festival, situando-o no contexto da regiao amaz6nica e examinando a trajet6ria percorrida desde sua criagio aos dias atuais, Sugere, finalmente, a interpretagio do Bumba como um ‘novo nativismo que, a0 Valorizar as raizes regionais indigenas, afirma positivamente un identidade cultural cabocla. PALAVRAS-CHAVE: ritual, Parintins/Amaz& cultura popular, Boi-Bumbé, nativismo. CAVALCANTI, M. L. V. de C.: ‘Boi-Bumbsa in Parintins, Amazonas: a brief history and ‘ethnography of the festival Histéria, Cténcias, Savide — Manguinbos, vol. VI (suplemento), 1019-1046, September 2000. In recent years, the Bot-Bumbd festtval in Parintins, in the state of Amazonas, has reached massive proportions, In surprising and creative ways, the festival mixes traditional cultural patterns and themes together with ‘modernizing procedures and approaches. It bas now become a major expression of popular culture in North Brazil, drawing thousands of people not only from the state capital of Manaus ‘and neariyy cities but also from all over the country. The article analyzes the Boi-Bumba Jrom an anthropological perspective, centered ‘on the study of rituals and including observations on the study and bistory of folguedo in Brazil. Looking from an ethnographic angle, the article situates the {festival in the context of the Amazon and ‘examines the road taken from its creation to today. In conclusion, the Bumbd is interpreted ‘as a new nativism that serves as a positive affirmation of cabocta cultural identity by valuing indigenous regional roots. KEYWORDS: ritual, Parintins/Amazon, popular culture, Bot-Bumba, nativism ‘SETEMBRO 2000 1019 MARIA LAURA V. B CASTRO CAVALCANTI P arintins € uma pequena cidade, situada na ilha deTupinamba- rana, no estado do Amazonas, bem préxima a fronteira com o Par, na regio conhecida como o médio rio Amazonas. A pacata cidade transfigura-se anualmente para abrigar uma festa espetacular: o festival dos Bois-Bumbas. O festival acontece nas trés tiltimas noi- tes do més de junho, e organiza-se em torno da competigao entre dois grupos de Bois: Boi Garantido, boi branco com 0 coracio vermelho na testa, cujas cores emblemiticas s3o 0 vermelho e o branco; e Boi Caprichoso, boi preto com a estrela azul na testa, cujas cores sao 0 preto e 0 azul. Esse festival alcancgou nos dltimos anos dimensdes massivas, conjugando, de modo inesperado e criativo, padrées e temas culturais tradicionais a procedimentos e abordagens modemizantes. E hoje uma das grandes manifestagdes populares do Norte do Brasil, atraindo milhares de pessoas nao s6 de Manaus (a capital do estado) e cidades proximas, como de diversas partes do pais. Nos anos recentes, essa ‘brincadeira do boi’ foi eleita como bandeira de uma identidade cultural regional. Esse alcance, a tensa relacto estabelecida entre permanéncia e mudanca, bem como a beleza artistica dos Bumbas de Parintins suscitam o interesse pela anilise de seu sentido cultural profundo. Seu estudo traz também questdes amplas para a andllise da cultura e dos rituais. Na evolugao recente do Bumba de Parintins, ressalta- $e a participacao da midia, da industria cultural e do turismo, de agéncias governamentais e amplas camadas sociais numa festa que mantém fortes caracteristicas tradicionais. No viés romAntico de anilise, a cultura popular é freqiientemente o abrigo nostalgico de um mundo harmonioso, ameagado pela época moderna. Nessa perspectiva, festas espetaculares e comercializadas tendem a ser vistas como deturpagdes de uma autenticidade original. A abordagem aqui proposta vé, ao contrario, a evolugo do Bumba, a semelhanga do desfile carnavalesco das escolas de samba cariocas, como um exemplo extraordinario da capacidade de transformacio e da atualidade da cultura popular no Brasil (Cavalcanti, 1999, 1994). Para tanto, nosso ponto de partida é uma perspectiva antropolégica centrada no estudo dos rituais.' O objeto é a festa entendida como um. fato social total (Mauss, 1978), tal como hoje se expressa, com sua intensa capacidade de integracdo cultural e com os problemas ¢ contradigdes inerentes & sua expanstio. O Bumba de Parintins é um proceso ritual amplo, articulando diferentes niveis e dimensdes de cultura € acompanhando no tempo 0 movimento da sociedade que 0 promove. Formas artisticas, grupos e camadas sociais diferenciados nele interagem. E mais um dos fascinantes lugares de tensa ¢ intensa troca cultural, tao caracteristicos da cultura brasileira. O universo simbélico do Bumbé é, entretanto, denso e sutil como uma floresta. O Boi-Bumbé, ou simplesmente o Bumbé, 1020 HISTORIA, CIENCIAS, SAUDE Vol. VI (suplemento) © BOL-BUMBA DE PARINTINS de Parintins é uma entre as diversas formas da brincadeira do boi, cuja historia no pais remonta a meados do século XIX. Essa continuidade histérica implica significagdes e ressignificagdes permanentes, pontos de ruptura e alteragdes de contexto e de sentido que interessam a pesquisa apreender. Pedindo licenca para adentré-lo, teco inicialmente algumas consideragdes sobre o estudo e a hist6ria do folguedo no Brasil. Empreendo em seguida uma etnografia do festival de Parintins. Sugiro, finalmente, a interpretagio do Bumba de Parintins como um novo nativismo que, ao valorizar as raizes regionais indigenas, afirma positivamente uma identidade cultural ‘cabocla’. A brincadeira do boi no Brasil A primeira referéncia escrita conhecida a brincadeira do boi no pais data de 1840 e vem do Recife. E 0 artigo ‘A estultice do Bumba- meu-boi’, do frei Miguel do Sacramento Lopes Gama, beneditino secularizado que redigia o jornal O Carapuceiro na cidade do Recife (Lopes Gama, 1996). Como o titulo sugere, nao se trata propriamente de uma descrigéo, mas antes de comentarios soltos ¢ argutos que servem de pretexto a um sermao diante do escdrnio ao personagem do sacerdote no folguedo. A indignagao do frei (deveras precon- ceituosa e também muito engracada) j4 permite entrever o carater fragmentario da encena¢io, qualificada pejorativamente como um “agregado de disparates” e sua maleabilidade para a introdugao de novos personagens ao enredo. Seria esse 0 caso do padre, cuja presenga em cena, segundo o testemunho do frei, dataria dos anos mais recentes. A segunda referéncia data de 1859, e vem de Manaus. ado médico-viajante Avé-Lallémant (1961, p. 106) de um Bumbé presen- ciado naquela cidade? um “cortejo pagio”, introduzido no seio de “festa catdlica”, em homenagem a sao Pedro e sao Paulo. A descri¢io destaca a danga do boi com 0 pajé ao ritmo do maracd, a “morte” do boi, os “maravilhosos efeitos de luz” provocados pelos archotes durante a danga em volta do boi “morto”. © personagem do padre estava entao proibido. Impressionou-o também a beleza e ousadia da fantasia do brincante travestido em “mulher” do tuxaua (chefe indigena). O viajante viu no Bumb, “com seus coros ¢ saltos cuida- dosamente cadenciados, algo atraente, algo de lidima poesia selvagem” No intervalo de tempo entre essas duas descrigdes, Vicente Salles (1970, pp. 27-9) encontrou registros do Bumbé em jornais de Belém e de Obidos, datados de 1850. A referéncia ao folguedo no mesmo ano, em cidades bastante distantes uma da outra, su- gere sua ampla difusao na Amaz6nia em meados do século XIX. © autor assinala ainda os tracos proprios do Bumba no Norte, j SETEMBRO 2000 1021 MARIA LAURA V, DE CASTRO CAVALCANTI bem definidos por ocasilo da descric&o de 1859. Esses fatos favorecem a percep¢io da diversidade da brincadeira j4 em seus primérdios, ¢ sugerem sua disseminacio simultinea em varias provincias brasileiras na segunda metade do século XIX? Os nomes, as formas e o estudo do boi A brincadeira do boi tem fascinado e desafiado geracdes de estudiosos. Suas diversidade e maleabilidade a diferentes contextos socioculturais parecem-me essenciais para a sua compreensao. ‘A brincadeira ganhou muitos nomes no pais, correspondentes, ‘grosso modo, 2s variantes regionais existentes. Boi-Bumbé, no Amazonas e no Para; Bumba-meu-boi, no Maranhiao; Boi Calemba, no Rio Grande do Norte; Cavalo-Marinho, na Paraiba; Bumba de reis ou Reis de boi, no Espirito Santo; Boi Pintadinho, no Rio de Janeiro; Boi de mamao, em Santa Catarina.! Sua insergao no calendirio festivo anual do catolicismo popular é também diferenciada. No Norte do pais, 0 folguedo acontece no ciclo junino; no Nordeste, ele encontra abrigo no ciclo natalino. No Sudeste, especialmente no Rio de Janeiro, ele ocorre muitas vezes durante o carnaval. Vale notar a presenga do folguedo nos trés ci- clos festivos mais importantes do pais.> Nessa diversidade, ha entretanto unidade e pontos de confluénci: A brincadeira do boi remete sempre a uma forma tradicional de teatro popular: a encenacio por pequenos grupos de brincantes de trama baseada na lenda da morte e ressurrei¢ao do precioso boi. Na brincadeira, 0 boi é a representacao plastica do bicho — uma carcaga, feita de bambu, madeira leve, ou material andlogo, coberta de te- cido e com uma mascara como cabeca, animada por um brincante, acompanhado de outros personagens. Quanto a palavra Bumba/ Bumbar (ou a corruptela Bumba), presente em certos nomes do folguedo, ha diferentes sugestoes de interpretacao. Hermilo Borba Filho (1966, p. 10) menciona dois sentidos. ‘Bumba’ derivaria da expressio ‘Zabumba meu boi’, isto é, o boi dangaria acompanhando © ritmo do zabumba (tambor grande, tocado em posi¢io vertical com uma s6 maceta). Entretanto, ha também no portugués o verbo bumbar, que significa bater fortemente e mesmo surrar. Borba Filho favorece esse segundo sentido, marcante nas cenas de pancadaria na farsa. Camara Cascudo (1984, p. 150) aponta direcao semelhante: ‘Bumba’ equivaleria a uma interjeicio correspondente a idéia de choque, batida. Dizer Bumba-meu-boi seria como exclamar: “Bate!, Chifra, meu boil, voz de excitagao repetida nas cantigas do auto.” Se lembrarmos que tambores so tocados com pancadas, e que o material dos mitos, lendas ¢ ritos resulta de diversas operagdes simbélicas (tais como deslocamentos, condensagoes, super- 1022 HISTORIA, CIENCIAS, SAUDE Vol. VI (suplemento) (© BOI-BUMBA DE PARINTINS imposigdes), podemos ter em mente esses sentidos diversos a que alude o termo bumba/bumbé como surrar, bater e dancar. Em tomo do tema bdsico da morte e ressurrei¢ao do boi, ha também indGmeras variagdes da lenda. E importante nfo conferir apressadamente a uma versio especifica 0 atributo da autentici- dade. Pois a lenda (com suas muitas variantes) acompanha, ou nao, as diversas formas da brincadeira. Muitos registros e pesquisas sequer a mencionam na descrigio do auto, sendo impossivel saber se essa auséncia € um lapso de pesquisa ou um dado da propria realidade. Porém, mesmo quando ausente, a lenda insinua-se de modo latente. O tema da morte e ressurreigao do bem precioso sugere 0 nticleo de um enredo dramatico assim explicitado: era uma vez um precioso boi que um rico fazendeiro deu de presente a sua filha querida, entregando-o aos cuidados de um vaqueiro de confianga (Pai Fran- cisco, representado como um negro). Pai Francisco, entretanto, mata o boi para satisfazer o desejo de sua mulher gravida (Mae Catirina). O fazendeiro percebe a falta do boi e manda © vaqueiro chefe investigar 0 ocorrido. O crime é descoberto e, depois de alguns per- calcos, chamam-se os indios para ajudar na captura de Pai Francisco. Trazido presenga do fazendeiro, ele € ameagado de punigio. Desesperado, ele tenta, ¢ ao final consegue, ressuscitar 0 boi, com © auxilio de personagens que variam: 0 médico (e/ou) o padre (e/ou) o pajé. Esse pequeno niicleo € quase simplério em sua aparéncia. A longa histéria do folguedo no pais atesta, entretanto, sua forga como dispositivo simbélico capaz de se adaptar 4 contextos particulares. Observo que nele interagem, de modo tenso e cheio de ambi valéncias, categorias étnicas e sociais basicas da historia do Brasil: © branco, o negro ¢ 0 indio. A ressurrei¢ao do boi, por sua vez, pa- rece sempre simbolizar a instauragao de uma nova ordem social.” No tema da morte € da ressurreigo do boi, muitos estudiosos localizaram o principio de inteligibilidade da peca. O tema forneceria ao folguedo uma “estrutura central” ou “basic”, um “enredo central”, um “nticleo fixo”, uma “unidade de base”, um “eixo” enfim. Todos logo admitem, entretanto, que essa “estrutura basica” nao € capaz de explicar completamente o folguedo. A ela logo se acrescentam invariavelmente o improviso, a fragmentagao e a variedade (Andrade, 1982; Pereira de Queiroz, 1967, Galvao, 1951; Meyer, 1991, 1963; Monteiros, 1972; Borba Filho, 1966; Camara Cascudo, 1984; Salles, 1970). A interpretagio da lenda, em suas muitas variantes, e a compreensao de sua relag’io com 0 folguedo sao importantes ques- tes de pesquisa. No momento, ressalto que a énfase do Bumba- meu-boi estd na ag4o. O precioso boi mitico, em tomo do qual um vasto universo simbdlico ganha forma, é também um emblema para a organizacao de grupos de brincantes, e uma maneira de SETEMBRO 2000 1023 MARIA LAURA V. DE CASTRO CAVALCANTI estabelecer a rivalidade entre eles. Os grupos chamam-se Bois, e atribuem-se nomes individuais caracteristicos: Boi Misterioso, Tira- teima, Cana-verde, Mimo de Sao Joao, Fé em Deus, ¢ assim vai pelo pais afora. O Boi é uma organizacao local, rural ou urbana, de um bairro ¢ seus arredores, e a existéncia de um Boi num local chama a de outros, pois rivalizar € parte importante da brincadeira. A encena¢ao do Boi-Bumba é muitas vezes definida como um auto popular, termo que alude as formas alegoricas do teatro medieval e, no ambito do folclore, a formas teatrais cuja ribalta é a rua ou a praga publica. H4 quem prefira chamé-la de ‘farsa’, ressaltando o cardter burlesco, a presenca do baixo cémico, do riso grotesco. Entre as décadas de 1930 e 1940, Mario de Andrade situou o Boi- Bumbé no contexto das “dangas dramaticas”, expressdo cunhada por ele para demonstrar a unidade cultural subjacente a fatos até entao chamados por diferentes nomes. Na década de 1950, os estudiosos do folclore inclufam-no na categoria ‘folguedo’, assinalando 0 cardter festivo caracteristico da encenacio, além da combinagao de misica, danga e drama. ‘A busca das origens, geralmente mais miticas do que historicas, tem também atraido estudiosos. Camara Cascudo (op. cit., pp. 150, 153) no precioso verbete sobre o tema, menciona a poderosa figura do touro, presente em “prodigiosa bibliografia no dominio mitico, hinos védicos, lendas hindus, tradigdes bramanes, iranianas, turianas, eslav6nicas, germanicas, escandinavas, francas, celtas, gregas, latinas”. Contudo, ao indagar sobre origens historicas concretas, detém-se na peninsula Ibérica, como o faz a maior parte dos pesquisadores. Ressalta entao as ‘tourinhas’, touradas fingidas, e a popularidade da figura do boi em diversas procissées catlicas da regido. O auto brasileiro seria entretanto uma “criagao genial do mestigo”: “O boi de canastra portugués surgiu no meio da escravaria rural, sem a imitagao da tourada, bailando, saltando, espalhando o povo folio.” Camara Cascudo viu no Bumba-meu- boi “um auto de excepcional plasticidade ¢ o de mais intensa penetracio afetuosa e social”, “o nico folguedo brasileiro em que a renovacdo temética dramatiza a curiosidade popular, atualizando-a. E sua alteragio no prejudica a esséncia dinamica do interesse folclorico, antes o revigora numa expressao indizivel de espontaneidade e de verismo.” © Bumba na Amazénia Se é verdade que uma forma particular da brincadeira do boi alude a todas as outras, € preciso também situd-las em seus contextos histricos e sociolégicos proprios.’ As caracteristicas de perme- abilidade e abertura ao ambiente cultural da brincadeira se exercem e ganham sentido em situagdes concretas. A regiao amazénica, 1024 HISTORIA, CIENCIAS, SAGDE Vol. VI (suplemento)

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